Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
921/12.8TAPTM-D.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRAZO
ARGUIDO
DETENÇÃO
PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO
Data do Acordão: 05/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: DEFERIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL - DECLARAÇÕES DE ARGUIDO / PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO - IMPUGNAÇÃO DA PRISÃO ILEGAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 141.º, 220.º, Nº 1, A), 222.º, N.º2, AL. C), 223.º, N.º 4, ALS. B), C) E D), 254.º, N.º 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 31.º.
D.L. N.º 15/93, DE 22-1: - ARTIGO 21.º.
Sumário :


I -São os seguintes os fundamentos de habeas corpus contra a prisão ilegal: incompetência da entidade que decreta a prisão – al. a); ser esta motivada por facto pelo que a lei não a permite – al. b); terem sido excedidos os prazos legais ou judiciais – al. c); sendo esta última a situação em que alegadamente o requerente se encontra.
II -Face ao disposto nos arts. 254.º, n.º 2, e 141.º, do CPP, a apresentação do detido ao juiz para interrogatório é sempre obrigatória, mesmo quando a ordem de detenção seja oriunda do tribunal, devendo efetivar-se no prazo de 48 h.
III -Daqui deve concluir-se que, no caso dos autos, o ora requerente, detido em 17-05-2014, deveria ter sido apresentado ao juiz para interrogatório nas subsequentes 48 h, o que não sucedeu. Existe, pois, excesso de prazo, o que se enquadra na situação prevista na al. c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP.
IV - Daí não resulta, porém, a libertação do requerente. Na verdade, a constatação da ilegalidade da prisão não determina necessariamente a libertação do preso. Quando se trata de garantir ao preso o direito de audição que lhe fora negado pelo tribunal, a decisão deverá ser no sentido de o mandar apresentar no tribunal competente no prazo de 24 h (cf. art. 223.º, n.º 4, al. c), do CPP).



Decisão Texto Integral:

                Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

            AA, com os sinais dos autos, preso preventivamente à ordem do 2º Juízo Criminal de Portimão, vem requerer a providência de habeas corpus, ao abrigo do art. 220º, nº 1, a), do Código de Processo Penal (CPP), nos seguintes termos:

1. No dia 17 de Maio de 2014, pelas 04h10, o aqui Peticionante foi detido por agentes da PSP de Olhão, no cumprimento de um mandado de condução (de detido ao Estabelecimento Prisional), datado de 21/12/2012, proferido pela Mmª Juiz de Direito do 2° Juízo Criminal da Comarca de Portimão, no âmbito processo no 921/12.8TAPTM - cf. Documento que se junta.

2. O referido mandado destina-se à execução da medida de coacção de prisão preventiva - mesmo documento junto.

3. O arguido foi conduzido ao E.P. de Olhão no dia 17/05/2014, onde se encontra privado da sua liberdade até à presente data.

4. Sucede que o arguido nunca foi ouvido pelo Mmo Juiz antes (ou depois) da aplicação da aludida medida de coacção da prisão preventiva, desconhecendo o teor do despacho que a terá mandado aplicar.

5. Ou seja, a aludida medida de coacção foi aplicada sem audição prévia do arguido. Ora,

6. Por força do disposto no artigo 254.°, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, o detido tem que ser presente ao juiz competente para (...) execução de uma medida de coacção no prazo máximo de quarenta e oito horas.

7. E nos termos do nº 2 daquele preceito legal “O arguido detido fora de flagrante delito para (...) execução da medida de prisão preventiva é sempre apresentado ao juiz, sendo correspondentemente aplicável o disposto no artigo 141º”.

8. Citando a obra "Medidas de Coacção e de Garantia Patrimonial" da autoria de Rui da Fonseca e Castro e Fernando da Fonseca e Castro "Em qualquer situação de impossibilidade de audição prévia do arguido, importa, todavia, ter presente o disposto no artigo 254.°, n° 2, do Código de Processo Penal, nos termos do qual, sempre que a medida de coacção aplicada seja a prisão preventiva, aquele, em acto seguido à sua detenção, não pode deixar ser presente ao juiz competente, aplicando-se à audiência o regime do 1º Interrogatório Judicial de arguido detido. Neste caso, ainda que tenha havido impossibilidade de audição prévia do arguido, a execução da prisão preventiva não poderá iniciar-se sem que o arguido seja ouvido pelo juiz, nos termos do disposto no artigo 141.º do C.P.P."

9. Da conjugação das disposições constantes dos artigos 194.°, nº 4, 254.°, nº 2 e 141.º do Código de Processo Penal, resulta que o arguido que não tenha sido ouvido, por impossibilidade, previamente à aplicação da prisão preventiva, será sujeito logo que seja detido para execução da medida cautelar, a interrogatório judicial. - mesma ob. Citada.

10. O que não sucedeu até à presente data, tendo decorrido mais de 48 horas sobre a sua detenção.

Por se tratar, indiscutivelmente, de uma situação de detenção ilegal nos termos do disposto no artigo 220.º, n.º1, alínea a) do Código de Processo Penal, deve o arguido ser imediatamente apresentado a V. Exa. nos termos do disposto no n° 1 do artigo 221.º do mesmo diploma legal.

            Foi prestada a seguinte informação, nos termos do art. 223º, nº 1, do CPP:

Apresentou o Arguido AA requerimento de Habeas Corpus perante o "Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Olhão da Restauração", nos termos do disposto no artigo 220º do Código de Processo Penal.

Dispõe tal artigo que

"1 - Os detidos à ordem de qualquer autoridade podem requerer ao juiz de instrução da área onde se encontrarem que ordene a sua imediata apresentação judicial, com algum dos seguintes fundamentos:

a) Estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial;

b) Manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos;

c) Ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

d) Ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

2 - O requerimento pode ser subscrito pelo detido ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3 - É punível com a pena prevista no artigo 382.º do Código Penal qualquer autoridade que levantar obstáculo ilegítimo à apresentação do requerimento referido nos números anteriores ou à sua remessa ao juiz competente."

Compulsados os autos, verifica-se que o Arguido foi detido em cumprimento de mandado de detenção para cumprimento de medida de coação de prisão preventiva.

Ora, tratando-se de cumprimento de uma ordem judicial que determinou a detenção do Arguido para que o mesmo permaneça em prisão preventiva, entende-se que o presente procedimento deverá seguir os termos do Habeas Corpus em virtude de prisão ilegal previsto nos artigos 222º e 223º do Código de Processo Penal.

Nesta conformidade, remeta de imediato ao Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, enviando, desde já, fax do presente despacho e do requerimento apresentado pelo Arguido, com a seguinte informação;

- O Arguido AA encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva determinada por despacho proferido em acta do dia 18.12.2012;

- foi proferido acórdão, em 06.02.2013, que condenou o mesmo Arguido, pela prática de um crime de Tráfico de Estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 6 anos de prisão, tendo também sido ordenada a expulsão do Arguido de Portugal por 10 anos;

- nesse mesmo acórdão foi determinado que o Arguido continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação anteriormente determinada;

- nessa sequência, foram emitidos os competentes mandados de detenção que vieram a ser cumpridos no dia 17.05.2014;

 - o referido acórdão condenatório ainda não transitou em julgado relativamente ao Arguido AA;

- o Arguido ainda se encontra preso.

Realizada a audiência de julgamento, nos termos legais, cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. Da informação acima transcrita e da certidão junta aos autos, resultam provados os seguintes factos:

Em 18.12.2012, o requerente foi submetido a julgamento perante o tribunal coletivo do 2º Juízo Criminal de Portimão, sendo-lhe imputado um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do DL nº 15/93, de 22-1.

O requerente faltou à audiência, tendo o tribunal considerado não indispensável a sua presença, pelo que decidiu prosseguir o julgamento na sua ausência, sendo representado pelo seu defensor. Mais decidiu, perante a informação de que se encontrava em fuga, aplicar ao ora requerente a medida de prisão preventiva.

Por acórdão de 6.2.2013, foi o ora requerente condenado na pena de 6 anos de prisão pela prática do crime que lhe vinha imputado.

Tendo sido emitidos mandados de detenção para sujeição à medida de prisão preventiva decretada, foi o ora requerente detido em 17.5.2014 em cumprimento desses mandados.

O acórdão condenatório ainda não transitou em julgado, encontrando-se o requerente sujeito a prisão preventiva desde esse dia.

O requerente não foi ouvido pelo tribunal após a detenção.

2. O habeas corpus constitui uma providência excecional, com assento constitucional (art. 31º da Constituição), destinada a garantir a liberdade individual contra os abusos de poder derivados de prisão ilegal. Não constitui um recurso da decisão judicial que decretou a privação da liberdade. Destina-se, sim, a indagar da legalidade da prisão, de forma a pôr termo imediato às situações de ilegalidade manifesta, diretamente identificáveis a partir dos elementos de facto contidos nos autos.

Esta providência não constitui, assim, um meio de impugnação de decisões judiciais, uma espécie de sucedâneo “abreviado” dos recursos ordinários, ou mesmo um recurso “subsidiário”, antes um mecanismo expedito que visa pôr fim imediato às situações de privação da liberdade que se comprove serem manifestamente ilegais, por ser a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos documentalmente recolhidos no âmbito da providência (e eventualmente dos apurados ao abrigo da al. b) do nº 4 do art. 223º do CPP).

Não é, pois, o habeas corpus o meio próprio de impugnar as decisões processuais ou de arguir nulidades e irregularidades eventualmente cometidas no processo, ou para apreciar a correção da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, decisões essas cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário.

O habeas corpus, insiste-se, não pode revogar ou modificar decisões, ou suprir deficiências ou omissões do processo. Pode, sim, e exclusivamente, apreciar se existe, ou não, uma privação ilegal da liberdade motivada por algum dos fundamentos legalmente previstos para a concessão de habeas corpus, e, em consequência, determinar, a libertação imediata do recluso, ou qualquer das medidas previstas nas als. b), c) ou d) do nº 4 do art. 223º do CPP.

O requerente invoca como fundamento do seu pedido o art. 220º, nº 1, a), do CPP. Mas trata-se de manifesto lapso, já assinalado na informação, uma vez que a detenção do requerente foi efetivada em cumprimento de mandado emitido pelo tribunal. Não se verificará, pois, necessariamente uma situação de detenção ilegal, mas eventualmente de prisão ilegal, relativamente à qual é também possível reagir por meio de habeas corpus, mas com o regime previsto no art. 222º, nº 2, do CPP.

São os seguintes fundamentos de habeas corpus contra a prisão ilegal: incompetência da entidade que decreta a prisão – al. a); ser esta motivada por facto pelo que a lei não a permite – al. b); terem sido excedidos os prazos legais ou judiciais – al. c).

Será esta última, pois, a situação em que alegadamente o requerente se encontra.

Na verdade, o requerente invoca a violação do disposto no art. 254º, nº 2, do CPP, que estipula o seguinte:

2. O arguido detido fora de flagrante delito para aplicação ou execução da medida de coação de prisão preventiva é sempre apresentado ao juiz, sendo correspondentemente aplicável o disposto no art. 141º.

Por sua vez, o art. 141º, que rege o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, estabelece que o arguido será ouvido no prazo máximo de 48 horas após a detenção.

O texto do nº 2 do citado art. 254º foi introduzido pela Lei nº 59/98, de 25-8, precisamente para pôr termo às dúvidas suscitadas na jurisprudência quanto à obrigatoriedade de apresentação do detido ao juiz no caso de a ordem de detenção emanar de decisão do próprio tribunal para aplicação de prisão preventiva.

O teor da norma não dá lugar a quaisquer dúvidas: a apresentação do detido ao juiz para interrogatório é sempre obrigatória, portanto, mesmo quando a ordem de detenção seja oriunda do tribunal, devendo efetivar-se no prazo de 48 horas.

Daqui deve concluir-se que, no caso dos autos, o ora requerente, detido em 17.5.2014, deveria ter sido apresentado ao juiz para interrogatório nas subsequentes 48 horas, o que não sucedeu.

Existe, pois, excesso de prazo, o que se enquadra na situação prevista na al. c) do nº 2 do art. 222º do CPP.

Daí não resulta, porém, a libertação do requerente.

Na verdade, a constatação da ilegalidade da prisão não determina necessariamente a libertação do preso. Quando se trata de garantir ao preso o direito de audição que lhe fora negado pelo tribunal, a decisão deverá ser no sentido de o mandar apresentar no tribunal competente no prazo de 24 horas (cf. art. 223º, nº 4, c), do CPP).

É aliás essa apresentação imediata que o requerente pede.

III. Decisão

Com base no exposto, e deferindo-se o pedido de habeas corpus, ordena-se que, no prazo de 24 horas, se proceda ao interrogatório judicial do requerente nos termos do art. 141º do CPP.

Sem custas.

                              

Lisboa, 28 de maio de 2014

           


Maia Costa (relator) **
Pires da Graça
Pereira Madeira