Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO DE COMODATO
INEFICÁCIA EXTERNA DO COMODATO
VENDA DO BEM EM ACÇÃO EXECUTIVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTÂNCIA / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / EMBARGOS DE TERCEIROS - PROCESSO DE EXECUÇÃO / PENHORA.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
Doutrina:
- Augusta Ferreira Palma, Embargos de Terceiro.
- Duarte Pinheiro, Fase Introdutória dos Embargos de Terceiro, 43, 45, 51.
- J. Andrade Mesquita, Direitos Pessoais de Gozo, 163 e 165.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 93 a 96.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 344.º, N.º 2, 350.º, N.º 1, 747.º, 756.º, N.º 1, 757.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19-3-2002, CJSTJ, TOMO I, 139;
-DE 9-2-2006, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. O disposto no art. 350º do CPC, sobre a oportunidade dos embargos de terceiro, não é aplicável à diligência de entrega efectiva do bem que, depois de ter sido objecto de penhora no âmbito de acção executiva, é vendido ou adjudicado.

II. O contrato de comodato atribui ao comodatário um direito pessoal de gozo, mas, atenta a eficácia relativa do contrato, esse direito é inoponível ao que adquire o bem da esfera do comodante.

III. No âmbito da acção executiva para pagamento de quantia certa são inadmissíveis os embargos de terceiro apresentados pelo comodatário para impedir a entrega do bem ao adquirente a quem foi transmitido.

Decisão Texto Integral:

I - AA e BB, por apenso à acção executiva em que é exequente CC - Comércio e Manutenção de Equipamento e Terraplanagens, Lda, e executado DD, deduziram embargos de terceiro para impedir a entrega de um prédio urbano que foi adjudicado ao Banco EE, tendo alegado que residem no referido prédio, desde 1-8-06, em virtude do contrato de comodato celebrado com os executados, pelo que a entrega do imóvel ofende o direito dos embargantes

Foi proferido despacho liminar, tendo os embargos sido rejeitados por intempestividade, concluindo-se pela caducidade do direito dos embargantes em deduzir os referidos embargos e tendo, ainda, sido entendido que o comodatário não pode embargar de terceiro.

Os embargantes apelaram e a Relação confirmou o despacho recorrido.

Interpuseram recurso de revista pretendendo que sejam admitidos os embargos de terceiro.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II – Elementos a ponderar:

- Os embargantes invocam como fundamento dos embargos de terceiro um contrato de comodato que outorgaram com os executados relativamente a um imóvel que foi penhorado no âmbito da acção executiva e cuja propriedade foi adjudicada ao Banco exequente.

- Adjudicada a referida propriedade, pretendem os embargantes, na qualidade de terceiro, que seja impedida a entrega judicial do imóvel ao executado, na medida em que alegadamente ofende o seu direito de comodatários.

- Os embargos foram liminarmente indeferidos, por se considerar que a dedução de embargos deveria ter ocorrido antes da adjudicação do imóvel ao exequente, sendo intempestivos e que, de qualquer modo, a posição dos alegados comodatários é de posse precária, em nome dos respectivos proprietários, não podendo impedir a entrega do bem ao exequente a quem foi adjudicado.


III – Decidindo:

1. Defendem os embargantes que aos embargos com função preventiva não é aplicável o regime de caducidade previsto no art. 344º, nº 2, do CPC, que impede a sua dedução depois de terem sido vendidos ou adjudicados os bens, sendo tempestivos sempre que sejam apresentados antes de realizada, mas depois de ordenada a diligência, nos termos do art. 350º, nº 1.

Concorda-se com tal afirmação, o que não significa que a mesma seja aplicável ao caso sub judice.

Na verdade, o campo de aplicação do art. 350º, nº 1, é limitado aos actos de penhora, apreensão ou entrega de bens ordenados em qualquer processo judicial, mas não se confundem com a operação de entrega do bem cuja venda ou adjudicação a favor de terceiro seja realizada no âmbito de processo de executivo.

Tal meio de defesa pode ser deduzido antes de ser realizada a entrega de bem no âmbito de acção para entrega de coisa certa (como ocorreu no caso que foi apreciado no Ac. do STJ, de 9-2-06, em www.dgsi.pt, referido pelo recorrente), mas não existe motivo algum para equiparar a essa diligência o acto de entrega do bem cuja propriedade tenha sido transmitida ao exequente ou a terceiro no âmbito de acção executiva para pagamento de quantia certa, depois de ter sido realizada a penhora do bem.

Nestas situações o acto que em abstracto poderia ser invocado pelos terceiros embargantes seria o acto de penhora, na medida em que pusesse em causa a posse ou algum direito incompatível com a sua realização.

Nos termos do art. 747º do CPC, a diligência de penhora implica a apreensão dos bens e, quando incida sobre bens imóveis, deve ainda traduzir-se na posse efectiva por parte do depositário que seja designado para o efeito, nos termos dos arts. 757º, nº 1, e 756º, nº 1, do CPC.

A este respeito Duarte Pinheiro conclui que “é segura a extemporaneidade da acção de embargos preventivos após a venda judicial ou a adjudicação dos bens sobre os quais recaía a posse que a penhora ameaçava ofender …” (Fase Introdutória dos Embargos de Terceiro, pág. 51).

Como no caso concreto foi efectuada a penhora do imóvel e foi adjudicada ao exequente a sua propriedade, não há motivo algum para excluir dos embargos com função preventiva a norma geral do art. 344º, nº 2, cuja aplicação é ressalvada pelo art. 350º, nº 1, da qual deriva a inadmissibilidade dos embargos depois de o bem ter sido adjudicado ou vendido.


2. Mas independentemente da resposta à questão anterior, a admissibilidade liminar dos embargos de terceiro é também vedada por um motivo de ordem substancial já assinalado nos autos.

Como fundamento dos embargos de terceiro os embargantes alegam a sua qualidade de comodatários decorrente de um contrato que outorgaram com os executados.

Ocorre que tal título não é oponível ao exequente a quem o bem foi adjudicado no âmbito do processo de execução para pagamento de quantia certa em que esse bem foi penhorado.

Pese embora alguns pontos em comum que se verificam entre os direitos reais e os direitos pessoais de gozo, nos primeiros dominam as características da sequela e da eficácia ou oponibilidade erga omnes, ao passo que dos direitos pessoais de gozo irradiam efeitos que, por regra, apenas vinculam os respectivos sujeitos, nos termos do art. 409º do CC (cfr. o Ac. do STJ, de 19-3-02, CJSTJ, tomo I, pág. 139).

Sobre a matéria cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 93 a 96, designadamente quando aponta como características dos direitos de crédito a sua relatividade e quendo conclui que a “sua oponibilidade a terceiros é limitada, só podendo ocorrer em certas circunstâncias” (pág. 94).

Em consequência, eventuais situações de confronto entre o novo titular do direito de propriedade e outros possuidores ou detentores da mesma coisa não sujeitos a um regime especial, como o que decorre previsto para o arrendamento no art. 1057º do CC, deverão ser resolvidos a favor do proprietário, nos termos do art. 1311º do CC. Dito de outro modo, uma vez reconhecido o direito de propriedade, o detentor deve restituir a coisa ao proprietário, a não ser que demonstre a existência de um título que, sendo eficaz em relação a este, legitime a recusa de restituição.

Tal não ocorre quando singelamente se invoque, como ocorre no caso, a outorga de um contrato de comodato com o anterior proprietário do bem que foi adjudicado ao exequente.

Assim o defende J. Andrade Mesquita quando conclui taxativamente que os terceiros não estão vinculados a realizar o direito do comodatário e que o contrato cessa caso o direito com base no qual foi constituído seja transferido para terceiro (Direitos Pessoais de Gozo, págs. 163 e 165). Ou ainda Augusta Ferreira Palma, Embargos de Terceiro, para quem “inexistindo para o comodato normas paralelas às dos arts. 824º e 1057º do CC, o comodatário não se poderá opor à pretensão do exequente”, no que concerne à venda executiva e, dizemos  nós, por via disso, não se poderá opor à entrega do bem ao mesmo exequente a quem seja adjudicada.

No mesmo sentido cfr. Duarte Pinheiro, ob. cit., págs. 43 e 45, afirmando designadamente que a posse do comodatário “é incompatível com o direito real de garantia constituído pela penhora a favor do exequente

Assim, tendo sido transmitido ao ora exequente e embargado o direito de propriedade ao abrigo do qual foram anteriormente assumidas as obrigações do comodante e executado, as mesmas não transitam para a esfera jurídica do primeiro, prevalecendo face ao comodatário os poderes que emergem do direito de propriedade e que implicam o direito de obter a restituição do bem na detenção de terceiro.

Por conseguinte, sendo o comodatário titular de um mero direito pessoal de gozo, com a posição de mero detentor, a invocação desse título apenas seria legítima relativamente ao comodante, de acordo com o regime legal do contrato de comodato, mas já é inoponível ao terceiro adquirente, in casu, ao exequente e embargado.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo dos embargantes.

Notifique.

Lisboa, 30-3-17

Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo