Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
116/07.2TBMCN.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CONFLITO DE INTERESSES
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATOS EM ESPECIAL
Doutrina:
- Almeida Costa, R.L.J., 129º/61.
- Baptista Machado, Obra Dispersa, Braga 1991, Vol. I, p.416.
- Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Reimpressão (1997), pp. 19 a 23, 28.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 6ª Ed., p. 58; Vol. II, pp. 745, 758, 759 e 769/770.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 334.º, 432.º, Nº1, 939.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 05/02/98, BOL. 474º/431;
-DE 25/05/1999, COL/STJ, 2º/116;
-DE 25/11/1999, COL/STJ, 3º/124;
-DE 10/05/2000 – BOL. 497º/343;
-DE 28/11/2000, BOL. 501º/292;
-DE 01/03/2007, PROCESSO N.º. 06A4571, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Uma das modalidades que pode revestir o abuso do direito encontra guarida no instituto jurídico denominado venire contra factum proprium.

II - Esta vertente do abuso do direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.

III - O conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.

IV - O abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objecto de apreciação e decisão, ainda que não invocado.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº 116/07.2TBMCN.P1.S1[1]

                (Rel. 92)[2]

                           Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1AA instaurou, em 31.01.07, na comarca de Marco de Canavezes, acção declarativa de condenação, com processo comum e sob a forma ordinária, contra “BB – Obras e Construções, S. A.”, “CC – R..., EP” e “Município do Marco de Canavezes”, pedindo a condenação dos RR. a:

                                                  /
a) – Reconhecer que o A. é dono e legítimo possuidor dos prédios que identifica no art. 1º da p. i.;
b) – Reconhecer que a invasão e intervenção “obra nova” feita pela 1ª R., também da responsabilidade de ambas as outras 2ª e 3ª RR., violam o direito de propriedade do A. sobre os mencionados prédios;
c) – Abster-se, de futuro, de interferir com tal direito de propriedade do A.; e
d) – Indemnizá-lo dos danos patrimoniais e morais (sic) que se vierem a liquidar em execução de sentença.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência:

                                                   /

--- É dono e legítimo possuidor dos prédios que identifica na p. i.;

--- Em 16.01.07, a R. “BB” entrou, sem autorização e contra a sua vontade, com máquinas e empregados, na sua “Quinta” integrada por aqueles prédios, aí iniciando a remoção de terras e derrube de videiras e outras árvores;

--- Foi-lhe, então, R...ido que tais obras lhe haviam sido adjudicadas pela “R...”, após acordo com a Câmara Municipal do Marco, representante do Município-R;

--- A descrita actuação causou prejuízos ao A.

       Na contE..., A R. “BB” impugnou parte dos sobreditos factos e alegou ter executado as obras em cumprimento de um contrato de empreitada que havia celebrado com “R..., EP” e, após solicitação do A. no sentido da suspensão dos trabalhos, das ordens por aquela dadas para continuar a obra.

       Por sua vez, a R. “R...” excepcionou a ilegitimidade (activa) do A. e alegou que os terrenos lhe foram disponibilizados pela Câmara Municipal do Marco de Canavezes ao abrigo de um protocolo celebrado, em 08.04.02, entre aquele Município e o, ora, A., nos termos do qual este autorizou tal intervenção, pelo que actuou de boa fé.

       Finalmente, o R. “Município do Marco de Canavezes” excepcionou a incompetência material do tribunal e a ilegitimidade (activa) do A.. Simultaneamente, impugnou parte da relevante factualidade aduzida pelo A., concluindo que, quer a sua actuação, quer a dos restantes RR. resultou do protocolo celebrado, em 08.04.02, entre si e o A., o qual actua em abuso do respectivo direito.

       Na réplica, veio o A., entre o mais, responder às deduzidas excepções, tendo, por outro lado, procedido à ampliação dos pedidos deduzidos, pela forma seguinte:
a) – Caso o tribunal considere o protocolo denunciado antes das intervenções dos RR., seja o mesmo julgado irrelevante e nulo, devendo os RR. ser condenados a “repristinar” a situação, reconstruindo os prédios e porções urbanas e indemnizando, patrimonialmente (sic), o A., por todos os danos insusceptíveis de restauração natural;
b) – Sejam os RR. condenados a pagar ao A. condigna reparação pelos graves e contínuos danos morais que lhe vêm causando e que se vierem a liquidar em execução de sentença;
c) – Sejam os RR. condenados em multa e condigna indemnização a favor do A., também a liquidar em execução de sentença, por litigarem de má fé.  

Houve tréplicas da “BB” e do Município.

       Foi, então, proferida decisão que julgou procedente a invocada excepção de incompetência, em razão da matéria, do tribunal, convidando, por outro lado, o A. a fazer intervir a sua mulher do lado activo da relação jurídica processual.

       Então, DD requereu a sua intervenção nos autos, ao lado do A., o que foi admitido.

       Foi, após, interposto recurso da decisão que julgou o tribunal incompetente, em razão da matéria, vindo o correspondente agravo a obter provimento.

       No despacho saneador, julgou-se sanada a deduzida excepção da ilegitimidade do A., por via da intervenção, nos autos, da sua mulher; julgou-se improcedente a arguida nulidade da citação, admitiu-se a requerida ampliação do pedido e elaborou-se a base instrutória (b. i.).

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 12.10.10) sentença que, julgando, parcialmente, procedente a acção:

                                                /
a) – Condenou os RR. a reconhecer que o A. é dono e legítimo possuidor dos prédios melhor identificados no art. 1º da p. i.;
b) – Condenou os RR. a reconhecer que a invasão e intervenção “obra nova” feita pela 1ª R. em razão de contrato de empreitada outorgado com a 2ª R. e consignação dos terrenos a afectar pelo 3º R.-Município viola o direito de propriedade do A. sobre os identificados prédios;
c) – Condenou o R., Município do Marco de Canavezes, a satisfazer ao A.-marido a quantia, a liquidar em incidente ulterior, necessária à compensação dos danos não patrimoniais referidos sob as als. TT a AAA) da matéria assente;
d)  - Condenou o mesmo R.-Município a satisfazer ao A.-marido a quantia que se vier a apurar/fixar em incidente ulterior, correspondente ao valor mesmo das videiras e outras árvores da “Quinta ...” destruídas e, bem assim, ao valor das porções urbanas ou edificações ali existentes e destruídas, conforme als. CC) e TT) da matéria assente;
e) – Absolveu os RR. dos demais pedidos, sendo-o, ainda, as 1ª e 2ª RR. das pretensões indemnizatórias contra si deduzidas.

       Apelaram os AA. e o R.-Município, tendo a Relação do Porto, por acórdão de 27.02.12 (Fls. 1221 a 1307), julgado improcedente o recurso deste último e, na parcial procedência do recurso daqueles, decidido “condenar, ainda, o R. Município de Marco de Canavezes a satisfazer ao A.-marido a quantia que se vier a apurar/liquidar em incidente ulterior, correspondente ao valor do terreno da Quinta ... ocupado com as obras por aquele realizadas”.

       Daí a presente revista interposta pelo R.-Município, visando a revogação do acórdão impugnado, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes e numerosas conclusões:

                                                  /

1ª – O recorrente manifesta expressa discordância quanto à linha propugnada pelo acórdão recorrido, desconsiderando a natureza do Protocolo referido e descrito expressamente no facto I);

2ª – O recorrente reconhece, naturalmente, a inexistência de direito real, a seu favor, que possa resultar do Protocolo;

3ª – Mas tal não poderá, de forma alguma, conduzir à conclusão propugnada pelo acórdão recorrido;

4ª – Nos efeitos obrigacionais do dito Protocolo não pode deixar de estar incluído o direito do recorrente Município de ocupar a parcela de terreno cedida, no mesmo Protocolo, pelos AA.;

5ª – Parcela aí também identificada de forma específica e concreta,

6ª – Para aí realizar as intervenções que o mesmo Protocolo prevê e estabelece: "construção dos arruamentos, rotundas, baías de estacionamento e passeios" – vide facto provado I), na cláusula 1ª do Protocolo;

7ª – Se assim não se entender, então o Protocolo não só deixa de ter sentido jurídico útil, como deixa mesmo de ter razão de ser na sua própria letra;

8ª – Nem sequer se entende quais serão então os outros efeitos obrigacionais que o acórdão recorrido aceita e reconhece que existem, se não for precisamente o direito de ocupar a parcela de terreno, directamente resultante da cedência de tal parcela expressa na cláusula 1ª do Protocolo;

9ª – As declarações de vontade ínsitas no Protocolo têm indiscutível natureza contratual e de tal contrato resulta, como seu efeito (ainda que meramente obrigacional), o direito do Município de ocupar a parcela de terreno cedida para aí realizar as intervenções previstas no mesmo Protocolo;

10ª – Assim sendo, releva decisivamente - ao contrário do propugnado pelo acórdão recorrido - o problema das consequências jurídicas da resolução operada pelos AA. (comunicação referida em K) da matéria assente);

11ª – Nem parece possível pretender resolver o problema em causa sem considerar a resolução operada pelos AA. e as respectivas consequências;

12ª – É afinal nessa resolução que os próprios AA. fizeram assentar o seu direito, essa resolução é verdadeiramente estruturante da acção e da própria condenação do recorrente Município;

13ª – Admitindo a qualificação de tal Protocolo como verdadeiro contrato, de conteúdo meramente obrigacional,

14ª – E admitindo também que a comunicação referida em K) nunca poderia, tecnicamente, constituir uma denúncia,

15ª – Também se discorda da qualificação daquela comunicação como comunicação de resolução contratual;

16ª – Uma comunicação que requer/considera nulo e sem qualquer efeito um determinado contrato (aquele contrato em concreto), como é aquela que consta do documento de fls. 220 e 220 verso dos autos, não tem qualquer aptidão para fazer cessar ou pôr termo ao mesmo, muito menos para prevalecer sobre o princípio do cumprimento pontual dos contratos, previsto e estabelecido no artigo 406° do Código Civil;

17ª – Mas, mesmo que tal comunicação constituísse declaração de resolução contratual (como considerou a sentença da primeira instância), ainda assim a consequência teria que ser necessariamente diversa da ali propugnada;

18ª – Teria que ser aquela que, afinal, a sentença da primeira instância considerou como a alternativa mais indicada no plano dos princípios (vd. fls. 21 da sentença), ou seja, a manutenção do contrato;

19ª – E isto porque, como muito bem ali também se diz, a resolução sem fundamento (sem qualquer fundamento, dir-se-á, no caso, em face do documento de fls. 220 e 220 verso dos autos) traduz um exercício ilícito do respectivo direito;

20ª – A não manutenção do contrato, como também conclui a sentença, "compensa o crime", uma vez que se consegue obter o resultado pretendido em violação da lei;

21ª – Ora, nenhuma razão existe, na perspectiva do recorrente, para concluir, de modo diverso, pela extinção do contrato;

22ª – Aliás, e como defende Pedro Romano Martinez ("Da Cessação do Contrato", 2ª Edição, Almedina, páginas 221 e seguintes), em caso de resolução ilícita ou injustificada, o autor da declaração deve responder pelo prejuízo causado à contraparte, sendo que o princípio geral da obrigação de indemnizar, consagrado no artigo 562° do Código Civil, determina que deve ser reconstituída a situação que existiria, pelo que com a declaração de ilicitude resulta a subsistência do vínculo que, assim e afinal, não cessou;

23ª – Perspectiva que a própria sentença (fls. 22 da sentença, nota 2) identifica, mas para dela se afastar, a nosso ver sem fundamento válido e justificado;

24ª – A perspectiva do recorrente, valorizando, pelas razões acima aduzidas, a relevância jurídica das consequências da resolução operada pelos AA., vai, pois, no sentido de considerar que ainda que tal declaração deva ser considerada como declaração de resolução contratual, mesmo assim a consequência sempre deveria ser, pelas razões expostas, a da manutenção do contrato, daí resultando a licitude do respectivo cumprimento por parte do recorrente Município;

25ª – Sublinhando-se, por último, que também se entende que, em face do teor expresso da comunicação de fls. 220 e 220 verso, não é possível concluir, como conclui o acórdão recorrido, que os autos não fornecem elementos dos quais resulte que a resolução do contrato, por parte dos AA., foi infundada;

26ª – Do teor expresso de tal comunicação resulta, sem margem para qualquer dúvida, que a resolução não tem, porque nem sequer invoca, qualquer fundamento que pudesse tornar lícito tal comportamento contratual;

27ª – O recorrente também entende - aí discordando igualmente do acórdão recorrido - que o comportamento do A., ao produzir a comunicação R...ida em K) e ao admitir-se tal declaração como exercício do direito de resolução do contrato, não pode deixar de ser julgado censurável na perspectiva do abuso de direito e ofensivo do princípio da boa-fé no cumprimento dos contratos (consagrado no artigo 762° do Código Civil);

28ª – Tendo o A. assinado o Protocolo referido em I), no dia 08.04.02, aí tendo ficado prevista e acordada a intervenção do Município;

29ª – Com a consciência, pelo A., do alcance de tal intervenção e da finalidade integrada nas obras envolvendo a linha férrea;

30ª – Com desenvolvimentos posteriores, por parte do A., junto dos serviços do Município, a propósito de aspectos referentes à concretização do Protocolo (designadamente a possibilidade, acima referida, de previsão no PDM de localização de um posto de abastecimento de combustíveis no terreno do A., com a configuração resultante desse mesmo Protocolo);

31ª – Sem qualquer manifE... de discordância, oposição ou contrariedade por parte do A., ao longo de mais de quatro anos;

32ª – Sequer na fase de discussão pública das obras em causa;

33ª – Tendo, ainda, o A. negociado e contratualizado, em Agosto de 2006, a cedência remunerada de um terreno para localização do único estaleiro de apoio a todas as obras em causa, aí se incluindo a obra prevista no Protocolo;

34ª – Estando em causa um conjunto de obras diversas, de absoluto e manifesto interesse público para o Município, concretizando a supressão de nove passagens de nível e a construção de oito passagens superiores, com os respectivos arruamentos e arranjos urbanísticos, e em cujo âmbito se inseria, indissociavelmente, a intervenção prevista no Protocolo celebrado com o A.;

35ª – Tudo do conhecimento necessário do A.;

36ª – A declaração deste, produzida em Setembro de 2006, a três meses do início das obras (factos assentes em L), M), N), O), P), Q), R) e S) da matéria assente), estando em causa empreitadas com trabalhos antecedentes de vários anos, com estudos prévios, projectos e concursos públicos (insusceptíveis de, com razoabilidade, serem interrompidos e parados sem que daí resultassem danos gravíssimos, designadamente para o interesse público, financeiros e não só),

37ª – De valor muito elevado,

38ª – E com a consciência, também necessária de acordo com as regras da experiência comum, de que essa sua declaração colocava necessariamente em causa a intervenção projectada e definida, e relativamente à qual o próprio Município havia assumido, por sua vez e com base naquele Protocolo, compromissos contratuais com terceiros – conforme resulta da resposta dada pela sentença aos artigos 22°, 23°, 24°, 25°, 26°, 27°, 28°, 29° e 30º da b. i.;

39ª – Tal declaração referida em K) não poderá - neste contexto factual e por estas razões concretas e apuradas no processo, ao contrário daquilo que se afirma no acórdão recorrido - deixar de ser considerada ofensiva da boa-fé e correspondendo a um exercício abusivo do direito de que se arrogou;

40ª – Até porque o prazo de três meses relativamente ao início das obras nunca poderá ser considerado - com todo o respeito pela sentença de primeira instância - como "bem antes da realização das obras em apreço" (fls. 25 da sentença), quando está em causa uma obra pública planeada, preparada, projectada e contratualizada com anos de antecedência;

41ª – O A. agiu, por um lado, em manifesto abuso de direito individual, e por outro, em verdadeiro abuso de direito institucional;

42ª – Por um lado e no que se refere ao primeiro dos referidos planos, a conduta do A. configura um verdadeiro venire contra factum proprium, na medida em que sempre foi por ele adoptado um comportamento no sentido de aceitar e beneficiar do Protocolo que, depois, quis repudiar e repudiou efectivamente;

43ª – Verifica-se, assim, que o A. pretendeu exercer um direito que se encontra em total contradição com a sua conduta anterior, em que fundadamente a outra parte confiou, o que configura manifesto abuso de direito;

44ª – E não sofre dúvidas que a conduta do A., anteriormente descrita, em conjugação com a declaração referida em K), faz com que tal declaração seja exercida em termos clamorosamente ofensivos da Justiça e ofenda, também clamorosamente, o sentimento jurídico dominante - Cfr. Acórdão do S.T.J., de 08.11.84, in BMJ, 341°, 418;

45ª – Isto porque, no caso concreto, o Município aqui recorrente, fundada e seriamente, confiou na atitude demonstrada pelo A., e, movido por esta confiança, tomou medidas e opções irreversíveis no que diz respeito não só ao planeamento urbanístico da zona envolvente às intervenções ferroviárias, como também ao desenvolvimento contratual com a R... (e esta, por sua vez, com o empreiteiro BB), com vista à realização da obra possibilitada pelo Protocolo celebrado com o A., o que, naturalmente, ocorreu antes, muito antes mesmo, da data "escolhida" pelo A. para vir alterar a posição por si assumida no Protocolo;

46ª – O acto do A., no contexto, com os contornos e com os objectivos que acima se deixaram expressos, traduz-se num verdadeiro acto emulativo — aquele que é utilizado com o propósito único de prejudicar outrem (neste sentido, cfr. VAZ SERRA, "Abuso do Direito", BMJ, 85, pág. 253);

47ª – Estando, por isso, igualmente, aqui, em causa o princípio da tutela da confiança que, em conjugação com as anteriores condutas do A., deve conduzir à censura jurídica clara da sua conduta;

48ª – Sem prescindir e, agora, no que concerne ao plano do abuso de direito institucional, o comportamento do A. excede, manifestamente, os limites impostos pelo fim social ou económico do direito que ele pretendeu exercer;

49ª – O qual se encontra, indissociavelmente, ligado, em última linha, ao interesse na manutenção da viabilidade e da estabilidade na actuação do Município na prossecução do interesse público, cuja evidência, no caso, nos parece manifesta;

50      - Acrescendo, no caso, que tal direito está também e, ainda, a ser exercido para fins diferentes daquele que a lei teve em vista, havendo mesmo quem, nestas situações, vá mesmo mais longe e considere que, mais do que abuso de direito, haverá neste caso uma verdadeira falta de direito - neste sentido, cfr. VAZ SERRA, loc. cit., pp. 257 ss;

51ª – Pelo que, ainda por esta via, é ilegítimo o exercício do direito que o A. invocou,

52ª – Caindo, também assim, na previsão do disposto no artigo 334° do Código Civil;

53ª – O recorrente Município também discorda, por isso não aceitando, a decisão do acórdão recorrido que julgou parcialmente procedente o recurso de apelação apresentado pelos AA., condenando consequentemente o Município a satisfazer ao A.-marido a quantia que se vier a apurar/liquidar em incidente ulterior, correspondente ao valor do terreno da Quinta ... ocupado com as obras por aquele realizadas;

54ª – Todas as razões aduzidas pelo acórdão recorrido para tal procedência e condenação não se mostram, salvo melhor juízo, adequadas a pôr em causa o que, a esse propósito, foi decidido pela sentença de primeira instância;

55ª – Não parece possível condenar em face da patente "falta de alegação dos factos interessando à pretendida indemnização", o que acarreta, necessariamente, a insusceptibilidade de relegar a concretização de tal indemnização para incidente ulterior;

56ª – Sendo certo que tais invocados danos, não tendo sido alegados, poderiam (e deveriam necessariamente) tê-lo sido,

57ª – Mostrando-se irrelevante, com o devido respeito, a consideração feita pelo acórdão recorrido segundo a qual "quando a acção foi intentada - 31-1-2007 - as obras tinham-se iniciado no dia 16 daquele mês", daí resultando, possivelmente (!), o teor do pedido formulado;

58ª – Com a condenação mostra-se, pois, violada, pelo acórdão recorrido, a norma do artigo 661°, n° 2, do CPC, a qual só admite a condenação no que vier a ser liquidado quando não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade,

59ª – Sendo evidente que, no caso, o que falta é muito mais, e muito anterior, ao objecto ou à quantidade - falta a alegação dos danos que interessam à pretendida indemnização;

60ª – Tudo conduz pois, necessariamente, à improcedência da pretensão formulada na acção, sempre devendo ser julgada lícita e legitima a intervenção do recorrente Município com base no ajustado Protocolo;

61ª – O acórdão recorrido, ao julgar diversamente, procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação das normas que invocou,

62ª – Assim como procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação das normas invocadas nas presentes alegações em defesa da posição do recorrente,

63ª – Normas essas que, de forma conjunta e articulada, deveriam ser respectivamente interpretadas e aplicadas no sentido de que não existe, no caso, qualquer ilicitude na actuação do Município recorrente quando agiu ao abrigo e em cumprimento do que lhe era permitido em resultado do Protocolo celebrado com o A. e identificado em I) da matéria assente.

       TERMOS EM QUE DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DE REVISTA, ANULANDO-SE O ACÓRDÃO RECORRIDO E ABSOLVENDO-SE O RECORRENTE DO PEDIDO CONTRA SI FORMULADO.

       Contra-alegando, defendem os recorridos a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                               *

2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:

                                               /

A) – Por escritura pública de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial de Baião, em 17 de Maio de 2006, em que intervieram, como primeiros outorgantes, Drª EE e marido FF, casados, sob o regime de separação de bens, como segundo outorgante, AA, casado, sob o regime de comunhão de adquiridos, com DD e, como terceiro outorgante, DD, declararam os primeiros outorgantes que pelo preço, já recebido, de seis mil e seiscentos euros, vendem ao segundo outorgante o prédio rústico denominado “...”, sito no lugar de ..., freguesia do Freixo, concelho de Marco de Canaveses, descrito, na Conservatória do Registo Predial, pela ficha 000…, da freguesia do Freixo, registado, a seu favor, pela inscrição … e inscrito na matriz sob o art. 279º, com o valor patrimonial de € 68,13, tendo a primeira outorgante, EE, declarado, ainda, que, pelo preço de € 203,50, vende ao mesmo segundo outorgante os seguintes imóveis:

Número Um – Metade Indivisa do prédio rústico de cultura, videiras de enforcado, lameiro e pastagem, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 000…, da freguesia de ..., registada a seu favor, ainda no estado de solteira, maior, pela inscrição … e inscrito na matriz sob o artigo 1, com o valor patrimonial, correspondente a fracção, de € 300,01 e atribuído de € 20 800,00;

Número Dois – Metade Indivisa do prédio misto, composto por casa coberta de telha de dois pavimentos, cozinha coberta de telha de dois pavimentos, outra casa coberta de telha de dois pavimentos e quintal e outra casa de dois pavimentos coberta de telha, eira, beirais e canastro, terra culta composta por cultura, videiras em enforcado, nogueiras, dependências agrícolas e pastagem, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 000…, da freguesia de ..., registada a seu favor, ainda no estado de solteira, maior, pela inscrição … e inscrito na matriz sob os artigos 83 e 84, urbanos (ambos com inscrição anterior a 1951) e 134 rústico, com os valores patrimoniais, correspondentes à fracção, de € 1 058,39, € 337,32 e € 3 353,69 (€ 212,50, para efeitos de IMT) e atribuídos, pela mesma ordem, de € 23 700€, € 15 800 e € 23 000, o que perfaz o total de € 62 500;

Número Três – Metade Indivisa do prédio rústico de cultura e videiras em cordão, sito no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 000…, da freguesia de ..., registada, a seu favor, ainda no estado de solteira, maior, pela inscrição … e inscrito na matriz sob o artigo 135, com o valor patrimonial correspondente à fracção, de € 59,82 (€ 340,38, para efeitos de IMT) e atribuído de € 3 500,00;

Número Quatro – Metade Indivisa do prédio rústico de cultura e videiras de enforcado, sito no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 000…, da freguesia de ..., registada, a seu favor, ainda no estado de solteira, maior, pela inscrição … e inscrito na matriz sob o artigo 136, com o valor patrimonial, correspondente à fracção, de € 123,06 (€ 700,19 para efeitos de IMT) e atribuído de € 7 000;

Número Cinco – Metade Indivisa do prédio rústico de pastagem e mato, sito no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00353, da freguesia de ..., registada, a seu favor, ainda no estado de solteira, maior, pela inscrição … e inscrito na matriz sob o artigo 138, com o valor patrimonial, correspondente à fracção, de € 4,04 (€ 22,99, para efeitos de IMT) e atribuído de € 17 000;

Número Seis – Metade Indivisa do prédio rústico de cultura, videiras de enforcado, pastagem, pinhal e mato, sito no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, da freguesia de ..., registada a seu favor, ainda no estado de solteira, maior, pela inscrição G-2 e inscrito na matriz sob o artigo 140, com o valor patrimonial, correspondente à fracção, de € 256,51 (€ 1 459,54, para efeitos de IMT) e atribuído de € 50 800;

Número Sete – Metade Indivisa do prédio rústico de pinhal, mato e pastagem, sito no Lugar de F..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, da freguesia de ..., registada a seu favor, ainda no estado de solteira, maior, pela inscrição G-2 e inscrito na matriz sob o artigo 295, com o valor patrimonial, correspondente à fracção, de € 51,24 (€ 291,53, para efeitos de IMT) e atribuído de € 6 800;

Número Oito – Metade Indivisa do prédio urbano composto por um moinho de moer cereais, sito no Lugar de B..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, da freguesia de ..., registada a seu favor, ainda no estado de solteira, maior, pela inscrição G-2 e inscrito na matriz sob o artigo 167 (com inscrição anterior a 1951) com o valor patrimonial, correspondente à fracção, de € 521,01 e atribuído de € 2 100;

Número Nove – Metade Indivisa do prédio rústico de cultura e videiras enforcado, sito no Lugar de E..., freguesia de ..., concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, da freguesia de ..., registada a seu favor pela inscrição G-3 e inscrito na matriz sob o artigo 133 com o valor patrimonial, correspondente à fracção, de € 100,08 (€ 569,46, para efeitos de IMT) e atribuído de € 33 000.

Declarou, então, o segundo outorgante que aceita este contrato nos termos exarados, que é já proprietário das restantes partes dos prédios que adquire, registados, a seu favor, pelas supra indicadas inscrições prediais, que os prédios urbanos da verba dois destinam-se exclusivamente a habitação e que não tem dívidas fiscais.

Mais declarou que os montantes utilizados para pagamento dos preços destes contratos são dinheiro próprio, sendo que a parte do preço que falta liquidar na segunda venda vai ser igualmente paga com dinheiro próprio, adquirindo, assim, os imóveis comprados o carácter de seus bens próprios.

Declarou, depois, a terceira outorgante, que reconhece que os imóveis adquiridos são próprios do marido, uma vez que os montantes despendidos nestes contratos, bem como a parte que falta liquidar na segunda venda são próprios do mesmo (A);

B) – O A. é o titular inscrito do direito descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses sob o nº 000…, com a inscrição G-2 e G-3 e inscrito na matriz sob os artigos 83 e 84 urbanos e 134 rústico, com áreas coberta de 332 m2 e descoberta 33.400 m2, correspondente ao prédio sito no lugar ..., freguesia de ... (B);

C) – O A. é o titular inscrito do direito descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, com a inscrição G-2 e G-3 e inscrito na matriz sob o artigo 135, correspondente ao prédio rústico sito no Lugar ..., freguesia de ..., com a área de 4.200 m2 (C);

D) – O A. é o titular inscrito do direito descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 000…, inscrição G-2 e G-3 e matriz com artigo 136, correspondente ao prédio rústico sito no lugar ..., com a área de 8500m2, freguesia de ... (D);

E) – O A. é o titular inscrito do direito descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, inscrição G-2 e G-3, inscrito na matriz sob o artigo 140, correspondente ao prédio rústico sito no lugar ..., com a área de 37.000 m2, freguesia ... (E);

F) – Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Marco de Canaveses, datada de 24 de Maio de 1993, em que intervieram, como primeira outorgante, GG, casada, em separação absoluta de bens, com HH, como segundo outorgante, AA, solteiro, maior, que outorga por si e na qualidade de procurador de EE, solteira, maior, consigo residente, declarou a primeira outorgante que, pelo preço de cinquenta e cinco milhões de escudos, que já recebeu, vende ao segundo outorgante e sua constituinte os prédios constantes de uma relação que apresentam, elaborada nos termos do artigo 78º do Código do Notariado, tendo o segundo outorgante, em seu nome e no da sua representada, declarado que aceitam este contrato e se comprometem a dar sequência ao projecto número 89.11.6894.0, já em curso, conforme documento de fls. 30/34, que aqui se dá por integralmente reproduzido (F);

G) – Da relação indicada em F) constam os prédios melhor identificados a fls. 32 verso a 34, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos (G);

H) – Em 20 de Setembro de 1997, o A. contraiu casamento, sem convenção antenupcial, com DD (H);

I) – Entre a Câmara Municipal de Marco de Canaveses, representada pelo seu Presidente, II, como primeiro outorgante, e o A. e EE, como segundos outorgantes, foi assinado um acordo escrito, datado de 8 de Abril de 2002, que as partes designaram PROTOCOLO, subordinado às seguintes cláusulas:

Os segundos outorgantes comprometem-se a ceder à primeira outorgante o terreno necessário para a construção dos arruamentos, rotundas, baias de estacionamento e passeios, conforme mancha de ocupação anexa.

A primeira outorgante obriga-se:

1. Elaborar um projecto de loteamento, nos termos do PDM, das parcelas de terreno propostas para essa zona de expansão urbana, assinaladas por “B”, aprová-lo até um ano após a conclusão do arruamento adjacente e emitir o respectivo alvará, ficando o segundo outorgante isento do pagamento de taxas e licenças à Câmara Municipal de Marco de Canaveses;

2. Propor durante a próxima discussão pública da actual revisão do PDM que áreas assinaladas por “C” passem a área urbana ou de expansão urbana;

3. Propor em sede de revisão de PDM que as áreas assinaladas por “A” passem a áreas industriais e as restantes da propriedade passem a área urbana ou de expansão urbana;

4. Elaborar o projecto de loteamento, nos termos do PDM, das parcelas “C”, após a sua reclassificação para área urbana ou de expansão urbana e emitir os respectivos alvarás ficando isento do pagamento de taxas e licenças à Câmara Municipal de Marco de Canaveses. Se a reclassificação ocorrer com a actual revisão do PDM terá o projecto que ser elaborado no prazo de um ano após a execução do arruamento adjacente, se a reclassificação ocorrer em futura revisão do PDM, o prazo passa a ser de um ano após essa reclassificação;

5. Todas as áreas a ceder para arruamentos, baias de estacionamento, rotundas e passeios, serão contabilizadas como áreas de cedência em futuras operações de loteamento.

6. A parcela de terreno “D” será cedida para zonas verdes do loteamento das parcelas “B” e “C”.

7. Permitir a construção de casas a demolir, com as áreas respeitantes aos artigos urbanos que lhes dizem respeito, noutro local da propriedade a aprovar pela Câmara Municipal de Marco de Canaveses, e isentar de taxas e licenças devidas à Câmara Municipal.

8. Demolir as casas com os cuidados que merecem as construções e colocar as pedras devidamente acondicionadas em local a indicar pelos segundos outorgantes, ficando pertença destes.

9. Executar passeios (acabamentos em grosso) e baias de estacionamento nos arruamentos e estes serem dotados de redes de abastecimento de água, águas pluviais e residuais, iluminação pública, e condutas de reserva para outras infra-estruturas de modo a evitar a abertura de valas nos arruamentos a construir.

10. Canalizar a linha de água em toda a extensão do arruamento a construir.

11. Captar e conduzir por gravidade as águas e nascentes para o local da propriedade a designar, em tubagem de polietileno de alta densidade diâmetro 2’’.

12. Reconstruir, noutra propriedade, as construções de apoio à agricultura existentes (I);

J) – No dia 25 de Agosto de 2006, o A. e o seu cônjuge, como primeiros outorgantes, e a R. “BB”, como segunda outorgante, subscreveram um acordo que intitularam de “cedência de terreno”, pelo qual os primeiros outorgantes cederam à segunda outorgante, a partir de 18 de Setembro de 2006, a ocupação e utilização de uma parcela de terreno para estaleiro desta última, mediante contrapartida mensal de € 1 000,00 (mil euros) (J);

K) – Datada de 20 de Setembro de 2006, o A. e EE enviaram carta registada, com aviso de recepção, endereçada ao Presidente da Câmara Municipal de Marco de Canaveses, na qual requereram que se dê sem efeito o documento intitulado “Protocolo”, assinado em 8 de Abril de 2002, nos termos de fls. 220 e 220 verso, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos, sendo que aquela carta foi recebida pelo destinatário[3] (K);

L) – Por contrato de empreitada nº1655, celebrado 06.12.06, junto a fls. 100 e seguintes e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, a R. “CC, R..., E.P.” adjudicou à R. “BB – Obras e Construções, S.A.”, a execução da Empreitada Geral de “Supressão das Passagens de Nível aos Km’s 59+270, 59+426, 59+733 e 60+648 da Linha do Douro, no Concelho de Marco de Canavezes” (L);

M) – No acordo R...ido em L), ficou previsto que a consignação teria lugar no prazo máximo de 30 dias de calendário, a contar da data do início da produção de efeitos daquele contrato (M);

N) – Em 04.01.07, a “R...” e a “BB” reduziram a escrito um documento que intitularam de “Auto de Consignação Parcial 1”, junto a fls. 109/110, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (N);

O) – Neste documento, ficou a constar que os locais necessários à implantação da obra seriam, nessa data, facultados ao Adjudicatário pela “R...”, «com excepção dos terrenos necessários à construção do viaduto 3 e dos restabelecimentos 21.21.1 e 21.2., para supressão da passagem de nível ao Km 59+733, os quais, por serem da responsabilidade da C.M. de Marco de Canavezes, serão objecto de consignação parcial autónoma» (O);

P) – Em 10.01.07, a “R...”, a “BB” e a Câmara Municipal de Marco de Canaveses reduziram a escrito um documento, que as partes apelidaram de “Auto de Consignação Parcial 2 – PN ao KM 59+733”, junto a fls. 111 e 112, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, assinado pelas partes e pelo Presidente da Câmara Municipal do Marco de Canavezes, em representação da citada Câmara Municipal (P);

Q) – Neste documento, a Câmara Municipal de Marco de Canaveses facultou à R. “BB” «os locais necessários à construção do Viaduto 3 e dos Restabelecimentos 20, 21, 21.1 e 21.2” (Q);

R) – E a R. “R...” declarou que “por este acto ficou feita a consignação dos trabalhos, que deverão ser iniciados de imediato e ficar concluídos dentro do prazo de execução da empreitada geral em apreço” (R);

S) – No dia 16.01.07, a R. “BB” iniciou os trabalhos de movimentos de terras nos terrenos que os AA. reclamam nos presentes autos, integrados na Quinta ... (S);

T) – Nesse dia, o A. foi informado que iam proceder, ali, a diversas obras visando a supressão de diversas passagens de nível da linha do Douro (T);

U) – No seguimento da abordagem feita pelo A. junto da direcção técnica da R. “BB”, foi esclarecido que esta executava, em cumprimento de ordem expressa da R. “R..., E.P.”, os trabalhos previstos e consignados no âmbito da empreitada (U);

V) – No seguimento da abordagem feita pelo A. junto do coordenador da obra da R. “R..., E.P.”, representada pelo coordenador de obra, foi esclarecido que os terrenos em causa tinham sido formalmente consignados para a execução da aludida empreitada, através de auto de consignação (V);

W) – Nesse mesmo dia 16.01.07, e após os esclarecimentos prestados pelas RR. “BB” e “R...”, foi solicitada à “BB”, por fax enviado pelo mandatário do A., a suspensão dos trabalhos em curso no terreno (W);

X) – Em reunião de obra realizada no dia 17.01.07, a R. “BB” deu conhecimento do teor do R...ido fax à R. “R...”, tendo esta, através do seu coordenador da obra e da fiscalização da obra por si designada, reiterado, junto do empreiteiro, a ordem expressa de continuação dos aludidos trabalhos no local (X);

Y) – Em 17.01.07, a R. “BB” enviou fax à mandatária do A., nos termos de fls. 116, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, no qual comunicou que iria prosseguir com a execução dos aludidos trabalhos, não podendo, em razão da consignação verificada e da ordem recebida, deixar de o fazer (Y);

Z) – A R. “R..., E.P.”, em reunião de obra ocorrida no dia 15.02.07, manteve, junto da R. “BB”, a ordem de prossecução dos trabalhos em curso (Z);

AA) – O conjunto dos prédios descritos em A), F) e G) são contíguos, formando uma Quinta, designada “...”, vedada, contendo no seu interior as referidas fracções urbanas (12º);

BB) – O comportamento referido na alínea S) da matéria assente foi-o sem autorização dos AA. e contra a sua vontade (13º);

CC) – Aquando da realização dos trabalhos referidos em S), além do ali referido, foram derrubadas videiras e outras árvores da Quinta ... (14º);

DD) – Desde 8 de Abril de 2002, data em que assinou o Protocolo referido em I), que o A. sabia que o R. Município iria intervir ou mandar intervir nos prédios nele mencionados, em causa nesta acção, concordando com tal intervenção, sendo que a concordância com a intervenção o foi, ao menos, até à data do envio da carta referida em K) (16º);

EE) – Na data em que assinou o Protocolo referido em I), o A.-marido tinha uma noção básica do alcance das obras que iriam ser levadas a cabo, mormente da implicação destas para as edificações existentes no seu prédio (17º);

FF) – O A. e o seu cônjuge foram contactados para a instalação, na sua propriedade, de um estaleiro de obras a realizar pela “R.../BB” (19º);

GG) – Na sequência da autorização constante do contrato de cedência do terreno celebrado em 25 de Agosto de 2006, referido em J), foi instalado o estaleiro da R. “BB”, necessário à efectivação das obras mencionadas em J), passando o A. a receber, mensalmente, a quantia de € 1000,00 (20º);

HH) – O acordo referido em J) foi celebrado entre o A. e a R. “BB” com vista à realização da obra que tem como objectivo principal a supressão da passagem de nível ao Km 59+733 da Linha do Douro e a sua substituição por passagem desnivelada (restabelecimento) (21º);

II) – Por solicitação da CMMC, a “R...” acertou com esta que se alargaria o âmbito de intervenção urbanística (22º);

JJ) – Sendo que, no que se refere aos terrenos que estavam para além das áreas abrangidas pela declaração de utilidade pública, seria da responsabilidade da CMMC a respectiva disponibilização à “R...”, sem quaisquer encargos para esta (23º);

LL) – Por forma a que a “R...” neles pudesse intervir, realizando a obra conforme o planeado (24º);

MM) – O que constituiu condição imprescindível para a “R...” aceitar a execução da obra (25º);

NN) – A obra só foi aprovada pela “R...” depois de o executivo do Município do Marco de Canaveses ter assumido e demonstrado aquele compromisso (26º);

OO) – O custo estimado da empreitada acordada entre o Município do Marco de Canavezes e a “R...” foi não inferior a um milhão de euros (27º);

PP) – Os terrenos onde decorreram e decorrem as obras executadas pela “BB” foram disponibilizados à R. “R...” pela Câmara Municipal de Marco de Canaveses, sem quaisquer ónus para a “R...” (28º);

QQ) – A qual, com a “BB”, só avançou para a obra depois de a CMMC lhe ter anunciado que o podia fazer, por já possuir título bastante para tal (29º);

RR) – A “R...” limitou-se, então, a concretizar as obras projectadas para o local, que incluíam as acessibilidades cuja criação a CMMC solicitou, pagando essas obras (30º);

SS) – Pelo Protocolo referido em I) e sem prejuízo da matéria assente em K), DD) e EE), o A. aceitou ceder o terreno que veio a ser “implicado” na execução da obra em apreço nos autos, nos exactos termos que resultam da matéria assente em I) (31º);

TT) – O A. sofreu desgosto por ver destruídas a casa de senhorio, a casa de caseiro e demais porções urbanas, que existiam na Quinta ..., antes das obras efectuadas, sendo que a destruição das porções urbanas que existiam na Quinta ... o foi pelo co-Réu Município (33º);

UU) – O A. tinha apego àquela Quinta (35º);

VV) – O A. perdeu o sono com a invasão da Quinta ..., levada a cabo pelos RR. (36º);

XX) – Passou noites a cismar (37º);

ZZ) – O assistir, impotente, à destruição em apreço, deixou-lhe os nervos desgastados (38º);

AAA) – Sentiu-se gozado e desafiado por vizinhos e amigos que lhe afirmaram que, se o caso se passasse com eles e se o Tribunal demorasse tanto tempo, não duvidariam em defender a Quinta "à força" (40º);

BBB) – Acham-se inscritos no registo, a favor do A., o respectivo direito de propriedade plena, os prédios: rústico designado “...”, sito no lugar de ..., freguesia de Freixo, concelho do Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 000… e matriz sob o artigo 279; rústico no lugar ..., freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo 1; rústico sito no lugar ... com a área de 7.000 m2, freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, com matriz sob o artigo 138; rústico sito no lugar de F... com a área de 32.600 m2, freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, inscrito na matriz sob o artigo 295; urbano sito no lugar da B... com a área de 32 m2, freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, inscrito na matriz sob o artigo 167; rústico sito no lugar da E..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial pela ficha 00…, inscrito na matriz sob o artigo 133.

                                                *

3 - Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na pregressa e, aqui, aplicável redacção[4]) –, constata-se que a questão por si suscitada e que, no âmbito da revista, demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso respeita, unicamente, ao mérito da acção contra si (e outros) instaurada, pugnando aquele pela integral improcedência desta, decorrente da plena subsistência do Protocolo celebrado com o recorrido – consubstanciador dum verdadeiro contrato –, já porque infundada a respectiva resolução contratual, já porque, a assim não ser entendido, a correspondente conduta protagonizada pelos respectivos outorgantes particulares – o A.-marido e EE – consubstancia abuso do respectivo direito, por exceder, manifestamente, os limites impostos, no caso, pela boa fé.

       E, só no caso de negação da revista, impõe-se, ainda, apreciar e decidir se o acórdão impugnado incorreu em violação do preceituado no art. 661º, nº2, ao incluir na condenação do R. Município de Marco de Canavezes a “quantia que se vier a apurar/liquidar em incidente ulterior, correspondente ao valor do terreno da Quinta ... ocupado com as obras por aquele realizadas”.

       Apreciando:

                                                   *

4I – Essencialmente, alicerçaram as instâncias os respectivos veredictos no pressuposto da insubsistência do Protocolo mencionado em I) de 2 supra, o qual, em qualquer caso, enfermaria de invalidade formal no que concerne à cedência de terrenos, aí, contemplada, não desencadeando a ocorrida resolução contratual outra consequência – a ter-se a mesma por infundada ou injustificada – que não fosse a eventual e correspondente responsabilização cível dos seus autores, desde que verificados os demais pressupostos da mesma. Daí que – por preenchidos os correspondentes pressupostos e na parcial procedência da acção – o R. Município tenha sido condenado nos termos que ficaram relatados, absolvendo-se, integralmente, as demais RR. dos pedidos formulados, por total ausência de culpa na respectiva actuação.

       Com o devido e incondicional respeito por opinião contrária, entendemos, porém, que, em diferente abordagem e perspectiva, outro deve ser o desfecho do litígio a que se reportam os autos.

       Fundamentando:

                                                   /

II – Na monumental – qualificativo empregue pelo Prof. Menezes Leitão[5] - investigação que o Prof. Menezes Cordeiro dedicou ao tema da “Boa Fé No Direito Civil”, procedeu este insigne Mestre a um apanhado geral das inúmeras disposições em que o CC menciona a boa fé, o que ocupa quatro extensas e compactas páginas reportadas à “Parte Geral”, “Direito das Obrigações”, “Direito das Coisas”, “Direito da Família” e “Direito das Sucessões”, alertando, finalmente e a par das referências expressas, para uma série de remissões, feitas para locais onde a boa ou a má fé são mencionadas[6].

       Rejeitando, aqui, por fastidiosa, a correspondente transcrição integral, limitar-nos-emos a fazer eco da solene proclamação, vinda do mesmo Mestre, de que “O Código Civil de 1966 nasceu sob o signo da boa fé. O seu aproveitamento pleno não deve tardar mais”[7].

       Nos termos do disposto no art. 334º do CC “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

       Como ponderado no Ac. deste Supremo, de 25.05.99, de que foi relator o Ex. mo Cons. Fernandes Magalhães – COL/STJ – 2º/116 –, “…a concepção geral do abuso de direito postula a existência de limites indeterminados à actuação jurídica individual. Tais limites advêm de conceitos particulares como os de função, de bons costumes e de boa fé (…) O problema de base posto pelo abuso de direito reside na indeterminação dos conceitos que o informam e, designadamente, no de boa fé. Diz-se indeterminado o conceito que não permite uma comunicação clara e imediata quanto ao seu conteúdo. Por isso, o conceito indeterminado carece de um processo de concretização, tendente a possibilitar a sua aplicação em concreto (…) E sabe-se que a lei utiliza conceitos indeterminados como modo privilegiado de atribuir ao aplicador intérprete – “maxime” ao juiz – instrumentos capazes de promover, no caso concreto, uma busca mais apurada da justiça, como diz o Prof. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo 1, 1999, Almedina (…) De salientar também que assegurar expectativas e direccionar condutas são indubitavelmente funções primárias do direito (…) Ou seja: por um lado, assegurar desde logo a confiança fundada nas condutas comunicativas das “pessoas responsáveis”, fundada na própria credibilidade que estas condutas reivindicam, e, por outro lado, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar as probabilidades de certas condutas no futuro (…) E ambas as funções se relacionam com aquela “paz jurídica” que, ao lado da justiça, é R...ida como uma das expressões da própria “ideia de direito” (v. Prof. Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, pags. 346)”.

       Uma das modalidades que pode revestir o abuso de direito encontra guarida no instituto jurídico denominado “venire contra factum proprium”.

       Esta vertente do abuso de direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.

        Dissertando sobre tal instituto, o Prof. ALMEIDA COSTA – que passamos a seguir de perto – ensina (R.L.J. – 129º/61) que “de acordo com o entendimento mais recente e quase uniforme da dogmática, a relevância da chamada conduta contraditória supõe a conjugação dos vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Entende-se que vedar, pura e simplesmente, a uma pessoa a prática de actos lícitos, embora opostos, redundaria numa teia de vinculações sistemáticas incompatível com o tráfico jurídico”. Acrescentando que “a concepção da tutela da confiança assenta no enunciado de um certo número de eventos ou circunstâncias que integram o chamado «facto jurídico da confiança» e que são: a situação objectiva de confiança (esta existe quando alguém pratica um acto – o «factum proprium» - que, em abstracto, é apto a determinar em outrem a expectativa de adopção, no futuro, de um comportamento coerente ou consequente com aquele primeiro e que, em concreto, efectivamente gera tal convicção, não surgindo, pois, tal situação se o «factum proprium» não influenciar o destinatário, como sucede quando se demonstra que este, independentemente da conduta de outrem, teria agido do mesmo modo); o investimento da confiança (este corresponde às disposições ou mudanças na vida do destinatário do «factum proprium» que, não só evidenciam a expectativa nele criada, como revelam os danos que, irrefragavelmente, resultarão da falta de tutela eficaz para aquele – irreversibilidade do investimento, lhe chama a dogmática alemã); finalmente, entende-se que a confiança apenas se mostra digna de protecção jurídica se o destinatário se encontrar de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o A. do «factum proprium» estava vinculado a adoptar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico”.

        Por seu turno, também em sede de pressupostos deste instituto, observa Baptista Machado que “a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura” (in “Obra Dispersa” – Braga 1991, Vol. I/416). “Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação de confiança é preciso que ela, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro” (mesma obra). Logo, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.

       E, dentro da mesma temática, ensina o Prof. Menezes Leitão[8]: “Quanto à tutela da confiança, a sua protecção através do princípio da boa fé significa exigir-se no quadro de um sistema móvel um conjunto de pressupostos para que a confiança tenha tutela jurídica. Seriam assim exigíveis:

--- Uma situação de confiança, traduzida numa boa fé subjectiva;

--- Uma justificação para essa confiança, consistente no facto de a confiança ser fundada em elementos razoáveis;

--- Um investimento de confiança, consistente no facto de a destruição da situação de confiança gerar prejuízos graves para o confiante, em virtude de ele ter desenvolvido actividades jurídicas em virtude dessa situação;

--- A imputação da situação de confiança criada a outrem, levando a que este possa ser considerado responsável pela situação.

       Finalmente, na lição do Prof. Menezes Cordeiro[9], “Venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo” (…) “No essencial, a concretização da confiança, ela própria concretização de um princípio mais vasto, prevê...: a actuação de um facto gerador de confiança, em termos que concitem interesse por parte da ordem jurídica; a adesão do confiante a esse facto; o assentar, por parte dele, de aspectos importantes da sua actividade posterior sobre a confiança gerada – um determinado investimento de confiança – de tal forma que a supressão do facto provoque uma iniquidade sem remédio. O factum proprium daria o critério de imputação da confiança gerada e das suas consequências” (…) “A articulação destes requisitos entre si não opera em termos cumulativos comuns: a falta de algum deles pode ser suprida pela intensidade especial que assumam os restantes. Neste domínio como noutros, a concretização da boa fé impõe o abandono de subsunções conceptualísticas como modo de aplicar o Direito”. E “A proibição de venire contra factum proprium representa um modo de exprimir a reprovação por exercícios inadmissíveis de direitos e posições jurídicas. Perante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira actuação, que o Direito não reconheceu, mas antes a protecção da pessoa que teve por boa, com justificação, a actuação em causa. O factum proprium impõe-se não como expressão da regra pacta sunt servanda, mas por exprimir, na sua continuidade, um factor acautelado pela concretização da boa fé”.

       As transcritas posições doutrinais têm sido acolhidas e aplicadas em diversos arestos deste Supremo, de que mencionaremos, a título meramente exemplificativo: Ac. de 05.02.98 – BOL. 474º/431; citado Ac. de 25.05.99; Ac. de 28.11.00 – BOL. 501º/292; e Ac. de 01.03.07 – Proc. 06A4571.dgsi.Net.

                                                  /

III – No caso dos autos, vem invocado o abuso de direito, o qual sempre deveria ser objecto de apreciação e decisão por ser de conhecimento oficioso (Cfr., designadamente, o Ac. deste Supremo, de 25.11.99 – COL/STJ – 3º/124).

       E, considerando as sobreditas posições doutrinais e a elas subsumindo a factualidade provada, é de concluir que o A., AA, ao ter a conduta acolhida em k) de 2 supra – não alicerçada em qualquer conduta do recorrente que possa ser entendida como incumprimento das obrigações para si decorrentes da celebração do Protocolo e antes se filiando, exclusivamente, numa tardia, arbitrária e contraditória reponderação dos interesses por si visados –, incorreu em abuso do respectivo direito de proceder à resolução do contrato consubstanciado no Protocolo celebrado com o, ora, recorrente, na modalidade ou vertente de “venire contra factum proprium”.

       Com efeito, através da celebração do sobredito contrato – que, ao abrigo do preceituado no art. 939º do CC não temos por, formalmente, inválido, atenta a sua específica natureza, identidade da 1ª outorgante e interesses públicos pela mesma prosseguidos, adequada ponderação dos interesses de ambas as partes, com estipulação de encargos e vantagens recíprocas, tudo objecto de genérica e inevitável publicidade no meio… – que, no caso, constitui o “factum proprium” – aquele GG, contraiu obrigações perante o, ora, recorrente, a quem atribuiu, por tal forma, correspondentes faculdades que, sem preterição da imprescindível boa fé subjectiva por parte do mesmo recorrente, o induziram, fatalmente, a, desde logo, investir na correspondente confiança, passando a desenvolver, perante a “R...” e “BB” (através da “R...”) as diligências integrantes do correspondente e sempre moroso processo burocrático, uma vez que só assim podem ser compreendidas, adentro da administração pública e da interligação desta com a autárquica, as vicissitudes ocorridas após 20.09.06 e protagonizadas pela “R...” e “BB”, em necessária e inevitável articulação com o recorrente: é o que, necessariamente, resulta da factualidade provada e acolhida de FF) a NN) e PP) a SS) de 2 supra, de cuja ponderação e articulação conjugada decorre, necessariamente, que tais actuações da “R...” e “BB” teriam que ser possibilitadas por muito anterior actuação do recorrente, estribado na permissão e faculdades que lhe advieram do sobredito Protocolo.

       Não podendo, pois e com respeito pela opinião contrária, subscrever-se o entendimento que vem das instâncias no sentido de que aquelas actuações da “R...” e “BB”, por posteriores a 20.09.06 – data da operada resolução contratual –, não podem ser entendidas como ocasionadas ou determinadas pela celebração do mencionado Protocolo: certo que tiveram lugar após tal resolução, mas as mesmas só puderam ocorrer porque o recorrente, estribado no Protocolo celebrado com o recorrido, AA, teve que incrementar, desde logo, o desenvolvimento das imprescindíveis diligências burocráticas e técnicas que tal poderiam vir a propiciar.

       Ora, com a sobredita resolução – aliás, injustificada, impendendo sobre o respectivo autor o ónus processual da prova da existência de correspondente fundamento legal ou convencional e não sobre o respectivo destinatário o ónus da prova da inexistência ou ausência de tal fundamento (arts. 432º, nº1 e 342º, nº1, ambos do CC) –, incorreu o, ora, recorrido, nos termos que ficaram caracterizados, no mencionado venire contra factum proprium, desse modo frustrando todo o investimento que o recorrente pusera na confiança que o mesmo recorrido lhe havia incutido, com vista à realização das obras e melhoramentos visados com a celebração do mencionado Protocolo e que, a assim não ser entendido, ficariam totalmente comprometidas e inviabilizadas ou, pelo menos, viriam a obrigar a nova composição dos respectivos interesses.

       Aliás, no entendimento que se deixou exposto, torna-se verdadeiramente incompreensível que, menos de um mês antes da ocorrência da mencionada resolução, os AA. tenham celebrado com a “BB” o acordo mencionado em J) de 2 supra… E, muito mais, que tenham decorrido mais de 4 anos – com interposição de eleições autárquicas – entre a celebração do Protocolo e a efectivação de tal resolução…

                                                /

IV – Como se sabe e foi decidido, designadamente, no Ac. deste Supremo, de 10.05.00 – BOL. 497º/343 – “Não prevendo a lei, expressamente, as consequências jurídicas do abuso do direito, entende-se que os seus efeitos «serão os correspondentes à forma de actuação do titular», variando a sanção do acto abusivo, conforme os casos, por «apelo às regras gerais e mesmo à equidade», «entre a indemnização do dano causado (reparação em dinheiro ou reconstituição natural, no todo ou em parte, da situação anterior), a nulidade do negócio jurídico, a validade de acto formalmente nulo ou a ineficácia de certa conduta».

       Assim, no caso dos autos, por ineficaz quanto ao recorrente terá de haver-se a resolução contratual mencionada em k) de 2 supra, com a inerente exclusão da ilicitude imputada pelos AA. à actuação do R. Município de Marco de Canavezes (ainda que através da “R...” e da “BB”), certo como é que subsistem, integralmente, para ambas as partes, os direitos e obrigações dimanadas do celebrado Protocolo.

       Não podendo, pois, subsistir a condenação constante das als. b), c) e d) da sentença, na forma supra relatada em 1 – cfr. art. 683º, nº2, al. b), no que toca às RR. não recorrentes e quanto a tal al. b) da condenação – e, bem assim, a que lhe foi aditada no acórdão impugnado.

       Procedendo, da forma exposta, as conclusões formuladas pelo recorrente.

                                                 *

5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em, com a aduzida fundamentação, conceder a revista, revogando-se, em consequência, o acórdão recorrido, na parte em que manteve as condenações constantes das als. b), c) e d) da sentença e lhe aditou a condenação, aí, exarada.

      Custas pelos recorridos, sendo as devidas nas instâncias suportadas pelos mesmos, integralmente, uma vez que não foi objecto de impugnação o pedido de reconhecimento do respectivo direito de propriedade e posse (art. 449º, nº/1 e 2, al. a)).

                                                

 Lisboa, 11 Dezembro de 2012

Fernandes do Vale (Relator)

Marques Pereira

Azevedo Ramos   

_______________________     
[1]  Processo distribuído, neste Tribunal, em 18.09.12.
[2]  Relator: Fernandes do Vale (36/12)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Marques Pereira
   Cons. Azevedo Ramos
[3] É o seguinte o teor da R...ida carta, subscrita pela ilustre advogada constituída, Sra. Dra. JJ:
                                                            /

AA residente…e EE, residednte…, não concordando com o teor do Protocolo assinado com a CM do Marco de Canaveses, o qual é lesivo dos seus interesses legalmente protegidos, e porque estão em tempo, vêm suscitar a sua nulidade, declarando e alegando o seguinte:
1º - Os reclamantes assinaram a 8 de Abril de 2002 um protocolo com a Câmara Municipal do Marco de Canaveses no qual se comprometiam ceder o terreno necessário para a construção dos arruamentos, rotundas, baias de estacionamento e passeios conforme “uma mancha de ocupação anexa”.
2º - As cláusulas do dito protocolo não obedecem às normas regulamentares, bem como não existem quaisquer contrapartidas visíveis para os seus outorgantes privados.
3º - Não existe interesse público reconhecido (DUP) na realização das obras previstas resultantes do Protocolo pelo que não há uma legítima utilidade em os terrenos continuarem cedidos à CM.
4º - Pelas delimitações decorrentes da lei e do PDM não há viabilidade de construção para as partes previstas para loteamento e os técnicos da CM já tinham conhecimento disso na altura em que propuseram o mencionado acordo, induzindo os ora arguentes em falsas expectativas.
5º - Poderá pôr-se em causa a legalidade da contrapartida de isentar de taxas e licenças à Câmara por forma a que os segundos outorgantes se permitam a construção quer dos loteamentos quer das ruínas aludidas de casas seculares.
6º - Acresce que os arguentes tomaram conhecimento de outros Protocolos em circunstâncias semelhantes e nas áreas circundantes muito mais benéficos para os proprietários.
7º - Os proprietários tomaram ainda conhecimento que tais terrenos serão cedidos à R..., a qual irá executar as obras destinadas a passagem superior e todos os arruamentos e, desde logo se conclui que a CM, com o presente protocolo, está a retirar o legítimo direito de os proprietários poderem ser indemnizados em sede de expropriação bem como a aproveitar-se de toda a sua boa fé.
8º- Finalmente, o atraso na execução do projecto, que estaria à partida prevista para um tempo próximo do Protocolo (nisto foram os arguentes levados a crer, uma vez que não está plasmado por escrito) altera a situação e a sua conjuntura em termos de Construção e retira todo o significado ao mesmo documento.
9º - De acordo com o art. 179º, nº2 do CPA, o órgão administrativo não pode exigir prestações contratuais desproporcionadas e este acordo visa uma situação unilateral de vantagens.
10º - Para mais a cônjuge do arguente AA só muito recentemente tomou conhecimento da existência do Protocolo, sem nunca ter dado consentimento para tal.
Este Protocolo sofre de vícios na formação de vontade, assim como quanto à forma, pelo que será ferido de nulidade.
Nestes termos e face às razões expostas, requer a V. Exa que, ponderados os argumentos apresentados, se digne dar sem efeito o presente Protocolo, por força do art. 185º, 1 e 2 do CPA e art. 289º, 1 do CC, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado.
                     
[4]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[5]  In “Direito das Obrigações”, Vol. I, 6ª Ed., pags. 58.
[6] In “Da Boa Fé No Direito Civil”- Reimpressão (1997), pags. 19 a 23.
[7]  In “Ob. citada”, pags. 28.
[8]  In “Ob. e loc. citados”.
[9]  In “Ob. citada”, pags. 745, 758, 759 e 769/770.