Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04S008
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ANULAÇÃO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: SJ200405200000084
Data do Acordão: 05/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 321/03
Data: 06/26/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - A contradição que poderá justificar, nos termos previstos no artigo 712º, n.º 4, do Código de Processo Civil, a anulação da decisão de primeira instância e a repetição do julgamento, não poderá ser estabelecida com base num mero princípio de normalidade, mas antes em função da realidade empírica que está subjacente aos pontos de facto concretamente considerados;
II - Não existe contradição se os factos naturais que o tribunal de primeira instância deu como provados não envolvem uma falsidade lógica e antes podem subsistir, num dado momento, como proposições verdadeiras.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório.

Na presente acção emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo ordinário, que A interpõe contra B e outros, a autora recorre de revista do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que, no uso dos poderes previstos no artigo 712º, n.º 4, do Código de Processo Civil, anulou o julgamento e determinou a sua repetição, quanto à matéria do quesito 9º, por considerar que a resposta dada a esse quesito é deficiente e contradiz a matéria da alínea D) da especificação e a resultante da resposta ao quesito 6º.

Na sua alegação formula as seguintes conclusões úteis:

1ª A contradição entre a matéria especificada e as respostas dadas aos quesitos não tem como consequência a anulação do julgamento, mas conduz à manutenção da matéria especificada e à consideração como não escritas as respostas dadas à matéria quesitada, como é jurisprudência uniforme.
2ª Assim, in casu, na hipótese de contradição entre a matéria especificada sob alínea D) e a resposta à matéria do quesito 9°, deverá prevalecer a primeira e considerar-se como não escrita a segunda, mantendo-se integralmente a douta sentença proferida na primeira instância.
3ª Considerando-se como não escrita a resposta ao referido quesito 9°, automaticamente se elimina toda e qualquer contradição eventualmente existente entre as respostas dadas a este quesito 9° e ao quesito 6°.
4ª Mesmo que assim se não entenda, do mesmo modo se deve confirmar a douta sentença proferida na primeira instância, uma vez que não existe qualquer contradição entre a matéria especificada sob a alínea D) da Especificação e a resposta dada ao quesito 9°, nem tão pouco entre esta resposta e a resposta dada ao quesito 6°, nem a resposta ao quesito 9° se mostra deficiente.
5ª Mesmo a existir qualquer contradição ou deficiência, a repetição do julgamento jamais apuraria matéria susceptível de fundamentar legalmente a descaracterização do acidente dos autos como de trabalho, pelo que redundaria na prática de um acto inócuo, desnecessário e inútil, em manifesta violação do disposto no art. 137° do Código de Processo Civil.
6ª Tendo-se dado como provado sob a alínea D) da Especificação que do outro lado da linha férrea, atento o sentido seguido pelo sinistrado, havia um espelho côncavo e tendo-se respondido à matéria do quesito 9° que o mesmo sinistrado poderia visualizar a linha férrea para o lado de Viana, a cerca de 200m de distância, não há qualquer contradição entre a matéria especificada e a resposta dada.
7ª De facto, entre a matéria especificada e a resposta dada não existe qualquer colisão, exclusão, incompatibilidade, antagonismo ou repulsa, características da contrariedade entre matérias, como é doutrinal e jurisprudencialmente aceite.
8ª Muito embora a resposta ao quesito 9° seja restritiva, a mesma não colide de forma alguma com a matéria especificada, pelo que ambas as matérias podem e devem manter-se nos autos como fundamento da correcta decisão tomada.
9ª Tendo-se perguntado e respondido no quesito 6° que os muros, um dos quais corre em paralelo com o caminho que o sinistrado percorria e o outro com a via férrea, retiram a visibilidade para o movimento ferroviário que se processa no sentido de Viana do Castelo, e tendo-se apurado na resposta ao quesito 9° a possibilidade de visualizar a linha férrea para o lado de Viana, através do espelho côncavo e a cerca de 200m de distância, também aqui não existe qualquer contradição.
10ª Conjugando a matéria especificada com as respostas aos quesitos 6° e 9° e aplicando-a ao caso dos autos, resulta que o sinistrado estava impedido de ver a linha férrea para o lado de Valença por causa dos muros referenciados no quesito 6°, mas poderia ver a mesma linha para o lado de Viana, através do espelho côncavo referido na alínea D) da Especificação pelo que toda a matéria pode e deve permanecer nos autos, por compatível e necessária.
11ª Pelo exposto, a repetição do julgamento consubstanciará a realização de um acto desnecessário e inútil, uma vez que, seja ou não modificada a resposta ao quesito 9°, será necessariamente mantida a douta sentença da 1ª instância.
12ª O douto acórdão recorrido viola, para além do mais, o disposto na Base VI, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, e artigos 137°, 653° e 721° n.º 4, todos do Código de Processo Civil.

Os réus, ora recorridos, suscitaram a questão prévia da não admissibilidade do recurso, por considerarem que a apontada deficiência ou contradição na resposta ao quesito 9º consubstancia matéria de facto insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, e, no mais, entendem que ocorrem os vícios que justificam a repetição do julgamento.

O Exmo representante do Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça, corroborou o entendimento dos recorridos quanto à inadmissibilidade do recurso.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:

1 - No dia 16 de Junho de 1998, pelas 14 horas e 27 minutos, C, foi colhido por uma composição ferroviária constituída por duas máquinas de tracção, que circulava no sentido Valença-Viana do Castelo - alínea A) da especificação
2 - Em consequência de tal abalroamento o C sofreu esfacelo da cabeça e pescoço de que lhe viria a resultar a morte - alínea B) da especificação.
3 - A autora nascida a 20/01/1942 é viúva do sinistrado - alínea C) da especificação.
4 - O sinistrado antes da passagem de nível deparou com o sinal "Atenção aos comboios/pare, escute e olhe/Proibido o trânsito pela linha" e do outro lado havia um espelho reflector côncavo - alínea D) da especificação.
5 - O R. B é administrador da "D - Exploração Agrícola e Turismo, SA" - alínea E) da especificação.
6 - A responsabilidade emergente de acidente de trabalho que pudesse advir ao C não estava transferida para qualquer seguradora - alínea F) da especificação.
7 - A circulação de uma ou duas máquinas produz muito menos ruído que um comboio normal - alínea G) da especificação.
8 - Em meados de Dezembro de 1995 o marido da autora celebrou um contrato com os réus B e mulher, mediante o qual se comprometia a proceder à limpeza da D, ficando com a liberdade de adquirir materiais e utensílios, mediante a retribuição mensal de 100.000$00 - resposta ao quesito 1°.
9 - Em Junho de 1996 tal vencimento foi actualizado para 140.000$00 - resposta ao quesito 2°.
10 - E a partir de Agosto para 150.000$00 - resposta ao quesito 3°.
11 - Na altura do acidente o C ao transporte de erva por conta dos réus B e mulher e, no desempenho da actividade para que fora contratado - resposta ao quesito 4°.
12 - O horário dos caminhos de ferro não assinalava a passagem de qualquer comboio, em qualquer sentido, pela freguesia de Lanhelas, às 14,27 horas - resposta ao quesito 5°.
13 - Os muros, um dos quais corre em paralelo com o caminho que o sinistrado percorria e o outro com a via férrea, retiravam visibilidade para o movimento ferroviário que se processava no sentido Valença-Viana do Castelo - resposta ao quesito 6°.
14 - Apenas permitindo visibilidade para a via férrea, no sentido referido, a cerca de 1,5/2 metros do carris - resposta ao quesito 7°.
15 - Os pagamentos do salário foram sempre realizados pelo Réu C ou por um representante deste, E - resposta ao quesito 8°.
16 - O espelho referido em D) permite visualizar a linha acerca de 200 metros para o lado de Viana do Castelo - resposta ao quesito 9°.

3. Fundamentação de direito.

A única questão a dirimir é a de saber se se verifica deficiência ou contradição na resposta ao quesito 9º, por referência à factualidade que decorre da alínea D) da especificação e da resposta ao quesito 6º, em termos que justifiquem que a Relação determine, no uso dos poderes previstos pelo n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil, a repetição do julgamento quanto a esse específico ponto da decisão de facto.

Na sua contra-alegação, porém, os recorridos começaram por invocar que o recurso é inadmissível por incidir sobre aspectos de apreciação e fixação da matéria de facto, que se encontram excluídos do âmbito da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça - perspectiva que foi igualmente corroborada pelo Exmo magistrado do Ministério Público nesta instância -, pelo que, preliminarmente, importa averiguar da viabilidade do conhecimento do objecto do recurso.

Nos termos do n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil, na redacção resultante da reforma de 1995/1996, "se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta".

O poder processual previsto nesta disposição surge, assim, como subsidiário relativamente à possibilidade de reapreciação da decisão de facto. Se do processo constarem todos os meios de prova produzidos perante o tribunal de 1ª instância, a Relação poderá alterar a decisão de facto, suprindo, desde logo, quaisquer deficiências, obscuridades ou contradições de que ela eventualmente padeça. E só no caso de não poder ser efectuada uma nova avaliação dos elementos probatórios coligidos, é que o tribunal de recurso poderá lançar mão do mecanismo consignado no n.º 4 do preceito, ordenando a repetição do julgamento relativamente aos pontos da matéria de facto relativamente aos quais se verifique algum daqueles vícios lógicos.

Prescreve ainda o n.º 6 do mesmo artigo 712º, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro, que "Das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça"

Esta norma foi interpretada como tendo estabelecido expressamente a irrecorribilidade para o Supremo das decisões da Relação que se encontram funcionalmente ligadas à matéria de facto relevante, tomando assim posição explicita sobre um aspecto que não era jurisprudencialmente pacífico (LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, pág. 486). Sucede, porém, que a limitação ao recurso agora estabelecida não é aplicável aos processos pendentes, conforme decorre do disposto no artigo 8º, nº 2, do Decreto-Lei nº 375-A/99, de 20 de Setembro, o que significa que, relativamente aos presentes autos, instaurados em 1998, e, portanto, antes da entrada em vigor da nova redacção do n.º 6 do artigo 712º, se mantém a possibilidade de o Supremo sindicar a legalidade dos poderes conferidos às Relações por esse artigo, nos termos em que uma parte da jurisprudência e da doutrina o vinha já admitindo (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, pág. 447, e acórdãos do STJ de 13 de Dezembro de 1984, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 122, pág. 233, e de 15 de Março de 1994, BMJ nº 435, pág. 750).

Na verdade, de acordo com este entendimento, o Supremo não podia controlar o não uso pela Relação dos poderes conferidos pelo artigo 712º do Código de Processo Civil, mas já poderia efectuar esse controlo quando a Relação tivesse feito uso desses poderes, caso em que o que estava em causa não eram os estritos aspectos de apreciação das provas ou de fixação dos factos materiais da causa, mas a eventual ocorrência de um erro de direito quanto à existência da deficiência, obscuridade ou contradição de decisão de facto, ou a necessidade da sua ampliação, que justificasse a repetição do julgamento.

Nesta linha de orientação, e reportando-nos ao caso concreto, nada impede que o Supremo se pronuncie sobre a decisão da Relação que reconheceu a ocorrência de uma contradição na decisão de facto. O juízo que o tribunal de revista emite, neste plano, não é sobre a apreciação das provas ou a fixação dos factos materiais da causa, mas sobre a possível existência de um vício lógico que afecta a decisão de facto, tal como se encontra formulada pelo tribunal de primeira instância, e que, a manter-se, poderá inviabilizar a decisão jurídica do pleito.

Trata-se, por isso, de uma decisão que se enquadra ainda nos poderes de cognição do Supremo Tribunal, visto que incide sobre um aspecto jurídico da causa, ou, melhor dito, sobre um erro de direito que inquina a matéria de facto.

Poderá, no entanto, ainda afirmar-se que o recurso de revista não é o próprio, visto que a decisão da Relação não decidiu do mérito da causa, mas limitou-se a fazer actuar os poderes processuais que lhe são conferidos pelo artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil, sem reflexo imediato na apreciação do objecto da lide.

E assim é, de facto, face ao que dispõe o nº 1 do artigo 721º do mesmo Código, no tocante ao campo de aplicação do recurso de revista. Nada impede, porém, que o recurso possa ser admitido como agravo de segunda instância, dado que o despacho de recebimento do relator não vincula o tribunal quanto à espécie de recurso que venha a ser julgada adequada, implicando apenas que os termos subsequentes se processem de harmonia com o correspondente regime legal (artigo 702º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Acresce que nenhum impedimento há à admissão do recurso como agravo. Por um lado, o fundamento do recurso assenta em violação da lei de processo; por outro, a acção foi instaurada em 1998, antes ainda da entrada em vigor da actual redacção (mais restritiva) do artigo 754º, nº 2, introduzida pelo Decreto-Lei nº 375-A/99, de 20 de Setembro, que se não aplica aos processos pendentes à data do seu inicio de vigência (cfr. artigo 8º, nº 2, deste diploma).

Ora, face ao regime anterior, resultante da reforma de 1995-1996, ao caso aplicável, o recurso de agravo de segunda instância só não seria admissível se o acórdão da Relação tivesse confirmado, sem qualquer voto de vencido, a decisão proferida na primeira instância, requisito que manifestamente não ocorre, visto que o tribunal recorrido anulou o julgamento e determinou a sua repetição, dando assim provimento à apelação.

Nada obsta, portanto, com a alteração da respectiva espécie, ao conhecimento do objecto do recurso.

4. Como se anotou, a Relação reputou como deficiente e contraditória a decisão de facto do tribunal de primeira instância, no tocante à resposta ao quesito 6º, tendo em consideração o que também resulta da alínea D) da especificação e da resposta ao quesito 6º.

Afirma-se naquele ponto da especificação, que se encontra vertido sob o n.º 4 da matéria de facto, que "o sinistrado antes da passagem de nível deparou com o sinal ‘Atenção aos comboios/pare, escute e olhe/Proibido o trânsito pela linha’ e do outro lado havia um espelho reflector côncavo". Por outro lado, o que consta da resposta ao quesito 6º, formulado com base no articulado pela autora (artigo 50º da petição inicial) é que "os muros, um dos quais corre em paralelo com o caminho que o sinistrado percorria e o outro com a via férrea, retiravam visibilidade para o movimento ferroviário que se processava no sentido Valença-Viana do Castelo" (n.º 13). Por sua vez, a matéria do n.º 16 da decisão de facto, que se diz ser contraditória relativamente aos elementos de facto agora descritos, integra uma resposta restritiva ao quesito 9º: neste quesito, elaborado com base no alegado pelos réus no artigo 45º da contestação, perguntava-se se "o espelho referido na alínea D) (da especificação) permite visualizar a linha cerca de 200 metros", ao que o tribunal respondeu que "o espelho referido permite visualizar a linha acerca de 200 metros para o lado de Viana do Castelo".

Como resulta de outros elementos probatórios, que não suscitam qualquer controvérsia, o acidente ocorreu quando o sinistrado, ao efectuar a travessia de uma passagem de nível sem guarda, foi colhido por uma composição ferroviária que circulava no sentido Valença-Viana do Castelo (n.º 1). A vítima provinha da D, cujos muros ladeando o caminho perpendicularmente à via férrea, limitavam o seu campo de visão para o lado de Valença, ou seja, para o lado de onde procedia o comboio. Por outro lado, conforme igualmente se demonstra, o espelho reflector existente do outro lado da via, que o sinistrado poderia ter utilizado para se certificar da inexistência de tráfego ferroviário, permitia visualizar a linha férrea para o lado de Viana do Castelo, isto é, para o lado para onde não existia, ou não se prova que existisse, qualquer limitação visual.

A decisão da Relação, ao considerar verificada uma contradição entre as respostas aos referidos quesitos 6º e 9º, parece assentar na ideia de que, de acordo com os critérios de normalidade, o espelho reflector deveria reflectir a imagem de qualquer circulação proveniente de Valença, por se esse o lado da via relativamente ao qual os utentes do caminho rural não dispunham de um suficiente campo visual.

No entanto, a contradição que poderá justificar, nos termos previstos no artigo 712º, n.º 4, do Código de Processo Civil, a anulação do julgamento, não poderá ser estabelecida com base numa mera aparência, mas antes em função da realidade empírica que está subjacente aos pontos de facto concretamente considerados. Na lógica das coisas, o espelho, para manter uma função útil, deveria ter sido orientado para o lado contrário, por forma a permitir a visualização de todo o espaço que, por força do obstáculo existente no local, ficava fora do campo natural de visão dos utentes: nada obsta, no entanto, que, por erro de colocação ou qualquer outra circunstância não apurada, se verificasse a situação inversa, tal como se encontra descrita na resposta ao quesito 9º.

Não é, pois, com base num mero princípio de normalidade que poderá declarar-se a existência de contradição, quando é certo que os factos naturais que integram a decisão de facto não são, em si, contraditórios, no sentido de que não envolvem uma falsidade lógica. Não é impossível que esses factos sucedam na vida real, e, por isso, eles não se negam um ao outro, antes poderão subsistir num dado momento como proposições verdadeiras.

Poderia afirmar-se, como sugerem os recorridos no seu recurso de apelação, que a resposta ao quesito 9º constitui um lapso manifesto, tendo pretendido o juiz dizer que o espelho reflector permitia visualizar a linha férrea para o lado de Valença. No entanto, na sentença de primeira instância, os factos são avaliados, para efeito da caracterização do sinistro como acidente de trabalho, nos precisos termos que constam da decisão de facto, tendo-se atribuído até especial relevo, nesse plano, à ausência de condições de segurança na travessia da via férrea, o que logo afasta qualquer possibilidade de um erro material, que facilmente poderia ser detectado no momento da prolacção da sentença. Por outro lado, não dispondo o tribunal superior de todos os elementos de prova que serviram de base à decisão de facto, não é possível agora a sua modificação.

5. Decisão

Em face do exposto, acordam em conceder a revista, revogar a decisão recorrida, e determinar a baixa do processo para que sejam conhecidas as demais questões suscitadas na apelação.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 20 de Maio de 2004
Fernandes Cadilha
Mário Pereira
Salreta Pereira