Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
589/17.5T8ESP.P1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: DIVISÃO DE COISA COMUM
RECLAMAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
Indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão singular que indeferiu a reclamação suscitada ao abrigo do art. 643º do CPC e, por essa via, manteve o despacho da Relação que não admitiu o recurso do acórdão
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*


AA instaurou a acção especial de divisão de coisa comum contra BB, CC, DD, EE e FF, pedindo: que se declare por sentença que a A. e RR. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano, situado na rua ..., cidade e concelho de..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 2075 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob a descrição ...02 e com o valor patrimonial de € 169.900,00; que se declare por sentença que o referido prédio urbano é indivisível jurídica e materialmente; que sejam fixadas as respectivas quotas; que seja o prédio urbano objecto dos presentes autos, porque jurídica e materialmente indivisível, adjudicado ou vendido com repartição do respectivo valor.

Alega, em síntese, que A. e RR. são comproprietários do prédio, que este é indivisível e que não pretende continuar em compropriedade.

Citados os RR., DD defendeu-se por excepção e por impugnação.

Por despacho de 11 de Setembro de 2018, e na sequência de requerimento da A. e da R. DD, foi decidido que o prédio é indivisível.

Foi realizada conferência de interessados em 17 de Outubro de 2018, tendo a R. DD requerido a avaliação do prédio.

Foi realizada nova conferência de interessados em 30 de Outubro de 2019, na qual se apurou que a R. DD à data da compra era casada com GG na comunhão de adquiridos e se convidou a suprir a falta de legitimidade.

Foi requerida a intervenção principal provocada de GG, que foi admitida.

Citado, o chamado contestou, alegando, em síntese, que o negócio de compra e venda que esteve na base da aquisição dos AA. e RR. foi simulado uma vez que o dinheiro usado na compra era do casal formado por HH e II, e que o objectivo foi afastar II de qualquer interesse sobre o imóvel e de ali passar a residir a companheira de HH.

Mais alegou que a transmissão do imóvel foi feita por escritura pública de compra e venda que encobriu a doação, que o já falecido HH quis fazer e efectuou à sua companheira e aos seus filhos.

Concluiu, pedindo que fosse declarado nulo o negócio de compra e venda que esteve na base da aquisição por simulação e extinta a acção de divisão de coisa comum.

AA, JJ e EE, em resposta, alegaram, em síntese, que não houve qualquer simulação uma vez que o negócio foi efectuado com o consentimento de II e de A. e RR., e que o dinheiro da aquisição era, de facto, do casal formado por HH e II.

Acrescentam que caso se venha a considerar que o negócio foi simulado, a verdade é que sempre será uma simulação relativa uma vez que o que se pretendeu foi doar o prédio aos filhos.

Por despacho de 21 de Setembro de 2020, o Tribunal declarou a ilegitimidade do chamado GG para invocar a simulação do negócio que está na base da compropriedade e da divisão de coisa comum.

DD e GG interpuseram recurso do despacho.

O Tribunal da Relação revogou a decisão e determinou o prosseguimento da fase declarativa da acção de divisão de coisa comum para apreciação da arguida nulidade do negócio, por simulação.

Realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que decidiu:

“1.º-Julgar improcedente a excepção de simulação das compras e vendas resultantes da escritura pública, celebrada no dia 10 de Dezembro de 1985, lavrada a folhas 59 e seguintes do livro 94-B, do então Cartório Notarial e ... e, em consequência, julgar válidas as referidas compras e vendas em que CC ou CC, casado com KK no regime da comunhão de adquiridos; BB, casada com LL no regime da comunhão geral de bens; DD enquanto casada com GG no regime da comunhão de adquiridos, actualmente divorciada; AA casada com JJ no regime da comunhão de adquiridos; FF, ao tempo solteira, maior, atualmente viúva; EE, ao tempo solteiro, maior, actualmente casada com MM, no regime da comunhão geral, são compradores, em comum e partes iguais, do prédio urbano, sito na Rua ..., ..., composto de casa de rés-do-chão, andar e quintal com a área coberta de 111,5m² e 88,5m² de área descoberta, inscrito na matriz sob o artigo 2075, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...02 da mesma freguesia de ..., que foi objecto de compras e vendas constantes da escritura pública, celebrada no dia 10 de Dezembro de 1985, lavrada a folhas 59 e seguintes do livro 94-B, do então Cartório Notarial de ..., tendo como causa a compra a NN e mulher OO, prédio esse entretanto reconstruído/remodelado.

2.º-Declarar o referido prédio insusceptível de divisão.”

Inconformada, apelou DD, pugnando que a sentença deveria:

“a) ser revogada e substituída por uma outra onde se julgasse verificada a simulação no contrato de compra e venda titulada pela escritura pública de 10.12.1985, ordenando-se a anulação da mesma (bem como o cancelamento do respectivo registo predial), bem como as demais consequências legais daí advenientes;

b) devendo antes ser reconhecido que o imóvel aqui em causa foi adquirido pelo casal EE e esposa II, casados entre si no regime na comunhão geral de bens, por compra a NN e OO;

Na pendência do recurso, o relator, considerando que não se vislumbrava qualquer alegação relativa à venda dos vendedores em qualquer pacto simulatório e que era, por isso, inútil a reapreciação da matéria de facto, convidou a apelante a pronunciar-se nos termos do art. 3º, nº 3 do CPC, o que ela fez, mediante requerimento de 20.9.2022.

Por acórdão da Relação de 11.10.2022, o recurso foi julgado improcedente e confirmada a sentença.

Desse acórdão foi interposto recurso de revista, em 11.11.2022, com fundamento em violação dos arts. 640º e 642º do CPC e nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à impugnação da matéria de facto e sobre as questões vertidas no requerimento de 20.9.2022.

Perante tais alegações, a relatora remeteu para a conferência em 30.1.2003, onde, por acórdão de 7.2.2023, a Relação, apreciando a omissão de pronúncia, “desatende a reclamação “.

Seguiu-se despacho de 7 2.2023, que admitiu o recurso de revista.

No entanto, a apelante, inconformada, também, com o acórdão de 7.2.2023, que qualificou de decisão surpresa, e destituído de fundamentação, interpôs do mesmo igualmente recurso de revista, nos termos dos arts. 652º, nº 5, al. b), 671º, nº 1, 674º, nº 1, 676º, nº 1 e 629º, nº 1 e nº 2, al a) do CPC (que, caso a Relação entenda que não é a revista normal, deverá subir como revista excepcional, nos termos dos arts. 672º, nº 1, al a), 674º, nº 1, 675º, nº 1 e 629, nº 1 e 2, al. a) do CPC) mas este recurso não foi admitido, com o fundamento de que o acórdão da conferência não tinha recurso, como decorria do disposto no art. 617º, nº 1, aplicável ex vi art. 666º, nº 1, ambos do CPC.

Foi deste despacho de 2.5.2023 que a apelante/recorrente veio reclamar, com o fundamento de que, não tendo deduzido qualquer reclamação nos termos do art. 652º, nº 3 do CPC de qualquer despacho do relator, que não existe, o despacho que não admite o recurso do acórdão da conferência que indeferiu a nulidade, padece de excesso de pronúncia (ao impedir que o STJ se pronuncie acerca da revista interposta), viola o princípio da gestão processual e o da adequação da tutela dos arts 20º e 30º da CRP, está inquinado da nulidade da al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC, e viola, por último, os arts. 20º, nº 1 e 2 e 202º, 2º, 6º, nº 1, 7º, 8º e 2º da CRP.

Sobre esta reclamação incidiu a seguinte decisão singular:

“ (…)

Porém, apesar da extensa fundamentação, a reclamante não tem razão.

É verdade que não houve qualquer reclamação para a conferência de qualquer despacho que tenha sido proferido e, nessa medida, a expressão “desatende a reclamação “é susceptível de gerar confusão.

Porém, as decisões têm de ser interpretadas no seu conjunto.

Ora, o acórdão de 7.2.2023 é claro ao que vem, só se podendo interpretar a reacção contra o mesmo através do recurso de revista e da reclamação do despacho que não admitiu esse recurso pelo desconhecimento do que a lei observa neste particular.

A recorrente arguiu no recurso de revista a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.

Ora, nos termos dos arts. 617º (disposição que a reclamante ignora na sua reclamação, apesar de expressamente invocada no despacho reclamado) e 666º, devidamente conjugados, se a questão da nulidade do acórdão for suscitada no recurso interposto (como foi o caso) compete aos juízes da Relação apreciá-la e decidi-la em conferência, não cabendo recurso da decisão de indeferimento.

Como assim, a decisão da Relação tomada em conferência, apesar de “desatender a reclamação “(expressão que se deve atribuir apenas a imprecisão da linguagem técnica utlizada), pretendeu apenas indeferi-la ao abrigo do art. 617º, nº 1 do CPC; sendo que, como decorre dessa mesma disposição legal, de tal decisão de indeferimento não existe recurso.

Não se mostra violada qualquer das demais disposições invocadas pela reclamante.

Pelo exposto, indefere-se a reclamação.

Custas pela reclamante.”

Notificada deste despacho singular, a R./recorrente DD vem dele reclamar para a conferência ao abrigo do disposto do n° 3 do art. 652° e do 679° ambos do CPC.

Apreciando.

Imputa a reclamante ao despacho singular nulidade por excesso de pronúncia, com o fundamento de que o relator no STJ se “pronunciou largamente (2/3 do despacho), acerca da sentença e do acórdão de 11.10.2022, ofendendo o disposto no n° 2 do art 608° do CPC.”, peças esstas que, no seu entender, não deviam ter sido remetidas, oficiosamente, pela Relação, por força do disposto no nº 3 do art. 643º do CPC.

Olvida, porém, que a instrução da reclamação não é um exclusivo da parte: se o relator não se julgar suficientemente elucidado com os documentos referidos no nº 3, pode requisitar outros (art. 643º, nº 5), o que significa que é suposto que o relator esteja totalmente esclarecido em relação ao que vai decidir e não limitado na sua compreensão.

Ora, só se entende totalmente o acórdão de 7.2.2023, do qual a reclamante pretende recorrer (o recurso do acórdão de 11.10.2022 não está aqui em causa) se o Supremo tiver acesso ao historial do processo e designadamente ao acórdão da Relação de 11.10.2022.

Improcede, assim, a nulidade por excesso de pronúncia.

Entende, também, a reclamante que o relator omitiu pronúncia sobre a nulidade por absoluta falta de fundamentação fáctico-jurídica do acórdão de 7.2.2023 e pelo facto de este constituir uma decisão surpresa, nulidade esta invocada no seu requerimento de 16.2.2003 de interposição de revista do acórdão de 7.2.2023.

Porém, tendo concluído (e bem) que o acórdão de 7.2.2023 ( e só este está em causa nesta reclamação) não admitia recurso, não tinha o relator de se pronunciar sobre as nulidades suscitadas nas alegações de 16.2.2023. Se aquela decisão de 7.2.2013 não admite recurso ordinário, as referidas nulidades só são arguíveis mediante reclamação perante o próprio tribunal que proferiu tal decisão, nos termos dos artigos 615º, n.º 4, 1ª parte, e 617º, nº 6, do CPC, e aí apreciadas ( cfr. Ac. STJ de 24.11.2016, proc.. 470/15.2T8MNC.G1-A.S1).

Preocupa-se a reclamante com a passagem do despacho reclamado em que se afirma que “Por acórdão da Relação de 11.10.2022, o recurso foi julgado improcedente e confirmada a sentença”, o que pode induzir a existência de dupla conforme, que não se verifica no caso concreto.

Porém, esta não é questão que o deva preocupar uma vez que nesta reclamação não está em causa o recurso do acórdão de 11.10.2022 ( que foi admitido na Relação ) mas apenas o recurso do acórdão posterior, de 7.2.2023, sendo, por isso, as vicissitudes relacionadas com o primeiro acórdão totalmente estranhas ao objecto desta reclamação.

Insiste a reclamante na ideia de que a conferência de 7.2.2023 (onde se prolatou o acórdão da mesma data) foi sigilosa, porque a Relação realizou a conferência e proferiu, simultaneamente, o despacho de admissão da revista de 12.11.2022, à revelia das partes.

No entanto, e apesar de citar o art. 617º, nº 1 do CPC, continua a reclamante a revelar incompreensão do estatuído nessa norma, conjugada com a do art. 666º do CPC, insistindo na necessidade de haver despacho prévio à realização da conferência ( que, aliás, existe, cfr. despacho de 30.1.2023). e na notificação prévia desse despacho, para evitar a “surpresa” e o “sigilo”. Parece não compreender que o acórdão de 7.2.2023 decorre, imperativamente, do disposto no nº 1 do art. 617º do CPC, conjugado com o art. 666º do mesmo diploma, e que, nos termos dessa primeira disposição, tal acórdão não admite recurso, sendo que o facto de o despacho que marcou a conferência não ter sido notificado às partes é questão que não contende com a recorribilidade do referido acórdão.

Argumenta a recorrente/reclamante, reportando-se, segundo nos parece, às nulidades suscitadas no primeiro recurso (do acórdão de 11.10.2022) que só nos casos de indeferimento (não admissão) da revista é que as nulidades são dirigidas ao Tribunal da Relação, só podendo ser conhecidas pela Relação se forem suscitadas em reclamação, que não existe no caso em apreço.

Porém, como se salientou no despacho do relator não era preciso haver reclamação para a Relação dar cumprimento ao nº 1 do art. 617º do CPC, apreciando as nulidades. O facto de as nulidades terem sido suscitadas no recurso não preclude a apreciação dessas nulidades pela Relação, como se depreende de uma leitura atenta do citado nº 1 do art. 617º do CPC, nem a ulterior apreciação pelo Supremo . E aqui reside o equívoco da reclamante ao pensar que o acórdão de 7.2.2023, ao apreciar as nulidades, a“ desfavoreceu drasticamente “ ou teve por objectivo “ fechar em definitivo a porta à subida da Revista de 12.11.2022”. É que é ao tribunal superior que cabe decidir da procedência dessa nulidade, como se sublinha no CPC anotado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa e outros, 2018, a pág. 740: “se o juiz indeferir o incidente de nulidade…, a respectiva decisão não admite recurso autónomo, seguindo o processo para o tribunal superior ao qual cabe apreciar a nulidade”; ou, como se assinala no CPC anotado por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, volume 3ª, 3ª edição, a pág. 745: “a decisão do juiz sobre a nulidade (…) não é passível de recurso quando seja de indeferimento, sem prejuízo de respectiva matéria continuar a ser objeto do recurso que foi interposto. O que o nº 1 in fine exclui é o recurso que tenha por objecto a própria decisão de indeferimento não prejudicando o recurso interposto a sentença [ou do acórdão]” (sublinhados nossos).

É verdade que o acórdão de 7.2.2023 rematou com a expressão“ desatende a reclamação “.

Todavia, do contexto dos autos, verifica-se que, com a decisão de 7.2.2023, a Relação pretendeu não indeferir qualquer reclamação (que não existia) mas apenas pronunciar-se, ao abrigo do nº 1 do art. 617º do CPC sobre a nulidade por omissão de pronúncia suscitada pela reclamante no seu recurso do acórdão de 11.10.2022, decisão essa que, apesar de não comportar recurso, não é susceptível, como se viu, de “desfavorecer” a reclamante nem de lhe “fechar em definitivo a porta à subida da Revista de 12.11.2022”.

Pelo exposto, acorda-se em indeferir a reclamação e confirmar a decisão singular que indeferiu a reclamação suscitada ao abrigo do art. 643º do CPC e, por essa via, manteve o despacho da Relação que não admitiu o recurso do acórdão de 7.2.2023.

Custas pela reclamante, com a taxa de justiça de 2 (duas) UC.


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Lisboa, 23 de Janeiro de 2024

António Magalhães (Relator)

Maria João Vaz Tomé

Jorge Leal