Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2237/20.7T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO FACULTATIVO
RISCO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
ÓNUS DA PROVA
DANO
NEXO DE CAUSALIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A circunstância de ter sido dado como provado que o veículo do autor ficou enfaixado contra uma instalação existente na berma da estrada significa que a dita viatura, depois de percorrer, em movimento e dinamicamente, determinado percurso, acabou imobilizada naquelas exactas condições junto do referido obstáculo físico, contra o qual embateu.
II - Assim, na situação sub judice aconteceu, independentemente das suas concretas causas e das possíveis motivações do seu condutor, um sinistro rodoviário, tal como o conceito poderá ser genericamente definido: qualquer incidente na via pública que envolva, pelo menos, um veículo motorizado ou velocípede e que seja susceptível de provocar danos.
III - Cobrindo o presente contrato de seguro o risco de “danos causados em virtude de choque, colisão ou capotamento” não podem subsistir dúvidas de que o acontecimento naturalístico consistente no facto da viatura segura se enfaixar, indo de encontro a um reservatório de água localizado na berma da estrada, aí se imobilizando, constitui uma situação correspondente ao conceito de “choque” para efeitos de concretização do sinistro coberto pelo seguro.
IV - Questão substancialmente diversa é a de saber se tal evento ocorreu casual, súbita e inadvertidamente no âmbito da circulação normal do veículo ou, diferentemente, na sequência de acção premeditada ou dolosa do seu condutor que terá provocado programadamente o embate entre a viatura e o dito obstáculo.
V - No primeiro caso, temos um sinistro rodoviário, à partida coberto pelo risco do seguro de danos próprios; no segundo, estamos perante um evento que embora se inclua típica e absctractamente no sinistro coberto, acaba por integrar uma causa de exclusão dessa mesma cobertura, em consonância com o disposto no art. 46.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado e constante da Lei n.º 72/2008, de 16-04, bem como na cláusula 40.ª, n.º 1, al. c), das condições gerais da apólice.
VI - O dolo do condutor na produção do sinistro aparentemente coberto, constituindo o preenchimento de uma cláusula de exclusão da cobertura do seguro, constitui um facto cujo ónus de prova compete à entidade seguradora, enquanto facto impeditivo do direito exercido pelo segurado, nos termos gerais do art. 342.º, n.º 2, do CC.
VII - Da verificação de um sinistro rodoviário - que efectivamente sucedeu in casu - não resulta, por si só, a demonstração dos danos provocados, em termos causais, como consequência directa e adequada desse evento.
VIII - A produção causal dos danos em causa, que foram discriminadamente alegados pelo A., constitui elemento constitutivo do seu direito subjectivo, competindo-lhe, como tal, a sua prova em juízo, nos termos gerais do art. 342.º, n.º 1, do CC.
IX - Não se provando nos autos a produção causal dos danos por virtude do embate do veículo no obstáculo físico situado na berma da estrada, mas apenas que a viatura ostentava danos de origem não determinada, falha um dos pressupostos da responsabilidade da segurada - o nexo de causalidade entre a verificação do facto e o prejuízo daí adveniente -, o que necessariamente determina a improcedência da pretensão do demandante e a confirmação do acórdão recorrido.
X - Quanto à fixação da matéria de facto carece o STJ da necessária competência para alterar o elenco dos factos dados como provados e não provados, conforme resulta expressamente do disposto no art. 662.º, n.º 4, do CPC, bem como do preceituado nos arts. 674.º, n.º 3, 1.ª parte, e 683.º, n.º 2, do mesmo diploma, sendo o veredicto da 2.ª instância definitivo (salvo situações excepcionais - casos de violação do direito probatório material, necessidade de ampliação da decisão de facto ou contradições que inviabilizem a decisão jurídica do pleito - que não se verificam in casu).
Decisão Texto Integral:



 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
Instaurou AA a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “OCIDENTAL - COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS, S.A.”.
Essencialmente alegou:
É dono e utilizador do veículo de marca e modelo ...”, de matrícula n.º ..-SJ-.. (doravante apenas designado por SJ), tendo-o comprado, em 27 de Fevereiro de 2019, pelo preço de € 42.200,00.
No dia 29 de Março de 2019, pelas 22.45 horas, conduzia o SJ na Rua ..., na freguesia ..., ..., concelho ..., no sentido ....
O acidente ocorreu por causas desconhecidas, que originaram o despiste do SJ em plena circulação.
Após o acidente, o SJ foi transportado para as instalações da “...”, em ..., tendo ele sido conduzido para o “Centro Hospitalar ...”, onde foi submetido a vários exames médicos.
O SJ tinha seguro de danos próprios, contratualizados com a Ré através da apólice n.º ...13, com cobertura para a situação de choque, colisão e capotamento, veículo de substituição e danos corporais do condutor.
Ocorreu um conjunto de danos de carácter patrimonial como consequência directa e necessária do referido acidente.
A Ré não assumiu a responsabilidade pela verificação do acidente nem cumpriu a obrigação contratual de o indemnizar, tendo-lhe comunicado que declinava a responsabilidade pela liquidação do sinistro.
Concluiu pedindo que Ré seja condenada a pagar-lhe:
A. A quantia de € 32 009,00, decorrente e necessária para a reparação do ...-SJ-..., e decorrente da estimativa elaborada pela ... de ..., com juros calculados à taxa de 8 % ao ano, desde a data de citação até efectivo pagamento pela Ré;
B. A quantia de € 1 950,00, despendida por si no aluguer de veículos de substituição, acrescido de juros à taxa legal de 8 % ao ano;
C. A quantia de € 58,00, paga por si por aluguer de táxi, com juros calculados à taxa de 8 % ao ano;
D. A quantia de € 153,75, paga à ... Service pela peritagem efectuada ao ...-SJ-..., acrescida de juros à taxa legal de 8 % ao ano;
E. A quantia diária de € 60,00, calculados sobre 393 dias já decorridos e que nesta data já ascendem à quantia de € 23 580,00, e os mais que decorrerão até à Seguradora o indemnizar e compensar pelos prejuízos sofridos no sinistro, acrescida de juros, calculados à taxa legal de 8 % ao ano, até real e efectivo pagamento.
A Ré veio contestar, aceitando a celebração e vigência do contrato de seguro invocado, aduzindo, no entanto, que está contratualizada uma franquia no valor de € 840,00 e que não estão garantidos os danos relativos a privação de uso e despesas com a realização de peritagem.
Impugnou a demais factualidade alegada, contrapondo - com particular relevo – que a averiguação por si levada a cabo concluiu que o acidente descrito na Petição Inicial não teve lugar.
Mais alega que o veículo do Autor apenas tem um valor real de cerca de € 28.000,00, verificando-se uma situação de sobresseguro e, por inerência e ainda que se conclua pela sua obrigação de indemnizar, que se verifica uma situação de perda total.
Conclui pedindo que a presente acção seja julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvida do pedido.
Realizou-se a audiência final, tendo sido proferida decisão que julgou improcedente a presente acção.
Apresentado recurso de apelação, o mesmo veio a ser julgado improcedente pelo acórdão do Tribunal da Relação ..., datado de 14 de Setembro de 2021.
Veio o A. interpor recurso de revista excepcional, com as seguintes conclusões:
A. O Acórdão ora impugnado é nulo nos termos do nº 1 al.c) do art. 672º do C. P. Civil.
Na parte dispositiva, o Acórdão decidiu “julgar improcedente o recurso do Autor/Recorrente, confirmando-se a sentença recorrida”;
A fls…., e sob a rubrica III – “Da modificabilidade da decisão de facto”, pelos motivos aí expostos, foi deferido o recurso quanto ao julgamento dos factos do nº15 da sentença, e nessa medida alterada/revogada a sentença.
E concluiu o Acórdão:
“Pela parcial procedência deste fundamento do recurso”.
A sentença não pode ser a final confirmada, nos termos em que o foi.
Face a estas decisões opostas e contraditórias do mesmo Acórdão, forma-se uma ambiguidade que torna a decisão ininteligível; até pelas repercussões que tem no carácter a alcance da decisão;
B. O Acórdão em recurso acolheu o decidido, em parte, pela 1ª instância.
Descreveu-se e julgou-se provado o acidente que o recorrente teve nas circunstâncias de tempo e lugar, quando conduzia o seu veículo SJ.
Foram julgados provados os danos que o veículo sofreu, aliás por peritagem da recorrida;
C. A decisão do Acórdão da Relação, não considerou haver acidente de viação.
A decisão de 1ª instância, que aquele acolheu e incorporou, decidiu que não se provou a falta de intencionalidade, ou nos seus próprios termos:
“Que se tratou de um verdadeiro embate acidental”.
E esta falta de intencionalidade, que tornaria o embate acidental, resultou da falta de prova dos “documentos e alegações da Ré, na contestação”, assim o refere a sentença.
D. O Acórdão distribuiu para o recorrente o ónus de fazer prova de que o “embate no reservatório da água” ou “o contacto com o reservatório da água”, ou ainda o “enfaixe com a frente do SJ num reservatório de água”, tudo expressões utilizadas na sentença de 1ª instância, não foi intencional ou premeditado, mas antes acidental.
São questões do foro intelectual e cognitivo do condutor do SJ, que claramente as expôs na audiência de julgamento.
Não pode utilizar outros meios de prova, sobre o que se passa na sua cabeça.
Por isso mesmo, é que o ónus da prova desses eventuais factos, se alegados, cabe à recorrida, nos termos do nº 2 do art. 342º do C. Civil.
E. Tem de se presumir, pela “própria natureza das coisas”, a natureza acidental do choque e colisão do SJ, contra o reservatório da água, conforme decidiu o Acórdão do STJ que se junta.
À Seguradora incumbia o ónus de alegação e de prova de factos descaracterizadores do acidente – vide mesmo Acórdão.
A falta desta prova, conclui e caracteriza o acidente julgado provado nos autos, como um verdadeiro acidente de viação.
F. Em contrato de seguro automóvel com cobertura facultativa de danos próprios, causados entre outros, por choque, a seguradora responde perante o seu segurado por quaisquer danos causados pelo embate do veículo, em circulação, em qualquer corpo fixo, desde que não se prova qualquer actuação dolosa do segurado (ou de pessoas por quem ele responda) na eclosão de tal embate – Acórdão do STJ que se junta.
G. O Acórdão impugnado, claramente violou estabelecido nos arts.405º, 406º, 341º e 342º do Código Civil, e 615º nº 1 alínea c) do C.P.C.
Pelos motivos expostos e pelos demais que Vªs. Exªs. doutamente suprirão, deve julgar-se nulo o Acórdão, nos termos da al. c) nº 1 do art.615º do C.P.C., com as legais consequências.
Em qualquer caso, revogar-se o Acórdão recorrido, e substituí-lo por outro que condene a recorrida a indemnizar o ora recorrente pelos prejuízos sofridos, julgados provados, e já liquidados no Acórdão, por causa do acidente de viação ocorrido.
Contra-alegou a R. pugnando pela improcedência do recurso de revista nos seguintes termos:
Da análise dos factos provados tal como consta da cópia do acórdão fundamento junta a estes autos, o veículo ficou imobilizado depois de embater no pinheiro.
Pelo que se demonstrou que o veículo se encontrava em circulação, não tendo a seguradora logrado demonstrar que o embate do veículo foi intencionalmente provocado.
Nos presentes autos, o recorrente não demonstrou que conduzia o veículo, isto é, que o automóvel se encontrava a circular e que, por via dessa circulação, se foi enfaixar com a sua frente num reservatório de água.
Dos factos provados e não provados resulta à evidência que a situação jurídica em apreciação nos presentes autos é substancialmente diferente daquela que foi julgada no acórdão, cuja cópia se juntou.
Contrariamente ao defendido pelo recorrente, inexiste qualquer contradição na interpretação e aplicação das normas jurídicas atinentes à responsabilidade civil e à distribuição do ónus probatório.
Para que seja admitido o recurso de revista excepcional é essencial verificar-se uma contradição jurisprudencial relevante, o que pressupõe sempre a identidade da questão de direito sobre que incidiu o acórdão em oposição, que tem pressuposta a identidade dos respetivos pressupostos de facto e a oposição emergente de decisões expressas e não apenas implícitas.
No caso presente, não se verifica identidade de pressupostos de facto, pelo que também por este motivo impõe-se a rejeição do presente recurso de revista excecional.
Remetidos os autos à Formação, nos termos e para os efeitos do artigo 672º, nº 3, do Código de Processo Civil, foi proferido por esta acórdão, datado de 31 de Março de 2022, que admitiu a presente revista excepcional com fundamento na verificação da alínea c) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil.
 
II – FACTOS PROVADOS.
1) O Autor tem inscrito a seu favor o veículo de matrícula ...-SJ-..., marca ..., modelo ....
2) Foi emitida uma factura-recibo pela firma R... UNIPESSOAL LDA., em 27 de Fevereiro de 2019, referente a venda do aludido veículo com o valor de € 42.000,00.
3) Em 29 de Março de 2019, pelas 22.45h, na Rua ..., ... e ..., ..., encontrando-se o piso seco, o veículo ...-SJ-... estava enfaixado com a sua frente num reservatório de água, com a roda dianteira do lado esquerdo a ocupar em 70 cm a faixa de rodagem e a roda traseira a ocupar 90 cm da mesma faixa.
4) O reservatório de água situa-se a cerca de 80 cm do limite da faixa de rodagem do lado direito, atento sentido de marcha do veículo ...-SJ-...
5) Os Bombeiros Voluntários ..., que passaram no local no âmbito de outro serviço, chamaram outra corporação de Bombeiros e o Autor acabou por ser conduzido para o Centro Hospitalar ... onde lhe foi feito o diagnóstico de contusão da anca e do tronco, fez Rx e Tc cervical sem alterações e teve alta.
6) Com data de 16 de Abril de 2019, foi estimada pela R. a reparação do veículo no valor de 33.745,19 € (IVA incluído).
7) Após diversa troca de correspondência, a R. não assumiu a responsabilidade pela verificação do sinistro e em 7 de Julho de 2020 comunicou que: “Após realização das devidas averiguações, concluímos que os danos do veículo terão sido produzidos em condições dinâmicas e físicas diferentes das participadas. Entre outros factos, os danos não são enquadráveis com a forma como alegado que o sinistro ocorreu. Em face do exposto, declinamos a responsabilidade pela liquidação do sinistro em causa.
8) A GNR – Destacamento territorial de ..., deslocou-se ao local e elaborou a respectiva participação de acidente, que ficou registada com o nº 500000702/19….
9) O SJ foi transportado pela firma “R.…” para as instalações e oficinas da ..., em ....
10)No âmbito de contrato de seguro automóvel de danos próprios, titulado pela apólice n.º ...13, o Autor havia contratado com a Ré Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. a cobertura facultativa de Choque, Colisão e Capotamento, com o capital seguro de 42.000,00 €, sujeita a uma franquia contratual correspondente a € 840,00.
11)De acordo com a Cláusula 40, alínea k), das Condições Gerais do Contrato de Seguro que «(…) ficam excluídas da Apólice, no âmbito do seguro automóvel facultativo, os danos: (…) que consistam em lucros cessantes ou perda de benefícios, rendimentos ou resultados sofridos pelos Tomador do Seguro ou pelo Segurado, em virtude de privação de uso, despesas de substituição do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais, sem prejuízo, porém, dos direitos do Segurado que derivem das coberturas de “Privação de Uso”, “Veículo de Substituição” ou “Veículo de Substituição em caso de avaria” quando hajam sido contratadas».
12) Na Condição Especial 110 Veículo de Substituição consta: «1. Quando seja contratada, a presente Condição Especial garante ao Segurado, em caso de privação forçada do uso do veículo seguro em consequência de sinistro cujos danos sejam garantidos pelas coberturas efectivamente contratadas, de responsabilidade civil ou de danos próprios do veículo seguro, a utilização de um veículo de aluguer ligeiro de passageiros, de classe equivalente à do veículo seguro e até ao limite de 2000 c. c. de cilindrada, por um período máximo de 30 dias por sinistro e por anuidade. 2. Compete ao Segurador definir o locador e o veículo, tendo em consideração as características do veículo seguro. (…) 4. Para além das situações previstas na Cláusula 40.ª das Condições Gerais da Apólice ficam ainda excluídos: (…) h) os pedidos de viatura de substituição (…) que não tenham sido previamente solicitados, autorizados e organizados pelo Segurador; i) os períodos de imobilização já decorridos e não comunicados nos termos da presente Condição Especial».
13)No dia 30 de Março de 2019, o Autor pagou aos “Táxis F.…” a quantia de 58,00 Euros, para se deslocar do Hospital ... para a sua residência em ....
14)Em 05 de Abril de 2019, o Autor pagou à ... Service a quantia de 153,75 Euros, pela peritagem efectuada ao ...-SJ-...
15)O valor de mercado do veículo SJ estaria entre os € 35.750,00 e os € 42.000,00.
 
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1 – Arguição de nulidade do acórdão recorrido com fundamento na verificação da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (fundamentos em oposição com a decisão ou ambiguidade ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível).
2 - Conceito de sinistro rodoviário para efeitos da cobertura de seguro facultativo (danos próprios). Ónus de prova relativamente à actuação dolosa do segurado na produção do evento que constitui o sinistro coberto. Falta de prova dos danos verificados na viatura que tivessem sido verdadeiramente causais relativamente ao sinistro. Limites do conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça em matéria de facto.
Passemos à sua análise:
1 – Arguição de nulidade do acórdão recorrido com fundamento na verificação da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (fundamentos em oposição com a decisão ou ambiguidade ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível).
Alegou o recorrente:
Na parte dispositiva, o acórdão decidiu:
“julgar improcedente o recurso do Autor/Recorrente, confirmando-se a sentença recorrida”.
A fls…, e sob a rubrica III – “Da modificabilidade da decisão de facto”, pelos motivos aí expostos, foi deferido o recurso quanto ao julgamento dos factos do nº15 da sentença, e nessa medida alterada/revogada a sentença.
E concluiu o Acórdão:
“Pela parcial procedência deste fundamento do recurso”.
A sentença não pode ser a final confirmada, nos termos em que o foi.
Face a estas decisões opostas e contraditórias do mesmo Acórdão, forma-se uma ambiguidade que torna a decisão ininteligível; até pelas repercussões que tem no carácter a alcance da decisão;
Apreciando:
É manifesto que inexiste a invocada nulidade do acórdão recorrido que se prende, em qualquer circunstância, com a eventual verificação de um vício de natureza estritamente formal da decisão, não se confundindo com a discordância quanto ao mérito do decidido (erro de julgamento).
A alteração da decisão de facto a que o Tribunal da Relação procedeu, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil, não implica necessariamente a modificação do enquadramento e solução jurídica do pleito.
Estamos perante dois planos de análise jurídica perfeitamente autónomos e racionalmente cindíveis que não se contradizem, nem conflituam no plano formal.
A circunstância de haver sido considerado como provado no Tribunal da Relação, na sequência da impugnação apresentada nos termos do artigo 640º, do Código de Processo Civil, um facto que havia sido dado como não provado na 1ª instância (ou vice-versa) não interfere obrigatoriamente com o resultado final resultante do enquadramento jurídico que teve lugar com base no novo quadro factual assim fixado.
O acórdão recorrido é perfeitamente compreensível, não padecendo de qualquer tipo de ilogicidade, ambiguidade ou ininteligibilidade, existindo plena compatibilidade formal entre os fundamentos, de facto e de direito, e a decisão final com base nos mesmos extraída.
A lei não impõe que no dispositivo do acórdão conste a alteração da decisão de facto que tenha porventura ocorrido, mas apenas, de forma clara e completa, o sentido final conferido à pretensão apresentada e julgada em termos da sua procedência ou improcedência (totais ou parciais).
Foi o que sucedeu na situação sub judice, nenhum reparo havendo a dirigir ao decidido neste tocante.
(Em geral sobre a natureza da nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, vide, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2020 (relatora Maria João Vaz Tomé), proferido no processo nº 148/14.4TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Março de 2022 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), proferido no processo nº 1084/12.4TBPTL.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2022 (relatora Rosa Tching), proferido no processo nº 3504/19.8T8LRS.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
Improcede, por conseguinte e sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos, a presente arguição de nulidade que fora apresentada com base no disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
2 - Conceito de sinistro rodoviário para efeitos da cobertura de seguro facultativo (danos próprios). Ónus de prova relativamente à actuação dolosa do segurado na produção do evento que constitui o sinistro coberto. Falta de prova dos danos verificados na viatura que tivessem sido verdadeiramente causais relativamente ao sinistro. Limites do conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça em matéria de facto.
Concluída a actividade probatória que teve lugar nos autos, ficou definitivamente fixada a seguinte factualidade subjacente ao invocado sinistro rodoviário:
“Em 29 de Março de 2019, pelas 22.45h, na Rua ..., ... e ..., ..., encontrando-se o piso seco, o veículo ...-SJ-... estava enfaixado com a sua frente num reservatório de água, com a roda dianteira do lado esquerdo a ocupar em 70 cm a faixa de rodagem e a roda traseira a ocupar 90 cm da mesma faixa”.
“O reservatório de água situa-se a cerca de 80 cm do limite da faixa de rodagem do lado direito, atento sentido de marcha do veículo ...-SJ-...”.
Vejamos:
A primeira questão jurídica que se coloca na presente revista é a de saber se esta realidade, enquanto acontecimento naturalístico assim sintecticamente descrito, suporta, ou não, a sua qualificação como sinistro rodoviário para efeitos de cobertura do contrato de seguro em causa.
Escreveu-se, sobre esta matéria, em 1ª instância:
“(...) apenas se apurou que o veículo do A. estava enfaixado no depósito de água, não se tendo apurado que tal aconteceu por um acto súbito e fortuito, independentemente da vontade do seu condutor, nem que os danos encontrados no veículo tenham sido resultado (pelo menos exclusivo) dessa circunstância em que se encontrava o veículo.
Verifica-se, pois, que a cobertura de risco e choque, colisão ou capotamento contratada não se aplica ao caso concreto, devido à falta de prova da ocorrência de evento imprevisto causador de danos e da extensão desses danos daí decorrentes”.
No mesmo sentido, afirmou-se no acórdão recorrido:
“Nas acções de indemnização por acidente de viação fundadas na ocorrência de um acidente e na existência de um contrato de seguro com cobertura de danos próprios cabe ao respectivo autor a prova da verificação deste sinistro e da vigência do contrato de seguro, com as cláusulas respectivas.
Um sinistro rodoviário é pacificamente entendido como um acontecimento fortuito, súbito e anormal ocorrido na via pública em consequência da circulação rodoviária, encontrando-se ou não o veículo sinistrado em movimento.
O ónus da prova traduz-se, para a parte a quem compete, no dever de fornecer a prova do facto visado, sob pena de sofrer as desvantajosas consequências da sua falta.
Da análise dos presentes autos vemos que a única matéria relevante que resultou provada da discussão da causa foi a existência e validade do contrato de seguro celebrado com a Ré e, depois, a existência de um conjunto de danos, com causa indeterminada.
Ou seja, não se provou - sequer - ter ocorrido qualquer acidente de viação nas circunstâncias de tempo e lugar invocadas.
Temos, assim, que a matéria dada como provada é manifestamente inconsequente para obter o efeito condenatório pretendido pelo Autor.
Nestes termos, uma vez que o Autor não conseguiu provar a matéria constitutiva das suas pretensões, é manifesto que a presente acção terá de improceder, ficando prejudicada a apreciação dos demais fundamentos de recurso”.
Apreciando:
A circunstância de ter sido dado como provado que o veículo do A. ficou enfaixado contra uma instalação existente na berma da estrada significa que a dita viatura, depois de percorrer, em movimento e dinamicamente, determinado percurso, acabou imobilizada naquelas exactas condições junto do referido obstáculo físico, contra o qual embateu.
Ou seja, aconteceu na situação sub judice, independentemente das suas concretas causas e das possíveis motivações do seu condutor, um sinistro rodoviário, tal como o conceito poderá ser genericamente definido: qualquer incidente na via pública que envolva, pelo menos, um veículo motorizado ou velocípede e que seja susceptível de provocar danos.
Conforme se escreve a este propósito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 2013 (relator Fernando Bento), proferido no processo nº 2212/09.2TBACB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt:
“O acidente é um acontecimento imprevisto, fortuito, súbito e independente da vontade humana, que desencadeia danos.
Mas, em matéria de seguros, o acidente deverá também configurar um sinistro juridicamente relevante e para isso terá que concretizar o risco dano abstractamente previsto que tanto pode ser uma lesão corporal, um dano em coisas ou num património, provocado por acção súbita, fortuita, imprevista e violenta de uma causa exterior, independente da vontade do segurado”.
(Precisamente no mesmo sentido, vide também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Julho de 2020 (relator Ferreira Lopes), proferido no processo nº 12543/16.0T8LSB.L1.S1, publicado in ECL.PT.STJ, no qual se concluiu que
“(...) em contrato de seguro automóvel, com cobertura de danos próprios, causado entre outros, por choque, a seguradora responde perante o segurado pelos danos causados pelo embate do veículo num perfil fixo de pedra que separa via do passeio, salvo se provar qualquer actuação dolosa do segurado (ou de pessoa por quem ele responde) na eclosão do acidente”;
Ainda sobre esta temática e numa abordagem algo diversa, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2005 (relator Bettencourt de Faria), proferido no processo nº 856/05-2), onde se concluiu não ter ficado provado o acidente coberto pelo seguro (evento este directamente questionado e respondido negativamente pelo tribunal, sem reclamação do interessado), tendo-se afirmado no aresto que não assiste razão ao A. quando alega que “no caso de seguro de danos na própria viatura o segurado não tem que alegar que o acidente ocorreu por causa da circulação da viatura”.).
Conforme refere José Engrácia Antunes in “O contrato de seguro na LCS de 2008”, artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, nº 3-4, Julho-Dezembro, 2009, a página 850:
“O sinistro será a verificação, total ou parcial, do evento ou eventos compreendidos no risco coberto pelo contrato de seguro. O conceito jussegurador do sinistro reporta-se assim genericamente à ocorrência daquele facto ou conjunto de factos que, desencadeando a garantia contratual de cobertura de risco, origina para o segurador o dever fundamental de realizar a prestação convencionado”.
Cobrindo o presente contrato de seguro o risco de “danos causados em virtude de choque, colisão ou capotamento”, não podem subsistir dúvidas de que o acontecimento naturalístico consistente no facto de a viatura segura se enfaixar, indo de encontro a um reservatório de água localizado na berma da estrada e aí se imobilizando, constitui obviamente uma situação correspondente ao conceito de “choque” constante da previsão normativa ínsita no contrato para efeitos de concretização do sinistro coberto pelo seguro.
Ou seja, tal veículo deslocando-se em contínuo movimento embateu contra o dito obstáculo físico que interrompeu a sua marcha, paralisando-o no local, o que por si só terá que ser considerado como um verdadeiro sinistro rodoviário.
Questão substancialmente diversa é a de saber se tal evento ocorreu casual, súbita e inadvertidamente no âmbito da circulação normal do veículo ou, diferentemente, na sequência de acção premedita ou dolosa do seu condutor no sentido da programada produção do embate entre a viatura e o obstáculo, o qual poderia inclusivamente, no mero domínio das hipóteses, nem se encontrar no interior do veículo nessa ocasião.
No primeiro caso, temos um sinistro rodoviário à partida coberto pelo risco do contrato de seguro de danos próprios.
No segundo, estamos perante um evento que embora se inclua típica e absctratamente no sinistro coberto, acaba por integrar uma causa de exclusão dessa mesma cobertura, em consonância com o disposto no artigo 46º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado e constante da Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, bem como na cláusula 40ª, nº 1, alínea c), das condições gerais da apólice.
Tudo está, portanto, em determinar a quem cabe o ónus de prova de que este sinistro rodoviário aconteceu por acção dolosa do seu condutor, não se tratando assim de uma utilização comum da viatura através da sua circulação normal na via pública.
Ora, esta circunstância – o dolo do condutor na produção do sinistro aparentemente coberto – constitui o preenchimento de uma cláusula de exclusão de cobertura do seguro, in casu, prevista na cláusula 40ª, nº 1, alínea c), das condições gerais da apólice.
Logo, o respectivo ónus de prova compete naturalmente à entidade seguradora, enquanto facto impeditivo o direito exercido pelo segurado, nos termos gerais do artigo 342º, nº 2, do Código Civil.
(vide, neste sentido, José Vasques in “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, Almedina 2020, 4ª edição, páginas 264 a 266).
Neste tocante, assiste efectivamente razão ao recorrente.
Porém, e num segundo plano, deparamos com a questão jurídica diversa que consiste em apurar quais os danos concretos que resultaram directa e causalmente deste embate (sinistro rodoviário), bem como a sua integração no âmbito de cobertura do seguro contratualizado.
E sobre este ponto, escreveu-se no acórdão recorrido:
“Da análise dos presentes autos vemos que a única matéria relevante que resultou provada da discussão da causa foi a existência e validade do contrato de seguro celebrado com a Ré e, depois, a existência de um conjunto de danos, com causa indeterminada”.
Ora, da verificação de um sinistro rodoviário (um veículo que se enfaixou num obstáculo existente na berma da estrada, aí se imobilizando) – que efectivamente sucedeu in casu – não resulta, por si só, a demonstração dos danos provocados, em termos causais, como consequência adequada daquele embate.
Os estragos que o veículo apresenta poderiam porventura ser preexistentes à eclosão do presente sinistro rodoviário (sendo hipoteticamente resultado de um outro sinistro ocorrido anteriormente).
Logo, esse concreto nexo de causalidade teria sempre e em qualquer caso que ser efectivamente demonstrado em juízo por parte de quem o alega, enquanto verdadeiro elemento constitutivo do direito subjectivo de que se arroga.
Acontece que, na situação sub judice, os danos em causa foram discriminadamente alegados pelo A. – a quem competia o respectivo ónus de prova nos termos gerais do artigo 342º, nº 1, do Código Civil –, mas não resultaram provados nos autos (apenas se provando que a viatura apresentava danos que tiveram origem não determinada).
Pelo que falha manifestamente um dos pressupostos da responsabilidade da seguradora – o nexo de causalidade entre a verificação do facto e o prejuízo daí adveniente –, o que necessariamente determina a improcedência da pretensão do demandante.
Isto é, segundo as instâncias, não se realizou prova de que o dito embate fosse a verdadeira origem dos estragos que o veículo apresentava e cujo valor foi reclamado na presente acção.
E no que respeita à fixação da matéria de facto carece o Supremo Tribunal de Justiça da necessária competência para alterar o elenco dos factos dados como provados e não provados, conforme resulta expressamente do disposto no artigo 662º, nº 4, do Código de Processo Civil, bem como do preceituado nos artigos 674º, nº 3, 1ª parte, e 683º, nº 2, do mesmo diploma, sendo o veredicto da 2ª instância definitivo (salvo situações excepcionais – casos de violação do direito probatório material, necessidade de ampliação da decisão de facto ou contradições que inviabilizem a decisão jurídica do pleito - que não se verificam in casu).
O que, só por si, face à ausência de prova de que foi aquele concreto embate no reservatório de água que originou causalmente os danos que a viatura ostentava, determina inevitavelmente a confirmação do acórdão recorrido, uma vez que o demandante não demonstrou, como lhe competia, todos pressupostos do seu direito indemnizatório decorrente do descrito sinistro rodoviário.
Pelo que se nega a revista.

IV – DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) negar a revista,

Custas pelo recorrente.



Lisboa, 24 de Maio de 2022.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Resende

Ana Paula Boularot



V - Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.