Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1963
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
PROVA TESTEMUNHAL
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
DOCUMENTO ESCRITO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200709200019637
Data do Acordão: 09/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. Só nos casos previstos no nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil é que o Supremo Tribunal de Justiça pode alterar a decisão sobre a matéria de facto.
2. Não cabe pois nos seus poderes apreciar conclusões que a Relação tenha retirado da prova testemunhal ou a que tenha chegado por presunções judiciais, mas compete-lhe determinar se eram admissíveis tais meios de prova, bem como analisar a força probatória plena de documentos particulares assinados.
3. A impossibilidade de substituição de uma escritura pública exigida por lei como requisito de forma de uma declaração negocial para que se façam valer os efeitos do negócio, como se fora válido, não impede a utilização, nem de documentos de menor força probatória, nem de prova testemunhal ou por presunções judiciais, para a demonstração de que foi celebrado um mútuo nulo por falta de forma e, por essa via, fazer operar os efeitos da respectiva nulidade.
4. Constitui litigância de má fé negar factos essenciais de que necessariamente se tem conhecimento, por serem pessoais.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Em 21 de Abril de 2005, AA, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por morte de BB, instaurou contra CC uma acção na qual pediu a sua condenação no pagamento de € 74.819,68, acrescidos dos devidos juros legais (que calcula em € 107.064,10), correspondentes a uma quantia que lhe teria sido emprestada pelo falecido (15.000.000$00) em 24 de Setembro de 1990, pelo prazo de 90 dias, em virtude de um mútuo nulo por falta de forma (artigos 1143º e 289º do Código Civil).
Alegou ainda que, em 17 de Dezembro de 2004, o réu foi interpelado para proceder ao respectivo pagamento, por notificação judicial avulsa, cuja cópia juntou com a petição inicial.
Concluiu pedindo o pagamento da quantia de € 181.883,78, correspondentes à soma do capital e dos juros até então vencidos, bem como dos juros vincendos até efectivo pagamento.
O réu contestou, sustentando a improcedência da acção. Alegou, em primeiro lugar, nunca ter celebrado “qualquer contrato de empréstimo com BB”. Disse ter recebido várias quantias do falecido mas para pagamento de serviços prestados ou para aquisição, por conta do mesmo, de vários objectos destinados à decoração de duas casas de que aquele era proprietário, e que as recebeu na qualidade de sócio gerente da sociedade DD ­– Decorações e Artigos Decorativos, Lda, entidade com quem sempre foram estabelecidas as relações comerciais com BB; mas que nunca “houve qualquer empréstimo do Sr. BB à DD e muito menos ao Réu”.
Em segundo lugar, opôs que, ainda que tal dívida existisse, e que vencesse juros de mora, estariam prescritos os juros vencidos entre 22 de Dezembro de 1990 e 17 de Dezembro de 1999, uma vez que vale o disposto na alínea d) do artigo 310º do Código Civil para cada uma das dívidas de juros que se constitui, já que só em 17 de Dezembro de 2004 foi interpelado para efectuar o pagamento pretendido. Assim, nunca os juros vencidos poderiam ultrapassar o montante de € 23.909,55.
Por sentença de 20 de Abril de 2006, de fls. 155, da 9ª Vara Cível do Porto, a acção foi julgada parcialmente procedente. O réu foi condenado a entregar à autora o capital e os juros correspondentes, à taxa legal, mas só a partir da citação na presente acção. Quanto ao mais, foi absolvido do pedido.

2. Recorreram autora e réu para o Tribunal da Relação do Porto.
Por acórdão de 25 de Janeiro de 2007, de fls. 254, a Relação do Porto negou provimento à apelação do réu e concedeu provimento parcial à da autora, condenando o réu no pagamento de juros de mora desde 17 de Dezembro de 2004.
Para o efeito, a Relação, tal como a 1ª instância, considerou estar provada a existência do empréstimo alegado pela autora, mas ser o contrato nulo por falta de forma, “pois, ao tempo, um contrato de mútuo de valor superior a 200.000$00 só era válido se fosse celebrado por escritura pública (arts. 1143º e 220º do CC)”; que dessa nulidade resultava, com fundamento no disposto no nº1 do artigo 289º do Código Civil, a obrigação de o réu restituir “tudo quanto haja sido prestado em virtude do contrato”; que, declarado nulo o mútuo, resulta da aplicação das regras constantes dos artigos 1269º e segs. do Código Civil, aplicáveis por remissão do nº 3 do já citado artigo 289º, que, tendo havido interpelação para restituição do dinheiro, o réu sabia desde esse momento que estava a lesar o direito invocado pela autora, “devendo, por isso, restituir os frutos que desde então poderiam ser produzidos até ao termo da posse”.
Para além disso, a Relação condenou o réu como litigante de má fé, por considerar que negou “factos essenciais e de que necessariamente tinha conhecimento, porque pessoais”, na multa de 20 ucs.

3. Novamente recorreram a autora e o réu, agora para o Supremo Tribunal de Justiça. Os recursos foram admitidos como revista e com efeito meramente devolutivo.
Verifica-se, todavia, que AA não apresentou alegações, razão pela qual o seu recurso foi julgado deserto (nº 3 do artigo 690º do Código de Processo Civil).
Quanto a CC, formulou as seguintes conclusões, nas alegações apresentadas:
“1. O STJ goza de poderes próprios para sindicar a coerência lógico-jurídica e a insuficiência da decisão sobre a matéria de facto praticamente análogos aos que o nº 4 do art. 712º confere à Relação.
2. O Supremo Tribunal de Justiça pode sindicar a não modificação da matéria de facto, nos termos do disposto no artº 729º nº 2 do CPC.
3. A Relação deveria ter procedido à alteração da matéria de facto, nos termos do disposto no artº 712º nº 1 – a) do Cód. Proc. Civil.
4. Não existe prova da existência de contrato de mútuo entre as partes, nem da obrigação de restituir qualquer quantia à Autora.
5. O documento de fls 67 é um documento emanado da empresa ‘DD. Decorações e Artigos Decorativos, Ldª’ e não contém a prova nem confissão de que o Réu, enquanto pessoa singular, tenha contraído um empréstimo perante o falecido BB.
6. O acórdão recorrido fundamentou-se exclusivamente neste documento para alicerçar a condenação do réu.
7. Para o efeito, o acórdão recorrido fundamentou-se – ao manter a decisão de matéria de facto da 1ª instância – numa presunção judicial, a qual não pode ser utilizada no caso vertente.
8. A presunção judicial tem que partir de um facto concreto e verídico – artº 349º C. Civil – o que não se verifica neste processo, pois que se parte de um nada factual para dar como provado o empréstimo.
9. Não existe nenhum facto conhecido, concreto, provado e real do qual se possa retirar a prova de um segundo facto, em sede de presunção.
10. O facto de que o réu se obrigou a restituir a quantia referida fundamenta-se numa ilação e num mero raciocínio, o que constitui uma presunção judicial.
11. Não se pode concluir que o réu se obrigou a restituir tal quantia.
12. O douto acórdão recorrido violou o disposto no artº 349º e 351º Cod. Civil.
13. A conduta processual do R. Recorrente não é litigância de má fé.
14. A má fé é uma modalidade do abuso de direito.
15. Não existe conduta dolosa do R.
16. Dizer-se que o Réu negou a existência de empréstimo é insuficiente para existir conduta dolosa.
17. Se o réu não conseguir infirmar a prova da existência de um empréstimo – cuja única prova é a do aludido documento escrito em papel de uma sociedade – não significa que tenha tido conduta dolosa.
18. Não a alteração propositada da verdade dos factos, tendo em conta quanto os RR. alegaram.
19. Não é a simples ausência de prova de factos que determina a conduta dolosa, pelo que deve ser revogado o douto acórdão na parte em que condenou o R. como litigante de má fé.

4. Pretende portanto o recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça altere a decisão relativa à matéria de facto e revogue a sua condenação em multa como litigante de má fé.
O Tribunal da Relação considerou provada a seguinte matéria de facto:
a) A Autora exerce as funções de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de BB, ocorrido em 6 de Julho de 2003.
b) Em 24 de Setembro de 1990, BB entregou ao réu a quantia de 15.000.000$00 (€ 74.819,68).
c) O réu obrigou-se a restituir essa quantia.
d) Em 17 de Dezembro de 2004, o réu foi pessoalmente notificado, por notificação judicial avulsa, para restituir à autora a quantia de 15.000.000$00 (€ 74. 819,68) e juros vencidos desde 22 de Dezembro de 1990, então no montante de € 105.867,00.

5. Cumpre começar por observar que, como se sabe, resulta do disposto no nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil que o Supremo Tribunal de Justiça não pode alterar a decisão do tribunal recorrido relativamente à matéria de facto, excepto no “caso excepcional previsto no nº 2 do artigo 722º” do mesmo Código. É, pois, necessário que o tribunal recorrido tenha ofendido “uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” para que, na revista, o Supremo Tribunal possa corrigir qualquer “erro na apreciação das provas” ou na “fixação dos factos materiais da causa”.
Isto significa, desde logo, que não cabe no âmbito deste recurso a apreciação de quaisquer conclusões que a Relação eventualmente tenha retirado da prova testemunhal ou através de presunções judiciais, não podendo o Supremo Tribunal de Justiça, contrariamente ao que o recorrente pretende, sindicá-las. O mesmo já não acontece, todavia, quanto à apreciação da força probatória do documento de fls. 67.
Mas significa, igualmente, que o Supremo Tribunal de Justiça pode, por exemplo, verificar se a prova testemunhal, ou por presunção judicial, foi eventualmente admitida em casos em que a lei a proíbe (cfr. artigos 392º e segs. e 351º do Código Civil). E este poder é particularmente relevante nos casos em que, como aqui sucede, esteja em causa um negócio jurídico para cuja validade a lei imponha a observância de certa forma escrita.
Com efeito, se a lei exige determinada forma escrita para a validade de uma declaração negocial, a sua falta não pode ser suprida senão nos termos limitados do disposto no nº 1 do artigo 364º do Código Civil: o documento não pode “ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior”. Isto significa, como se sabe, que a falta de escritura pública não pode ser sanada através da utilização de um documento particular, e muito menos, por exemplo, por prova testemunhal (cfr. ainda o nº 1 do artigo 393º do Código Civil).
Essa impossibilidade de substituição, todavia, apenas releva para não permitir que se façam valer os efeitos do negócio, como se fosse válido; não para, por exemplo, provar a celebração de um negócio nulo por falta de forma – porque não foi reduzido a escritura pública, no caso –, e pretender os efeitos, justamente, da nulidade.
Assim, nada obsta à utilização do documento particular junto a fls. 67, nem sequer da prova testemunhal ou por presunções judiciais, para a demonstração de que foi celebrado um mútuo nulo por falta de forma e, por essa via, fazer operar os efeitos da respectiva nulidade.

6. Ora os factos em que o Tribunal da Relação se baseou para concluir ter sido celebrado entre BB um mútuo nulo por falta de forma – que em 24 de Setembro de 1990, BB entregou ao réu a quantia de 15.000.000$00 (€ 74.819,68) e que o réu se obrigou a restituir essa quantia – foram havidos como provados directamente pelo documento junto pela autora aos autos a fls. 67 ou, então, por conjugação deste documento com depoimentos testemunhais ou presunções, como resulta da motivação da decisão de facto. Como se observou já, cumpre ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar a força probatória do documento, e determinar que factos assim estão directamente provados; mas já não pronunciar-se sobre ilações deles retiradas, nomeadamente por conjugação com depoimentos de testemunhas.
O documento de fls. 67 é, nos termos do disposto nos artigos 373º e segs. do Código Civil, um documento particular assinado, cuja autoria se estabelece de acordo com o artigo 374º e cuja força probatória material se afere segundo as regras constantes do artigo 376º, ambos do mesmo Código. Cabe, pois, dentro dos poderes de apreciação do Supremo Tribunal de Justiça verificar se, em virtude destas regras, se podiam haver como (plenamente) provados aqueles factos.
Cumpre começar por recordar que o documento foi apresentado pela autora para fazer prova dos seguintes pontos na base instrutória (cfr. fls. 52):
“1) Em 24 de Setembro de 1990, BB entregou ao réu a quantia de 15.000.000$00 (€ 74.819,68)?
2)… obrigando-se este a restituir-lhe tal quantia em 22 de Dezembro de 1990?”
De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 374º do Código Civil, a falta de impugnação da assinatura constante do referido documento implica que esteja plenamente provado que o réu é o autor do documento; assim, resulta dos nºs 1 e 2 do artigo 376º que está plenamente provado que o réu emitiu a declaração constante do documento – “Declaro que recebi a quantia de «quinze milhões de escudos» referente a um empréstimo de noventa dias, cedido pelo Sr. BB” – e que recebeu tal quantia, a título de empréstimo. Trata-se, quanto a este segundo ponto, do reconhecimento de um facto desfavorável, o que implica que esteja plenamente provado por confissão (nº2 do artigo 376º e nº 2 do artigo 358º, também do Código Civil).
O recorrente sustenta que se trata de “um documento emanado da empresa ‘DD Decorações e Artigos Decorativos, Ldª”, não podendo entender-se, portanto, que contém uma confissão que o vincula a ele como pessoa singular. E baseia essa sua afirmação na circunstância de o documento do qual consta a sua declaração, manuscrita, apresentar a identificação da empresa DD. Decorações e Artigos Decorativos, Lda., da qual era e é sócio-gerente, e que mantinha relações comerciais com BB.
Note-se que não está provado no processo, nem a existência de tais relações comerciais, nem a sua qualidade de sócio-gerente; nenhuma conclusão se poderia, portanto, extrair dessas afirmações.
Para além disso, a verdade é que está plenamente provado que o documento foi assinado pelo réu; e é igualmente verdade que a assinatura não contém qualquer indicação de que o réu o assinou enquanto gerente da sociedade, como exige, para que assim se possa considerar, o nº 4 do artigo 260º do Código das Sociedades Comerciais. Segundo se decidiu no acórdão recorrido, referindo-se expressamente ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2002, de 6 de Dezembro de 2001 (Diário da República, I Série A, de 24 de Janeiro de 2002), não ocorre nenhuma circunstância que permita, nos termos do disposto no artigo 217º do Código Civil, deduzir que assinou o documento nessa qualidade.
Tal qualidade de representante haveria, aliás, de ter sido alegada na altura própria; ora, nem quando contestou a acção, nem, sobretudo, quando o documento foi junto para demonstrar um empréstimo a título pessoal, o réu suscitou tal questão, não obstante dizer manifestamente respeito à autoria do documento.
Nenhuma censura há, pois, que fazer ao acórdão recorrido, quando a dar-se como provado que, em 24 de Setembro de 1990, BB entregou ao réu a quantia de 15.000.000$00 (€ 74.819,68).

7. Relativamente à prova de que o réu se obrigou a restituir tal quantia, o recorrente sustenta que assenta em presunções erradamente formuladas, desde logo porque não extraídas de factos provados.
No entanto, consta do documento que a quantia foi entregue ao réu a título de “empréstimo de noventa dias”. Não é, portanto, exacto que não esteja provado o facto de onde, eventualmente, terá sido retirada uma presunção que ao Supremo Tribunal de Justiça nem cabe apreciar.

8. Contrariamente ao que sustenta o recorrente, estão portanto provados factos suficientes para se dar como demonstrada a celebração, em 24 de Setembro de 1990, de um contrato de mútuo no valor de 15.000.000$00 (€ 74.819,68), entre BB e o recorrente, CC, uma vez que está provada a entrega do dinheiro e a assunção da obrigação de o restituir.
Sendo certo que o mesmo contrato é nulo por falta de forma, por não ter sido feito por escritura pública, nos termos da lei aplicável à data da celebração do contrato (artigos 1143º e 220º do Código Civil), nada mais se torna necessário provar para que, nos termos previstos no nº 1 do artigo 289º do Código Civil, se determine a restituição de tudo aquilo que tiver sido prestado – no caso, desde logo, da quantia de € 74.819,68.

9. Tendo sido julgado deserto o recurso de revista interposto pela autora, e não tendo sido impugnada pelo réu a decisão da Relação na parte relativa à contagem dos juros de mora, nada há que apreciar sobre esta matéria.

10. Quanto à condenação do recorrente em multa como litigante de má, também nada há a censurar ao acórdão recorrido.
Na realidade, o réu havia afirmado expressamente na contestação que BB não tinha feito nenhum empréstimo, nem a si, nem à sociedade DD – Decorações e Artigos Decorativos, Lda.
Todavia, nunca sequer pôs em causa que o documento junto a fls. 67 tivesse sido por si assinado. Assim, e ainda que posteriormente tenha vindo sustentar, já em recurso, que o documento provém da sociedade, tem de se concluir que o réu, intencionalmente, ou alterou a verdade dos factos, ou omitiu factos relevantes para a decisão da causa. Em qualquer hipótese, há litigância de má fé, nos termos previstos no nº 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil.
Quanto ao montante da multa, considera-se adequado o montante fixado pela Relação, pelos motivos apontados no respectivo acórdão, para os quais se remete.
11. Nestes termos, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 20 de Setembro de 2007
Relatora : Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Adjuntos : Salvador da Costa
José Ferreira de Sousa