Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3283/22.1 T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
TRIBUNAL ARBITRAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
CASO JULGADO FORMAL
DECISÕES CONTRADITÓRIAS
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 04/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - A decisão proferida em acórdão de tribunal administrativo que se julgou incompetente para conhecer de determinado processo, por a competência caber ao tribunal arbitral constituído, não tem força fora do processo em que foi proferida (art. 100º do CPC).

II - Se o tribunal arbitral também se declarou incompetente para decidir a providência, por decisão igualmente transitada, a solução não passa pela aplicação da regra fixada no art. 625º do CPC para os “casos julgados contraditórios.”

III – Vigora entre nós o princípio da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência (art. 18º da LAV);

IV- Nestas circunstâncias, é da competência dos juízes cíveis, atenta a competência residual dos tribunais judiciais (art. 20º da LOSJ), decidir uma providência cautelar que visa a intimação de instituições bancárias a não procederem ao pagamento de qualquer quantia a outra das requeridas por conta de garantias bancárias prestadas pela requerente.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Domingos Silva Teixeira, SA requereu o presente procedimento cautelar não especificado contra Águas de Santarém – EM, SA, Banco Bic Português, SA e Caixa Geral de Depósitos, SA, pedindo que seja ordenado às 2.ª e 3.ª Requeridas para não procederem ao pagamento à 1.ª Requerida de qualquer quantia por conta das garantias bancárias n.ºs ....32/GARE e .............93, respetivamente, até que seja proferida decisão na ação principal.

Alega para tanto e em síntese que em execução do contrato de empreitada denominada 2.ª Fase de Candidaturas ao POVT para a construção das redes de saneamento de 7 sistemas no concelho de Santarém, a Requerente e a sua consorciada A..., S.A. ofereceram à 1.ª Requerida a título de caução 5 garantias bancárias à primeira solicitação emitidas pelo Banco BIC Português, pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. e pelo Novo Banco, S.A., duas delas ainda não pagas à data da entrada do procedimento cautelar.

Aduz que nos dias 10 e 11 de dezembro de 2019 foi realizada vistoria à empreitada objeto do referido contrato e a Requerente apresentou reclamação no próprio auto, que não foi decidida no prazo perentório previsto no artigo 345.°, n.º 3 do Código dos Contratos Públicos, pelo que a mesma tem de se considerar aceite e reconhecida pela 1.ª Requerida, devendo esta ter devolvido o valor correspondente a 90% das garantias em seu poder;

Posteriormente, em 11 de setembro de 2020 foi realizada a vistoria destinada à receção definitiva da empreitada, tendo a Requerente reclamado do auto por falta de notificação da A..., S.A., pelo facto de os pontos 1 a 4 do auto de vistoria serem uma mera reprodução do auto de 9 e 10 de dezembro de 2019 objeto de reclamação pela Requerente e que havia sido deferida por via do incumprimento pela Requerida do prazo previsto no artigo 345.°, n.º 3 do Código dos Contratos Públicos; o ponto 1 do auto encontrava-se em desacordo com o acórdão arbitral; quanto aos equipamentos afetos à empreitada mas dela autonomizáveis já encontrava há muito decorrido o prazo de garantia e quanto às restantes anomalias a Requerente não as reconhece face à falta de concretização e rigor do Auto;

Desta feita, considera que não estão reunidas as condições para que sejam acionadas as garantias, sendo abusivo o seu acionamento, tanto mais foram acionadas ainda no decorrer do prazo de 90 dias concedido para a reparação das anomalias detetadas no auto de vistoria para efeitos de receção definitiva da empreitada;

Acrescenta que a execução das garantias bancárias não foi precedida de qualquer procedimento prévio, não foi submetida a audiência prévia da Requerente e sua consorciada, violando ainda a decisão arbitral;

Considera, deste modo, que a 1.ª Requerida agiu em abuso do direito, violando a boa fé e o fim social e económico subjacente à atribuição do direito em questão, não se podendo falar de defeitos da obra que justifiquem o exercício de tal direito; além do que a 1.ª Requerida não tem o direito de executar a totalidade das garantias ao seu dispor uma vez que 90% do valor titulado por essas garantias foi libertado em dezembro de 2019 por incumprimento do prazo previsto no artigo 345.°, n.º 5 do Código dos Contratos Públicos, pelo que o exercício do direito, caso exista, é abusivo por inexistência de conexão funcional entre aquele exercício e a finalidade própria imanente à concessão do mesmo.

Refere a Requerente que o pagamento das garantias bancárias colocaria em causa a sua subsistência, imagem e bom nome junto das instituições de crédito, obstaria à possibilidade de obter créditos e beneficiar de outras garantias junto destas instituições, o que bloquearia o exercício da sua atividade comercial e a possibilidade de celebrar novos contratos de empreitada.


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Determinada a citação das Requeridas, veio apenas a Requerida Caixa Geral de Depósitos, SA informar que não pretende deduzir oposição ao procedimento cautelar, aguardando a decisão do mesmo, pretendendo, todavia, acompanhar os respetivos termos, para o que juntou procuração forense.

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Em face da não oposição ao procedimento cautelar por parte de nenhuma das Requeridas, por despacho proferido em 04/01/2023, consignou-se a confissão dos factos articulados no requerimento inicial (artigo 567.º, n.º 1 ex vi do artigo 366.º, n.º 5 do Código de Processo Civil) e foi concedida à Requerente a possibilidade de alegar, o que esta fez por requerimento de 13/01/2023.

Por despacho proferido em 06/02/2023 foi determinado que se solicitasse ao Tribunal Arbitral constituído para dirimir o litígio entre as DST – Domingos Silva Teixeira, SA e A..., S.A. e Empresa das Águas de Santarém, EM, SA (Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa) que informasse o estado dos autos e remetesse cópia dos articulados e do despacho saneador ali proferido, o que foi efetuado, tendo aquele Tribunal, em 19/04/2023, informado que o processo n.º 41 2021/AHC/AP aguarda a conclusão de perícia colegial para posterior agendamento da audiência de produção de prova, remetendo os articulados e o despacho proferido em 27/04/2022.

Fixados os factos que devem considerar-se provados, em virtude da não apresentação de contestação pelas Requeridas, foi proferida decisão que culminou com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto, nos termos das disposições legais supra referidas, decide-se julgar improcedente o presente procedimento cautelar comum proposto por Domingos Silva Teixeira, SA contra Águas de Santarém – EM, SA, Banco Bic Português, SA e Caixa Geral de Depósitos, SA.

A Requerente interpôs recurso desta decisão, visando a “anulação da sentença, proferindo-se em substituição decisão que determine o prosseguimento do processo, a fim de a providência cautelar ser decretada.”

Contra alegou a 1ª Requerida, excepcionando a incompetência absoluta do tribunal para conhecer do litígio, por a competência caber ao tribunal arbitral.

A Relação de Évora, por acórdão de 29.09.2023, julgou verificada excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral, e, em consequência, decidiu “não conhecer do objecto do recurso de apelação interposto pela Requerente.”

Inconformada, a Requerente interpôs recurso de revista, na qual formula as seguintes conclusões:

I. O presente recurso de revista é admissível, independentemente do valor da causa e da sucumbência, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º e dos artigos 637.º, 638.º, n.º 1, 639.º, n.º 1 e n.º 2, 662.º, n.º 4 e 671.º, n.º 1 e n.º 2 alínea a) do Código Processo Civil, uma vez que tem por fundamento a declaração da incompetência absoluta dos tribunais judiciais oficiosamente e primariamente declarada pelo Tribunal da Relação de Évora, levando à extinção da instância e à absolvição das Recorridas. (sublinhado nosso)

II. A convenção de arbitragem está submetida às regras gerais de interpretação do negócio jurídico e a convenção vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; e, sendo um negócio formal, não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento (artigos 236º, 238º do Código Civil e 2º, nº1. da LAV.

III. O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de que se recorre viola o princípio da Kompetenz-Kompetenz consagrado no artigo 18.º, n.º 1, n.º 4, n.º 8 e n.º 9 da Lei da Arbitragem Voluntária que tem como corolário lógico a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência – verificação do pressuposto da alínea a) do n.º 2 do artigo 639.º do Código de Processo Civil.

IV. Os árbitros são os primeiros juízes da sua própria competência e, em consequência, antes de o tribunal arbitral se pronunciar, os tribunais estaduais devem abster-se de intervir.

V. O Tribunal da Relação de Évora erra na determinação da norma aplicável ao referir que houve preterição do tribunal arbitral, por virtude da aplicação do princípio ínsito ao artigo 625.º, n.º 1 do CPC, quando na verdade houve sim da sua parte uma preterição superveniente do tribunal judicial, por duas ordens de razão: a primeira pelo facto de a Recorrente não ter ignorado a convenção de arbitragem existente para o litígio que ora submeteu ao tribunal judicial da comarca de Santarém; a segunda, pelo facto de o Tribunal Arbitral se ter declarado materialmente incompetente, fazendo um juízo sobre a existência, a validade e a eficácia da Convenção de Arbitragem sobre terceiros não signatários, como sejam o caso das Recorridas Instituições Bancárias.

VI. O princípio da aplicação do artigo 625.º, n.º 1, do CPC não pode proceder pois, como vem entendendo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nos casos de estabelecimento do conflito de competência entre o juízo arbitral e o juízo estatal, a jurisprudência evoluiu no sentido de privilegiar o princípio da competência- competência, cumprindo ao juízo arbitral, com prevalência sobre o juízo estatal, decidir sobre sua competência para analisar o caso sob discussão.

VII. Isto porque o artigo 5.º, n.º 1 da LAV impõe aos tribunais de jurisdição cível ou administrativa o dever de se absterem de julgar sobre as matérias referidas, antes que o árbitro sobre elas se pronuncie, consagrando o efeito negativo princípio da competência-competência previsto no artigo 18.º, n.º 1 da LAV, do qual não decorre apenas que o árbitro tem competência para conhecer da sua própria competência, mas também que tal competência lhe cabe a ele, antes de poder ser deferida a um tribunal judicial.

VIII. A sustentar a nossa posição veja-se a sábia lição do Dr. João Luís Lopes dos Reis, “ A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral (voluntário) ”, in Revista da Ordem dos Advogado, ano 58, Dezembro 1998 que a fls. 1127 a 1131 que nos ensina:

“Por isso a lei restringe tal julgamento de validade do compromisso arbitral que determina a extinção da instância à forma do acordo das partes, ao seu objecto e à qualidade das pessoas. E a decisão respetiva não pode deixar de vincular o árbitro, nessa mesma medida.

Aqui não ocorreu violação de convenção de arbitragem, não houve preterição do tribunal arbitral. Bem ao contrário, o que ocorreu foi a preterição superveniente do tribunal judicial, que este tem necessariamente de julgar.

De resto, e por outro lado, nada impede que a causa seja restaurada no tribunal judicial, se a convenção de arbitragem vier a caducar ou se, por outro motivo, perder eficácia.

(…)

Pode até ser que se venha depois a concluir pela invalidade ou pela ineficácia da convenção de arbitragem, ou mesmo pela sua inaplicabilidade em relação a alguma das partes no litígio, ou a este mesmo. Tal conclusão, porém, tem de ser obtida perante o tribunal arbitral ou em decisão judicial que conheça da impugnação da decisão dos árbitros. E, se assim for, o tribunal judicial verá ser-lhe reconhecida a sua jurisdição e será normalmente competente.” –

IX. Veja-se de igual modo e neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.02.2009, Processo n.º 3859/2008-7, Relator Arnaldo Silva disponível in www.dgsi.pt que nos ensina o seguinte: “ (…)

A decisão do tribunal judicial só vincula o tribunal arbitral quando se verificar a manifesta nulidade da convenção de arbitragem. Caso contrário, vale o princípio da Kompetenz-Kompetenz do árbitro (art.º 21º, n.º 1 da LAV). «Se o tribunal arbitral se considerar incompetente, a acção pode ser novamente proposta no tribunal judicial que se deve considerar vinculado à decisão do tribunal arbitral sobre a invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem.>>”

X. Destarte, tendo a jurisdição administrativa – por Acórdão do TCAS de 03.03.2022, transitado em julgado - e o Tribunal Arbitral – por Deliberação de 04.04.2022 – se autoexcluído materialmente como tribunais competentes, e por estar em causa uma providência cautelar onde DST, S.A. a Águas de Santarém – EM, SA, Banco Bic Português, SA e Caixa Geral de Depósitos, SA, pedindo que seja ordenado às 2.ª e 3.ª Requeridasparanãoprocederemaopagamentoà1.ªRequeridadequalquerquantia por conta das garantias bancárias n.ºs ....32/GARE e .............93, respetivamente, até que seja proferida decisão na ação principal, estamos na presença de um pedido dirigido a entidades privadas, externas à convenção arbitral, pelo que só nos resta concluir pela improcedência da excepção dilatória de incompetência absoluta dos Tribunais Judiciais declarada no Acórdão de que se recorre.

XI. Acrescem ainda mais três argumentos sólidos que constituem fundamento jurídico da decisão de competência dos tribunais judiciais e que deveria ter sido interpretada e aplicada pelo Tribunal de Évora, v.g. a aplicação do princípio da admissibilidade e aplicabilidade de providências cautelares de natureza estadual antes ou durante o processo arbitral - conforme artigo 7.º da LAV

XII. E, por último, advém do n.º 1 e do n.º do artigo 36.º da LAV o princípio da admissibilidade de intervenção de terceiros num processo arbitral condicionado ao consentimento de todas as partes que no caso sub judice não se verificou, não só pelo facto das Instituições Bancárias recorridas não constarem da Convenção de Arbitragem, como também pela ausência de consentimento da DST, S.A. e da Águas de Santarém – Em, S.A. para que as mesmas pudessem intervir em sede arbitral.

XIII. No caso sub judice é mister concluir pela deliberação do Tribunal Arbitral de 04.04.2022 de que para além dasInstituições Bancárias recorridas não constaremda Convenção de Arbitragem, tampouco se verificou o consentimento da DST, S.A. e da Águas de Santarém – Em, S.A. para que as mesmas pudesse intervir emsede arbitral.

XIV. E esta deliberação não foi objeto de acção de impugnação ou anulação por qualquer das partes em sede de tribunal judicial, pelo que serão estes os tribunais materialmente competentes para a decisão da presente providência cautelar

XV. O elemento da ação fundamental para determinar a forma do processo e a competência do tribunal é o pedido tal como nos ensina a jurisprudência dominante deste douto tribunal, v.g. o Ac. do STJ de 14.11.1994, Processo n.º 086270, Relator Torres Paulo.

XVI. A Recorrente peticiona em sede de requerimento cautelar de forma lapidar que o procedimento cautelar a ser decretado, e, em consequência, ser ordenado ao BANCO BIC PORTUGUÊS S.A., e a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A, para não procederem ao pagamento à Requerida ÁGUAS DE SANTARÉM – EM, S.A., pessoa coletiva n.º .......81, com sede na Praça ..., 24, ... Santarém, de qualquer quantia por conta das garantias bancárias n.ºs ....32/GARE e .............93, respetivamente, até que seja proferida decisão transitada em julgado na ação principal que corre termos no Tribunal arbitral.

XVII. Este pedidoresulta de uma complexa relação contratual que configura o contrato de garantia “on first demand”, nomeadamente da relação de mandato sem representação que a Entidade Empreiteira Recorrente celebrou com duas instituições bancárias no interesse e por conta daquela, mediante uma remuneração, de um acto jurídico relativo a interesses pertencentes à primeira, assumindo a segunda a obrigação de praticar esse acto.

XVIII. E é nesta sede e no âmbito da relação contratual base – contrato de empreitada de obra pública – que precede o acionamento da garantia bancária que a presente providência cautelar é interposta contra as instituições bancárias para que não se efetive o pagamento dessas garantias até que seja proferida decisão em acção principal.

XIX. A Recorrente invoca um conjunto de factos concretos que demonstram um justo impedimento para que aquelas entidades bancárias não atuem “on first demand”, na medida em que esses factos violam de forma flagrante o mandato sem representação que lhe foi conferido pela DST, S.A. e que a ser executado configura uma violação dos interesses da Recorrente, configurando uma situação de abuso de direito e uma violação à relação contratual de mandato sem representação que precede a relação de acionamento de garantia bancária.

XX. Face ao exposto, tendo por base o princípio consagrado no artigo 18º, n.º1 da LAV, segundo o qual incumbe ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem -, deve prevalecer a deliberação do Tribunal Arbitral de 04.04.2022 e a fundamentação do mesmo, pelo que o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora é manifestamente contra o Direito, devendo o Supremo Tribunal de Justiça através dos Venerandos Juízes Conselheiros rejeitar a procedência da exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, a baixa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Santarém para verificação dos pressupostos da providência cautelar, pois é manifesto e incontroverso que a convenção de arbitragem invocada não é aplicável às entidades bancárias por força dos artigos 5.º, n.º 1, 7.º, 18.º, n.º 4, n.º 8, n.º 9 e 36.º, n.º 1 da LAV – verificação das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 639 do Código de Processo Civil.

Contra alegou a Recorrida A.S. – Empresa das Águas de Santarém – EM.S.A., pugnando pela improcedência do recurso e a confirmação do acórdão recorrido.


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Constitui objecto do recurso saber se a competência para conhecer do presente recurso é do tribunal arbitral ou, como pretende a Recorrente, se a competência cabe ao tribunal estadual.

Fundamentação.

Elementos que relevam para a apreciação da questão decidenda.

1. Em 07/03/2012, entre a 1.ª Requerida e o consórcio constituído pela Requerente e pela sociedade A..., S.A., foi reduzido a escrito um documento denominado Contrato de Empreitada da 2.ª Fase de Candidaturas ao POVT para a Construção das Redes de Saneamento de 7 Sistemas no Conselho de Santarém. [documento 1 junto com o requerimento inicial]

2. Foram celebrados aditamentos ao referido negócio em 30/07/2014 e 14/10/2014 [documentos 2 e 3 com o requerimento inicial]

3. Este negócio tinha como objeto a execução da empreitada da 2.ª fase de candidaturas ao POVT para a construção das redes de saneamento de 7 sistemas no concelho de Santarém.

4. Pela execução da empreitada e pelo cumprimento das demais obrigações decorrentes do referido acordo obrigou-se o dono da obra a pagar ao empreiteiro a quantia de € 21.207.500,01, acrescida de IVA à taxa legal em vigor.

5. As partes acordaram ainda que:

1 - Com vista a garantir o exato e pontual cumprimento das obrigações contratuais a segunda outorgante prestou caução de 5% do preço contratual, na modalidade de garantia bancária, a favor da primeira outorgante, nos termos do artigo 88. ° e seguintes do CCP.

2 - Para reforço da caução prestada nos termos do número anterior, às importâncias que a segunda outorgante tiver a receber em cada um dos pagamentos parciais previstos é deduzido o montante correspondente a 5% desse pagamento, conforme n.º 1 do artigo 353.° do CCP.

3 - A dedução para garantia, nos termos do número anterior pode, a todo o tempo, ser substituída por depósito de títulos, garantia bancária à primeira solicitação ou seguro-caução, nos mesmos termos estabelecidos para a caução destinada a garantir o exato e pontual cumprimento das obrigações.

(…)

a) A Requerente e a consorciada A..., S.A., a título de caução, ofereceram à Requerida, as seguintes garantias bancárias:

i) Pela Requerente DST a garantia bancária n.º ....32/GARE, emitida em 9 de fevereiro de 2012, pelo Banco BIC Português S.A., no valor € 1.060.375,00;

ii) Pela Requerente DST a garantia bancária n.º .............93, emitida em 6 de janeiro de 2015, pela Caixa Geral de Depósitos S.A.., no valor € 50.132,35;

iii) Pela A..., S.A. a garantia bancária n.º N......29, emitida em 22 de fevereiro de 2012, pelo Novo Banco S.A. (antigo BES), o valor de € 530.187,50;

iv) Pela A..., S.A. a garantia bancária n.º N......03, emitida em 26 de fevereiro de 2014, pelo Novo Banco S.A. (antigo BES), o valor de € 184.117,59;

v) Pela A..., S.A. a garantia bancária n.º N......19, emitida em 10 de outubro de 2012, pelo Novo Banco S.A. (antigo BES), o valor de € 75.150,00.

Especificando:

[Garantia bancária 1 – Garantia Bancária n.º ....32/GARE, emitida pelo Bano BIC Português, SA, no valor de € 1.060.375,00]

b) O Banco BIC Português S.A prestou, por escrito e sob denominação Garantia Bancária ....32/GARE, por conta e a pedido da Requerente como adjudicatária do concurso público para a execução da "Empreitada da 2.ª Fase de Candidaturas ao POVT para a Construção das Redes de Saneamento de 7 Sistemas no Concelho de Santarém", promovido pela 1.ª Requerida garantia bancária autónoma, irrevogável, incondicional e à primeira solicitação, a favor da 1.ª Requerida, até ao valor de € 1.060.375,00, em caução do bom e pontual cumprimento por aquele das obrigações decorrentes do Caderno de Encargos.

Mais declarou o referido Banco constituir-se devedor e principal pagador em dinheiro, à 1.ª Requerida, até àquele valor, sem quaisquer reservas e para todos os efeitos legais, de todas e quaisquer importâncias que lhe venham a ser solicitadas por escrito pela Beneficiária, por uma ou mais vezes, à primeira solicitação e até um limite máximo de 48 horas a contar da solicitação, sem questionar da sua justeza, validade, legalidade ou conformidade com o disposto no processo de concurso e documentos a ele anexos, sem possibilidade de alegar qualquer exceção ou meio de defesa contra a Beneficiária que eventualmente pudesse Invocar contra o Ordenante, sem possibilidade de recorrer a qualquer benefício de prévia excussão dos bens do Ordenante e sem dependência de qualquer autorização ou concordância do Ordenante.

Declarou ainda que quaisquer pagamentos a efetuar pelo Banco nos termos daquela garantia serão processados no prazo máximo acima referido, através de transferência bancária ou qualquer outro meio de pagamento para o efeito especificado na comunicação escrita de solicitação de pagamento que seja efetuada pela Beneficiária.

Mais ali consta que tal garantia é de € 1.060.375,00 e só será cancelada quando a Beneficiária comunicar por escrito que cessaram todas as obrigações do caucionado, decorrentes da acima especificado, o que deverá ser feita de acordo com o estabelecido no Caderno de Encargos da referido concurso público.

[Garantia bancária 2 – Garantia Bancária n.º .............93, emitida pela Caixa Geral de Depósitos, SA, no valor € 50.132,35]

c) A CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., prestou por escrito e sob a denominação GARANTIA BANCÁRIA (Operação n.º .............93), a pedido da Requerente, como adjudicatária do procedimento para "Empreitada 2.ª Fase de Candidatura ao POVT para a Construção de Redes de Saneamento de 7 Sistemas no Concelho de Santarém", promovido pela 1.ª Requerida, garantia bancária autónoma, irrevogável, incondicional e à primeira solicitação, a favor da 1.ª Requerida, até ao valor de € 50.132,35, em caução do bom e pontual cumprimento por aquela das obrigações decorrentes do Caderno de Encargos.

Em consequência, a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A. constituiu-se devedora e principal pagadora em dinheiro, à 1.ª Requerida, até àquele valor sem quaisquer reservas de todas e quaisquer importâncias que lhe venham a ser solicitadas por escrito pela Beneficiária, por uma ou mais vezes, à primeira solicitação e até um limite máximo de 15 dias a contar da solicitação, sem questionar da sua justeza, validade, legalidade ou conformidade com o disposto no procedimento e documentos a ele anexos, sem possibilidade de alegar qualquer exceção ou meio de defesa contra a Beneficiária que eventualmente pudesse invocar contra a Ordenante, sem possibilidade de recorrer a qualquer benefício de prévia excussão dos bens da Ordenante e sem dependência de qualquer autorização ou concordância da Ordenante.

Mais declarou que quaisquer pagamentos a efetuar pela CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS SA nos termos da presente garantia serão processados no prazo máximo referido, através de transferência bancária ou qualquer outro meio de pagamento para o efeito especificado na comunicação escrita de solicitação de pagamento que seja efetuada pela Beneficiária.

E que esta garantia é de € 50.132,35 e só será cancelada quando a Beneficiária comunicar por escrito que cessaram todas as obrigações da caucionada, decorrentes do acima especificado, o que deverá ser feito de acordo com o estabelecido no Caderno de Encargos.

As referidas garantias foram conferidas a título de caução para cumprimento das obrigações contratuais decorrentes do negócio jurídico denominado Empreitada da 2.ª Fase de Candidaturas ao POVT para a Construção das Redes de Saneamento de 7 Sistemas no Conselho de Santarém.

6. Com data de 19 de Janeiro de 2016, foi celebrado Convenção Arbitral com o seguinte teor:

“1. A Águas de Santarém, a DST e a A..., S.A., na qualidade de Primeiro Outorgante e Segundo Outorgantes da presente Convenção Arbitrale do Contrato de Empreitada celebrado em 7 de Março de 2012 designado por “Empreitada da Fase de Candidaturas ao POVT para a Construção das Redes de Saneamento de 7 Sistemas no Concelho de Santarém”, acordam reciprocamente submeter todos os litígios emergentes da formação, interpretação ou execução do referido contrato a um Tribunal Arbitral.

2. As Partes acordam que a presente Convenção Arbitral revoga e substitui, para todos os efeitos legais, desde a data de celebração da presente, a Cláusula 22ª do Contrato de Empreitada, quanto aos litígios melhor definidos nos termos do número seguinte.

Sem prejuízo para a fixação definitiva do objecto da arbitragem por deliberação do Tribunal Arbitral, tomando emconsideraçãoa definição doobjecto resultante das posições das Partes nas cartas que entre si trocarem para constituição do Tribunal Arbitral, a presente Convenção Arbitral tem por objecto os litígios referentes à formação, celebração e cumprimento das obrigações da empreitada e correspondente dever de pagamento de preço, incluindo, mas sem limitação, a análise e decisão sobre pedido de reequilíbrio financeiro, trabalhos a mais e a menos, deveres de execução e correcção de deficiências e aplicação de quaisquer penalidades ou sanções por incumprimento, incluindo decisão sobre recepção de obra e uso de garantias.”

7. A Requerente interpôs providência idêntica à presente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o qual, por decisão datada 16.03.2021, julgou procedente a excepção dilatória de incompetência material suscitada pela aqui Recorrida, atenta a Convenção de Arbitragem celebrada, e, em consequência, declarou incompetente para apreciação do presente litígio o referido Tribunal, absolvendo as requeridas da instância.

De tal decisão foi interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul, que, por Acórdão datado de 03.03.2022, já transitado em julgado, manteve a decisão de 11ª instância e, por via disso, julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta dos Tribunais Administrativos, por a competência caber ao Tribunal Arbitral.

8. O Tribunal Arbitral, em idêntica Providência Cautelar, instaurada pela Recorrente, e outra Requerente, contra a ora Recorrida, por decisão posterior, datada de 04.04.2022, também já transitada em julgado, veio a declarar-se incompetente para conhecer e decidir a dita providência, e determinou a absolvição da instância da aqui Recorrida.

O direito.

Constitui objecto do recurso saber se o acórdão recorrido ajuizou bem ao declarar a incompetência dos Tribunais Estaduais para conhecerem do presente litígio, por a mesma caber ao tribunal arbitral.

Para assim decidir, a Relação suportou-se no disposto no nº1 do art. 625º do CPC, nos termos do qual “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em primeira lugar.”

As decisões contraditórias são a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria de 16.03.2021, confirmada pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 03.03.2022, transitado em julgado, que “atenta a convenção de arbitragem declarou a incompetência do foro administrativo”, e a sentença arbitral de 04.04.2022, também transitada em julgado, que julgou o tribunal arbitral incompetente para conhecer da providência, e determinou a absolvição da instância da aqui Recorrida, decisão assim fundamentada:

“A prevalência (da decisão transitada em julgado em primeiro lugar), que decorre do nº1 do art. 625º, “redunda na ineficácia da sentença coberta pelo trânsito em julgado posterior, ou seja, in caso, na ineficácia total da decisão que foi proferida pelo Tribunal Arbitral em 04.04.2022.”

Não se decidiu bem, com o devido respeito.

A decisão do Tribunal Administrativo de 16.03.2021, confirmada pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 03.03.2022, não tem força obrigatória fora do processo em que foi proferida, como decorre do art. 100º do CPC, aqui aplicável supletivamente dada a ausência de norma equivalente no Código de Processo Administrativo (art. 1º, do CPA, aprovado pela Lei nº 15/2002 de 22.02).

A tese do acórdão recorrido levaria a que fosse o tribunal administrativo a decidir que o litígio deve ser decidido no Tribunal Arbitral, ao contrário do que resulta do art. 18º da LAV que consagra o princípio de que é competente o tribunal arbitral para se pronunciar sobre a sua própria competência.

Como decidiu o Acórdão do STJ de 10.03.2011, P. 5961/09.1TVLSB.L1,S1:

“Não podendo olvidar-se que sendo os tribunais arbitrais constitucionalmente configurados como “tribunais – isto é, como entidades dotadas das características de independência e imparcialidade que caracterizam o núcleo essencial da função jurisdicional, a que compete definir o direito nas concretas situações litigiosas entre os particulares – não poderá deixar de lhes estar reservada uma relevante parcela da jurisdição, abrangendo, desde logo e em primeira linha, a aferição da sua própria competência emergente do legítimo exercício da autonomia privada pelos interessados, consubstanciada na convenção de arbitragem.”

Ora, a decisão arbitral de 04.04.2022, declarou a incompetência do tribunal arbitral para conhecer e decidir a presente providência com fundamento em que os visados são instituições bancárias estranhas à convenção arbitral, por não a terem subscrito, tendo decidido expressamente que “o tribunal não poderá vir a decretar qualquer medida que os tenha como destinatários, pela simples, mas decisiva razão de não ter competência para tal.”

É certo que o art. 36º da LAV prevê a intervenção de terceiros num processo arbitral em curso, mas como bem nota a Recorrente, tal adesão carece do consentimento de todas as partes na convenção de arbitragem, o que não sucede no caso.

A competência dos tribunais judiciais, com competência residual nos termos do art. 40º da LOSJ, aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26.08 – “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” – para conhecer da presente providência tem apoio no art. 7º da LAV nos termos do qual “não é incompatível com uma convenção de arbitragem o requerimento de providências cautelares apresentadas num tribunal estadual, antes ou durante o processo arbitral, nem o decretamento de tais providências por aquele tribunal.”

Com o que procedem as conclusões do recurso, não podendo manter-se a decisão recorrida.

Decisão.

Pelo exposto, concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido, devendo a Relação de Évora conhecer do mérito da apelação.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 17.04.2024

Ferreira Lopes (relator)

Nuno Pinto Oliveira (1º Adjunto)

Fátima Gomes (2ª Adjunta)