Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3415/14.3TCLRS-C.L1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
EFICÁCIA DO NEGÓCIO
INCUMPRIMENTO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 06/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / CLASSIFICAÇÕES DOS CRÉDITOS - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO - PAGAMENTO AOS CREDORES.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS.
Doutrina:
- NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, «Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos?», I Congresso de Direito da Insolvência coordenado por CATARINA SERRA, Almedina, Coimbra, 2013, 201 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, 755.º, N.º1, AL. F).
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 14.º, 50.º, N.º 2, AL. A), 102.º, N.º3, 104.º, N.º5, 106.º, N.ºS 1 E 2, 181.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13/11/2014.
*
-N.º 4/2014, DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, PUBLICADO NO DR, 1.ª SÉRIE, N.º 95, 19 DE MAIO DE 2014, 2882 E SEGUINTES, E EM WWW.STJ.PT .
Sumário :
I - O art. 106.º, n.º 2, do CIRE permite ao administrador de insolvência recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional e tradição da coisa.

II - Neste caso, ao direito de indemnização do promitente-comprador aplica-se o disposto no art. 102.º, n.º 3, por força daquele art. e do art. 104.º, n.º5, todos do CIRE, e não o disposto no art. 442.º do CC.

III - O direito de retenção da coisa pelo promitente-comprador existe, para efeitos de ser tomado em linha de conta na graduação dos créditos, desde o momento em que o direito à indemnização se constituiu, ou seja, desde a data da declaração de insolvência, e não desde a data da declaração de recusa do cumprimento do contrato pelo administrador, que não tem natureza constitutiva.

IV - Mesmo que se entendesse ter tal declaração natureza constitutiva, a qualificação do crédito do promitente-comprador pelo art. 50.º, n.º 2, al. a), do CIRE, como crédito sob condição suspensiva, conduziria, pela teleologia desta qualificação, ao reconhecimento e graduação do crédito com a natureza correspondente à verificação da condição, isto é, como direito garantido pelo direito de retenção.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção)

Processo n.º 3415/14.3TCLRS-C.L1.S1

Relatório

AA, no âmbito da reclamação de créditos, na insolvência de BB e de CC, veio responder à impugnação deduzida pelo Credor BANCO DD, S.A., que pedira o não reconhecimento do seu direito de crédito reclamado, concluindo que o seu crédito corresponde à quantia de € 141 300,00, derivado do dobro do sinal prestado, por efeito do incumprimento do contrato promessa de compra e venda do prédio urbano, descrito sob o n.º …12 na Conservatória do Registo Predial de …, e celebrado em 27 de dezembro de 2001.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida, em 11 de junho de 2015, sentença, julgando verificado, em favor da mencionada Credora, o crédito de € 140 400,00, garantido por direito de retenção sobre o referido imóvel.

Inconformado com a sentença, recorreu o Credor BANCO DD, S.A., e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes Conclusões:
a) Não foi feita prova do pagamento de € 70 200,00, a título de sinal, nem do incumprimento definitivo do contrato-promessa.
b) A reapreciação da prova impõe diferente conclusão quanto à prova do facto 9 dos fundamentos de facto.
c) A sentença recorrida enferma de nulidade parcial, por manifesta contradição entre os factos dados como provados e as conclusões de direito alcançadas (art. 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC).
d) O Juiz não podia substituir-se ao Administrador da Insolvência e dar como definitivamente incumprido um contrato que se encontra suspenso, nos termos previstos no art. 102.º do CIRE.
e) Tal decisão não só é manifestamente ilegal como nula, por contradição com a factualidade provada (art. 1.º).
f) Não se verificando o incumprimento definitivo do contrato-promessa imputável aos Insolventes, não podia o Tribunal a quo ter reconhecido à Credora o direito à devolução do sinal em dobro e qualquer direito de retenção.
g) Em consequência, deve a decisão recorrida ser modificada na parte em que procedeu à graduação dos créditos, graduando o crédito hipotecário do Recorrente sobre a fração autónoma, com primazia sobre o crédito da Recorrida.
h) A sentença fez errada interpretação e violou o disposto nos artigos 342.º, 410.º, 432.º, n.º 2, 442.º, 801.º, 804.º, 805.º, 808.º, 830.º, do CC, 129.º e 102.º do CIRE.
Pelo que pediu a revogação da sentença recorrida.

Contra-alegou a Credora AA, no sentido da improcedência do recurso.

O Tribunal da Relação veio a proferir Acórdão em que julgou procedente o recurso interposto, tendo decidido que “não pode ser reconhecido qualquer direito de crédito a favor da Apelante, o que importa, nesta parte, a revogação da sentença de reconhecimento e graduação de créditos, com todas as suas consequências legais”. E isto porque, nas palavras do Acórdão “sem o incumprimento definitivo do contrato-promessa, não é possível reconhecer qualquer dos efeitos jurídicos previstos no art. 442.º, n.º 2, do Código Civil, nomeadamente o direito à restituição em dobro do sinal prestado” e “por isso, nesta altura, a promitente-compradora não dispõe de qualquer direito de crédito sobre a massa insolvente”. Assim, “sem o reconhecimento do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda, fica prejudicada, por sua vez, a questão do direito de retenção, invocado como garantia real do direito de crédito”.

AA, inconformada, veio interpor recurso, ao abrigo do “disposto no n.º1 do artigo 671.º, n.º 1 do artigo 675.º e n.º 1 do artigo 676.º a contrario, todos do CPC ex vi dos artigos 14.º e 17.º do CIRE”, pedindo que fosse revogada a decisão recorrida. Defendia, nas suas Conclusões, que o Sr. Administrador da Insolvência tinha reconhecido o crédito da Recorrente (números 6 e seguintes das Conclusões); que o artigo 106.º n.º 2 do CIRE apenas se aplicaria aos contratos promessa com eficácia meramente obrigacional, mas sem tradição da coisa ao promitente-comprador (números 9 a 10), aplicando-se antes aos contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional e com tradição da coisa o disposto no artigo 442.º n.º 2 do Código Civil; que a recusa de cumprimento dos contratos pelo administrador, recusa a que se refere o artigo 102.º n.º 1 do CIRE “não exige declaração expressa, nem forma especial” (n.º 12 das Conclusões) e que a extinção do contrato sempre seria imputável ao insolvente nem que fosse como imputabilidade reflexa.

O BANCO DD, S.A. contra-alegou afirmando que:

O recurso interposto não deveria ser admitido por faltar em absoluto a oposição de Acórdãos, sendo que os Acórdãos invocados pela agora Recorrente se referiram a diferentes situações de facto;

E mesmo que o recurso fosse admitido não deveria proceder por não ter havido qualquer incumprimento definitivo. Com efeito, o administrador da insolvência não optou, nem expressa, nem tacitamente pelo incumprimento, tendo relegado “para momento posterior a sua opção” (alínea D das Conclusões) e “não se podendo inferir o contrário da mera apreensão à ordem da massa do imóvel” (alínea E das Conclusões).

Fundamentação

De Facto

Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada nas Instâncias:
1. Em 12.12.2014, o Administrador da Insolvência juntou aos autos uma relação, declarando reconhecidos os créditos, designadamente de AA, no valor de € 140 400,00, derivado do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda, onde habita a promitente-compradora (€ 70 200,00, crédito privilegiado com direito de retenção, e € 70 200,00, crédito sob condição, correspondente à eventual penalidade em caso de resolução), com a escritura a dever ser realizada até 27 de maio de 2016.
2. Nos autos, foram apreendidos bens, designadamente a fração autónoma designada pela “C”, destinada a habitação, sita na Praceta ..., …, freguesia e concelho de …, descrita na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º …12, com hipoteca voluntária a favor de BANCO EE, S.A.
3. Por apresentação de 20.10.1986, registou-se a favor de AA e FF a propriedade dessa fração.
4. Por escritura pública de 27 de dezembro de 2001, AA declarou vender aos Insolventes, e estes comprar, com destino exclusivo da habitação, pelo preço de 10 000 000$00, então recebido, a fração referida, sobre a qual incidia, naquele momento, uma hipoteca e penhora tituladas pela BANCO GG, S.A.
5. Por escrito particular de 27.12.2001, os Insolventes declararam prometer vender e AA prometer comprar a mesma fração, livre de ónus e encargos, pelo preço de 16 239 042$00, a pagar: a) a título de sinal e princípio de pagamento por conta do preço, 90 216$90; b) 172 prestações mensais e sucessivas, cada uma no montante de 90 216$90, vencendo-se a primeira no dia 27 de janeiro de 2002 e a última no dia 27 de abril de 2016; c) o valor das prestações tem a natureza de pagamento parcial do preço e reforço do sinal; d) o remanescente do preço, no valor de 631 518$30, seria pago no ato da escritura.
6. Ajustaram ainda que a escritura se realizaria até 27 de maio de 2016.
7. Mais clausularam que “o incumprimento de qualquer das obrigações assumidas no presente contrato por parte dos promitentes-vendedores, designadamente a não comparência ou a não outorga da escritura pública de compra e venda (…) ou a verificação de qualquer facto que se traduza na impossibilidade de cumprimento definitivo deste contrato, confere à promitente-compradora o direito de, de imediata e automaticamente, sem dependência de qualquer prazo, resolver o presente contrato e exigir dos promitentes-vendedores a restituição em dobro de todas as importâncias entregues a título de sinal e respetivos reforços. (…) A existência de sinal passado não afasta a possibilidade de o promitente não faltoso requerer, em alternativa, a execução específica nos termos do artigo 830.º do Código Civil.
8. A mesma fração foi objeto de penhora, no âmbito do processo n.º 3906/11.8TBOER, que correu termos pelo Juízo de Execução de Oeiras, não tendo AA reclamado qualquer crédito.
9. Ao tempo da escritura pública referida, os Insolventes eram os proprietários da firma HH, Lda., onde AA trabalhava há muitos anos, o que ocorreu até janeiro de 2013.
10. Em função de dificuldades económicas oriundas do divórcio, AA tinha uma dívida hipotecária à BANCO GG, em estado de incumprimento, e a fim de a pagar, não perdendo a fração, solicitou aos seus patrões que adquirissem o imóvel, dispondo-se a recomprá-lo a prestações que, na sua totalidade, correspondessem às do empréstimo que estes teriam que contrair para tal compra.
11. O valor das prestações, € 450,00, foi deduzido, todos os meses, ao ordenado que AA teria a receber, a partir de janeiro de 2002, primeiro na HH, Lda., e, após janeiro de 2013, na II, Lda., propriedade da filha dos sócios da HH, Lda. e de quem, a partir daquela data, AA é trabalhadora.
12. AA reside na fração, de forma pública, pacífica e notória desde 1986.

De Direito

O presente recurso é interposto ao abrigo do artigo 14.º do CIRE, cabendo ao recorrente, segundo o disposto no n.º 1 do mesmo preceito, o ónus de “demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B do Código do Processo Civil, jurisprudência com ele conforme”.

O Recorrente cumpriu esse ónus ao invocar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2014, de que foi Relator o Sr. Conselheiro FERNANDES DO VALE. Com efeito, nesse Acórdão, considerou-se que o reconhecimento do crédito do promitente-comprador como crédito garantido implicava, em si mesmo, uma recusa de cumprimento do contrato, operada em termos inequívocos, posição diversa da adotada pelo Tribunal da Relação no Acórdão ora recorrido e com reflexos imediatos na questão fundamental de saber em que momento temporal é que, em casos como o vertente, surge o direito de retenção do promitente-comprador.

O Banco agora Recorrido defende que à luz da alínea f) do artigo 755.º o promitente-comprador apenas teria direito de retenção uma vez verificado o incumprimento do contrato-promessa. Nas suas contra-alegações oferecidas no âmbito do presente recurso afirma expressamente que “quer o artigo 442.º, n.º 2, quer o artigo 755.º, n.º 1, alínea f), ambos do Código Civil, têm como pressuposto essencial de aplicabilidade o incumprimento definitivo do contrato” (n.º 19 das contra-alegações). Também o Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão recorrido sufragou esse entendimento, podendo ler-se, na sua motivação o seguinte:

“(S)em o incumprimento definitivo do contrato-promessa não é possível reconhecer qualquer dos efeitos previstos no art. 442.º, n.º2 do Código Civil, nomeadamente o direito à restituição em dobro do sinal prestado. Por isso, nesta altura a promitente-compradora não dispõe de qualquer direito de crédito sobre a massa insolvente”.

Este entendimento baseia-se, como se vê, na aplicação ao caso dos autos do artigo 442.º, n.º 2 do Código Civil.

Importa começar por sublinhar que o artigo 755.º n.º 1 alínea f) reconhece, com efeito, o direito de retenção ao “beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do incumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”. Trata-se de um direito de retenção que visa garantir ao seu titular os direitos que o artigo 442.º do Código Civil lhe atribui, mormente em situações de incumprimento imputável à outra parte, que é o caso típico considerado pelo legislador civil como causa de prejuízo para o promitente-comprador.

Importa, contudo, não esquecer que o CIRE contém um regime especial para os efeitos da insolvência sobre os contratos em execução e, designadamente, para o contrato-promessa.

Relativamente a este último o artigo 106.º do CIRE começa por introduzir, no seu n.º1, uma diferença de regime entre os contratos-promessa com eficácia real em que, tendo já havido tradição da coisa, no caso de insolvência do promitente vendedor o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa e as restantes situações.

Ora o caso dos autos é, precisamente, o de um contrato-promessa sem eficácia real, mas com tradição da coisa e em que o promitente-comprador é inequivocamente um consumidor.

Qual é, então, o regime aplicável a estas situações?

A este respeito pode ler-se na fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de Uniformização de Jurisprudência (PAULO TÁVORA VITOR) publicado no DR, 1.ª Série, n.º 95, 19 de maio de 2014, pp. 2882 e seguintes, que “ficará o n.º 2 do artigo 106.º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador” e “só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato” (p. 2888), pelo que havendo tradição se aplicaria o artigo 442.º n.º 2 do Código Civil.

Esta orientação não integra, contudo, o segmento uniformizador e não foi sufragada por alguns dos Senhores Juízes Conselheiros que votaram favoravelmente o Acórdão (cfr., designadamente, as declarações de voto dos Conselheiros MOREIRA ALVES, ALVES VELHO, FONSECA RAMOS).

Com efeito, não falta doutrina que defenda que não existe qualquer lacuna no tratamento proporcionado pelo CIRE ao contrato promessa, nem se justifica qualquer interpretação restritiva do artigo 106.º do CIRE.

Esta questão teria interesse para determinar se nestes casos o promitente-comprador teria direito ao dobro do sinal como admitiu o administrador da insolvência. No entanto, e porque este Tribunal está limitado pelo pedido das partes, com a excepção das questões de conhecimento oficioso, e consequentemente o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações não há que conhecer do direito neste caso do promitente-comprador ao dobro do sinal porque a questão não foi sequer suscitada pelo BANCO DD SA nas suas contra-alegações.  

O artigo 106.º n.º 2 do CIRE atribui ao administrador da insolvência o direito potestativo de optar, quando não se trate de contrato promessa com eficácia real e tradição da coisa para o promitente-comprador, entre o cumprimento e o não cumprimento do contrato-promessa. Este direito de recusa do cumprimento não foi obviamente contemplado pelo legislador do Código Civil, porquanto o devedor não tem o direito de não cumprir. Mas o direito de recusar o cumprimento assiste ao administrador da insolvência (com a ressalva do n.º 4 do artigo 102.º, o qual por ser o afloramento do princípio geral de proibição do abuso de direito deve ter-se por aplicável também neste contexto) que não é um representante do devedor. Acresce que as consequências da recusa de cumprimento são, também elas, muito distintas do previsto no artigo 442.º do Código Civil: por força da remissão do n.º 2 do artigo 106.º do CIRE para o n.º 5 do artigo 104.º do mesmo Código, o qual remete, por seu turno, para o n.º 3 do artigo 102.º, mas com adaptações, o promitente-comprador tem direito a uma indemnização que fica consideravelmente aquém da que resultaria da aplicação do artigo 442.º do Código Civil. Redução da indemnização que parece corresponder à ideia de que não há aqui um verdadeiro incumprimento pelo devedor, mas antes o exercício de um direito de recusa do cumprimento.

Não é, assim, aplicável ao caso vertente de um contrato promessa com eficácia meramente obrigacional no contexto da insolvência o artigo 442.º do Código Civil. E o próprio artigo 755.º n.º 1 alínea f) que para ele remete terá que ser interpretado com cautela tendo em conta a radical diferença de situações.

Destarte, é exacto afirmar como fez o Tribunal da Relação que o promitente-comprador não tem um direito de crédito sobre a massa insolvente – mas terá um direito de crédito sobre a insolvência?

Em primeiro lugar, importa ter presente que há doutrina que defende, com uma argumentação meticulosa e coerente – referimo-nos a NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA[1] - que o direito à indemnização do promitente-comprador “parece resultar da declaração de insolvência, parece constituir-se ex lege, parece não ser uma “dívida [resultante] da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções”; - por isso é (só) uma dívida da insolvência [art. 102.º, n.º 3, als. c) e d), do CIRE]”, ao contrário do direito ao cumprimento que, esse sim, resultaria da declaração do administrador, constituindo-se ex voluntate e sendo, por conseguinte, uma dívida da massa. E daí que, nas palavras do Autor, a declaração do administrador pelo não cumprimento não tenha valor constitutivo. Nesta linha de pensamento, tendo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014 de Uniformização de Jurisprudência reconhecido o direito de retenção ao promitente-comprador consumidor tal direito deve existir desde a data em que o direito à indemnização se constituiu, ou seja, desde a data da declaração de insolvência.

Mas mesmo que assim não se entenda e que se pretenda atribuir natureza constitutiva à declaração do administrador quando este opta pelo não cumprimento haverá que ponderar uma outra opção do legislador do CIRE.

Com efeito, importa ter presente que o CIRE no seu artigo 50.º n.º 2 alínea a) estabelece que “são havidos, designadamente, como créditos sob condição suspensiva: a) Os resultantes da recusa de execução ou denúncia antecipada, por parte do administrador da insolvência, de contratos bilaterais em curso à data da declaração de insolvência, ou da resolução de atos em benefício da massa insolvente, enquanto não se verificar essa denúncia, recusa ou resolução (…)”.

Também aqui se vislumbra uma significativa diferença relativamente ao Código Civil em que dificilmente se poderá dizer que o promitente-comprador tem um direito a ser indemnizado sujeito á condição suspensiva do incumprimento do contrato imputável à contraparte.

Este reconhecimento de um crédito sob condição suspensiva visa reforçar a tutela do seu titular, como também resulta do artigo 181.º e do facto de a lei se preocupar expressamente com a hipótese de o rateio final ocorrer quando não está ainda sequer preenchida a condição suspensiva.

A teleologia tuitiva desta qualificação do direito como direito sujeito a condição suspensiva conduz a que o direito deva ser reconhecido e graduado desde logo como tendo a natureza que será a sua se a condição se verificar, ou seja, como direito garantido pelo direito de retenção. E a idêntico resultado conduz, também, a argumentação do já mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2014 (FERNANDES DO VALE) pela relevância que atribui ao reconhecimento do crédito pelo administrador da insolvência.

Decisão: Concedida a Revista, revogando-se o Acórdão recorrido e subsistindo a decisão da 1.ª Instância.

Custas pelo Recorrido

Lisboa, 21 de Junho de 2016

Júlio Gomes (Relator)

José Rainho

Nuno Cameira

    

 

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[1] NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos?, I Congresso de Direito da Insolvência coordenado por CATARINA SERRA, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 201 e ss.