Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1964/14.2TCLRS.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
AQUISIÇÃO DERIVADA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADA A DECISÃO PARA AMPLIAÇÃO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PRESUNÇÕES – DIREITO DAS COISAS / POSSE / AQUISIÇÃO E PERDA DA POSSE / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE EM GERAL / DEFESA DA PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXCEÇÕES / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-ANTUNES VARELA, Anotação ao Ac. do S.T.J., de 8-11-1984, R.L.J. Ano 122.º, 209 e ss. (217);
-HENRIQUE MESQUITA, Anotação ao Ac. do S.T.J. de 29-4-1992, R.L.J. Ano 125.º, 95, nota 1;
-JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, Acção de Reivindicação, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, Abril de 1997, 511-545 (537-540);
-MANUEL SALVADOR, Causa de Pedir na Reivindicação, R.M.P. Ano 8.º, Jan/Mar./1987, nº 29, 75 e ss.;
-MARTINS da FONSECA, Acção de Reivindicação, Causa de Pedir,/ Factos Constitutivos dos Direitos do Autor, R.M.P., Ano 7º, Jul/Set/ 1986, n.º 27, 35 e ss.;
-PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1987, 115-116.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 350.º, N.º 1, 1267.º, N.ºS 1, ALÍNEA D) E 2, 1268.º, N.º 1 E 1311.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 581.º, N.º 4, 641.º, N.º 2, 682.º, N.º 3 E 683.º, N.º 1.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL: - ARTIGO 7.º.
Sumário :
I. Segundo a doutrina e jurisprudência dominantes, nas ações reais - maxime na ação de reivindicação prevista no art.º 1311.º do CC -, a pretensão  não se poderá fundar exclusivamente na invocação de um título de aquisição derivada do direito peticionado..

II. Nesse domínio, em consonância com a teoria da substanciação subjacente ao disposto no atual artigo 581.º, n.º 4, do CPC, torna-se necessário que o adquirente demonstre que o direito existia na esfera do alienante, alegando e provando os factos que consubstanciam a sua causa genética - usucapião, ocupação ou acessão.

III. Todavia, num caso em que ambas as partes admitem, inequivocamente, o direito de propriedade do transmitente que interveio no contrato de compra e venda alegado pelo autor, estando apenas questionada a celebração deste contrato, não se mostra exigível que o autor alegue e prove a aquisição originária, por via usucapião, daquele direito por parte do transmitente.

IV. A admissão pelas partes da existência desse direito de propriedade na esfera do transmitente reconduz-se a uma situação jurídica consolidada, face à qual restará provar a subsequente celebração do contrato de compra e venda com o autor.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. A sociedade AA - Reparação e Manutenção Industrial, Lda (A.), intentou, em 01/04/2014, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a sociedade BB, S.A. (R.), alegando, no essencial, que:

. No exercício da sua atividade comercial de aluguer de tendas e respetivos acessórios, a A. apresentou, em 04/04/2012, à Câmara Municipal de …, um orçamento para aluguer de uma tenda com estrutura em alumínio amodizado com tela PVC de cobertura e laterais, a fim de ser instalada no “Festival CC”, promovido por aquela Câmara;

. A A. comprou a referida tenda em 09/04/2012 pelo preço de € 11.008,50, incluindo IVA;

. Aceite o sobredito orçamento, a A., em data anterior a 13/07/2012, montou a referida tenda, dando-a de aluguer para a realização do evento, no período de 13 a 29 de julho do mesmo ano, no Pavilhão ... da cidade de …, após o que a mesma foi mantida no local a aguardar a respetiva desmontagem pelo A.

. Porém, aproveitando-se da ausência da A. e contra a vontade desta, em 31/07/2012, a R. procedeu à desmontagem dessa tenda, transportando-a para as suas instalações, recusando-se a devolvê-la à A.;

. Desde 2010, a A. vinha utilizando a mencionada tenda, no exercício da sua atividade, montando-a e desmontando-a, mediante alugueres a clientes para a realização de eventos, com exclusão de outrem, agindo como sua dona e possuidora;

. Com a privação daquela tenda por parte da R., a A. ficou impedida de exercer a sua atividade, sofrendo um prejuízo que, à data da propositura da ação, ascende a € 23.250,00.

Concluiu a pedir que:

a) – Seja reconhecido o direito de propriedade da A. sobre a indicada tenda;

b) – Seja condenada a R. a restituir-lhe a mesma no estado de conservação em que se encontrava em 31/08/2012;

c) – Seja condenada a R. a pagar-lhe uma indemnização pelo prejuízo sofrido, computada em € 23.250,00, à data da propositura da ação, e ainda no que se vier a liquidar posteriormente até à restituição da tenda.

2. A R. contestou a ação, sustentando que:

. Em 13/04/2011, a referida tenda tinha sido objeto de penhora no âmbito de um processo de execução que correu termos sob o n.º 1861/11.6 TBBRG, instaurado pela ora R. contra a sociedade DD, Lda, de que era sócia gerente EE, também sócia gerente da ora A.;

. Tal penhora compreendeu todos os bens que então se encontravam no armazém daquela executada sito em … e que ficaram então confiados à fiel depositária EE, conforme auto reproduzido a fls. 62-67;

. Em 8/06/2012, os referidos bens foram adjudicados à R., tendo sido passado título de transmissão em 30/07/2012;

. Porém, nunca mais se tendo sabido do paradeiro dos bens penhorados e adjudicados, a R. acabou por tomar conhecimento de que desses bens fazia parte a tenda que a A. montara em … para o “Festival CC”, razão pela qual a R. a desmontou e recolheu.

Concluiu pela improcedência da ação.

3. Findos os articulados, foi fixado o valor da causa em € 34.258,50 e proferido saneador tabelar, procedendo-se, de seguida, à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.

4. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 193-204, datada de 30/07/2015, a julgar a ação parcialmente procedente, decidindo-se o seguinte:

a) – reconhecer a A. como proprietária da tenda reivindicada;

b) – condenar a R. a entregar à A. todo o material que compõe a referida tenda;

c) – condenar a R. a pagar à A. o valor anual de € 6.800,00, desde 31/07/2012 até efetiva entrega desse material.

5. Inconformada com tal decisão, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, através do acórdão de fls. 364-375, datado de 04/04/2017, revogou a decisão recorrida, absolvendo a R. do pedido.

6. Desta feita, vêm agora os A.A. pedir revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª – Em ação de reivindicação, sendo invocada a aquisição derivada do bem reivindicado, torna-se necessário provar que o direito de propriedade já existia no transmitente;

2.ª - Consta dos factos provados que a referida tenda, com o logotipo DD, foi adquirida pela A. à transmitente, sociedade comercial DD - Fabrico, Aluguer e Venda de Tendas, Ld.ª;

3.ª - Nessa sequência, DD emitiu a fatura n.º A 1…3, datada de 09/04/2012 respeitante ao material que compõe a referida tenda;

4.ª - A R. alega ter adquirido os materiais que compõem a tenda em processo executivo, que moveu contra a DD, no qual foram penhorados todos os bens da mesma;

5.ª - Ao indicar aqueles bens à penhora, a R. fê-lo na convicção de os mesmos eram propriedade da executada, DD;

6.ª - Ou seja, a própria Ré admite que a DD era a proprietária dos materiais que compõem a tenda;

7.ª - Propriedade que foi transmitida à A. por contrato de compra e venda, de acordo com a fatura emitida;

8.ª - Considerando-se provado que o direito de propriedade já existia na DD, fica demonstrado o direito de propriedade da A. sobre a tenda em causa, tal como decidiu o Tribunal de 1.ª Instância.

7. A Recorrida apresentou contra-alegações em que invoca a inadmissibilidade da revista, com base em preterição dos requisitos legais do requerimento de interposição do recurso, em falta e ininteligibilidade do fundamento invocado e em falta de pagamento da taxa de justiça, mas concluindo subsidiariamente pela confirmação do julgado.

 

         Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – Quanto à invocada inadmissibilidade do recurso


A Recorrida arguiu a inadmissibilidade do recurso, invocando a preterição dos requisitos legais do requerimento de interposição do recurso, a falta e ininteligibilidade do fundamento invocado e a falta de pagamento da taxa de justiça.

É certo que a A. não apresentou um requerimento formal de interposição de recurso, mas optou por uma peça única que designou por “Alegações da Recorrente”, em que identifica o tribunal a quo e começa por inserir os dizeres adequados à manifestação de vontade de recorrer e à delimitação do seu objeto, não se suscitando quaisquer dúvidas a esse respeito, não relevando também o facto de não indicar a espécie de recurso nem o efeito, já que tal omissão nem sequer constitui fundamento de rejeição, nos termos do art.º 641.º, n.º 2, do CPC.

Por outro lado, também não se oferece dúvida sobre o fundamento constante do corpo das alegações e das respetivas conclusões, nem se impunha, no caso, a indicação de fundamento específico de recorribilidade, por não se tratar de recurso interposto nessa base.

Por fim, a taxa de justiça e a multa mostram-se pagas a fls. 385, 387 e 432.

Em suma, nada obsta à admissibilidade da revista.


III - Delimitação do objeto do recurso


Das conclusões da Recorrente resulta que a questão a resolver consiste em saber se os factos dados como provados são ou não suficientes para o pretendido reconhecimento do direito de propriedade da A. sobre a tenda em causa, donde resultará ou não a procedências das correspondentes pretensões de reivindicação e de indemnização.


IV – Fundamentação


1. Factualidade provada


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. A autora (A.), de 13 a 29 de julho de 2012, alugou ao Município de Loures uma tenda para ser instalada no evento “Festival CC”, mediante o pagamento da quantia de € 6.800,00, acrescida de IVA calculado à taxa legal.

1.2. O material que compõe a referida tenda, com o logotipo DD, tinha 1.400m2 com uma largura de 20,00m e 70,00 de avanço, com estrutura em alumínio amodizado, com tela PVC incombustível 650g/m2 para cobertura e tela PVC incombustível 650gr/m2 de laterais, foi adquirido pela A. à sociedade comercial por quotas DD - Fabrico, Aluguer e Venda de Tendas, Ld.ª;

1.3. Nessa sequência, DD emitiu a fatura n.º A 1…3, datada de 09/04/2012, no valor de € 8.950,00 acrescido de € 2.058,50 a título de IVA, sendo o valor respeitante ao material que compõe a referida tenda de € 5.300,00, sem IVA.

1.4. Em 31 de julho de 2012, após a realização do evento, a R. contra vontade da A., desmontou a mencionada tenda e transportou-a para as suas instalações.

1.5. A A., desde 31 de julho de 2012, deixou de poder alugar a referida tenda e de receber as respetivas contrapartidas, no montante de pelo menos € 6.800,00, por ano.

1.6. EE é sócia gerente da autora e da DD.

1.7. Em 13 de abril de 2011, no âmbito de um processo de execução movido pela ora Ré contra DD, que correu termos no extinto 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga sob o n.º 1861/11.6TBBRG, foram penhorados todos os bens da executada que se encontravam num dos seus armazéns, sito em …, incluindo os componentes/materiais inerentes a tendas.

1.8. No referido ato de penhora, foi constituída fiel depositária dos bens EE, com a advertência de que não poderia “(...) dar descaminho aos bens ora penhorados sob pena de procedimento criminal.”

1.9. No âmbito do referido processo executivo, em 08 de junho de 2012, foram adjudicados à exequente, aqui R., os seguintes bens descritos no auto de penhora de fls. 62, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

1.10. Em 30 de julho de 2012, foi emitido o respetivo título de transmissão dos bens penhorados.

1.11. A R., por entender que os materiais usados na montagem da tenda da A., se integravam nos bens que lhe tinham sido adjudicados, no final do “Festival EE”, exibindo o respetivo título de transmissão, datado de 30 de julho de 2012, procedeu à sua desmontagem e recolha”.

        

2. Do mérito do recurso


2.1. Dos contornos do litígio


2.1.1. Posição das partes nos articulados


Com a presente ação pretende a A. que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre a tenda em referência, com fundamento em que adquiriu a mesma por compra à sociedade DD - Fabrico, Aluguer e Venda de Tendas, Ld.ª, em 09/04/2012, conforme a fatura n.º A 1…3, e pede, além da restituição da tenda, a condenação da R. numa indemnização pelo prejuízo resultante da sua privação, desde 31/07/2012.

     Estamos assim perante uma pretensão de reivindicação cumulada com uma pretensão indemnizatória fundada na alegada violação do direito de propriedade invocado.

Por sua vez, a R., sem nunca pôr em causa o direito de propriedade da sociedade DD, questiona, no entanto, a alegada aquisição por parte da A., sustentando que o material que integra a tenda foi objeto de penhora em 13/04/2011 e de ulterior adjudicação em 08/06/2012, no âmbito de um processo de execução que correu termos sob o n.º 1861/11.6 TBBRG, instaurado pela ora R. contra aquela sociedade DD.

        

    2.1.2. Solução dada pela 1.ª instância

        

      Em face da factualidade dada como provada, a 1.ª instância considerou que a A. tinha provado ter adquirido à sociedade DD o material que compõe a tenda, enquanto que a R. não provara que esse material estivesse compreendido na penhora realizada a favor da R. em 13/04/2001. Daí a procedência, ainda que parcial, da ação. 


     2.1.3. Teses das partes na apelação


     Inconformada com a decisão da 1.ª instância, a R. apelou dela, impugnando os factos dados como provados na sentença sob os pontos 1, 2, 3, 4, 5 e 9 correspondentes, respetivamente, aos pontos 1.1, 1.2, 1.3, 1.4, 1.5 e 1.7 da factualidade acima consignada.

     Pretendia assim a R. que, pela reapreciação da prova, com base nos meios de prova convocados, a Relação desse como não provado que a A. tenha adquirido a tenda em causa, que a tenha alugado ao município de … e que tenha sofrido prejuízos por privação do uso da mesma.

       Por seu lado, a A./Recorrida pugna pela confirmação do decidido em 1.ª instância.


2.1.4. Solução dada pela Relação


Perante as questões de facto suscitadas pela R./apelante, o Tribunal da Relação começou por considerar que essa apreciação só se impunha se tivesse relevância jurídica para a solução da causa.

Seguidamente, debruçando-se sobre as pretensões deduzidas, considerou que, estando em causa uma pretensão de reivindicação, incumbia à A. alegar e provar “não apenas que adquiriu a coisa por um título legítimo, mas ainda que o direito de propriedade já existia na esfera jurídica do transmitente e, bem assim, as sucessivas aquisições dos seus antecessores até atingir a aquisição originária em algum deles.”  

Nessa base, considerando que a A. não articulou sequer quaisquer factos concretos no sentido de que o direito de propriedade já existia na esfera jurídica da DD, limitando-se a juntar aos autos uma fatura de venda da referida tenda por parte daquela sociedade, a Relação concluiu pela improcedência da ação.


Vem agora a A. sustentar a solução dada em 1.ª instância, enquanto que a R. pugna pela confirmação do acórdão recorrido.


2.2. Análise crítica


Em primeiro lugar, importa reter que estamos no âmbito de uma ação de reivindicação de coisa móvel não sujeita a registo, cumulada com uma pretensão indemnizatória pelo alegado prejuízo decorrente da privação, por parte da R., do uso da coisa reivindicada. 

Ora, conforme se observa no acórdão recorrido, segundo a doutrina e jurisprudência dominantes, as ações reais - maxime a ação de reivindicação prevista no art.º 1311.º do CC - não se poderão fundar exclusivamente na invocação de um título de aquisição derivada, como, por exemplo, num contrato de compra e venda.

Esta tese apoia-se, fundamentalmente, no disposto no artigo 581.º, n.º 4, correspondente ao anterior artigo 498.º do CPC, segundo o qual, à luz do princípio da substanciação, a causa de pedir, no domínio das ações reais, se corporiza no facto jurídico de que procede o direito real.

Mas para aquela orientação, as formas de aquisição derivada não geram, por si próprias, esse direito, sendo apenas translativas dele, operando simplesmente a sua modificação subjetiva. O que constitui o direito e determina de certo modo o seu conteúdo é a causa originária de que ele provém.

    Assim, como ninguém pode transferir para outrem mais do que o próprio possui - nemo plus alio transferre potest quam ipse habet -, necessário se torna que o adquirente demonstre que o direito existia na esfera do alienante, alegando e provando os factos que consubstanciam a sua causa genética - usucapião, ocupação ou acessão [1].

    Todavia, porque a prova da aquisição originária, mormente a da usucapião, é muitas vezes extremamente difícil de conseguir (prova diabólica), a lei estabelece presunções legais do direito de propriedade.

     Assim, tanto o art.º 7.º do Código do Registo Predial consagra a presunção de que o direito existe na esfera do titular inscrito, como o art.º 1268.º, n.º 1, do CC faz presumir o direito de propriedade da respetiva posse, seja qual for a duração desta. Tais presunções legais dispensam o beneficiário delas de provar o facto presumido, como claramente decorre do art.º 350.º, n.º 1, do CC.

    Desse modo, não obstante o disposto no atual artigo 581.º, n.º 4, do CPC, e por virtude da referida dispensa, a causa de pedir poderá confinar-se, nessas hipóteses, ao facto-base da presunção legal[2] - o registo do facto aquisitivo ou a posse, conforme o caso -, sendo, porém, certo que uma ação real estruturada apenas na base dessas presunções legais corre maior risco de insucesso mediante a sua ilisão por banda do réu.


     No caso vertente, tendo a A. alegado que desde 2010 utilizava a referida tenda com exclusão de outrem (artigos 15.º a 17.º da petição inicial), tal situação, a provar-se, em conjugação com o alegado contrato de compra e venda de 09/04/2012 poderia traduzir-se, por parte da mesma A., numa aquisição derivada da posse na modalidade de traditio brevi manu, da qual se poderia então presumir o direito de propriedade nos termos do disposto no art.º 1268.º, 1, do CC.

Só que para tanto tornava-se necessário que a A. se mantivesse como possuidora atual da coisa, o que parece não se verificar, por já ter decorrido mais de um ano sobre a posse da R. desde o pretenso esbulho, em 31/07/ 2012, e a data da propositura da ação, em 01/04/2014, o que determinou a perda de posse da A., nos termos do artigo 1267.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do CC.

    Restará pois à A. demonstrar, por via direta, a aquisição do direito de propriedade sobre a tenda em causa, direito este de que já disporia a sociedade DD como transmitente no contrato de compra e venda por aquela alegado.


Mas será necessário que a A. demonstre a própria aquisição originária desse direito, por parte daquela transmitente, mediante a prova de uma posse anterior, remontando inclusive a sucessivas aquisições derivadas, até perfazer o prazo da usucapião, como se entendeu no acórdão recorrido?    

Vejamos.

     Não obstante a caraterização tradicional da ação de reivindicação acima exposta, tem-se discutido qual o nível de alegação e prova adequado para o reconhecimento do direito de propriedade, mormente em espécies de ações reais em que o reconhecimento desse direito figura mais como um pressuposto da medida pretendida, mas já não com o fulcro do litígio.

         Segundo o Professor José Oliveira Ascensão[3]:

  «[…] as acções em que a propriedade ou os factos aquisitivos desta estão na causa de pedir são muito variadas. Podem configurar-se quando se discutem relações de vizinhança, quando se actua a responsabilidade extra-obrigacional por danos causados na coisa … e assim por diante. Em todos estes casos o autor funda a sua pretensão na qualidade de proprietário: a acção é pois uma acção real.

   É porém inadmissível logo a uma primeira vista que em todas estas acções se exija uma demonstração exaustiva da propriedade.


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[…] nestas acções o debate sobre a propriedade que se deve travar é somente o que for justificado pelo desenho concreto do litígio. Se o autor provou o esbulho, por exemplo, e o réu não alega a propriedade nem nenhum outro direito sobre a coisa, não há litígio sobre a propriedade. O autor deve ter então ganho de causa, desde que tenha feito uma prova prima facie do seu direito sobre a coisa.


No caso vertente, nenhuma das partes pôs em causa o direito de propriedade da sociedade DD sobre os materiais que compõem a tenda reivindicada. Bem pelo contrário, cada uma delas procura fazer derivar o respetivo direito precisamente daquele direito de propriedade da DD: a A., por via do alegado contrato de compra e venda celebrado em 09/04/2012; a R., com base na invocada penhora e ulterior adjudicação dos referidos materiais tidos como pertencentes à DD.

Nessa medida, não existindo litígio sobre a existência do próprio direito de propriedade da DD, à luz do ensinamento acima exposto, afigura-se não ser exigível, no presente caso, que a A. alegue e prove a aquisição originária desse direito, por via de usucapião, por parte daquela sociedade.

Com efeito, a afirmação do direito de propriedade da DD sobre os materiais que compõem a tenda reivindicada – tal como decorre inequivocamente da posição de ambas as partes – reconduz-se a uma situação jurídica consolidada, a partir da qual se terá de ajuizar, face à prova produzida, sobre a celebração do alegado contrato de compra e venda com a A., em 09/04/2012.

Posto isto, ante a posição das partes ao admitir a existência do direito de propriedade da DD, tendo, por isso, como solução jurídica a seguir nesta parte que não é exigível qualquer outra prova sobre a aquisição desse direito por aquela sociedade, mostra-se agora necessária a reapreciação, pelo Tribunal da Relação, dos pontos da decisão de facto impugnados pela R. em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, o que cumpre determinar nos termos dos artigos 682.º, n.º 3, e 683.º, n.º 1, do CPC.   


V - Decisão

Pelo exposto, concede-se parcialmente a revista, anulando-se o acórdão recorrido e determinando-se que o processo baixe ao Tribunal da Relação de Lisboa para reapreciar os pontos da decisão de facto impugnados pela R. na apelação, dado não existir litígio sobre a existência do direito de propriedade da sociedade DD, enquanto transmitente na compra e venda alegada pela A., decidindo-se depois sobre a procedência ou não das pretensões deduzidas, em conformidade com o que for julgado relativamente àquela decisão de facto.       

As custas do recurso são a cargo da parte que ficar vencida a final.

Lisboa, 09 de Novembro de 2017

Manuel Tomé Soares Gomes (Relatora)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

____________


[1]  Sobre a orientação exposta, vide PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1987, p.p. 115-116; HENRIQUE MESQUITA, Anotação ao Ac. do S.T.J. de 29-4-1992, in R.L.J. Ano 125º, pag. 95, nota 1; Dr. MANUEL SALVADOR, Causa de Pedir na Reivindicação, in R.M.P. Ano 8º, Jan/Mar./1987, nº 29, pags. 75 e segs.. Em sentido oposto, admitindo a reivindicação na base do título de aquisição derivada, vide MARTINS da FONSECA, Acção de Reivindicação / Causa de Pedir / Factos Constitutivos dos Direitos do Autor, in R.M.P., Ano 7º, Jul/Set/ 1986, n.º 27, pags. 35 e segs..
[2]  Neste sentido, vide, por todos, ANTUNES VARELA, Anotação ao Ac. do S.T.J., de 8-11-1984, in R.L.J. Ano 122º, pags. 209 e segs. (217).
[3] Artigo doutrinário Acção de Reivindicação, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, Abril de 1997, pp. 511-545 (537-540)