Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2972/23.8T8LRS.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
COMPETÊNCIA MATERIAL
REENVIO DO PROCESSO
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA.
Sumário :
I - O STJ não é materialmente competente para conhecer do pedido de revisão de decisão administrativa que não foi judicialmente impugnada.
II - Esta competência cabe ao tribunal competente para conhecer da impugnação judicial, caso tivesse sido deduzida, portanto, ao tribunal em cuja área territorial se consumou a contra-ordenação.
Decisão Texto Integral:

Processo nº 2972/23.8T8LRS.S1


Recurso extraordinário de revisão


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Acordam em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça


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I. RELATÓRIO


AA veio, ao abrigo do disposto nos arts. 80º e seguintes do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 187º-A do C. da Estrada e 449º, nºs 1, d) e 2 e 450º, nº 1, c) do C. Processo Penal, intentar o presente recurso de revisão de decisão condenatória, formulando no termo do seu requerimento as seguintes conclusões:


A - Nos presentes autos o arguido foi condenado com trânsito em julgado em 6 de Novembro de 2019, pela prática de uma infração ao disposto no artigo 27.º n.º 2 al. a) do C.E.


B - Como consequência da sua condenação, foram-lhe subtraídos 2 (dois) pontos ao seu título de condução, e bem assim, aplicada a sanção de inibição de conduzir por um período de 30 dias suspensa na sua execução por um período de 180 dias.


C - No dia 5 de Dezembro de 2017, data da prática da infração, o arguido não estava em território nacional, encontrando-se em..., Angola.


D - No dia 5 de Dezembro de 2017, quem conduzia o veículo identificado nos autos na hora e local descritos, era o Sr. BB, titular do NIF .......48, residente em Rua ..., ....


E - O auto de contra-ordenação referente ao presente procedimento contra-ordenacional, nunca chegou ao conhecimento do arguido, o que impossibilitou que realizasse a identificação do condutor do veículo na data da infração.


F - O condutor da viatura na data da prática da infração, liquidou a coima nunca tendo entregue o auto de contra-ordenação, e bem assim a decisão condenatória ao arguido.


G - O arguido teve conhecimento da decisão condenatória proferida nos presentes autos, quando foi notificado da instauração do procedimento de cassação do seu título de condução (Processo 782/2020), tendo nesse seguimento arguido a falta de notificação do auto de contra-ordenação, e bem assim, da decisão condenatória.


H - Entendeu a ANSR, que no âmbito do processo autónomo não poderia apreciar as nulidades invocadas, nem tampouco, apreciar a (i)legalidade das provas que sustentaram a acusação, só podendo a ser revertida a decisão condenatória em sede de processo de revisão de decisão.


I - Estamos perante uma impossibilidade objetiva da prática do ilícito contraordenacional a que o arguido foi condenado, uma vez que, na data, hora e local descritos nos autos o arguido não se encontrava no território nacional, estando sim, ..., Angola.


J - Face ao exposto, encontrando-se preenchidos todos os requisitos legais para a admissão do presente recurso de revisão, mormente, a decisão encontrar-se transitada em julgado (desde 6 de Novembro de 2019), não terem decorrido ainda 5 (cinco) anos desde o seu trânsito em julgado, e as provas apresentadas, que não foram objeto de apreciação nos presentes autos, serem indubitáveis de que o arguido, ora Recorrente, não foi o autor do ilícito contraordenacional a que foi condenado, pelo que, requer-se seja o presente recurso de revisão admitido, e afinal, seja o arguido absolvido da infração que foi injustamente condenado.


O requerimento deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Local de Pequena Criminalidade de ... – Juiz ..


A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária [ANSR], na resposta apresentada alegou, em síntese, que o processo por contra-ordenação prosseguiu contra o arguido, nos termos do art. 135º do C. da Estrada, na qualidade de titular do documento de identificação do veículo e não, na qualidade de condutor do mesmo, o qual não identificou, e que nos termos do disposto no art. 176º do mesmo código, não sendo possível a notificação pessoal, ela é feita por carta registada com aviso de recepção para o domicílio do arguido, o que aconteceu, pelo que, foram-lhe correctamente notificados, o auto e a decisão administrativa, tendo as notificações sido remetidas para a morada por si indicada no Instituto dos Registos e Notariado, quando registou a titularidade do veículo.


A Digna Magistrada do Ministério Público, na resposta apresentada, sufragou a resposta apresentada pela ANSR e promoveu, para cabal esclarecimento do invocado, que fossem tomadas declarações a CC.


No referido Juízo foi produzida a prova por declarações requerida pelo recorrente.


Foi prestada a informação a que alude o art. 454º do C. Processo Penal, com o seguinte teor:


Ouvido o arguido por este foi dito que na data dos factos (5 de Dezembro de 2017) se encontrava ausente de Portugal, o que se mostra corroborado pela informação vertida a fls. 55 e 61 do documento de transacções junto a fls. 51 a 62, e que apenas regressou a Portugal em 10 de Dezembro de 2017, o que se mostra corroborado pelo bilhete electrónico junto a fls. 63 dos autos.


Mais disse que, nessa altura viviam na sua morada três filhos, dois deles maiores e titulares de carta de condução e uma nora sem carta de condução. Os veículos de sua propriedade eram, na data dos factos, um Mercedes, um Jaguar e um Lexus, o último dos quais identificado no auto de contra-ordenação de fls. 1 e, entretanto, já vendido.


Explicou que, na sua ausência do pai era o seu filho BB que dirige um negócio de lavandarias industriais e que conduzia o veículo de marca Lexus percorrendo diariamente a ... (local onde foi verificada a contra-ordenação) para se dirigir para o local de trabalho.


O arguido identificou CC, cuja assinatura se encontra aposta no aviso de recepção relativo à notificação da decisão administrativa e junto a fls. 10 dos autos, como tendo sido funcionária da sua casa entre 2014 e 2018, desconhecendo o seu actual paradeiro.


Relatou por fim que, na sua ausência a sua correspondência era entregue ao seu filho BB e que pensa que este a entregava à secretária do arguido DD, a qual terá efectuado o pagamento da coima em questão, já que, tinha poderes para efectuar pagamentos e movimentar a sua conta bancária.


BB, filho do arguido, confirmou, no essencial, a versão dos factos apresentada por este. Embora tenham já decorrido 6 anos desde a prática dos mesmos a testemunha de modo que se reputou credível esclareceu que nessa data costumava sair de casa do pai, sita em ..., onde morava, conduzindo o veículo Lexus, propriedade de seu pai, pelas 9.30/10.00 horas para ir trabalhar para a Lavandaria Industrial que geria sita em ..., circulando para o efeito diariamente pela.... Informou que CC era funcionária da casa do pai, já não o sendo há alguns anos, e que era esta quem recebia o correio e lho entregava porque era a testemunha quem saía mais cedo de casa. Recorda-se que abria as cartas relativas a infracções estradais e levava-as para o escritório e dava ordens à secretária para pagar as coimas através da sua conta pessoal não dando de tal facto conhecimento ao seu pai.


Em suma, entendemos que a prova documental e testemunhal trazida aos autos é suficiente para abalar a justeza da decisão.


Por todo o exposto, somos de parecer que o recurso extraordinário de revisão merece provimento, mas V. Exas. Colendos Conselheiros melhor decidirão sobre o mérito do pedido.


Após, foi ordenada a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça.


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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal, na vista a que alude o art. 455º, nº 1 do C. Processo Penal, emitiu parecer no sentido de que, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 187º-A do C. da Estrada, 61º, nº 1 e 81º, nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, e do Anexo I do Dec. Lei nº 86/2016, de 27 de Dezembro, pretendendo o recorrente rever uma decisão da ANSR, a competência para o recurso de revisão cabe ao Juízo Local de Pequena Criminalidade de ..., nos termos dos arts. 130º, nº 4, b) da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, 86º, nº 2, b) do Dec. Lei nº 49/2014, de 27 de Março e 2º, nº 2, d) do Dec. Lei nº 86/2016, de 27 de Dezembro, e concluiu promovendo a remessa dos autos ao referido Juízo, por ser o materialmente competente.


O recorrente não respondeu ao parecer.


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Colhidos os vistos, foi realizada a conferência.


Cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO


1. O recorrente pretende rever a decisão da ANSR de 14 de Setembro de 2019, tornada definitiva em 6 de Dezembro de 2019, proferida no processo de contra-ordenação nº .......81, que o condenou, pela prática, em 5 de Dezembro de 2017, no ... em ..., de uma contra-ordenação rodoviária grave, p. e p. pelos arts. 27º, nº 2, a) 2º, 28º, nºs 1, b) e 5, 138º, 145º, nº 1, b) e 147º, nº 2, todos do C. da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de trinta dias, suspensa na respectiva execução pelo período de cento e oitenta dias.


A revisão de decisões definitivas (decisões administrativas) ou transitadas em julgado (decisões judiciais) em sede de contra-ordenações rodoviárias encontra-se expressamente prevista no art. 187º-A do C. da Estrada. O seu nº 1 determina, nesta âmbito, a aplicação do regime geral do ilícito de mera ordenação, sempre que não contrarie as disposições do código em referência. O seu nº 2 dispõe que a revisão de tais decisões, a favor do arguido não é admissível quando esteja em causa condenação por contra-ordenação rodoviária leve e tenham decorrido mais de dois anos sobre a definitividade ou trânsito em julgado da decisão a rever.


A decisão administrativa em causa é, pois, susceptível de revisão.


2. O regime do processo de revisão, no âmbito do direito de mera ordenação social, encontra-se previsto no art. 81º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.


Estando em causa a revisão de uma decisão da autoridade administrativa, ela cabe, como se dispõe no nº 1 deste artigo, ao tribunal competente para a impugnação judicial.


Neste caso, a autoridade administrativa, recebido o requerimento de revisão, remete os autos ao Ministério Público junto do tribunal competente (nº 3 do mesmo artigo), podendo fazê-los acompanhar de uma resposta/informação (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 2011, Universidade Católica Editora, pág. 326), depois de ter realizado as diligências de prova necessárias.


Tratando-se da revisão de uma decisão judiciária, ela compete ao tribunal da relação, sendo aplicável o disposto no art. 451º do C. Processo Penal (nº 4 do mesmo artigo).


3. In casu, o recorrente pretender rever uma decisão definitiva da autoridade administrativa, mais precisamente, da ANSR.


Como vimos, a competência para o recurso de revisão não está legalmente atribuída a este Supremo Tribunal, mas ao tribunal competente para conhecer da impugnação judicial, caso tivesse sido deduzida (nº 1 do art. 81º em referência).


É competente para conhecer do recurso de impugnação judicial, o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção (art. 61º, nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas).


A infracção rodoviária que deu origem ao processo de contra-ordenação nº .......81, e de cuja decisão administrativa se pretende a revisão, foi praticada no IC-17, em ..., área territorial do Juízo Local de Pequena Criminalidade de... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte.


Assim, é este Juízo e Tribunal o competente, nos termos do disposto nos arts. 61º, nº 1 e 81º, nº 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, para a revisão da decisão da ANSR de 14 de Setembro de 2019, tornada definitiva em 6 de Dezembro de 2019, proferida no processo de contra-ordenação nº .......81.


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III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em:


A) Declarar a incompetência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer da pretendida revisão da decisão definitiva da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária de 14 de Setembro de 2019, proferida no processo de contra-ordenação nº .......81.


B) Ordenar a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Local de Pequena Criminalidade de ..., por ser o competente.


C) Sem custas, por não serem devidas.


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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).


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Lisboa, 15 de Fevereiro de 2024


Vasques Osório (Relator)


Orlando Gonçalves (1º Adjunto)


Jorge Gonçalves (2º Adjunto)


Helena Moniz (Presidente da secção)