Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A183
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ACTUALIZAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
JUROS
Nº do Documento: SJ2008O304001836
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - Tendo o Autor solicitado ao Réu, enquanto médico anatomopatologista, a realização de um exame médico da sua especialidade, mediante pagamento de um preço, estamos perante um contrato de prestação de serviços médicos - art. 1154.º do Código Civil.
II - A execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado, importando ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o catalogar a prioristicamente naquela dicotómica perspectiva.
III - Deve atentar-se, casuisticamente, ao objecto da prestação solicitada ao médico ou ao laboratório, para saber se, neste ou naqueloutro caso, estamos perante uma obrigação de meios – a demandar apenas uma actuação prudente e diligente segundo as regras da arte – ou perante uma obrigação de resultado com o que implica de afirmação de uma resposta peremptória, indúbia.
IV - No caso de intervenções cirúrgicas, em que o estado da ciência não permite, sequer, a cura mas atenuar o sofrimento do doente, é evidente que ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto médico não comporta, no estado actual da ciência, senão uma ínfima margem de risco, não podemos considerar que apenas está vinculado a actuar segundo as legis artes; aí, até por razões de justiça distributiva, haveremos de considerar que assumiu um compromisso que implica a obtenção de um resultado, aquele resultado que foi prometido ao paciente.
V - Face ao avançado grau de especialização técnica dos exames laboratoriais, estando em causa a realização de um exame, de uma análise, a obrigação assumida pelo analista é uma obrigação de resultado, isto porque a margem de incerteza é praticamente nenhuma.
VI - Na actividade médica, na prática do acto médico, tenha ele natureza contratual ou extracontratual, um denominador comum é insofismável – a exigência [quer a prestação tenha natureza contratual ou não] de actuação que observe os deveres gerais de cuidado.
VII - Se se vier a confirmar a posteriori que o médico analista forneceu ao seu cliente um resultado cientificamente errado, então, temos de concluir que actuou culposamente, porquanto o resultado transmitido apenas se deve a erro na análise.
VIII - No caso dos autos é manifesto que se acha feita a prova de erro médico por parte do Réu, - a realização da análise e a elaboração do pertinente relatório apontando para resultado desconforme com o real estado de saúde do doente.
IX - Por causa da actuação do Réu, o Autor, ao tempo com quase 59 anos, sofreu uma mudança radical na sua vida social, familiar e pessoal, já que se acha impotente sexualmente e incontinente, jamais podendo fazer a vida que até então fazia, e é hoje uma pessoa cujo modo de vida, física e psicologicamente é penoso, sofrendo consequências irreversíveis, não sendo ousado afirmar que a sua auto-estima sofreu um abalo fortíssimo.
X - Os Tribunais Superiores têm vindo a aumentar as compensações por danos não patrimoniais, mas a diversidade das situações e, sobretudo, não sendo comparáveis a intensidade dos danos e o grau de culpa dos lesantes, que só casuisticamente podem ser avaliados, não é legítimo invocar as compensações que são arbitradas, por exemplo, em caso de lesão mortal, com aqueloutras que afectam distintos direitos de personalidade.
XI - Atendendo aos factos e ponderando os valores indemnizatórios que os Tribunais Superiores vêm praticando, a compensação ao Autor pelos danos não patrimoniais sofridos deve ser, equitativamente, fixada em € 224.459,05.
XII - No caso dos autos, não tendo havido actualização da indemnização, e radicando, em última análise, o pedido indemnizatório, num facto ilícito cometido pelo Réu, tem pertinência a aplicação do regime constante da 2.ª parte do n.º 3 do art. 805 º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou, pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, com distribuição à 5ª Vara, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

BBe sua mulher CC.

Pedindo a condenação destes a pagarem-lhe a quantia de 80.892.000$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 10%, contados desde a citação e até efectivo pagamento.

Alegou, em síntese, que:

- entregou filamentos extraídos do tecido da sua próstata no laboratório do médico anatomopatologista, ora réu, para que procedesse à sua biópsia, o que este fez, tendo-lhe entregue o respectivo resultado, em que é diagnosticado um “adenocarcinoma de grau médio de diferenciação (G 2 na classificação UICC e 2+3 na classificação de Gleason)”;

- em face de tal diagnóstico, veio a ser submetido a intervenção cirúrgica — prostatectomia radical – por via da qual lhe foi extraída a próstata na sequência do que ficou impotente e incontinente;

- a análise feita às peças extraídas do seu corpo revelou a inexistência de qualquer sinal de cancro;

- analisada a lâmina da biópsia — com cinco filamentos — que o réu oportunamente forneceu ao autor, a pedido deste, confirmada foi a inexistência de cancro;

- o réu cometeu um grosseiro erro médico que veio a causar uma ofensa muito séria no corpo e na saúde do autor, devendo indemnizá-lo pelos danos causados, indemnização que colhe abrigo, quer no instituto da responsabilidade civil — arts. 483° e segs. do Código Civil —, quer no âmbito da responsabilidade contratual, já que entre as partes foi firmado um contrato de prestação de serviços — art. 798° do mesmo diploma –, sendo caso de concurso de responsabilidades;

- teve gastos no valor de 892.000$00, sendo desse montante os danos patrimoniais sofridos e as enormes dores físicas e psicológicas por si sofridas reclamam uma indemnização por danos de natureza não patrimonial no valor de 80.000.000$00;

- a ré é também responsável, já que o réu, seu marido, além de professor da Faculdade de Medicina, exerce a profissão de médico anátomo-patologista, sendo com os honorários auferidos no exercício desta profissão que ocorre às despesas do seu agregado familiar, nomeadamente de sua mulher;

Houve contestação onde o réu impugnou factos e afirmou que mantinha “o seu diagnóstico acerca do carcinoma que detectou no material biopsado do Autor.” (sic).

Seleccionados os factos assentes e elaborada a base instrutória, realizaram-se vários exames periciais, tendo depois tido lugar a audiência de discussão e julgamento, no final da qual se proferiu despacho respondendo à matéria de facto controvertida.


Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando os Réus a pagarem ao Autor a quantia de (20.000.000$00) € 99.759,58, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento.


Apelaram o Autor e os Réus para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por douto Acórdão de 11.9.2007 – fls. 1160 a 1175 – decidiu:

“ Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação dos réus e parcialmente procedente a do autor e, consequentemente, alterando-se a sentença, condenam-se os réus a pagar ao autor a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de € 299.278,74 (60.000.000$00), a que acrescem juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo pagamento.
No mais mantém-se a sentença recorrida…”.
Inconformados, recorreram os RR. para este Supremo Tribunal de Justiça, e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

a) Provado que o autor entregou ao réu marido, na qualidade de médico anatomopatologista, filamentos de tecido prostático recolhidos em prévia biópsia para que este os analisasse histologicamente, mediante o pagamento de honorários, com o objectivo de diagnosticar a existência ou não, nos mesmos, de células cancerosas, é de concluir que foi celebrado entre ambos um contrato de prestação de serviços, nos termos do art. 1154°, do Código Civil, cujo incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do prestador de serviços das obrigações assumidas gerará, verificados os restantes pressupostos, responsabilidade contratual, pelo que decidindo de outro modo, a sentença recorrida violou o disposto nos art. 798° do Código Civil.

b) A indemnização de € 299.278,74 (60.000.000$00) a título de danos não patrimoniais, reportada a 14 de Outubro de 1998, é excessiva, porque não equitativa, apesar de o lesado ter sido sujeito a operação que não realizaria sem um diagnóstico deficiente feito pelo réu marido, que teve lugar em 31 de Março de 1998, ter estado 6 dias internado, 17 com algália, passando depois a usar fraldas, situação que à data da petição (o mais tardar no início de Outubro de 1998) já apresentava melhoras, ter ficado com disfunção eréctil, com impotência absoluta, cicatriz entre o umbigo e a púbis, dores durante cerca de seis meses, angústia, depressão durante cerca de seis meses e impedido até ao início de Outubro de 1998 de manter a vida social.

c) Pois é necessário considerar ainda que em 1998 as indemnizações arbitradas em situações idênticas ou até mais graves eram então significativamente inferiores a tais montantes, que o réu marido responde apenas por culpa presumida por não se ter provado qual a ofensa concretamente causada ao padrão de conduta profissional de um médico satisfatoriamente competente, prudente e informado”, que a responsabilidade por acto médico é essencialmente uma responsabilidade pela violação de deveres de meios, que a ré mulher responde por efeito da mera regra excepcional da comunicabilidade da responsabilidade, não sendo ela própria lesante, que o réu marido é pessoa que vive do produto do seu trabalho e que a ré mulher é doméstica e que o autor, lesado, tinha à data dos factos a idade de 58 anos, estando a três meses de perfazer os 59 anos.

d) Fixando a indemnização, por referência a 1998, em montante superior a € 35.000,00, a sentença recorrida violou o disposto no art. 496°/3, 1ª parte, do Código Civil.

e) E tal obrigação de indemnização não vence juros desde a data da citação, mas apenas desde a data da decisão que fixe a indemnização, pois trata-se de crédito ilíquido, porque quantitativamente indeterminado até à decisão que puser termo à causa e consubstancia um caso de responsabilidade obrigacional ou contratual, pelo que decidindo de outro modo, a sentença recorrida violou o disposto no art. 805°, do Código Civil, particularmente o respectivo n°3.

Nestes termos, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que condene os réus a pagarem ao autor a quantia de € 35.000,00, acrescida de juros vincendos, desde a data da decisão e até integral cumprimento.

O Autor contra-alegou, batendo-se pela confirmação da sentença.


Colhidos os vistos legais, tendo em conta que as Instâncias consideraram provados os seguintes factos:


1. O Autor nasceu em 18 de Junho de 1939. -a)

2. Casou em 4 de Setembro de 1965. -b)

3. O Autor sempre gozou de excelente saúde. -c)

4. A análise do PSA pode detectar precocemente o cancro na próstata. -d)

5. Um PSA de 9.10 é considerado um valor alto e significativo. -e)

6. Entre os 50 e os 59 anos, o normal do PSA situa-se entre os 0.5 e 2.9. -1)

7. A intervenção cirúrgica de prostatectomia radical é uma operação para remover a próstata com vista à cura do cancro localizado nesse órgão. -g)

8. O cancro da próstata é o mais frequente dos tumores malignos, no homem adulto. -h)

9. A biópsia permite colher, com uma agulha conduzida ecograficamente, pequenos cilindros de tecido prostático posteriormente analisados histologicamente por forma a determinar as características das células do eventual tumor, podendo estabelecer-se um prognóstico em conformidade com a maior ou menor diferenciação celular, sendo este o único método que garante a certeza do diagnóstico, isto é, que garante se se trata de cancro. -i)

10. Como princípio geral, os filamentos do tecido da próstata devem ser identificados de acordo com os locais de onde foram retirados para que, em caso de se detectar um tumor canceroso, seja possível determinar a sua localização. -j)

11. A seguir, cada conjunto de filamentos é colocado em parafina líquida, a qual, depois de solidificada, fica constituindo um bloco no qual está integrado o filamento. -k)

12. Este bloco é, em seguida, cortado em fatias de microns de espessura sendo essas fatias colocadas em lâminas para observação ao microscópio. -1)

13. Um bloco pode ser seccionado de forma semelhante a uma peça de fiambre a que se retiram fatias -m)

14. É possível, segundo a técnica descrita, retirarem-se várias lâminas para observação ao microscópio. -n)

15. Em termos gerais, que podem variar em cada caso concreto, na boa técnica, além dos cilindros de tecido prostático recolhidos serem identificados, deverá, no caso de diagnóstico positivo, indicar-se quais os cilindros atingidos e qual a percentagem de tecido afectado. -o)

16. Quando é encontrado cancro, a intervenção cirúrgica, apesar das graves consequências que normalmente desencadeia, é, de acordo com os conhecimentos actuais, a única solução recomendável se o cancro estiver confinado à próstata. -p)

17. Se houver células cancerosas fora da próstata, a solução recomendada não é cirúrgica. -q)

18. Esta operação chama-se prostatectomia radical e é feita por incisão entre o umbigo e a púbis. -r)

19. Em princípio, os gânglios são então vistos em análise extemporânea, ou seja, são analisados, durante a operação, por um médico anátomo-patologista que se encontra na sala de operações ou junto a esta. -s)

20. Quase sempre esta intervenção, de acordo com os conhecimentos existentes à data da operação, dá origem a impotência e algumas vezes a incontinência urinária; no entanto, e em virtude das muito rápidas evoluções que a medicina está a registar, essas situações podem, a curto prazo, ser alteradas. -t)

21. Ao invés, quando no exame histológico extemporâneo dos gânglios se verifica haver já metástases, a cirurgia deve ser interrompida. -u)

22. Nestes casos, em que não é já possível inverter o curso da doença, é, de acordo com os conhecimentos existentes à data da operação, apenas aconselhável uma terapia paliativa hormonal por forma a garantir uma boa qualidade de vida do doente. -v)

23. No caso concreto, a recolha para biópsia foi feita pelo Sr. Dr. DD, médico da EE– Cuidados de Saúde, Lda., clínica sita na ..........., .... – 2° Esq., 1700 Lisboa. -w)

24. Por indicação dos médicos da EE, o próprio Autor entregou os filamentos que recebeu do consultório do Dr. DD na residência e laboratório do anátomo-patologista, Prof. Dr. FF, o Réu-marido, na Av. ........., .... – .... Esq., em Lisboa, para que este procedesse ao exame dos ditos filamentos – o que o Réu-marido fez. -x)

25. Em 2 de Março de 1998, o Réu-marido entregou ao Autor o resultado da biópsia, em que é diagnosticado um “adenocarcinoma de grau médio de diferenciação (G 2 na classificação UICC e 2+3 na classificação de Gleason)”. -y)

26. A irmã do Autor, GG, solicitou ao Réu-marido a entrega de uma lâmina da biópsia que havia sido entregue ao Réu-marido, a qual foi entregue àquela cerca de uma semana mais tarde. -z)

27. Foram efectuados os relatórios médicos constantes dos docs. n°s 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 juntos à petição inicial – aa)

28. Foram efectuados os relatórios médicos constantes dos docs. 1 e 2 juntos à contestação. -bb)

29. O Réu-marido, além de Professor da Faculdade de Medicina, exerce a profissão de médico anátomo-patologista. -cc)

30. Isto é, faz exames próprios da especialidade e elabora os respectivos relatórios, cobrando, em contrapartida, os correspondentes honorários. -dd).

31. E é com esses honorários que o Réu-marido ocorre às despesas do seu agregado familiar, nomeadamente da sua esposa, a ora-Ré. -ee)

32. O Autor fazia todos os anos um exame geral ou check-up. - 1°

33. O que acontecia ou na Clínica do Dr.HH ou na Clínica de..... – 2°

34. Foi a esta última Clínica que o Autor recorreu em Junho de 1997. - 3º

35. E mostrou os resultados ao seu médico-assistente há mais de 28 anos, o Sr. Dr. II, com consultório na Av. da ......., ....... – 1°, 1250 Lisboa. -4°

36. O Autor sofria apenas de colesterol ligeiramente elevado e de uma hipertrofia benigna da próstata. -5°

37. Para tratamento do colesterol elevado, o Autor fez uma dieta pobre em gorduras, após o que voltou ao consultório do Sr. Dr. II em 14 de Janeiro de 1998. -6°

38. Nessa consulta o Autor perguntou ao seu médico se seria útil submeter-se a uma análise do PSA. -7°

39. O que o Dr. II considerou útil. -8°

40. O Autor sujeitou-se a essa análise, em 21 de Janeiro de 1998, no Laboratório de Patologia Clínica.........e R. R. ....., Lda., sito na .................., .... – 1° Esq., 1000 Lisboa. -9°

41. Perante o resultado da análise, o Sr. Dr. II recomendou ao Autor que procurasse, com brevidade, um urologista. - 10°

42. O Autor falou então com o seu primo direito, Professor Doutor JJ, professor de gastrenterologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, que lhe indicou o nome de dois urologistas por ele considerados muito competentes: o Sr. Dr. KK e o Professor Doutor LL. -11°.

43. O Autor optou pelo primeiro que consultou em 2 de Fevereiro de 1998. - 12°

44. O Sr. Dr. KK estranhou o resultado da análise. - 13°

45. E para confirmação, mandou repetir a análise (PSA) em dois laboratórios. - 14°

46. O que o Autor fez em 11 de Fevereiro de 1998. - 15°

47. No laboratório ......... e R. R. ......, Lcla., o resultado do PSA foi de 8.76.-16°

48. No Laboratório de Análises Clínicas da Professora Doutora MM e do Dr. NN, Lda., sito na ........, .. – .. Esq., 1700 Lisboa, o resultado foi de 9.7. – 17°

49. O urofluxograma – exame também recomendado pelo Sr. Dr. KK – e feito na Clínica São João de Deus, Rua ........, ..., 1700 Lisboa, concluiu que existia “uma disfunção miccional de tipo obstrutivo moderada/grave.” -18°

50. Em 20 de Fevereiro de 1998, o Autor procurou, de novo, o Sr. Dr. KK, levando-lhe o resultado das análises – 19º.

51. O Autor foi então informado por este urologista de que, provavelmente, sofreria de cancro na próstata. -20°

52. Mas que o PSA elevado poderia também dever-se a outras causas, nomeadamente a uma prostatite que é uma inflamação da próstata que não assume gravidade. - 21º

53. O Sr. Dr. KK recomendou então a realização de uma biópsia. - 22°.

54. Na mesma altura, o Sr. Dr. KK comunicou ao Autor que, se a biópsia fosse positiva, seria necessária uma intervenção cirúrgica de prostatectomia radical. -23°

55. Se os gânglios não estão atingidos, procede-se ao seccionamento da uretra, retirando-se a parte envolvida pela próstata. -24°

56. E são também retiradas as duas vesículas seminais e os nervos erectores de um ou dos dois lados. -25°

57. Perante o resultado referido na alínea Y) da matéria de facto assente, o Autor resolveu ouvir a opinião de outro médico e consultou, por isso, o Professor Doutor LL, com consultório na Avenida ............s, .. –.....º., 1050 Lisboa. -26°

58. O Professor Doutor LL, em face do resultado da biópsia, recomendou, em 4 de Março de 1998, que o Autor fizesse um exame de gamografia óssea para se verificar se o seu esqueleto estava já, ou não, atingido pelo cancro. -27°

59. Esse exame foi feito, em 6 de Março de 1998, pelo Laboratório de Medicina Nuclear, Lda., (A......., sito na Rua ......... Lote ..., 1600 Lisboa. -28°

60. O exame nada detectou de anormal. -29°

61. Em 9 de Março de 1998, o Autor deslocou-se a Paris para ouvir a opinião do Professor Doutor B.....................r, Chefe do Serviço de Urologia do Hospital Necker. -30°

62. Este, lendo o diagnóstico escrito pelo Réu-marido, disse ao Autor que a solução seria de facto a intervenção cirúrgica, com prostatectomia radical. -31°

63. Contudo, o Professor B...... Dufour propôs ao Autor que a lâmina da biópsia fosse examinada por um anátomo-patologista francês, de sua confiança. -32°

64. O Autor regressou a Lisboa, depois de ter telefonado à irmã, mas antes de a mesma ter recebido a lâmina da biópsia. -33°

65. O tratamento proposto pelo Professor B...............D coincidia, em absoluto, com o tratamento proposto pelo Professor Doutor LL. -34°

66. O Autor não viu qualquer razão para que a intervenção cirúrgica não se fizesse em Lisboa. -35°

67. O Autor guardou a lâmina da biópsia (lâmina com cinco filamentos - Ref. 64707/98). -36°

68. A operação foi marcada para 31 de Março de 1998. -37°

69. Entre 23 a 30 de Março, o Autor fez três recolhas de sangue para utilização durante e após a intervenção cirúrgica. -38°

70. Em 30 de Março de 1998, o Autor foi internado no Instituto de Urologia, sito nas Torres de Lisboa, R. ................, Edifício ..., 1600 Lisboa. -39°

71. A operação foi feita pelo Professor Doutor LL e pela sua equipa, composta pelos médicos, Drs. PP, QQ e RR e pela enfermeira, OO. -40°

72. O Autor saiu do Instituto de Urologia, no dia 6 de Abril, indo convalescer para sua casa. -41°

73. O Autor manteve-se algaliado desde a intervenção cirúrgica até 17 de Abril de 1998. -42°

74. A partir de 17.04.1998 o Autor deixou de conseguir reter a urina, passando a usar fralda. -43° e 81°.

75. Situação que se mantém até hoje embora com algumas melhoras. -44°

76. O Autor ficou a sofrer de disfunção eréctil. -45°

77. Não consegue a erecção do pénis por forma a manter relações sexuais normais de cópula completa. -46°

78. Até então, o Autor tinha, por semana, uma média de três relações sexuais de cópula completa, com introdução total do pénis na vagina da sua parceira -47°

79. Após a operação, o Autor procurou o Professor Doutor LL que lhe disse ter ele, Autor, ficado completamente livre do cancro. -48°

80. O Autor pediu ao Professor Doutor LL que lhe fizesse chegar à mão o relatório do anátomo-patologista que acompanhara a operação e que procedera à análise das peças que tinham sido extraídas do seu corpo. -49°

81. Esse relatório foi entregue ao Autor pela enfermeira OO, colaboradora do Professor LL, e por indicação deste. -50°

82. O dito relatório, datado de 8 de Abril de 1998, elaborado pelo Dr. SS, concluía que não tinha sido encontrado qualquer sinal de cancro – “não se tendo encontrado qualquer foco neoplásico”. -51°

83. Refere o relatório que o facto de se não encontrar cancro na peça é uma situação referida na literatura da especialidade como “vanishing cancer phenomenon”, isto é, fenómeno de cancro que desaparece. -52°

84. Isto devido a, em certos casos, o tecido neoplásico ser de tão escassas dimensões que pode ter sido “interessado” na totalidade nos cilindros da biópsia, isto é, ter desaparecido com a biópsia. -53°

85. O Autor contactou o seu médico assistente, Dr. II, que não conseguiu dar-lhe uma explicação satisfatória. -54°

86. De seguida, o Autor voltou a falar com o seu primo, Professor Doutor JJ. -55°

87. O qual declarou não ter resposta para as dúvidas do Autor. -56°

88. E contactou com o Professor Doutor TT, Professor Catedrático de Anatomia Patológica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. -57°

89. Este, após exame da lâmina fornecida pelo Réu-marido e em posse do Autor (Refª 64707/98), confirmou a não existência de cancro. -58°

90. O Autor procurou o Professor Doutor UU, Chefe de Serviço de Anatomia Patológica do Instituto de Oncologia Francisco Gentil do Porto e Professor de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina do Porto, que atestou que os tecidos, constantes da lâmina referida em 58°, mostravam sinais de prostatite, mas que não evidenciavam alterações de malignidade. -59°

91. Em 4 de Junho de 1998, o Autor consultou a Professora Doutora VV, professora de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade Clássica de Lisboa e Directora do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de Santa Maria, e o diagnóstico foi no sentido de que não havia cancro. -60°

92. O Autor deslocou-se a Barcelona, tendo sido recebido pelo Professor XX, do Instituto de Urologia, Nefrologia e Andrologia do Hospital de La Santa Creu, San Pau, da Universidade Autónoma de Barcelona (Fundació Puigvert). -61°

93. O Professou A.......a é considerado um dos melhores em Espanha. -62°

94. O Professor XX elaborou e entregou ao Autor, em 8 de Junho de 1998, relatório que confirma os anteriores diagnósticos. -63°

95. Em 19 de Junho de 1998, o Autor obteve um parecer do Professor Doutor M....... que também menciona não terem sido encontrados sinais de cancro. -64°

96. O Professor Doutor M.......é professor catedrático de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e Chefe do Serviço de Anatomia Patológica dos Hospitais da Universidade de Coimbra. -65°

97. O Professor D...... S....., professor de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Director do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de São João do Porto, atestou, em 26 de Agosto de 1998, que os fragmentos de próstata analisados colhidos por biópsia não apresentavam sinais de cancro. -66º.

98. O mesmo Professor observou também as lâminas pós-operatórias feitas a partir da próstata e vesículas seminais do Autor, confirmando, em todos os casos, a inexistência de cancro. -67°

99. Em 7 de Setembro de 1998, a Sra. Dra. ZZ, Chefe de Serviço de Anatomia Patológica do Hospital da Universidade de Coimbra, também referia que o Autor sofria de prostatite mas não de cancro. -68°

100. Foi com base no relatório elaborado pelo Réu-marido que o Professor Doutor LL decidiu operar o Autor. -69°

101. O Autor não teria sido submetido a qualquer intervenção cirúrgica por sofrer de uma prostatite. -70°

101. A prostatite é uma inflamação tratável por meios não cirúrgicos e muito menos através de uma prostatectomia radical. -71°

102. O Autor foi submetido, em 11 de Maio de 1998, a uma Junta Médica e foi-lhe atribuída uma incapacidade permanente global de 80%, não susceptível de reavaliação – 72°

103. Esta incapacidade teve como base a circunstância de o Autor sofrer de cancro. -73°

104. Quando apenas sofria de prostatite -74°

105. O Autor despendeu quantia não apurada nas deslocações ao Porto, a Coimbra, a Paris e a Barcelona e em fraldas. - 75° a 79° e 82°

106. O Autor efectuou as deslocações supra referidas com vista à obtenção dos relatórios médicos referidos nos factos 92 e 94 a 99. -80°

107. Após a operação e como consequência desta, o Autor ficou completamente impotente. - 83°

108. Tem uma cicatriz localizada entre o umbigo e a púbis. -85°

109. Sofreu dores no pós-operatório. - 86°

110. Manteve durante vários meses dores no nervo dermofemural da perna direita. -87°

111. O que o levou mesmo a consultar um neurologista, o Professor Doutor A....... T...... -88°

112. O Autor sofreu angústia quando tomou conhecimento do relatório elaborado pelo Réu-marido. - 89°

113. Angústia que se manteve até que obteve a confirmação de que afinal não tinha cancro. – 90º

114. A circunstância de estar impotente e incontinente causou, e continua a causar, uma depressão ao Autor. - 91°

115. O Autor era um homem alegre e bem disposto. - 92°

116. Transformou-se numa pessoa azeda e insatisfeita com a sua vida. - 93°

117. O Autor é administrador de empresas. -94°

118. Os factos referidos em 74, 111, 113, 114 e 117 impedem-no de manter a vida social. - 95°

119. É provável que o Autor venha a ser sujeito a consultas, exames e análises 96°

120. É provável que o Autor seja submetido a uma operação cirúrgica para colocação, na uretra, de um esfíncter artificial. - 97°

124. O Autor nunca contactou os Réus para qualquer esclarecimento relativo ao relatório que o 1° Réu fez. -99°

125. O Réu colocou o material observado em lâminas que foram identificadas sob o n°64707/98, segundo uma numeração que lhe atribuiu. - 102°

126. Após o relatório de fls. 32, o 1° Réu guardou uma lâmina que se encontra guardada no cofre. - 103° e 104°

127. O carcinoma da próstata diagnostica-se microscopicamente pelo facto de o tecido respectivo ser constituído por células que perderam as características habituais do órgão e, em geral, se disporem de maneira anárquica. -107°

128. estabeleceu 5 graus histológicos, em que o grau 1 tem glândulas cujas células ainda lembram o normal e o grau 5 já não mostra vestígios da próstata, incluindo a própria formação de glândulas (ainda reconhecíveis até ao grau 4). -108°

129. Os tumores de grau 1 têm melhor prognóstico, o qual vai evoluindo negativamente até à situação mais grave, que é a de grau 5.- 109°

130. Nem o Autor, nem nenhum dos seus médicos, nem ninguém por eles, pediu ao 1° Réu qualquer esclarecimento acerca do seu diagnóstico ou da lâmina por si fornecida. -113°

131. O 1° Réu trabalha diariamente em patologia urológica há mais de 30 anos, colaborando com a maior parte dos especialistas de Lisboa. -124°

132. O 1° Réu é Professor Catedrático, actualmente jubilado, e tem uma vasta obra no domínio da anatomia patológica, com reconhecimento nacional e internacional. – 125º

133. O 1° Réu é reconhecido como um especialista muito competente, empenhado e sério nas áreas onde exerce a sua profissão, designadamente nos exames histológicos efectuados sobre biopsias da próstata – 126°

134. O 1° Réu tem sido saudado como um cientista de elevada craveira e um médico de mérito invulgar. - 127°


Fundamentação:


Sendo pelo teor das conclusões do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- qual o tipo de responsabilidade civil que está em causa;

- se o montante dos danos não patrimoniais é excessivo;

- desde quando são devidos juros de mora; desde a data da citação, ou da decisão que definitivamente dirima o litígio.

Os autos versam a questão da responsabilidade civil pela prática de acto médico, entendido o conceito como acto executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnóstica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas, estando o recorrente de acordo que sobre si impende responsabilidade civil, em virtude do exame a que procedeu, para averiguar se o Autor padecia de cancro na próstata, ter concluído pela existência de tal maligna doença que, foi determinante para a intervenção cirúrgica para extirpação total de tal órgão – prostatectomia total – quando, afinal, o Autor apenas padecia de prostatite (inflamação da próstata e não de cancro).

As partes não dissentem que celebraram um contrato de prestação de serviços – art. 1154º do Código Civil – e assim considerou a decisão recorrida.

Com efeito, o facto do Autor, mediante pagamento de um preço, ter solicitado ao Réu, enquanto médico anatomopatologista, a realização de um exame médico da sua especialidade, exprime vinculação contratual.

Estamos perante um contrato de prestação de serviços médicos.

A violação do contrato acarreta responsabilidade civil – obrigação de indemnizar desde que o devedor da prestação – no caso o Réu – tenha agido voluntariamente, com culpa (dolo ou negligência), tenha havido dano e exista nexo de causalidade entre o facto ilícito culposo e do dano – art. 483º, nº1, do Código Civil.

“O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” — artigo 762.°, nº1, do Código Civil, devendo actuar de boa-fé — nº2 do falado normativo.

“O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor” — artigo 798° do mesmo diploma.

“Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua” — nº1 do artigo 799° do Código Civil.

O nº2 deste normativo estatui que “a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil”.

Importa, então, apurar se o apelante agiu com culpa e, se assim se considerar, se ilidiu a presunção que sobre si impende.

“Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável. E o juízo de censura ou de reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia como podia ter agido de outro modo” — “Das Obrigações em Geral”, vol. II, pág. 95, 6ª edição – Professor Antunes Varela.

O mesmo tratadista define-a como “o nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto ilícito ao agente” — RLJ 102-59.

Por imposição do artigo 799°, nº2 do Código Civil é aplicável a regra do artigo 488.° segundo a qual a culpa se afere por um padrão abstracto, tendo como paradigma a diligência própria de um bom pai de família que actuasse nas concretas circunstâncias que se depararam ao obrigado.

As normas citadas são inquestionavelmente aplicáveis à responsabilidade civil contratual, onde vigora a presunção de culpa do devedor, incumbindo-lhe ilidir a presunção de que o incumprimento da prestação não procede de culpa sua, entendido o conceito de incumprimento em sentido lato, abrangendo o cumprimento defeituoso.

Baptista Machado, in “Resolução por Incumprimento”, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, 2º, 386, define deste modo, o conceito de “cumprimento defeituoso ou inexacto”:

a) É aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correc­ção e boa fé.
b) A inexactidão pode ser quantitativa e qualitativa.
c) O primeiro caso coincide com a prestação parcial em relação ao cumprimento da obriga­ção.
d) A inexactidão qualitativa do cumprimento em sentido amplo pode traduzir-se tanto numa diversidade da prestação, como numa deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma ou na existência de direitos de terceiro sobre o seu objecto”.

A responsabilidade civil é extracontratual se a obrigação incumprida tem origem em fonte diversa de contrato.

Tal responsabilidade resulta da violação de deveres de conduta, vínculos jurídicos gerais impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos – Almeida Costa, in “ Direito das Obrigações”, 5ª edição, pág. 431.

O cumprimento da obrigação pode implicar para o devedor a assunção de uma obrigação de meios ou de uma obrigação de resultado.

Segundo aquele civilista a “obrigação de meios” existe quando o devedor apenas se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza – “Direito das Obrigações”-733.

O Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 5ª edição, 2º, define obrigação de resultado “como aquela em que o devedor, ao contrair a obrigação, se compromete a garantir a produção de certo resultado em benefício do credor ou de terceiro”.

O Professor Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, 1980, 1º-358 define-a:

“Como aquela em que o devedor está adstrito à efectiva obtenção do fim pretendido”.

Como refere o Professor Antunes Varela, no 2º volume da obra citada, 5ª edição, pág.10:

“Nas obrigações de resultado, o cumprimento envolve já a produção do efeito a que tende a prestação ou do seu sucedâneo, havendo, assim, perfeita coincidência entre a realização da prestação debitória e a plena satisfação do interesse do credor ”.

A execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado.

É comum considerar-se que a prática de acto médico coenvolve da parte do médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e saber profissionais, a assunção de obrigação de meios.

Existe incumprimento se é cometida uma falta técnica, por acção ou omissão dos deveres de cuidado, conformes aos dados adquiridos da ciência, implicando o uso de meios humanos ou técnicos necessários à obtenção do melhor tratamento.

Casos há em que o médico está vinculado a obter um resultado concreto, sendo exemplo mais frequente a cirurgia estética de embelezamento, [como afirmam os civilistas brasileiros], mas já não a cirurgia estética reconstrutiva, sendo esta geralmente considerada com exemplo cirúrgico de obrigação de meios.

Os actos cirúrgicos comportam alguma margem aleatória que pode contender com o resultado; nestes casos o erro médico é mais dificilmente descortinável.
Mas é aí que o médico deve agir, com redobrada cautela, observando os dados adquiridos pela ciência, ou seja, adoptando os procedimentos mais evoluídos da técnica.

Assim, se considerarmos que a prestação do Réu envolvia uma obrigação de meios, provado no caso da análise que lhe competia fazer actuou com os deveres de prudência e a técnica sugerida pelas legis artis – não estaria ele vinculado a determinar, com rigor, se o material biológico que se comprometeu analisar tinha ou não células cancerígenas.

Com o devido respeito, entendemos que face ao avançado grau de especialização técnica dos exames laboratoriais, estando em causa a realização de um exame, de uma análise, a obrigação assumida pelo analista é uma obrigação de resultado, isto porque a margem de incerteza é praticamente nenhuma.

Mal estariam os pacientes se os resultados de análises, ou exames laboratoriais, obrigassem, apenas, os profissionais dessa especialidade a actuar com prudência, mas sem assegurarem um resultado; dito prosaicamente, concluiriam o exame e a sua obrigação estava cumprida se afirmassem ao doente – eis o resultado mas não sabemos se em função do que foi analisado padece ou não de doença.

Importa, pois, ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o catalogar a prioristicamente na dicotómica perspectiva obrigação de meios/obrigação de resultado, devendo antes atentar-se, casuisticamente, ao objecto da prestação solicitada ao médico ou ao laboratório, para saber se, neste ou naqueloutro caso, estamos perante uma obrigação de meios – a demandar apenas uma actuação prudente e diligente segundo as regras da arte – ou perante uma obrigação de resultado com o que implica de afirmação de uma resposta peremptória, indúbia.

De outro modo, a prestação devida pelo médico cirurgião que tem a seu cargo uma melindrosa intervenção cirúrgica, comportando elevado grau de risco, seja em função do estado do paciente, seja em função da gravidade da doença, seria tratada no mesmo plano que a simples realização de uma cirurgia rotineira, ou de exame laboratorial, mais a mais, se a interpretação dos resultados, no estado actual da ciência não comporta qualquer incerteza.

No caso em apreço, provou-se que o tipo de biópsia a que o Autor foi submetido e o sequente exame histológico, pode estabelecer um prognóstico em conformidade com a maior ou menor diferenciação celular, sendo este o único método que garante a certeza do diagnóstico, isto é, que garante se se trata de cancro.

No caso de intervenções cirúrgicas, em que o estado da ciência não permite, sequer, a cura mas atenuar o sofrimento do doente, é evidente que ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto médico não comporta, no estado actual da ciência, senão uma ínfima margem de risco, não podemos considerar que apenas está vinculado a actuar segundo as legis artes; aí, até por razões de justiça distributiva, haveremos de considerar que assumiu um compromisso que implica a obtenção de um resultado, aquele resultado que foi prometido ao paciente.

É de considerar que em especialidades como medicina interna, cirurgia geral, cardiologia, gastroenterologia, o especialista compromete-se com uma obrigação de meios – o contrato que o vincula ao paciente respeita apenas às legis artis na execução do acto médico; a um comportamento de acordo com a prudência, o cuidado, a perícia e actuação diligentes, não estando obrigado a curar o doente.

Mas especialidades há que visam não uma actuação directa sobre o corpo do doente, mas antes auxiliar na cura ou tentativa dela, como sejam os exames médicos realizados, por exemplo, nas áreas da bioquímica, radiologia e, sobretudo, nas análises clínicas.

Neste domínio é dificilmente aceitável que estejamos perante obrigações de meios, consideramos que se trata de obrigações de resultado.

Se se vier a confirmar a posteriori que o médico analista forneceu ao seu cliente um resultado cientificamente errado, então, temos de concluir que actuou culposamente, porquanto o resultado transmitido apenas se deve a erro na análise.

Na decisão recorrida considerou-se que, em casos como o dos autos, podem coexistir a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, entendimento amparado no Estudo publicado, in BMJ 322-21 e segs., da autoria de Figueiredo Dias e Sinde Monteiro (que aí se cita) – “O mesmo facto pode constituir uma violação do contrato e um facto ilícito…”.

O Professor Pinto Monteiro, abordando a problemática da coexistência da responsabilidade civil contratual e extracontratual, na sua obra “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil” – Almedina 2003 – depois de afirmar que a questão é “delicada e controversa não tendo sido objecto entre nós (tal como de resto, na generalidade dos sistemas) de regulamentação específica” e depois de aludir à existência de lacuna voluntária, citando Rui Alarcão, escreve – págs. 430 /431:

“… A esta luz, parece que a solução mais razoável, dentro do espírito que enforma a ordem jurídica portuguesa, é a que Vaz Serra propunha, devendo permitir-se ao lesado, em princípio, a faculdade de optar por uma ou outra espécie de responsabilidade, de cumular, na mesma acção, regras de uma e outra, à sua escolha) (1)
…Neste sentido deporá o facto, por um lado, de não poder afirmar-se uma distinção essencial ou de natureza última entre as duas formas de responsabilidade… parecendo subjacente à lei a ideia de uma unidade substancial entre ambas, que não será prejudicada pelos aspectos específicos que a responsabilidade contratual apresenta. Por outro lado, facultar ao lesado a escolha entre os regimes que melhor o protejam, no caso concreto, é a solução que melhor se ajusta ao princípio do favorecimento da vítima, princípio esse que enforma o quadro legal […].
Parece, assim, que deverá ter-se por consagrada, de iure condito, a tese da admissibilidade do concurso de responsabilidades, gozando o lesado, em princípio, da faculdade de optar por delas […].
A inclusão dos deveres de protecção no quadro contratual (Vertragsrahmen) não pode acarretar, para o lesado, a perda da protecção que lhe seria conferida pela responsabilidade extracontratual…”.

Segundo João Álvaro Dias, in “Procriação Assistida e Responsabilidade Médica”, Coimbra, 1996, pp. 221-222:

“É hoje praticamente indiscutível que a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso.
Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual.
Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração de tal acordo de vontades”.

No mesmo sentido António Henriques Gaspar, in “A Responsabilidade Civil do Médico”, in CJ, Ano III, 1978, p. 341, quando afirma:

“…Dúvidas não restam que juridicamente a relação médico-doente haverá de enquadrar-se na figura conceitual de contrato – negócio jurídico constituído por duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, ajustando-se na comum pretensão de produzir resultado unitário, embora com um significado para cada parte”.

Abordando a questão na perspectiva da responsabilidade extracontratual, afirma:

“Também, e em relação ao próprio doente, o médico apenas pode ser responsabilizado extracontratualmente, se a sua actuação, violadora dos direitos do doente é culposa, se processou à margem de qualquer acordo existente entre ambos, o que acontecerá em todos os casos em que o médico actue em situações de urgência que não permitem qualquer hipótese de obter o consentimento, o acordo do doente”.

Carlos Ferreira de Almeida, in “Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico”, comunicação apresentada ao II Curso de Direito de Saúde e Bioética”, publicada in “Direito da Saúde e Bioética” 1996, págs.81e 82: afirma:

A responsabilidade delitual constitui meio exclusivo, quando contrato não haja, e concorre com a responsabilidade contratual, quando o médico viola um direito subjectivo absoluto incidente sobre a vida ou a saúde do paciente.
“A violação de outros direitos, designadamente de natureza patrimonial, só é ressarcível em sede contratual”. (sublinhámos)

Na mesma linha, Miguel Teixeira de Sousa, in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”, Lisboa, 1996, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, p. 127, sustenta que a responsabilidade civil médica:

É contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”; “em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art. 483º, nº1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”.

Voltando à lição de João Álvaro Dias, obra citada:

“A natureza da responsabilidade médica não é unitária e (...), ao lado de um quadro contratual que constitui a regra, deparamos com situações múltiplas, em que a natureza delitual da responsabilidade é absolutamente indiscutível”.

Na actividade médica, na prática do acto médico, tenha ele natureza contratual ou extracontratual, um denominador comum é insofismável – a exigência [quer a prestação tenha natureza contratual ou não] de actuação que observe os deveres gerais de cuidado.

Tais deveres são comuns, em ambos os tipos de responsabilidade.

Com efeito, o devedor deve actuar segundo as regras da boa prática profissional, pelo que a existência de culpa deve ser afirmada se houver omissão da diligência devida, que a natureza do acto postulava em função dos dados científicos disponíveis.

Na responsabilidade contratual, o devedor arca com a presunção de culpa que lhe incumbe ilidir – art. 799º, nº1, do Código Civil – e na responsabilidade extracontratual cabe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão – art. 483º, nº1, do Código Civil.

No caso dos autos é manifesto que se acha feita a prova de um erro médico por parte do Réu, sendo de certo modo irrelevante, ao nível do grau de censurabilidade, encarar o ilícito na perspectiva da responsabilidade contratual ou extracontratual, para além de ambas os tipos de responsabilidade poderem coexistir na mesma situação, como no caso ocorre.

No recurso, a questão do ónus da prova não se discute, mas sempre se dirá, sufragando o entendimento de Manuel Rosário Nunes, in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos”, págs. 41-42:

“A doutrina e a jurisprudência italianas consideram que a ideia fundamental em matéria de ónus da prova nas acções de responsabilidade civil por actos médicos consiste em separar os tipos de intervenção cirúrgica, repartindo o ónus da prova de acordo com a natureza mais ou menos complexa da intervenção médica».
“Assim, enquanto nos casos de difícil execução o médico terá apenas alegar e provar a natureza complexa da intervenção, incumbindo ao paciente alegar e provar não só que a execução da prestação médica foi realizada com violação das leges artis, mas que também foi causa adequada à produção da lesão, nos casos de intervenção “rotineira” ou de fácil execução, ao invés, caberá ao paciente o ónus de provar a natureza “rotineira” da intervenção, enquanto que o médico suportará o ónus de demonstrar que o resultado negativo se não deveu a imperícia ou negligência por parte deste”.

Podemos, assim, considerar que a realização da análise e a elaboração do pertinente relatório não postulava risco técnico, pelo que o apontar de resultado desconforme com o real estado de saúde do doente se deveu a um erro do Réu, pese embora, o seu prestígio e reputação profissionais que os autos espelham.

Concluímos, que encarada a actuação do Réu, seja à luz da responsabilidade civil contratual ou extracontratual, está demonstrada a sua culpa e, porque se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar, terá que ressarcir o Autor dos danos sofridos em consequência do erro cometido.

No recurso discute-se o valor atribuído para ressarcir os danos não patrimoniais.

A Relação elevou para o triplo o valor atribuído na 1ª Instância, condenando os RR. a pagar a compensação de 60.000.000$00 na velha moeda (o Autor pediu a quantia de 80.000.00$00).

Sustenta o Réu que, tratando-se de sua culpa presumida (o que já vimos é entendimento que não se sufraga), e o facto dos Tribunais não atribuírem compensações de tal valor para reparar danos de mais acentuada magnitude, impõe-se que a compensação seja reduzida para 7.500.000$00.

É iniludível a existência de um dano de carácter não patrimonial sofrido pelo Autor imputável ao Réu. A consequência devastadora e irreversível foi a prostatectomia total – ablação da próstata – que deixou o Autor impotente e incontinente – quando a intervenção cirúrgica para remoção de tal órgão nem sequer se justificava, já que o Autor apenas padecia de um inflamação na próstata (prostatite) que não demanda tratamento cirúrgico.

Como se acha provado:

“ A operação foi marcada para 31 de Março de 1998. O Autor saiu do Instituto de Urologia, no dia 6 de Abril, indo convalescer para sua casa. Manteve-se algaliado desde a intervenção cirúrgica até 17 de Abril de1998. A partir de 17-04-1998 deixou de conseguir reter a urina, passando a usar fralda... situação que se mantém até hoje embora com algumas melhoras. Ficou a sofrer de disfunção eréctil. Não consegue a erecção do pénis por forma a manter relações sexuais normais de cópula completa.
Até então, o Autor tinha, por semana, uma média de três relações sexuais de cópula completa, com introdução total do pénis na vagina da sua parceira. O Autor não teria sido submetido a qualquer intervenção cirúrgica por sofrer de uma prostatite.
Foi submetido, em 11 de Maio de 1998, a uma Junta Médica e foi-lhe atribuída uma incapacidade permanente global de 80%, não susceptível de reavaliação. Esta incapacidade teve como base a circunstância de o Autor sofrer de cancro, quando apenas sofria de prostatite. Após a operação e como consequência desta ficou completamente impotente.
Tem uma cicatriz localizada entre o umbigo e a púbis. Sofreu dores no pós-operatório. Manteve durante vários meses dores no nervo dermofemural da perna direita. Sofreu angústia quando tomou conhecimento do relatório elaborado pelo Réu-marido. Angústia que se manteve até que obteve a confirmação de que afinal não tinha cancro.
A circunstância de estar impotente e incontinente causou, e continua a causar, uma depressão ao Autor. Era um homem alegre e bem disposto. Transformou-se numa pessoa azeda e insatisfeita com a sua vida. Os factos referidos impedem-no de manter a vida social. É provável que o Autor venha a ser sujeito a consultas, exames e análises. É provável que o Autor seja submetido a uma operação cirúrgica para colocação, na uretra, de um esfíncter artificial. O Autor é administrador de empresas”.

É manifesto que por causa da actuação do Réu, o Autor, ao tempo com quase 59 anos, sofreu uma mudança radical na sua vida social, familiar e pessoal, já que se acha impotente sexualmente e incontinente, jamais podendo fazer a vida que até então fazia, e é hoje uma pessoa cujo modo de vida, física e psicologicamente é penoso, sofrendo consequências irreversíveis.
Não é ousado afirmar que a sua auto-estima sofreu um abalo fortíssimo.

Dispõe o art. 496º do Código Civil:
“1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2. (...)
3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior.”

Danos não patrimoniais – são os prejuí­zos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compen­sados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização” – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, l. °-571.

São indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que “pela sua gravidade mereçam a tutela do direito” – nºs 1 e 3 do art. 496º do Código Civil.

Para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de “dano”, socorremo-nos do ensinamento dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág.501;

“O montante da indemnização correspondente aos danos não patri­moniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.
E deve ser propor­cionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”.

A compensação devida pelo dano não patrimonial tem, como reconhecem os tratadistas, além de uma função reparadora visando proporcionar ao lesado meios de natureza pecuniária que constituam lenitivo para a sua dor moral, uma função punitiva/sancionatória devendo reflectir o grau de culpa do autor do facto ilícito.

Menezes Cordeiro “Direito das Obrigações”, 2° vol, p. 288 ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”.

Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 387, sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.

Menezes Leitão realça a índole ressarcitória/punitiva, da reparação por danos morais quando escreve “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, por forma a desagravá-la do comportamento do lesante” – “Direito das Obrigações”, vol.I, 299.

Pinto Monteiro, de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante” – cfr. “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n°l, 1° ano, Setembro, 1992, p. 21.

No caso que nos ocupa, o dano foi a integridade física do Autor – um direito de personalidade – como tal absoluto e inviolável.

O erro médico de que foi vítima causou-lhe dano corporal de muita gravidade, que deixou sequelas permanentes, quer a nível psicológico, quer a nível físico.

Mas será que a compensação arbitrada é equitativamente de manter, ou deve antes ser diminuída tão acentuadamente quanto os recorrentes propugnam?

O critério norteador é do da equidade.

A equidade é um “termo de procedência latina (aequitas) com o significado etimológico e corrente de “igualdade”, “proporção”, “justiça”, “conveniência”, “moderação”, “indulgência”, é utilizado na linguagem da ética e das ciências jurídicas sobretudo para designar a adequação das leis humanas e do direito às necessidades sociais e às circunstâncias das situações singulares (a equidade é, por assim dizer, a “justiça do caso concreto”) …
[…] A equidade ocupa um lugar muito importante no domínio da experiência jurídica, a ela se apelando para o desempenho de múltiplas funções práticas: interpretação e individualização das normas, correcção da lei, moderação da legalidade estrita e humanização do direito, flexibilização dos enunciados normativos (ius aequum), integração de lacunas, critério de decisão autónoma do julgador (juízo de equidade ou ex aequo et bono)” – “Logos Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia” – pág.126.

Entre os factores a ponderar numa decisão equitativa, sobretudo em matéria indemnizatória, não podem os Tribunais, por razões de justiça relativa, deixar de atender à sua prática, no que concerne à fixação de compensação por tais danos.

É hoje reconhecido que os Tribunais Superiores têm vindo a aumentar tais compensações, mas a diversidade das situações e, sobretudo, não sendo comparáveis a intensidade dos danos e o grau de culpa dos lesantes, que só casuisticamente podem ser avaliados, não é legítimo invocar as compensações que são arbitradas, por exemplo, em casos de lesão mortal, com aqueloutras que afectam distintos direitos de personalidade - cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal, de 5.7.2007, acessível em www.dgsi.pt –Proc. 07A1734 - de que foi Relator o Ex. Conselheiro Dr. Nuno Cameira.

Não se questiona que tendo por referência a data dos factos e a da citação dos RR. – 14.10.1998 – muito dificilmente os Tribunais Superiores arbitrariam a peticionada compensação.

Para vincar a dificuldade basta atentar que o Tribunal da Relação triplicou o valor atribuído ao Autor em 1ª Instância.

Cremos que, atendendo aos factos e ponderando os valores indemnizatórios que os Tribunais Superiores vêm praticando, a compensação deve ser, equitativamente, fixada em € 224.459,05 .

Dos Juros:

Os recorrentes sustentam que, por se tratar de obrigação ilíquida, os juros apenas devem ser contados desde a data da decisão que fixar o respectivo quantitativo, e não desde a data da citação.

Sendo a compensação arbitrada, uma obrigação pecuniária, a cargo do devedor, sobre os montantes fixados incidem juros de mora – art. 806º do Código Civil.

Em princípio, devidos desde a data da constituição em mora. Ocorrendo esta, em regra, depois da interpelação judicial ou extrajudicial para o devedor cumprir – nº1 do art. 805º do citado diploma.
O nº2 do citado normativo estabelece regime diferente, dispensando a interpelação como factor conducente à constituição do devedor em mora.
Assim estatui:
“2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido”.
E o nº3 – “Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número”.

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2002 do STJ, de 9.5.2002 (D.R-, Iª, Série de 27.6.2002), fixou a seguinte jurisprudência: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº2 do art. 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos arts. 805°, n°3 (interpretado restritivamente), e 806. °, nºl, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.

No caso dos autos, não houve actualização, não se entrevendo fundamento para que os juros sejam devidos desde a data em que definitivamente se fixar a compensação por danos não patrimoniais, ou seja, deste Acórdão.

Como se decidiu, a responsabilidade do Réu é contratual, emerge do cumprimento defeituoso de contrato de prestação de serviços, não se lhe aplica a regra in illiquidis non fit mora.
Ademais há que ponderar que o pedido indemnizatório radica, em última análise, num facto ilícito cometido pelo Réu, pelo que tem pertinência aplicação do regime constante da 2ª parte do nº3 do citado art.805º do Código Civil.

Decisão:

Nestes termos, concede-se parcialmente a revista, revogando-se o douto Acórdão recorrido, apenas no que respeita ao valor da compensação por danos não patrimoniais, que agora se fixam € 224.459,05 .

Custas, neste Tribunal e nas Instâncias, na proporção do decaimento.

Supremo Tribunal de Justiça, 04 de Março de 2008

Fonseca Ramos (Relator)
Rui Maurício
Cardoso de Albuquerque.
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(1) - “No sentido da aceitação, entre nós, da tese da opção, em caso de concurso de responsabilidades, já na vigência do Código Civil actual, Rui Alarcão, Direito das Obrigações, cit., pp. 209, ss. (bem como, já antes, na referida Lição oral); Mota Pinto, Cessão, cit., p. 411 e nota 2; Mota Pinto e Calvão da Silva op. cit., pp. 148-149; Vaz Serra, na anotação ao Ac. do STJ, de 26 de Julho de 1968, na RLJ ano 102, pp. 313-314…
[…] Parece-nos, por outro lado, que a jurisprudência tem aceite, na prática — sem discutir o problema, contudo — a tese da admissibilidade do concurso de responsabilidades, como parece depreender-se, na verdade, entre outras, de decisões no âmbito da responsabilidade médica, em que, apesar da natureza contratual desta, se invocam princípios e normas da responsabilidade extracontratual como fundamento da indemnização (assim, o Acórdão do STJ, de 26 de Novembro de 1980, no BMJ nº301, p. 404)”. – excerto da nota de rodapé 988 – pág.431.