Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1466/19.0T8VIS-D.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INSOLVÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
REQUISITOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
SUCUMBÊNCIA
VALOR DO INCIDENTE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 10/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE TOMA CONHECIMENTO DO OBECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

A oposição de acórdãos relevante para efeitos do art.14º é apenas a oposição frontal e que incida sobre decisões expressas, devendo a divergência manifestar-se quanto à questão fundamental de direito, sendo irrelevante a aparente divergência resultante da expressão literal dos respetivos sumários.

Decisão Texto Integral:

Processo n. 1466/19.0T8VIS-D.C1.S1

Recorrente: AA

Recorridos: Ministério Público e outros

Acordam em Conferência

I. RELATÓRIO:

1. AA, solteiro, apresentou-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante. Alegou factos tendentes a justificar a concessão deste benefício, mas não indicou o valor que considerava adequado à sua subsistência e a partir do qual teria de ceder os seus rendimentos ao fiduciário.

Declarada a insolvência do requerente, o Administrador da Insolvência emitiu parecer favorável à admissão liminar do procedimento de exoneração do passivo, propondo a fixação de um rendimento indisponível em montante equivalente a 1,5 do salário mínimo nacional.

Em 24.02.2020, foi proferido despacho a deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando a cedência ao fiduciário do rendimento disponível, “com exclusão do montante mensal correspondente a 1,25 do salário mínimo nacional, doze vez por ano, que para cada ano seja legalmente determinado”.

2. Inconformado com essa decisão, o insolvente interpôs recurso de apelação para o TRC, o qual, por acórdão de 13.07.2020, manteve a decisão recorrida.

3. Inconformado com o acórdão do TRC, o requerente interpôs o presente recurso de revista, ao abrigo do art.14º do CIRE, alegando existir oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05.05.2016 (relator Pedro Martins), no proc. n.5757/15.1T8OAZ (cuja certidão juntou a fls. 134 e seguintes), o qual teria adotado um diferente entendimento sobre o conceito de valor indispensável para um sustento digno do insolvente (art.239º, n.3 do CIRE).

4. O MP pronunciou-se (a fls. 140 e seguintes) pela inadmissibilidade do recurso de revista, pelo facto de o valor da sucumbência ser inferior a metade do valor da alçada da Relação.

5. Entendendo a relatora que a revista não seria admissível, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos do art.14º do CIRE, foram as partes notificadas para se pronunciarem, nos termos do art.655º do CPC.

6. Em resposta à notificação do art.655º, o recorrente veio reafirmar o seu entendimento de que se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso.

Cabe apreciar.

II. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

 A questão prévia da admissibilidade do recurso.

1. O incidente da Exoneração do Passivo Restante, sendo apreciado nos próprios autos da insolvência, fica submetido ao regime do art.14º do CIRE, em matéria de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Dispõe o art.14º do CIRE:

No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme”.

Trata-se de um regime específico que (embora exigindo a verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade, previstos no art.629º, n.1 do CPC), afasta, em grande medida, as regras comuns da revista (as quais continuam a ter aplicação aos apensos, como tem sido entendimento da jurisprudência do STJ).

O interesse geral de celeridade processual, subjacente à natureza urgente deste processo (art.9º do CIRE), determinou o legislador a estabelecer, como regra, a existência de um único grau de recurso.

Os tribunais da Relação são, assim, em regra, a última instância no que respeita ao processo de insolvência.

A intervenção do STJ nestas matérias está reservada para as hipóteses em que se demonstre a oposição de decisões dos tribunais da Relação prevista no art.14º do CIRE, cabendo ao recorrente o ónus de demonstrar tal oposição.

2. Como supra referido, o recorrente sustentou a sua pretensão recursiva na alegada existência de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05.05.2016 (relator Pedro Martins), no proc. n.5757/15.1T8OAZ, o qual teria adotado um diferente entendimento sobre o conceito de valor indispensável para um sustento digno do insolvente (art.239º, n.3 do CIRE).

3. O MP pronunciou-se pela inadmissibilidade do recurso de revista, pelo facto de o valor da sucumbência ser inferior a metade do valor da alçada da Relação.

4. Como se referiu, o art.14º do CIRE não prescinde da prévia verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade, fixados no art.629º, n.1 do CPC, aplicável ex vi do art.17º do CIRE.

Entre esses pressupostos encontra-se o do valor da causa e da sucumbência. O MP entendeu que o valor da sucumbência seria inferior a metade do valor da alçada da Relação. Contudo, não concretizou qual seria, no caso concreto, esse valor.

5. Apesar de o recorrente/requerente ter atribuído ao seu requerimento (de apresentação à insolvência e pedido de exoneração do passivo restante) o valor de €5.000,01, a sentença que decretou a insolvência fixou (a fls. 47 verso) o valor do incidente de exoneração do passivo restante em €78.653,52.

O valor da causa ultrapassa, assim, a alçada dos Tribunais da Relação que, em matéria cível, é de € 30.000,00 (art. 629º, n. 1, do CPC ex vi do art. 17º do CIRE, e art. 44º, n.1, da LOSJ).

Quanto ao valor da sucumbência, estando em causa a fixação do montante do rendimento indisponível do devedor, ou seja, aquele que fica excluído dos rendimentos a ceder ao fiduciário durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (designado por período da cessão), a sucumbência terá que corresponder, pelo menos, à diferença entre o montante que foi fixado, a esse título, pelo tribunal e aquele que o recorrente pretende que seja fixado, multiplicada pelos cinco anos pelos quais dura a cessão (art. 239º, n. 2, e n. 3, al. b), do CIRE).

Nestes termos, tendo a Relação determinado (confirmando a decisão da 1.ª instância), que o montante mensal excluído do rendimento a ceder ao fiduciário é o correspondente a 1,25 do salário mínimo nacional (€ 793,75[1]), e pretendendo o recorrente que tal montante seja fixado em 1,70 do salário mínimo nacional (€ 1.079,505), a sucumbência sempre corresponderia, pelo menos[2], a € 17.145,00[3], valor este que ultrapassa metade da alçada da Relação.

Acresce que, o recorrente requer ainda que sejam excluídas as quantias (variáveis) recebidas a título de ajudas de custo, que sempre representariam um fator de indeterminabilidade. Assim, ainda que existissem dúvidas quanto ao valor da sucumbência, sempre seria de aplicar o disposto no final do art.629º, n.1 do CPC, e considera-se apenas o valor do incidente. Em resumo, nem o valor do incidente nem o valor da sucumbência constituem obstáculo ao presente recurso.

6. Não existe, portanto, obstáculo decorrente do valor da ação ou da sucumbência que impeça o recurso.

Porém, o recurso não pode ser admitido porque não se preenchem os pressupostos específicos do art.14º do CIRE.

O acesso ao terceiro grau de jurisdição está, nos termos desta norma, dependente da verificação dos seguintes requisitos: (i) contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão da Relação ou do STJ, já transitado em julgado, relativamente à mesma questão fundamental de direito; (ii) relação de identidade entre a questão apreciada no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento; (iii) carácter essencial ou fundamental da questão de direito em que se manifesta a divergência; (iv) identidade substantiva do quadro normativo em que se insere a questão; e (v) inexistência de jurisprudência fixada pelo STJ conforme com o acórdão recorrido.

Tem sido reiteradamente entendido pelo STJ que a contradição relevante para efeitos da aplicação do art.14º é apenas a que seja frontal e que incida sobre decisões expressas. Por outro lado, a divergência deve manifestar-se quanto à questão essencial ou fundamental de direito, sendo irrelevantes as divergências respeitantes a aspetos secundários.

O que importa é que a questão fundamental de direito, em que assenta a alegada contradição, assuma carácter fundamental para a solução do caso, devendo integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto, desconsiderando-se as hipóteses em que a divergência invocada se traduza em mero obiter dictum ou em simples argumentos laterais, que não infirmam uma solução já alcançada com base noutros argumentos.

Tal como o STJ tem reiteradamente afirmado, a contradição relevante pressupõe ainda a identidade do núcleo essencial das situações fácticas em confronto, ou seja, que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam tipicamente equiparáveis. Assim, só existirá oposição entre as decisões relativamente à mesma questão fundamental de direito, se for substancialmente equiparável o núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação díspar dos mesmos preceitos legais.

7. Como a relatora entendeu no despacho baseado no art.655º do CPC, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não divergem quanto ao modo como deve ser interpretada e aplicada qualquer norma legal.

Pelo contrário, ambos convergem na consideração dos fatores a atender tipicamente no preenchimento do conceito indeterminado concernente ao “sustento minimamente digno do devedor– art.239º, n.3, al. b), I) do CIRE.

Contrariamente ao sustentado pelo recorrente, os acórdãos em confronto, embora tenham usando diferentes formulações, interpretaram de forma coincidente o preceito legal relevante para o cálculo do rendimento indisponível, quanto ao valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar a que alude o art. 239º, n. 3, al. b)., subalínea i), do CIRE.

Entendeu-se, tanto numa decisão como na outra, que na fixação do rendimento disponível se devem ter em consideração as condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar, e que, em consequência, se deverá ter em conta, no valor a excluir, o número de membros do agregado familiar e respetivos rendimentos auferidos.

Já no que se refere às concretas despesas comprovadas ou meramente alegadas, o que se entendeu no acórdão recorrido foi que, em regra, não haverá que a elas atender, procurando-se antes a determinação do que é razoável gastar para prover ao sustento do devedor e do agregado familiar que, eventualmente, o mesmo tenha a seu cargo.

Ora, no acórdão-fundamento, ainda que se tenha usado uma diferente formulação, partiu-se exatamente do mesmo pressuposto ao afirmar-se que o valor em questão será o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, incluindo as concretas despesas necessárias àquele preciso sustento que tiverem ficado provadas.

Contrariamente ao que o recorrente pretende fazer crer, o que se entendeu no acórdão-fundamento não foi que seriam relevantes quaisquer despesas concretas, desde que provadas, mas antes que apenas relevam as que, tendo ficado provadas, sejam razoavelmente necessárias àquele preciso sustento – o mesmo é dizer, nas palavras do acórdão recorrido, aquilo que é razoável gastar para prover ao sustento.

Refira-se ainda que o recorrente alicerça a suposta contradição de julgados apenas no texto do sumário do acórdão-fundamento (o qual, por si só e para este efeito, sempre seria irrelevante), quando, na realidade, se conclui pela respetiva fundamentação que a interpretação aí sustentada é inteiramente coincidente com a do acórdão recorrido, bastando, para tanto, atentar nas seguintes passagens: «Não se pretende, pois, que o devedor mantenha o nível de despesas que vinha tendo, e, por isso, estas só terão relevo na medida em que se possam identificar com aquelas correspondentes a um sustento minimamente digno. (…)

Assim sendo, as despesas que os requerentes insolventes alegam ter, mesmo que se provem, só têm relevo se dos factos respectivos se puder retirar, sem dúvidas, que essas despesas são as absolutamente indispensáveis a um sustento minimamente digno dos requerentes e dos seus agregados familiares.

Caso assim não aconteça, isto é, caso não seja possível estabelecer esta correspondência, aquela enumeração de despesas não passa de uma lista de despesas que se tinham e se desejam manter (…)».

Decorre, assim, claramente do exposto que não existe qualquer divergência quanto aos critérios interpretativos adotados nas decisões em confronto, que foram, ao invés, rigorosamente os mesmos. O que divergiu nas diferentes decisões foram apenas os montantes fixados a título de rendimento indisponível.

Porém, tal divergência não resultou da diferente interpretação de um mesmo preceito legal quanto a uma mesma questão fundamental de direito, mas antes da diferente factualidade em que cada uma das decisões se ancorou (os rendimentos de cada um dos insolventes, a composição dos seus agregados familiares, etc.).

8. Em resposta à notificação baseada no art.655º do CPC, o recorrente reafirma o seu entendimento no sentido da admissibilidade do recurso.

Alegou, em síntese, que: «Ambos os Acórdãos partem da mesma norma, contudo enquanto um acolhe o caso concreto, atendendo às alegadas e comprovadas despesas indispensáveis ao agregado e o harmoniza com um critério subjectivo “de vida minimamente digna” o outro (do Tribunal da Relação de Coimbra) acolheu a ponderação em abstrato e por estimativa do que é razoável gastar para prover ao agregado familiar, sendo indiferente ao montante concreto e demonstrado que é pago p. ex. de renda mensal com habitação e o que é pago de alimentos ao filho menor (duas despesas concretas demonstradas e indispensáveis ao sustento mínimo do agregado do ora Recorrente)

Em rigor, o recorrente limita-se a reafirmar a tese já defendida nas suas alegações, sem demonstrar que o despacho da relatora fizesse errada interpretação da lei na aferição dos requisitos de recorribilidade exigidos pelo art.14º do CIRE.

9. Efetivamente, pelo confronto da expressão literal dos sumários dos dois acórdãos em análise pode parecer, à primeira vista, que existirá alguma oposição de entendimentos. Todavia, essa ideia de contradição é meramente aparente. A consideração integral da fundamentação de cada uma das decisões em equação permite concluir, facilmente, que não existiu divergência na interpretação e aplicação do art. 239.º, n. 3, al. b), subalínea i), do CIRE, ou de qualquer outra norma com relevo para o caso concreto.

Nestes termos, confirma-se o despacho da relatora, pois não se encontram preenchidos os requisitos do art.14º do CIRE.

Tem, portanto, o recorrente que se conformar com a inadmissibilidade do recurso de revista.

Decisão: Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 27.10.2020

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Considerando a retribuição mínima mensal garantida para 2020, que está fixada em € 635,00 (cf. Decreto-Lei n.º 167/2019, de 21 de novembro).
[2] Dado que se tratará de valor que ficará sujeito às atualizações da retribuição mínima mensal garantida para cada ano.
[3] € 1079,50 - € 793,75 = € 285,75 x 12 x 5= € 17.145,00.