Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
725/04.1TBSSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRÉDIO CONFINANTE
DEMARCAÇÃO
MURO
ESTREMA
MEIOS DE PROVA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 05/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS/ DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - SENTENÇA - RECURSOS
Doutrina: - Gonzalez, José Alberto, Código Civil Anotado, vol. IV, 2011, p. 213-214.
- Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, p. 670.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC):- ARTIGOS 1353.º, 1354.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 660.º Nº2, 668º Nº1-C), 712.º N.º4, 716.º, 729.º, N.º3.
Sumário :
I - Os proprietários de prédios confinantes e contíguos estão reciprocamente obrigados a concorrer para a demarcação dos respectivos prédios – o que bem se compreende pois a determinação dos limites de um prédio tem implicações sobre os dos prédios vizinhos que com ele confinam – quer a linha divisória seja pacífica e indiscutida ou controvertida.
II - A demarcação tanto almeja a definição e fixação das estremas cujos limites não são conhecidos – ou pelos menos são discutíveis – como, simplesmente, a aposição de marcos, quando os limites não são disputados e apenas se pretende torná-los mais visíveis.
III - Assim, desde que se verifique a confinância de prédios pertencentes a diferentes proprietários e inexista linha divisória entre eles (seja porque ela, embora indiscutida, não está marcada, seja porque é objecto de controvérsia ou até porque desconhecem a sua localização) está aberta a porta para a actuação do direito de demarcação.
IV - Nos termos em que se encontra regulada a demarcação no art. 1354.º do CC – e uma vez verificados os pressupostos do exercício do respectivo direito – não há lugar à improcedência da acção, no sentido de desatender a pretensão de definir os limites dos prédios, devendo a mesma ser resolvida (i) pelos títulos de cada um dos proprietários; (ii) na sua impossibilidade, pela posse destes ou outros meios de prova; (iii) ou ainda dividindo a área em litígio por cada um em partes iguais.
V - Logo, o autor só tem que alegar e provar os factos constitutivos do direito à demarcação, a saber: a confinância dos prédios, a titularidade do respectivo direito de propriedade na pessoa do autor e do demandado e a inexistência, incerteza, controvérsia ou tão só desconhecimento sobre a localização da respectiva linha divisória.
VI - Assim, controvertida a localização da linha de demarcação, não pode deixar de ser delimitada uma área de terreno que pertence a um prédio ou a outro, consoante a localização que vier a prevalecer, de acordo com os critérios definidos pelo art. 1354.º, n.º 1, do CC, ou a ambos em partes iguais conforme prescrito pelo n.º 2 do mesmo normativo.
VII - Não obstante a restrição de poderes ao nível da matéria de facto, o STJ pode ordenar a baixa do processo para ampliação da matéria de facto quando entenda que tal se torna necessário para constituir base suficiente para a decisão de direito (art. 729.º, n.º 3, do CPC).
VIII - Sabida a versão do Réu quanto à localização no terreno da linha divisória, importa ampliar a matéria de facto por forma a apurar a mesma localização na versão do autor.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


RELATÓRIO

AA e mulher, BB são donos de um lote de terreno para construção urbana com a área de 11.081 m2, inscrito sob o art. 10.052 da freguesia do Castelo, Sesimbra e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o nº 000000000000.

Por sua vez, CC e marido DD, são também donos de um lote de terreno para construção urbana com a área de 5.965 m2, na mesma freguesia e concelho, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 11.027 e descrito na Conservatória sob o nº 0000000000, o qual confina, de nascente, com aquele.

Tendo estes CC e marido construído um muro, alegadamente separador dos dois prédios, entenderam aqueles AA e mulher, BB que não foram respeitadas as estremas que delimitam os prédios, pois que teria sido ocupada uma área de 481,66 m2 do seu prédio.

Intentaram, por isso, em 21-12-2009, acção ordinária contra os referidos CC e marido DD, pedindo a condenação destes a

a) Concorrer para a demarcação das estremas do seu prédio com o prédio dos autores;

b) Demolir a parte do muro construído na propriedade dos autores;

c) Restituir aos autores a área ocupada abusivamente.

Contestada a acção, na qual os RR defenderam, nomeadamente, a coincidência da localização do muro com a linha divisória dos prédios, prosseguiu a tramitação do processo, designadamente com a prolação de despacho saneador e discriminação dos factos assentes dos controvertidos, após o que se realizou audiência de julgamento finda a qual foi decidida a matéria de facto (por despacho, aliás, de imediato, oficiosamente corrigido quanto à decisão de um dos pontos de facto controvertidos).

         Encerrada a audiência, foram convocadas as partes e os peritos para esclarecimentos adicionais, após o que foi proferida sentença que

a) Determinou que se procedesse à demarcação dos seguintes prédios: lote de terreno n.º 6, para construção urbana, com a área de 11.081 m2, sito na freguesia do Castelo, em Sesimbra, a confrontar a norte e poente com EE e ribeiro, a sul com caminho público e a nascente com CC, descrito na Conservatória de Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 000000000000 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 10.052, e o prédio urbano sito no ......, freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra, composto de rés-do-chão com 4 divisões, cozinha, casa de banho e corredor, para habitação, anexo de casa de forno com uma despensa, com a área coberta de 100 m2 e logradouro com a área de 5.956 m2, a confrontar a norte com ribeiro, a sul com caminho público, a nascente com FF e a poente com ribeiro e com AA, descrito na Conservatória de Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 000000000000 da freguesia do Castelo e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 11027, através da linha divisória, na parte poente do prédio referido em segundo lugar, onde os mesmos confinam entre si, de forma a que se atribua ao primeiro a área de 11.081 m2, onde deverão ser cravados marcos;

b) Fixou a linha divisória entre o referido prédio dos autores e o dos réus, na parte confinante dos mesmos, tal como definida na planta de fls. 162 na linha recta identificada como "limite pelo lev. de......";

c) Condenou os réus a demolir a parte do muro construído na propriedade dos autores e a restituir aos autores a área ocupada com a implantação do referido muro.

Inconformados, apelaram os RR, para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Este, por acórdão de 27/09/2011, deliberou alterar a decisão de um dos pontos de facto da base instrutória (o do nº1) e, relativamente à fixação da matéria de facto provada relevante para a solução jurídica do pleito, escreveu-se nele:

“Em resultado da parcial procedência da impugnação do julgamento da matéria de facto, que leva à exclusão da matéria do quesito 1º de entre a provada, alinham-se os factos provados:

a) Encontra-se inscrita a favor dos autores a aquisição do lote de terreno n.º 6, para construção urbana, com a área de 11.081 m2, sito na freguesia do Castelo, em Sesimbra, descrito na Conservatória de Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 000000000000 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 10.052, por usucapião;

b) Encontra-se inscrita a favor dos réus a aquisição do prédio urbano sito no ......, freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra, composto de rés-do-chão com 4 divisões, cozinha, casa de banho e corredor, para habitação, anexo de casa de forno com urna despensa, com a área coberta de 100 m2, e logradouro com a área de 5.956 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 000000000000 da freguesia do Castelo e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 11.027, por usucapião;

c) O lote de terreno referido em b) confronta de poente com o lote de terreno referido em a);

d) Os réus construíram um muro em alvenaria;

e) Para a construção do muro referido em d) foi emitida pela Câmara Municipal de Sesimbra um alvará de licença de construção com o n.º00000000, de 23/2/ 2000;

f) Os autores interpelaram os réus para se absterem de ocupar a sua propriedade;

g) Os réus persistiram na sua conduta, recusando-se a aceitar as reclamações dos autores; 

h) Os réus iniciaram a construção do muro em alvenaria, referido em d), no ano de 2000”.

Seguidamente e depois da explanação da respectiva fundamentação, foi deliberada, como desfecho jurídico deste conflito, a improcedência da acção e a absolvição dos RR dos pedidos.

Agora inconformados, recorrem os AA revista para este STJ, pugnando pela revogação do acórdão recorrido, em alegações que rematam com as seguintes conclusões:

A) Recorrentes e recorridos são proprietários de dois prédios confinantes sitos na freguesia do ......, no concelho de Sesimbra, cuja linha divisória entre ambas não se encontra delimitada.

B) Por isso, os recorrentes intentaram esta ação no tribunal da comarca competente peticionando, no que agora interessa, que os ora recorridos fossem condenados a concorrer para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles, nos termos dos art.s 1353° e 1354º do C. Civil;

C) A sentença proferida nesta açao julgou procedentes os pedidos formulados e, entre outras coisas, determinou que os prédios dos autos fossem demarcados pela linha divisória entre o prédio dos recorrentes e o dos recorridos, na parte confinante dos mesmos, tal corno definida na planta de fls. 162 na linha reta identificada como limite pelo lev. de;

D) Interposto recurso desta sentença, a Relação veio a proferir acórdão revogatório da mesma por considerar, no que agora interessa, que não estavam apuradas as reais medições dos prédios;

E) A fundamentação expendida no acórdão aponta no sentido de o Tribunal ter considerado que os prédios são confinantes sem terem as estremas definidas, inexistindo, contudo, elementos seguros (medidas) que permitam efetuar a demarcaçao das rnesmas, dadas as discrepâncias que encontrou na prova pericial produzida nos autos;

F) Atenta tal fundamentação, mas tendo sido peticionada na ação a condenação dos recorridos a concorrerem para a demarcação, seria espectável que a decisão da Relação decidisse anular a sentença, nos termos do art. 712º nº 4 do C. P. Civil, mandando baixar os autos a fim de se apurarem as reais medidas dos prédios e a definir as estremas dos mesmos, em lugar de se limitar a absolver os então RR. dos pedidos ali formulados;

G) Nestas circunstâncias, verifica-se urna clara oposição no processo lógico entre os Fundamentos e a decisão, que leva à nulidade da mesma, nos termos do disposto nos arts. 668º nº 1 al c) e 716º nº 1, ambos do C. P. Civil;

H) A decisão absolutória levou a que ficasse por apreciar a questão da demarcação dos prédios dos autos, questão que foi submetida ao tribunal na ação intentada pelo recorrentes, podendo prefigurar-se a hipótese absurda das ditas estremas ficarem ad eternum por definir, caso a decisão transitasse em julgado, o que constituiria uma verdadeira situação de denegação de justiça;

I) O facto de o Tribunal ter decidido que não foi feita prova de que os recorridos ocuparam parte prédio dos recorrentes, não pode levar a que deixe de se pronunciar sobre o pedido feito pelos recorrentes, de que os recorridos sejam obrigados a demarcar a estrema do seu prédio que confina com o dos recorrentes;

J) Trata-se de uma omissão de pronúncia relativamente a uma questão que competia ser apreciada e decidida, omissão que conduz igualmente à nulidade da decisão, nos termos do disposto nos arts. 668º nº 1, al d) e 716º nº 1, ambos do C. P. Civil;

K) Para além do título do seu prédio, os recorrentes juntaram à petição inicial da açao um levantamento topográfico que deram por reproduzido naquela peça processual, no qual está perfeitamente assinalada aquela que, no seu entender, deve ser a linha divisória entre o seu prédio e o dos recorridos;

L) Na contestação da ação os RR. e ora recorridos também juntaram o título do prédio e outro levantamento topográfico, alegando que por ele concluíram que a estrema dos prédios foi demarcada em 'função do mesmo;

M) Deste modo, os autos contêm elementos suficientes para que se possa proceder à demarcação das estremas dos prédios em causa por qualquer dos modos previstos no art. 1354º do C. Civil;

N) Ao considerar que o interessado numa demarcação deve na petição inicial da açao descrever os factos que levem a proceder à demarcação por algum dos modos previstos no art. 1354º nºs 1 e 2 do C. Civil, o acórdão recorrido faz uma errónea interpretação desta norma legal;

O) Com efeito, nestas ações não se exige aos autores que aleguem e provem factos que, no seu conjunto, permitam identificar a linha divisória entre os prédios pela indicação precisa dos pontos por onde ela deve passar, porquanto o artigo 1354° do C. Civil, ao enunciar os critérios que hão-de presidir à demarcação dos prédios confinantes, em caso de litígio entre os proprietários, prevê precisamente a possibilidade de os interessados deixarem de indicar os pontos pelos quais, a seu ver, deve passar a linha divisória, estatuindo que, não sendo possível fazer a demarcação pelos títulos apresentados por cada um, nem atendendo à posse em que estejam os confinantes ou a outros meios de prova, deverá o litígio ser distribuído em partes iguais.

Concluindo, pedem a revogação do acórdão recorrido e a baixa dos autos à 1ª instância a fim de aí se apurarem as reais medidas dos prédios e de definam as respectivas estremas

Não foram apresentadas contra-alegações.

Remetidos os autos a este Tribunal, após a distribuição e exame preliminar, foram corridos os vistos.

Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.


FUNDAMENTAÇÃO

Como decorre das conclusões da alegação dos recorrentes, o objecto do recurso supõe o conhecimento das seguintes questões:


- Nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão;
- Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia sobre a questão da demarcação.
- Inviabilidade da improcedência da demarcação desde que estejam demonstrados a confinância e contiguidade dos prédios, a diversa titularidade do respectivo direito de propriedade e a inexistência de linha divisória.

            Recordando:
            A 1ª instância determinou a fixação da linha divisória entre dois prédios em pontos determinados do terreno, mas a Relação julgou improcedente a acção e absolveu os RR dos pedidos, fundamentalmente por os AA não haverem demonstrado a localização dessa linha divisória.
            Na revista que interpuseram, os AA sustentam a nulidade do acórdão por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 668º nº1-c) ex vi do art. 716º CPC).
            Segundo os recorrentes, a Relação, em vez de julgar improcedente a acção, deveria ter ordenado a baixa do processo para o apuramento da localização da linha divisória, através da medição da área dos prédios, ao abrigo do art. 712º nº4 CPC.
            Não lhe assiste, porém, razão.
            A oposição entre os fundamentos e a decisão é um vício lógico da decisão, por, na perspectiva do silogismo judiciário, a conclusão que a mesma encerra estar em contradição com as respectivas premissas; ou seja, segundo estas, a conclusão (decisão) deveria ser diversa da proferida.
            Não acontece tal no acórdão em apreço.
            Nele se ponderou que sobre os AA impendia o ónus de alegação da extensão e da localização dos limites materiais do seu prédio e, tendo fracassado nesse desempenho, a conclusão deveria ser no sentido da improcedência.
            Escreveu-se, a propósito, no acórdão recorrido:

“… o interessado na demarcação deve na petição inicial da acção descrever os factos que levem a proceder à demarcação por algum dos aludidos modos formulando o adequado pedido correspondente e se for caso disso, visto o disposto no artigo 469º, n.º 1, do Código de Processo Civil, apresentado em via subsidiária as sua pretensões correspondentes aos diferentes modos de proceder à demarcação.
       Sendo assim logo se constata que na petição inicial os autores não descrevem matéria de facto que leve a proceder à demarcação por algum dos modos prescritos artigo 1354º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, nem sequer formulam, em conclusão da petição inicial, qualquer pedido de demarcação porque não indicam quaisquer concretos e determinados pontos por onde deva passar a linha divisória.”

            Logo, entendendo-se competir aos AA o ónus de alegação e de prova da localização da linha divisória entre os prédios e nada se tendo apurado quanto a essa matéria, a solução, do ponto de vista lógico, deveria ser a improcedência.
Pelo que não há oposição entre os fundamentos e a decisão, improcedendo, portanto a arguida nulidade do acórdão recorrido.
            Escreve Lebre de Freitas:
“Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença”,

            E continua:
“Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (art. 193-2-b)”. (cfr. Código de Pr5ocesso Civil Anotado, Vol 2º, p. 670).

            Para o que ora nos interessa, dada a posição de princípio assumida no acórdão recorrido de que quem pede a demarcação deve indicar a localização da linha divisória, a falta de prova (e mesmo de alegação dessa concreta localização) acarreta, logicamente, a improcedência da acção.
            Como entendeu o acórdão recorrido.
            Logo, não se verifica a apontada contradição lógica entre os fundamentos e a decisão.
            Questão diversa é a do erro de julgamento por erro de interpretação ou por erro de aplicação da norma a que, adiante, nos referiremos.
            Por conseguinte, inexistindo a apontada oposição entre os fundamentos e a decisão, improcede a invocada nulidade do acórdão.

            Quanto à nulidade do acórdão por omissão de pronúncia:
            O acórdão é nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões que deveria   conhecer (omissão de pronúncia).
            Segundo os recorrentes, o acórdão recorrido enferma deste vício porquanto, com fundamento na falta de prova da localização da linha divisória, não se pronunciou sobre a questão da demarcação dos prédios.
            Também aqui lhe falece a razão.
            Desde que na sentença e no acórdão, devem ser apreciadas todas as questões suscitadas, salvo aquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela solução dada a outras (art. 660º nº2 e 716º nº1 CPC), a infracção de tais regras implica a nulidade da sentença ou do acórdão.
            Ora, como facilmente se alcança da respectiva leitura, a questão da demarcação dos prédios dos AA e dos RR é o tema nuclear do acórdão, o que, só por si, determina a improcedência da nulidade.
            É certo que a demarcação concreta através da localização e “marcação” no terreno, da linha divisória nos prédios em questão não foi decidida, mas tal aconteceu em decorrência lógica da posição de princípio assumida no acórdão.
            Constituirá, como se referiu, um erro de julgamento e não uma omissão de julgamento: o acórdão não deixou de apreciar…, decidiu (eventualmente) mal…mas não houve omissão de pronúncia.

            Passemos agora à questão seguinte: inviabilidade da improcedência da demarcação desde que esteja demonstrados a confinância e contiguidade dos prédios, a diversa titularidade do respectivo direito de propriedade e a inexistência de linha divisória:
            Prescreve o art. 1353º do CC que o proprietário pode obrigar os donos de prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles.
            Significa isto que os proprietários de prédios confinantes e contíguos estão reciprocamente obrigados a concorrer – isto é, a colaborarem - para a demarcação dos respectivos prédios, entendendo-se por esta a delimitação da extensão horizontal da área sobre a qual exercem o domínio.
            O que bem se compreende, pois a determinação dos limites de um prédio tem implicações sobre os dos prédios vizinhos que com ele confinam.
            A linha divisória entre os prédios confinantes pode ser, entre os respectivos proprietários, pacífica e indiscutida ou controvertida.
            Num caso e no outro, assiste a qualquer deles o direito de exigir do outro que concorra, isto é, colabore na demarcação das estremas dos prédios, ou seja, na primeira hipótese (inexistência de litígio), “marcar” no terreno essa linha, essa fronteira entre os prédios, com a aposição de sinais ou marcos que revelem e mostrem os limites dos prédios – o que pode ser feito judicialmente ou extrajudicialmente.
            Mas na segunda hipótese (controvérsia sobre a linha divisória), por via de regra, o litígio sobre a localização dos limites carece de ser previamente resolvido; quer dizer: antes da “marcação” dos sinais no terreno (v.g., aposição de marcos) há que decidir os locais da respectiva colocação para, através da respectiva ligação (ideal ou material) definirem os confins dos respectivos prédios confinantes.
            A linha divisória entre estes pode mesmo ser desconhecida: os prédios são confinantes e contíguos, pertencem a proprietários diferentes mas ambos (ou só um deles) desconhecem a localização desses limites; o exercício do direito de demarcação soluciona este problema.
            O concurso recíproco dos proprietários confinantes visa fazer que cada um exiba os títulos ou as provas que legitimam a extensão do respectivo domínio.
            É por isso que o direito de demarcação é tido como um direito de natureza pessoal – e, consequentemente, a acção de demarcação é uma acção pessoal - pois que trata, tão-só, de obrigar o proprietário confinante a participar na investigação e marcação dos limites do seu prédio; logo, a uma prestação de natureza pessoal e não real porque não está em causa a propriedade nem o seu desmembramento.
            O direito de demarcação – a cujo exercício, até à Reforma Processual de 1995/96, correspondia um processo especial cuja regulamentação processual foi revogada (acção de arbitramento) – é actualmente exercido judicialmente através de uma acção de processo comum.
            Mas fundamentalmente, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos – confinância dos prédios, proprietários diferentes e inexistência de sinais reveladores da separação entre os prédios – a demarcação, agora exercida em processo comum, visa delimitar a fronteira entre os prédios.
            A demarcação, portanto, tanto almeja a definição e fixação das estremas dos prédios cujos limites não são conhecidos, ou pelo menos, são discutíveis (a actio finium regundorum do Direito Romano) como simplesmente a aposição de marcos (supondo-se neste caso, portanto, que os limites entre os prédios são indisputados e apenas se pretende torná-los mais visíveis) (cfr. Gonzalez, José Alberto, Código Civil Anotado, vol. IV, 2011, p. 213-214).
            Desde que, portanto, se verifique a confinância de prédios pertencentes a proprietários diferentes e inexista linha divisória entre eles (seja porque, indiscutida entre os proprietários confinantes, não está marcada, sinalizada, no terreno, seja porque ela (isto é a sua localização) é objecto de controvérsia entre eles, seja porque eles pura e simplesmente desconhecem a sua localização) está aberta a porta para a actuação do direito de demarcação.
            O modo de realizar a demarcação está regulamentado no art. 1354º CC, em termos de subsidiariedade sucessiva:
1 - em primeira linha, pelos títulos de cada um (se determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário);
2 - na falta ou insuficiência de títulos, pela posse ou pelo que resultar de outros meios de prova;
3 – se a demarcação não puder realizar-se pelos modos indicados em 1 e 2, far-se-à então, distribuindo o terreno em litígio, por partes iguais (art. 1354º nº1 e 2 - desinteressando para o nosso caso a previsão do nº3, CC).

            Como já se referiu supra, entendeu-se no acórdão recorrido que:

“… o interessado na demarcação deve na petição inicial da acção descrever os factos que levem a proceder à demarcação por algum dos aludidos modos formulando o adequado pedido correspondente e se for caso disso, visto o disposto no artigo 469º, n.º 1, do Código de Processo Civil, apresentado em via subsidiária as sua pretensões correspondentes aos diferentes modos de proceder à demarcação.

       Sendo assim logo se constata que na petição inicial os autores não descrevem matéria de facto que leve a proceder à demarcação por algum dos modos prescritos artigo 1354º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, nem sequer formulam, em conclusão da petição inicial, qualquer pedido de demarcação porque não indicam quaisquer concretos e determinados pontos por onde deva passar a linha divisória, …”.

  Temos dúvidas quanto ao acerto destas afirmações.

         Com efeito, nos termos em que se encontra regulada a demarcação no art. 1354º CC, e uma vez verificados os pressupostos do exercício do respectivo direito, não há lugar à improcedência da acção, no sentido de desatender a pretensão de definir os limites dos prédios.

         É que a verificação destes pressupostos determina necessariamente uma área cujos limites divisórios são, no mínimo, desconhecidos dos proprietários confinantes.

Ora, se a questão da divisão dessa área (que, in extremis, pode coincidir com a totalidade das áreas dos prédios) não puder ser resolvida pelos títulos de cada um, será resolvida pela posse destes ou por outros meios de prova e se, mesmo assim, continuar não poder ser resolvida, a área em litígio divide-se, por cada um em partes iguais.

Logo, o autor só tem que alegar e provar os factos constitutivos do direito à demarcação, a saber: a confinância de prédios, a titularidade do respectivo direito de propriedade na pessoa dele e do demandado e a inexistência, incerteza, controvérsia ou tão só desconhecimento sobre a (localização da) respectiva linha divisória.

É certo que, normalmente, em caso de litígio e discussão sobre esta, dificilmente deixará de alegar os factos pertinentes que, segundo a sua versão, fixam os limites em determinada linha (ideal ou material).

Por outras palavras, analisando-se o direito à demarcação na faculdade de “marcar” os limites da extensão do prédio, os factos de que resulta a fixação deles em determinados pontos do terreno que funcionarão, assim, como limites ou fronteiras ao exercício da sua soberania dominial.

E foi isso que os AA fizeram no art. 8º da sua petição inicial: depois de alegarem que as estremas do seu prédio e do Réu não se encontravam demarcadas, afirmam que os RR construíram um muro – que, segundo a contestação, deveria funcionar como limite separador dos prédios - no seu (dos AA) prédio, ocupando uma área de 481,55 m2 destes.

Por conseguinte, face às posições assumidas pelas partes nos articulados, o litigio circunscreve-se à localização da linha de separação entre os prédios do qual resulta que a porção de terreno compreendida entre essas linhas de separação defendidas por cada uma das partes é litigiosa quanto à titularidade da respectiva propriedade.

Assim, se esta questão não puder ser solucionada pelo critério enunciado no nº1 do art. 1354º CC, essa área de terreno é dividida em partes iguais, entre os proprietários em conflito.

Por conseguinte, controvertida a localização da linha de demarcação, não pode deixar de ser delimitada uma área de terreno que pertence a um prédio ou ao outro, consoante a localização que vier a prevalecer, de acordo com os títulos, na falta ou insuficiência destes, de acordo com a posse que tiver sido exercida sobre essa área ou de acordo com o que resultar de outros meios de prova; se o problema no puder ser resolvido por qualquer destes critérios, resta a solução dita “salomónica” – que, diga-se, de salomónica não tem nada, já que a essência da justiça de Salomão não se baseou na “divisão”… - da divisão em partes iguais.

Eis porque não acompanhamos a solução a que chegou o acórdão recorrido de recusar a demarcação por os AA não haverem alegado nem demonstrado a localização da linha divisória entre os prédios.

É que se bem que em termos não muito bem explícitos, tendo afirmado a construção, pelos RR, de muro no seu prédio e, com isso, a ocupação de uma área dele de 481,55 m2, também afirmaram que a linha divisória entre os dois prédios passava por pontos diversos – o que foi representado na planta topográfica que juntaram como doc nº3 da pi

O que, em boa verdade, também foi feito pelos RR a sustentar a sua versão.

Sabendo-se a localização do muro – que corresponde à linha divisora, na versão dos RR – não se indagou se a linha divisória passava por outros pontos do terreno representados na planta topográfica junta pelos AA; por outras palavras, não foi dada oportunidade a estes de fazer a prova do que alegara, ou seja, de que a fronteira entre os dois prédios passava, no terreno, pela linha representada na planta topográfica.

Daí os problemas com que, posteriormente, se defrontou o MMo Juiz da 1ª instância e que tentou resolver através de prestação de esclarecimentos adicionais pelos peritos, após o encerramento da audiência de julgamento.

         Assim, conhecendo-se já a localização da linha divisória na versão dos RR – que, como se disse, coincide com o muro por eles construído – importa averiguar, no terreno, qual a área em litígio, necessariamente compreendida entre o traçado do muro (linha divisória na versão dos RR) e da localização da linha divisória (na versão dos AA).

         É certo que os AA acataram a fixação da linha divisória definida pela sentença de 1ª instância; todavia, não pode olvidar-se o que a esse respeito – que se prende com a matéria de facto e relativamente à qual as instâncias são soberanas e que este STJ tem de acatar – se escreveu no acórdão recorrido, quanto à inexistência de prova quanto a essa localização:

De todo o modo a decisão que, na sequência da conferência realizada depois do encerramento da audiência de discussão e julgamento, determinou dever proceder-se à demarcação dos prédios, na parte poente do prédio dos réus, através de linha divisória na linha recta identificada como «limite pelo lev. de......», tal como definida na planta de fls. 162, e de forma a que se atribua ao prédio dos autores a área de 11.081 m2, infringe, visto o disposto no artigo 659º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o disposto artigo 1354º do Código Civil.

Com efeito, nada na matéria de facto provada permite concluir que essa linha divisória está conforme com os títulos, ou resulta, por falta ou insuficiência de títulos, de posse ou de outros meios de prova, ou que resulte de distribuição de terreno em partes iguais.

Aliás, tendo-se julgado provado que com a construção do muro os réus não respeitaram a estrema, necessariamente na parte em que os prédios são confinantes, então cumpria concluir que a estrema estava definida e que não cumpria estabelecê-la judicialmente.

De resto perante a matéria de facto não está provado que a área real de todo o terreno onde se encontram os prédios diverge ou coincide com a área dos prédios como consta do registo, como nem sequer está provada a inexistência da linha divisória entre os prédios” (sublinhado nosso)

          Será essa porção de terreno, compreendida entre os limites preconizados por cada uma das partes, que será atribuída ao Autor ou ao Réu, de acordo com os critérios definidos pelo art. 1354º nº1 CC, ou a ambos, em partes iguais, conforme prescrito pelo nº2 do mesmo normativo.

         Não obstante a restrição de poderes ao nível da matéria de facto, o STJ pode ordenar a baixa do processo para ampliar a matéria de facto quando entenda que tal se torne necessário para constituir base suficiente para a decisão de direito (art. 729º nº3 CPC).

         E como flui do exposto, sabida a localização, no terreno, da linha divisória coincidente com o muro (na versão do Réu) importa ampliar a matéria de facto por forma a apurar a mesma localização na versão do Autor, aplicando, depois, à área assim delimitada, os critérios definidores da titularidade do domínio previstos no art. 1354º nº1 e 2 CC.


ACÓRDÃO

Nesta conformidade, acorda-se neste STJ em ordenar a baixa dos autos ao tribunal recorrido para a mencionada ampliação da matéria de facto seguida de prolação de sentença, aplicando o Direito aos factos apurados.

         Custas pelo vencido a final


Lisboa e STJ, 10 de Maio de 2012

Os Conselheiros

 


Fernando Bento (Relator)
João Trindade
Tavares de Paiva