Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2841/03.8TCSNT.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: BOA FÉ
BOA FÉ OBJECTIVA
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
FOLHA DE FÉRIAS
DECLARAÇÃO INEXACTA
Apenso:
Data do Acordão: 05/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO
Doutrina: - Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2006, pág. 120.
- José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, pág. 110.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 227.º, 239.º, 762.º, N.º2.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 429.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA Nº10/2001.
Sumário :

1. O conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos: no sentido de boa fé objectiva, enquanto norma de conduta , ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efectivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral ; e no sentido de boa fé subjectiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adoptar um comportamento conforme ao direito e respectivas exigências éticas.

2. Em litígio visando a efectivação da responsabilidade civil do tomador de seguro, originada pela prestação culposa, aquando da participação de sinistro, de declarações inexactas - decisivas para apurar da cobertura efectiva do risco - o que essencialmente releva é o plano da boa fé objectiva, sendo necessário determinar, por preenchimento e densificação da referida cláusula geral, se o comportamento do recorrente consubstanciado nos factos provados, viola ou não os ditames da boa fé objectiva, tal como devem ser concretizados no âmbito da específica relação contratual – contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de prémio variável, mediante inclusão dos trabalhadores nas folhas de férias remetidas à seguradora – independentemente da existência de dolo ou intenção de prejudicar por parte do tomador de seguro.

3. Ao incluir nas folhas de salários remetidas à seguradora alguém que nunca fora seu trabalhador e a quem nunca havia pago qualquer salário – como resulta cabalmente do reconhecimento confessório constante da carta, remetida à seguradora no âmbito do procedimento de averiguações posterior ao momento em que esta havia assumido inicialmente as suas responsabilidades, com base na declaração inverídica apresentada logo após o acidente laboral – violou o tomador de seguro um fundamental dever de exactidão e verdade, decorrente do princípio da boa fé objectiva no cumprimento do contrato de seguro, devendo, consequentemente, responder civilmente pelos danos causados culposamente  à contraparte.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

   1.  A Companhia de Seguros AA, SA., intentou contra os RR. BB e CC acção de condenação, na forma ordinária, pedindo a respectiva condenação na quantia de € 53.727,12, com juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, alegando que celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com o 1º R., que lhe comunicou a ocorrência de um sinistro com um dos seus trabalhadores, procedendo, por isso, a A. ao pagamento da referida quantia; porém, na sequência de posteriores averiguações, apurou que, afinal, o trabalhador/sinistrado estava ao serviço do 2º R., subempreiteiro na obra em curso, pelo que o risco não estava coberto pela apólice, devendo-se o pagamento efectuado decisivamente ao facto de os RR terem falseado os factos, simulando a existência de uma relação laboral do 1º R. com o sinistrado, ao tê-lo incluído na respectiva folha de férias.

   Os RR. contestaram, impugnando a prestação de informações falsas aquando da participação do sinistro, alegando a existência de um acordo entre eles que atribuiria ao 1º R. a incumbência de suportar os custos com seguros do pessoal ao serviço da obra e imputando a negligência da A. a realização dos pagamentos efectuados.

   Foi , a final, proferida sentença que julgou a acção procedente.

   Para assim decidir, o Tribunal de 1ª instância considerou o 1º Réu responsável pelo prejuízo causado à A. seguradora, por ter violado o dever de informação e de lealdade que tinha para com ela, ao comunicar um acidente de trabalho de quem não era seu trabalhador, levando-a assim a fazer pagamentos indevidos por esse acidente. Quanto ao 2º Réu, considerou-o igualmente responsável, por ser a entidade empregadora do sinistrado e, nessa medida, responsável pelos prejuízos decorrentes daquele acidente de trabalho, uma vez que não havia celebrado o contrato de seguro a que estava legalmente obrigado.

   Inconformado, recorreu da condenação apenas o 1º R., tendo, porém, a Relação negado provimento à apelação.

   Para tal, considerou a Relação que. O 1º Réu usou de má fé e deslealdade para com a seguradora na participação do sinistro, afirmando:

Diga-se em primeiro lugar que, se o Tribunal deu como não provado o quesito 3º da base instrutória (agiu o primeiro R. com intenção de prejudicar a A. ao realizar a participação … ?), não deu como provado o oposto, isto é, que o primeiro R. agiu sem intenção de prejudicar a A. ao realizar a participação, ou que não quis prejudicar a A.

Mas, principalmente, não pode retirar-se daí que o 1º R. não agiu de má fé, que não usou de lealdade e informação para com  seguradora ao participar-lhe o acidente.  Se agiu ou não de má fé, se informou a seguradora com lealdade ao participar o acidente, é uma conclusão que só pode retirar-se da análise da conduta do 1º Réu e do conteúdo da participação que ele fez.

Ora, a este respeito, deve ter-se em conta que o 1º Réu começou por participar em 2000.11.08 um acidente sofrido por um trabalhador de outrem, por alguém que não era um seu trabalhador, omitindo da participação esse dado essencial e designando-o como “subempreiteiro / tarefeiro”, sem mencionar que se tratava de um empregado do subempreiteiro – facto 2.  E melhor induzindo em erro a seguradora sobre esse dado essencial, incluiu na folha de férias (pagamentos)  esse trabalhador a quem nada tinha a pagar, uma vez que ele era empregado do subempreiteiro – facto 3. Só bastante mais tarde, em 2002.04.16, isto é, depois de a seguradora ter pago as indemnizações correspondentes ao sinistro, é que o 1º Réu, acabou por esclarecer a situação, na carta de fls. 97, em que reconheceu que o sinistrado não era seu empregado, nunca trabalhara para si, nunca recebera de si qualquer salário, já que o patrão dele era o 2º R – facto 10. Isto, note-se, apesar de, como vimos, o ter mencionado na folha de férias de Novembro de 2000 como tendo trabalhado dois dias (o sinistro ocorreu em 3 de Novembro).

De todos estes factos e condutas, só pode concluir-se que o recorrente, por má fé, não esclareceu, em tempo oportuno a seguradora, só o tendo feito demasiado tarde, quando ela já havia pago as indemnizações referentes ao sinistro. Esse pagamento só foi possível pelo convencimento da Autora de que estaria a pagar uma indemnização por um acidente sofrido por um empregado do 1º Réu, nada tendo este feito para esclarecer o equívoco que ele próprio criou.

Houve assim má fé do 1º Réu, por não ter usado de lealdade e informação verídica na participação que lhe fez do acidente.

  Considerou, por outro lado, a Relação que O Tribunal a quo não incorreu em apreciação arbitrária da prova ao concluir pela má fé do 1º Réu; nem em nulidade de sentença:

Não houve qualquer arbitrariedade na apreciação da prova.

O não provado do quesito 3º (intenção de prejudicar a seguradora) não está em contradição com a conclusão de que houve má fé, deslealdade ou (des)informação na participação do sinistro.  A intenção de prejudicar é um facto subjectivo, que se apura por meios probatórios. A má fé ou deslealdade na conduta é uma conclusão, uma interpretação que o tribunal faz da conduta de alguém, conclusão que o tribunal só pode tirar ponderando todo o circunstancialismo e conjunto de condutas de que toma conhecimento.

E da ponderação de todo o circunstancialismo e da conduta do 1º Réu, conforme feita em 4.1, só pode concluir-se que agiu de má fé, com deslealdade, ao fazer a participação do acidente, participação que não lhe cabia fazer, levando a seguradora a supor que o sinistrado estava abrangido pelo seguro.

O Tribunal a quo retirou daí esta conclusão, como esta Relação também agora a retira, por um juízo de certeza e não por um juízo de probabilidade. Daquele circunstancialismo e daquelas atitudes não pode retirar-se outra conclusão – circunstancialismo e atitudes que, aliás, o recorrente não pôs em causa porque são os constantes dos nºs 1. a 13. dos factos provados.

Não há contradição entre esta conclusão e o facto não provado do 3º quesito. E, portanto, não há arbitrariedade na apreciação da prova; como também não há nulidade de sentença.

   2. Novamente inconformado, interpôs o R. a presente revista, que encerra com as longas conclusões que se transcrevem:

   1.° Vem o presente Recurso de Revista, interposto do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual julgou o recurso de Apelação interposto pelo primeiro Réu e Recorrente, BB improcedente, confirmando, subsequentemente, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.a Instância;

2.° Ora, é pois deste douto Acórdão que o Primeiro Réu, recorre por discordar em absoluto com os critérios, interpretação e sucinta e lapidar fundamentação vertida no mesmo, porquanto enferma de erro notório e grosseiro no que tange à apreciação da prova, colidindo a referida apreciação com as mais elementares regras da experiência comum e o pensamento legislativo, resultando daí, como tal, uma deficiente e errada aplicação e interpretação do direito, para além de existir uma notória violação interpretativa quer da Lei substantiva quer da Lei processual, situações configuradoras de causas de nulidade do douto Acórdão, conforme o disposto no artigo 668.°, n.° 1, alíneas b), e c), e n.° 4, em conjugação com o artigo 158.°, n.° 1 e 2, 716.°, 721.°, n.°s 1 e 2, e ainda artigo 722.°, n.° 1 e 2, todos do CPC, cujas se deixam aqui expressamente arguidas para todos os efeitos legais;

3.° Isto porque, a análise e consequente decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, salvo o devido e merecido respeito, que muito é, não deriva de um estrito enquadramento legal e processual e de uma ponderada e correcta interpretação da Lei e, consequente e necessária, subssunção dos factos ao Direito ao caso concreto aplicáveis, conforme se demonstrará;

4.° Com efeito, o douto Acórdão, em sindicância, salvo melhor e mais douta opinião, faz uma erradíssima interpretação quer da Lei substantiva quer da Lei processual relativamente à que ião vertida no quesito 3.°, da matéria de facto dada como não provada, pois que, hão ficou provado que o Recorrente tivesse agido com a intenção de prejudicar a Autora, quando procedeu à participação do sinistro, conforme se alude na alínea B) dos factos assentes da douta decisão em primeira instância, tal como resulta da base instrutória elaborada a fls., 130 e 131, dos autos e da respectiva resposta aos quesitos efectuado por aquele Tribunal, bem como do douto acórdão, que ora se sindica;

5.° Matériaesta que foi plenamente aceite e assente quer pelo Tribunal de 1.a Instância, quer pelo Tribunal ora recorrido, quer pela própria Autora que, emmomento algum, apresentou qualquer tipo de reclamação dessa decisão, isto é, que não ficou provado que o recorrente tivesse agido com a intenção de prejudicar a Autora quando procedeu à participação do sinistro;

6.° Ora, assente e aceite que ficou a supra referida factualidade, não pode o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, deixar de extrair daí as devidas consequências legais, aplicando com isenção e imparcialidade o direito, quer substantivo quer processual aos factos, interpretando e aplicando correctamente o direito, situação que no caso concreto, de forma manifesta e atentatória não aconteceu;

7.° Na verdade, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa,extravasou as suas competências previstas n: Lei e na Constituição, porquanto apesar de aceitar sem questionar sequer a sobredita factualidade, quando chega ao momento de aplicar a lei aos factos, entra em notórias contradições, por via da erradíssima interpretação quer literal, quer teleológica, que faz relativamente ao disposto nos artigos 8.°, 9.°, n.° 2 e 3, 227.°, 253.°, 341.°, 342.°, e 612.°, n.° 2, do Código Civil, ao arrepio da Lei, quer substantiva quer processual, sem qualquer sustentação legal ou fundamentação bastante, conforme artigo 158.° e 655.°, do CPC, entre outros normativos legais aplicáveis;

8.° Isto é, salvo o devido e merecido respeito, o Tribunal ora recorrido, não pode por um lado aceitar a factualidade, de que não se provou que o Recorrente tivesse agido com a intenção de prejudicar a Autora e, por outro lado, fazer uma interpretação no sentido de, ainda assim, o Recorrente agiu de má fé, o que se sindica e repudia com veemência, por ser uma imputação totalmente infundamentada, injusta, ilegal p completamente absurda, na óptica do Recorrente;

9.°Não se antolhando entender ou sequer compreender a imputação que o douto acórdão, ora recorrido, faz à conduta do Recorrente, posição que, com o devido respeito e melhor e mais douta opinião, é sintomática da total e notória desorientação e contradição de que o douto acórdão está eivado, pois que não tendo ficando provado que houve por parte do Recorrente intenção (dolo) de prejudicar a Autora cai imediatamente por terra a tese alicerçada neste douto acórdão, por contradição insanável e insuperável da mesma, como se deixará demonstrado;

10.° Ora, nos termos do disposto no artigo 253.°, n.° 1, do Código Civil, entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro uma qualquer pessoa, por outro lado, nos termos do disposto no artigo 612.°, n.° 2 do Código civil, entende-se por má fé, a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor;

11.° Transportando-se, para o caso concreto, as supra referidas definições legais, facilmente se percebe que para que possa existir má fé, tem que haver directa e necessariamente uma intenção (dolo) e/ou consciência dessa conduta, o que significa que não ficando provado que o Recorrente tivesse a intenção de prejudicar a Autora, conforme decisão proferida relativamente ao quesito 3.°, da base instrutória, fica irremediavelmente afastada a questão da má fé;

12.° Tanto mais que, que estas duas situações, não se coadunam, sendo mesmo antagónicas quer do ponto de vista teórico quer do ponto de vista prático, motivo pelo qual, não antolha o Recorrente compreender a notória e inequívoca contradição insanável, que infundada e ilegalmente criou, para de forma errada e numa interpretação que não tem qualquer sustentação factual e legal, imputar ao Recorrente uma conduta de má fé, cuja não resulta da matéria de facto dada como provada, o que só por si, demonstra a violação frontal dos aludidos preceitos legais, bem como do disposto nos artigos 8.°, 9.°, n.° 2 e 3, 341.°, 342.°, do Código Civil e ainda artigos 668.°, alínea b) e c), e n.° 3 e 4, 716.°, 721.° e 722.°, do CPC, cuja é configuradora de causa de nulidade do douto acórdão recorrido, que aqui se deixa expressamente arguida para todos os efeitos legais;

13.° Sendo certo que, dos 13 contos da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de Primeira Instância, sancionada positivamente pelo Tribunal, ora recorrido, não resulta provado, em lado nenhum, que o Recorrente, BB, tivesse falseado qualquer tipo de informação à Autora, pelo contrário, da prova documental carreada para os autos, ressalta com inequívoca transparência que o Recorrente, sempre prestou as informações correctas, verdadeiras e fidedignas à Autora, nunca faltou à verdade muito menos falseou as informações que prestou;

14.° Sendo certo que, se a Autora pagou alguma importância que não devia ter pago, por não lhe ser exigível, tal situação apenas se deve, tão somente, a manifesta negligência da Autora na análise que fez dos documentos que lhe foram enviados pelo Recorrente, eventualmente; pelos seus funcionários encarregues da referidaanálise, tanto mais que existe nos presentes autos suporte documental inequívoco, qual seja, o documento n.° 4, junto pela Autora com a sua petição inicial, no campo 19, ponto 2, que demonstra com clarividência, que as informações que foram prestadas pelo Recorrente à Autora, são fidedignas e verdadeiras, as quais identificam o sinistrado como trabalhador por conta própria ou empregado, para mais abaixo indicar subempreiteiro (tarefeiro), com a profissão de pedreiro (ponto 21, do referido documento);

15.° Sendo certo que se dúvidas existissem por parte da Autora relativamente a alguma ou algumas informações prestadas pelo ora Recorrente no que concerne a esta matéria, a mesma deveria procurar, com diligência e zelo, dirimi-las com o Recorrente, o qual lhe teria prestado com toda a lealdade, como é seu timbre, os esclarecimentos que lhe fossem solicitadas, conforme se poderá constatar através da forma como o Recorrente respondeu à Autora através das cartas que lhe dirigiu e que se encontram nos autos;

16.° Ora, se existiu negligência, falta de diligência e zelo ou até, alguma atitude menos própria, a mesma só poderá ser exclusivamente assacada à Autora ou eventualmente aos seus funcionários que directamente fizeram a análise e tratamento deste sinistro, sendo certo que o Recorrente, em momento algum faltou à verdade ou viciou sequer as informações que prestou à Autora, e se participou o sinistro, foi porque estava, como aliás ainda hoje continua a estar, plenamente convencido da obrigatoriedade de o fazer, não fazendo qualquer sentido que tenha violado qualquer dever de lealdade ou informação inerentes ao princípio da boa fé contratual, como de forma absolutamente contraditória e errada o douto acórdão, ora em sindicância, lhe imputa;

17.° Na verdade, tal como resultou provado do depoimento prestado pela Testemunha do Primeiro Réu, este contratou verbalmente os serviços do Segundo Réu, CC o qual se comprometeu a efectuar a subempreitada de mão de obra de uma parte dos trabalhos da moradia onde ocorreu o sinistro, ficando acordado, que os encargos com os seguros do pessoal ocorreriam por conta do ora Recorrente, o que constitui uma prática corrente na construção civil, e mesmo em algumas obras públicas de menor dimensão, sendo aliás, com base no aludido acordo realizado entre ambos que o Recorrente inscreveu o sinistrado na sua folha de seguros, convicto de estar a agir de forma correcta;

18.° E, a sua convicção de que assim era, é que em momento algum deixou de prestar toda a informação com correcção e lealdade, sendo certo que, tal facto nãolevantou quaisquer dúvidas à Autora, até porque é prática corrente no sector da construção civil, que os empreiteiros assumam os encargos com os seguros do pessoal ao serviço do subempreiteiro, única forma, aliás, de assegurar a sua protecção efectiva em caso de sinistro;

19.° Sendo, por tal facto obrigação da Autora a assunção do risco proveniente do contrato de seguro que subscreveu com o Primeiro Réu, carecendo de fundamento legal o pedido que contra ele foi deduzido pela Autora e erradamente decidido no douto acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa;

20.° Motivo pelo qual, o douto acórdão, ora em sindicância, ao ter decidido e interpretado como erradamente decidiu e interpretou, coloca em crise a sua própria douta decisão, uma vez que a factualidade dada como assente e provada encontra-se em manifesta e notória contradição com a sua própria decisão, situações que consubstanciam causas de nulidade do acórdão, nos termos das alíneas b) e c), do n.° 1, n.° 3 e 4, do artigo 668.°, do CPC, 716.°, 721.° e 722.°, todos do CPC, cujas nulidades se deixam aqui expressamente arguidas para todos os efeitos legais;

21.° Para além do mais, tendo em consideração todos os meios probatórios existentes nos autos, em momento algum, ficou plena e cabalmente demonstrado, como era legalmente exigível è; Autora, nos termos do artigo 341.° e 342.°, ambos do Código Civil, provar e demonstrar que o Recorrente, agiu de má fé, quando lhe prestou as informações, tal cor o ao douto acórdão em sindicância, situação que manifestamente não aconteceu;

22.° Apresentando o douto acórdão uma sucinta e lapidar argumentação, quando imputa de forma injustificada, injusta, parcial e infundamentada, através de exigível demonstração legal, quais as provas concretas e objectivas que valorizou para concluir que o Recorrente agiu com má fé, situação que configura objectivamente um grave erro grosseiro e uma notória violação frontal dos artigos 158.° e 655.°, n.° 1 e 2, 716.°, 721.° e 722.°, todos do CPC, cujas também elas se deixam expressamente arguidas para todos os efeitos legais;

23.°Nesta senda forçosamente ter-se-à que concluir que o douto acórdão, assimproferido, enferma de erro grosseiro quer na análise que faz da factualidade,concretamente o quesito 3.°,] quer na sua errada interpretação, criando umacontradição insanável, quando pretendeu  explicar o  inexplicável,  porquantodificilmente se compreenderá e aceite, quer à luz dos critérios legais quer da lógica quer da interpretação literal ou teleológica, a ideia de que uma pessoa que não tem a intenção de prejudicar ninguém, ainda assim, possa estar de má fé, raciocínio que é, de todo, inaceitável;

24.° Concluindo, de forma atentatória, contra o disposto no artigo 8.°, 9.°, n.° 2 e 3, 253.°, 341.°, 342.°, e 612.°, n. 2, todos do Código Civil, porquanto não se tendo provado a intenção (dolo), no Recorrente em prejudicar a Autora, não se compreende nem se aceita que, o Tribunal da Relação de Lisboa, tenha o entendimento, que teve nesta matéria, quando o requisito da má fé previsto no artigo 612.°, n.° 2, do Código Civil, entre outros, define-a como sendo a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, e o douto acórdão não diz concretamente de forma fundamentada quais os factos que valorizou positivamente para chegar a esta conclusão;

24.°Ora não estando provado o dolo, também não fica provado a consciência doprejuízo que o acto cause ao credor, logo sendo esta uma matéria que carece deprova inequívoca por parte da Autora, e tal como se deixou referido supra, estásujeita aos ditames e regras previstas nos artigos 341.° , 342.° e 612.°, n.° 2, todosdo Código Civil, não se pode concluir ou fazer sequer a interpretação que oTribunal da Relação de Lisboa, de forma atentatória, abusiva, ilegal einjustificadamente fez;

25.°Motivo pelo qual, o douto acórdão assim proferido, enferma de vicissitudes, por violação da lei substantiva e processual, por ter cometido inegável erro grosseiro quer na apreciação das provas, quer na interpretação ilegal e abusiva que fez, quer ainda da insanável contradição que criou, com ofensa frontal ao disposto nos artigos 8.°, 9.°, n.° 2 e 3, 253.°, 341.°, 342.°, 612.°, n.° 2, do Código Civil, para além do disposto nos artigos 158.°, 653.°, n.° 2, 655.°, n.° 1 e 2, 659.°, n.° 2 e 3, 664.°, 668.°, n.° 1, alíneas, b), c), e n.° 3 e 4, 716.°, 721.° e 722, todos dos CPC, cujas violações consubstanciam causas de nulidade do douto acórdão, ora em sindicância, que aqui se deixam expressamente arguidas para todos os efeitos legais;

26.° Sendo que, o Tribunal da Relação, tal como os demais, devem obediência estrita à Lei e à Constituição! sendo certo que, tendo em conta as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente, não se confundindo, de modo algum, com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova em confronto, pois que a prova livre temcomo pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, bem como uma ausência total de dúvida, uma vez que esta sempre aproveitaria ao aqui Recorrente;

27.° É pois, dentro destes pressupostos que o julgador se deve colocar ao apreciar livremente a prova e não outra, ficando-lhe vedada a possibilidade de dar como provados factos em plena contradição com a prova produzida em audiência de julgamento, ou ainda, em completa contradição com as comuns regras da experiência, sendo que, no caso concreto, não imputa à Autora, a falta de diligência e zelo, consubstanciada em pura negligência, dos seus funcionários, mas imputa errada, ilegal, e infundadamente um comportamento do Recorrente contrário às regras da boa fé, quando não ficou provado que o Recorrente tivesse intenção de prejudicar a Autora, violando, dessa forma, os artigos 8.°, 9.°, n.° 2 e 3, 253.°, 341.°, 342.° e 612.°, n.° 2, todos do Código Civil, artigo 158.°, 653.°, n.° 2, 655.°, n.° 1 e 2, 659.°, n.° 2 e 3, 664.°, 668.°, n.° 1, alíneas, b), c), e n.° 3 e 4, 716.°, 721.° e 722, todos dos CPC, e ainda os artigos 13.°, 202.°, n.° 1 e 2, 203.°, e 205.°, todos da CRP;

28.° A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância à lei e às regias da experiência comum utilizando como método de avaliação a aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo. (Ac. do Tribunal Constitucional n.° 1165/96, de 19 de Novembro; BMJ, 461, 93). A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser nunca puramente subjectiva ou emotiva e, por isso, há-de ser fundamentada, racionalmente objectivada e logicamente motivada, de forma a susceptibilizar controlo. (Ac. STJ, de 21 de Janeiro de 1999, processon.° 1191/98 - 3.°; SASTJ, n.° 27, 78), resultando do exposto, e dos autos que o douto acórdão, ora em sindicância, proferido Pelo Tribunal da Relação de Lisboa, violou as normas contidas nos artigos 8.°, 9.°, n.° 2 e 3, 253.°, 341.°, 342.° e 612.°, n.° 2, todos do Código Civil, artigo 158.°, 653.°, n.° 2, 655.°, n.° 1 e 2, 659.°, n.° 2 e 3, 664.°, 668.°, n.° 1, alíneas, b), c), e n.° 3 e 4, e ainda os artigos 13.°, 202.°, n.° 1 e 2, 203.°, e 205.°, todos da CRP, ao ter feito uma apreciação discricionária da prova apreciada, o que lhe está vedado por lei, arguindo-se aqui expressa e ad cautelam, a inconstitucionalidade interpretativa das supra e expressas referidas normas jurídicas, com as devidas consequências legais, tendo-se como correcta a interpretação, nos termos dos, normativos constitucionais, do Código Civil e do CPC supra citados, que a matéria dada como provada não pode estar em frontal contradição com a prova produzida na audiência de julgamento, nem com os critérios legais de interpretação quer seja literal ou teleológica, para além de que,quem alega um facto cabe-lhe o ónus legal de o provar em juízo, sob pena de que a discricionariedade na apreciação da prova e aplicação do direito, ao caso concreto, se transforme em arbitrariedade, em contravenção com o preceituado nas referidas normas;

29.° O que significa que, ao Recorrente não lhe pode ser assacada quaisquer responsabilidades no que concerne ao pagamento dos valores dispendidos pela Autora, uma vez que em momento algum o Recorrente, deixou de observar as regras da boa fé e de prestar todas as informações com absoluta lealdade e de forma verdadeiras à Autora, motivo pelo qual, por não assistir nos termos e fundamentos supra expostos, qualquer razão, ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, deverão V. Exas., com maior sapiência revogar, in totum, o douto acórdão, substituindo-o por um outro de sinal contrário, absolvendo-se o aqui Recorrente de todo o pedido deduzido pela Autora, por não ter ficado manifestamente provado, qualquer tipo de culpa ou negligência nos seus comportamentos, repondo-se dessa forma a mais elementar justiça, como se deixa expressamente requerido;

30.° Diferente interpretação das normas contidas nos artigos artigo 158.°, 653.°, n.° 2, 655.°, n.° 1 e 2, 659.°, n.° 2 e 3, 664.°, 668.°, n.° 1, alíneas, b), c), e n.° 3 e 4, todos dos CPC, Artigo 8.°, 9.°, n.° 2 e 3, 253.°, 341.°, 342.° e 612.°, n.° 2, todos do Código Civil, bem como e ainda, os artigos artigos 13.°, 202.°, n.° 1 e 2, 203.°, e 205.°, todos da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade interpretativa aqui expressamente arguidas para todos os legais efeitos, mormente os da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, tendo-se por correcta a que transparece da posição acima alegada pelo Recorrente ao longo das suas Motivações e Conclusões escritas nesta matéria;

31.° Motivo pelo qual, por não assistir nos termos e fundamentos supra expostos, qualquer razão, salvo melhor e mais douta opinião, ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, deverão V. Exas, Doutores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, com maior sapiência revogar, in totum, o douto acórdão, em sindicância, substituindo-o por um outro de sinal contrário, absolvendo-se o Recorrente/ aqui Primeiro Réu de todo o pedido deduzido pela Autora, por manifestamente não provado, repondo-se dessa forma a mais elementar justiça, como se deixa expressamente requerido.

V. Exas., assim decidindo farão a tão almejada e elementar

JUSTIÇA!!!

Normas Violadas:          Artigos 1 artigo 158.°, 653.°, n.° 2, 655.°, n.° 1 e 2, 659.°, n.° 2e 3, 664.°, 668.°, n.° 1, alíneas, b), c), e n.° 3 e 4, todos do CPC;Artigos  8.°, 9.°, n.° 2 e 3, 253.°, 341.° , 342.° e 612.°, n.° 2,todos do Código    Civil;

Artigos 13.°, 202.°, n.° 1 e 2, 203.°, e 205.°, todos da Constituição da República Portuguesa.

   A entidade recorrida pugna pela manutenção do acórdão recorrido.

    3. As instâncias fizeram assentar a solução jurídica do pleito na seguinte matéria de facto:

1. Entre a ora A. e o 1º R. foi celebrado um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice no 0000000000, pelo qual o 1º R. transferia para a A. a sua responsabilidade civil emergente dos acidentes de trabalho sofridos pelos seus empregados, que identificava mensalmente mediante envio de folhas de férias, como se verificou em concreto, relativamente aos meses de Outubro e Novembro de 2000. (A).

2. No dia 8/11/2000 o 1º R. comunicou à ora A. um acidente de trabalho que teria ocorrido em 3/11/2000, pelas 16 horas, envolvendo o sinistrado DD, que teria sido admitido ao serviço pelo 1º R. a 2/11/2000, por via da participação junta aos autos a fls. 14, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo assinalado, no local a tanto destinado, a situação profissional do sinistrado de “subempreiteiro (tarefeiro)”. (B).

3. Efectivamente, na folha de férias de Novembro, o sinistrado DD é mencionado por ter trabalhado dois dias. (C).

4. Conforme participação, o sinistrado encontrava-se a trabalhar numa obra de construção civil, colocando ripas de cimento na cobertura de uma moradia para colocação do respectivo telhado, quando caiu ao solo, batendo com a cabeça. (D).

5. Averiguado o sinistro, concluiu-se que teria ocorrido numa obra que decorria na Rua d..........., lote ....., Casal da Peça, em Albarraque e a queda teria sido de cerca de 5 metros de altura. (E).

6. Do referido acidente resultaram politraumatismos e lesões cerebrais graves ao sinistrado que implicaram o seu internamento em várias instituições hospitalares. (F).

7. Por carta da A. de 26 /01/2001 junta aos autos a fls. 15, foi questionado o 1º R sobre a ausência/desrespeito de normas de segurança na obra em que ocorreu o acidente dos autos. (G).

8. O 1º R. respondeu àquela missiva de forma negativa, assegurando o cumprimento das regras de segurança, tudo conforme carta de 19/03/2001 junta aos autos a fls. 16. (H).

9. O sinistrado era empregado do 2º R., subempreiteiro a quem fora “ajustada a obra” pelo 1º R., pelo que o verdadeiro patrão do sinistrado não era o 1º R. mas sim o 2º R. (I).

10. Em 16/04/2002 o 1º R. remeteu à A. a carta junta aos autos a fls. 97 onde reconhece que o sinistrado DD nunca trabalhara para ele, nunca o contratara nem lhe pagara qualquer salário, sabendo que o patrão dele era o 2º R. CC. (J).

11. O 1º R. contratou verbalmente os serviços do 2º R., o qual se comprometeu a efectuar a subempreitada de mão de obra de uma partes dos trabalhos da moradia em que ocorreu o sinistro, ficando acordado que os encargos com os seguros do pessoal correriam por conta do 1º R. (L).

12. Em consequência do contrato de seguro celebrado com o ora 1º R. e por causa do acidente dos autos, a A. teve de suportar as despesas inerentes ao sinistro relacionados com o pagamentos de:      - Farmácia --------------------------------------------- €         156,14

- Transportes -----------------------------------------  €   597,46

- Posto de Socorros --------------------------------    €    13.218,91

- Serviços hospitalares ----------------------------    €    37.801,32

- Próteses --------------------------------------------   €     194,53

- Bombeiros ------------------------------------------ €       70,83

- Honorários clínicos -------------------------------  €   798,08

- Alojamento ----------------------------------------- €      11,97

- Despesas diversas ------------------------------     €    877,88

Tudo no montante de                                           €      53.727,12. (art. 1º).

13. Só após o pagamento dos valores referidos em 12 a A. veio a apurar que, afinal, no momento do acidente o sinistrado DD não era nem nunca fora empregado do 1º R.; era sim funcionário de um seu empreiteiro, o 2º R. CC, que tinha a seu cargo a obra onde ocorrera o acidente. (art. 2º).

   4. O núcleo essencial da argumentação do recorrente centra-se na invocação de uma insanável contradição interna da decisão recorrida, expressa na circunstância de as instâncias terem dado como não provada a intenção do recorrente de prejudicar a seguradora ao fazer a participação de acidente laboral em discussão nos presentes autos – concluindo, porém, da restante matéria de facto provada a existência de um comportamento do tomador de seguro lesivo do dever de actuação segundo os ditames da boa fé no cumprimento do contrato de seguro.

   Como é sabido, o conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos e perfeitamente diferenciados: no sentido de boa fé objectiva, enquanto norma de conduta , ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efectivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral ; e no sentido de boa fé subjectiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adoptar um comportamento conforme ao direito e respectivas exigências éticas.

   Como afirma, por exemplo, Almeida Costa, ( Direito das Obrigações, 2006, pag. 120), Neste último caso, a boa fé reconduz-se a um conceito técnico-jurídico utilizado numa multiplicidade de normas para descrever ou delimitar um pressuposto de facto da sua aplicação. Algo de diverso sucede com o ditame da boa fé, ele próprio uma regra jurídica que, inclusive, assume o alcance de princípio geral de direito.

   Na situação dos autos, o que releva decisivamente para a composição do litígio é obviamente o conceito de boa fé objectiva, que atravessa toda a vida do contrato, desde as negociações preliminares ( art. 227º do CC), à integração do contrato ( art. 239º do CC) e ao cumprimento das obrigações dele emergentes ( art. 762º, nº2 do CC) – de particularíssimo relevo em toda a vida da relação contratual de seguro, desde o momento da celebração do contrato, acompanhando-a ao longo do respectivo desenvolvimento e execução, se e quando se  verificar o evento danoso cujo risco se mostraria coberto pela seguradora.

  Na verdade, como é notado pela doutrina e jurisprudência, a boa fé objectiva tem uma relevância acrescida na disciplina do contrato de seguro, bem expressa na norma constante do art. 429º do C. Com.:

   Da maior importância é a classificação do contrato de seguro como de boa fé: porque se baseia nas declarações prestadas pelo segurado, referindo-se alguns Autores a uma uberrimae bona fidei, máxima boa fé, considerando-a elemento peculiar do contrato de seguro; a caracterização do seguro como contrato de boa fé não pretende reforçar a ideia de que quem negoceia com outrem para conclusão e um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, mas sublinhar a necessidade absoluta de lealdade do segurado para manter a equidade na relação contratual, uma vez que a seguradora é normalmente obrigada a confiar nas suas declarações , sem poder verificá-las aquando da subscrição (José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, pag. 110)

   Ora, o que está essencialmente em causa no presente litígio é determinar, por preenchimento e densificação da referida cláusula geral, se o comportamento do recorrente no momento da participação do sinistro laboral, documentado de modo cabal na factualidade apurada e tida por provada, viola ou não os ditames da boa fé objectiva, tal como devem ser concretizados no âmbito da específica relação contratual – contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de prémio variável, mediante inclusão dos trabalhadores nas folhas de férias remetidas à seguradora. E sendo, por outro lado, neste quadro, evidente e inquestionável que, a entender-se que tal conduta lesiva, nomeadamente de um dever de lealdade, probidade e verdade do tomador de seguro no confronto da seguradora, viola efectivamente os deveres laterais ou acessórios emergentes do princípio da boa fé objectiva, o segurado estará obrigado a indemnizar a contraparte pelos danos causados com tal violação dos padrões normativos exigíveis no relacionamento das partes – bastando obviamente, nos termos gerais, a existência de mera culpa ou negligência na violação de tais deveres para ter cabimento a indemnização, não dependendo esta da existência de dolo ou intenção de prejudicar.

   No caso dos autos, estamos confrontados com um contrato de seguro de acidentes de trabalho em que o pessoal seguro era o que constasse das folhas de férias/ salários a enviar mensalmente à seguradora: como se afirma sobre a teleologia deste contrato no Ac. uniformizador nº10/2001, proferido pelo STJ a propósito da questão do efeito a atribuir à omissão do trabalhador sinistrado nas folhas de férias remetidas periodicamente pela entidade patronal à seguradora:

Na verdade, nesta modalidade de seguro, a entidade

patronal transfere a sua responsabilidade infortunística

pelos danos sofridos por um número variável de pessoas.

Por conseguinte, tal variabilidade de pessoal, que

implica necessariamente uma variação de massa salarial,

terá de repercutir-se no montante dos prémios a cobrar.

O objecto do seguro de prémio variável depende, pois,

da declaração periódica do tomador de seguro que, para

não celebrar diversos contratos consoante as flutuações

do pessoal que emprega, firma um único contrato com

conteúdo variável, sendo consequentemente variável a

respectiva obrigação de seguro(16).

Compreende-se, assim, a obrigação da empregadora

de incluir o trabalhador nas folhas de férias a enviar

à seguradora até ao dia 15 do mês seguinte ao início

das respectivas funções, n.o 4 da cláusula 5.a da apólice

uniforme, já que é através dessas folhas de férias ou

salários que se efectua a actualização do contrato, a

que corresponde a actualização do prémio, por parte

da seguradora.

A vantagem desta forma de contratação, que tem subjacente

a variabilidade da identidade ou do número de

pessoas que estão ao serviço do tomador de seguro,

reside no facto de, pela celebração de um único contrato,

poder ser dado cumprimento ao que, no fundo, são obrigações

de seguro independentes, porquanto cada uma

destas obrigações surge relativamente a cada prestador

de serviço e depende das condições próprias da prestação

de trabalho(17), pelo que, e consequentemente,

a responsabilidade a assumir pela seguradora depende,

necessariamente, da identificação do pessoal.

Assim, não se encontrando determinado trabalhador

incluído nas folhas de férias enviadas à seguradora, verifica-

se, segundo cremos, uma situação de não cobertura

e não de omissão de declaração relevante para efeitos

de nulidade do contrato, pois o comportamento omissivo

por parte do tomador de seguro/empregador nada

influenciou os riscos de verificação do sinistro assumidos

pela seguradora relativamente aos demais trabalhadores.

De outro modo, poderia verificar-se, no caso de produção

de acidente com um trabalhador regularmente

inscrito, a possibilidade da seguradora invocar a nulidade

do contrato em virtude de, ao serviço do mesmo

tomador do seguro, um (ou outros) trabalhador(es)

nunca ter(em) sido mencionado(s) nas folhas de férias.

O contrato de seguro de prémio variável exige, assim,

o cumprimento de várias obrigações de seguro, independentes

entre si, embora unidas por um único contrato

cujo objecto vai sendo determinado caso a caso.

O incumprimento, por parte do tomador de seguro,

da obrigação consubstanciada na inclusão do(s) trabalhadores

ao seu serviço na folha de férias a enviar

à seguradora até ao dia 15 do mês seguinte ao do início

das funções do(s) respectivo(s) trabalhador(es), determina,

consequentemente, a não assunção de responsabilidade,

por parte da seguradora, pelos danos sofridos

pelo trabalhador omitido, pois verifica-se uma situação

de não cobertura, decorrente do não preenchimento das

condições necessárias estabelecidas pelas partes, para

a assunção da responsabilidade, tendo a entidade patronal

de suportar o pagamento do que for devido ao

trabalhador.

   Assume, pois, relevância decisiva na economia deste particular tipo contratual a inclusão ou não inclusão dos trabalhadores nas folhas e salários, já que será, em última análise, através desta que se irá determinar o objecto do contrato e apurar se certo trabalhador/sinistrado está ou não coberto pelos riscos assumidos pela seguradora.

   Não envolve, pois, qualquer contradição, incongruência ou défice de fundamentação considerar-se, perante determinada situação de facto, que certo comportamento de uma das partes no desenvolvimento de uma específica relação contratual viola culposamente os deveres ínsitos ou decorrentes do princípio da boa fé objectiva, gerando, desse modo, responsabilidade civil pelos danos culposamente causados à contraparte, apesar de se ter por não provado o dolo ou intenção de prejudicar, que consubstanciaria um caso de má fé psicológica ou subjectiva( e que nunca constituiria, como é óbvio, pressuposto da invocada responsabilidade civil do tomador de seguro pela violação dos deveres laterais ou acessórios a que estava vinculado).

   Ora, perante a matéria de facto provada – e mesmo não tendo ficado demonstrada a má fé subjectiva ou psicológica do recorrente, perfeitamente irrelevante para aferir do thema decidendum, situado no campo da responsabilidade civil, de que é pressuposto a mera negligência, e não o dolo ou intenção de prejudicar – não pode duvidar-se seriamente de que ocorreu comportamento lesivo da boa fé objectiva a que estava vinculado o tomador de seguro no confronto da seguradora, envolvendo um especial dever acessório de exactidão e verdade quanto aos elementos que constavam das folhas de férias remetidas, decisivos para concretizar e apurar o próprio objecto do seguro de acidentes laborais e definir o âmbito dos riscos cobertos pela seguradora.

   Na verdade, ao incluir nas folhas de salários remetidas à seguradora alguém que nunca fora seu trabalhador e a quem nunca havia pago qualquer salário – como resulta cabalmente do reconhecimento confessório constante da carta de fls. 97, remetida à seguradora no âmbito do procedimento de averiguações posterior ao momento em que esta havia assumido inicialmente as suas responsabilidades, com base na declaração inverídica apresentada logo após o acidente laboral – violou o tomador de seguro um fundamental dever de exactidão e verdade, decorrente do princípio da boa fé objectiva no cumprimento do contrato de seguro, devendo, consequentemente, responder civilmente pelos danos causados culposamente  à contraparte.

   Carece, por outro lado, totalmente de fundamento pretender, nestas peculiares circunstâncias,  imputar à seguradora qualquer comportamento negligente na análise dos elementos documentais que lhe foram remetidos – e de que constituía elemento essencial, como se viu, a folha de salários, que falsamente fazia constar o sinistrado como trabalhador ao serviço do tomador de seguro – sendo manifesto que a necessidade de acautelar o pagamento dos tratamentos médicos de que o sinistrado carecera, em consequência das graves lesões sofridas, legitima e justifica inteiramente que a seguradora tivesse adiantado os pagamentos mesmo antes de encerrado o procedimento de averiguações, em que veio justificadamente a concluir que , afinal, o risco de acidentes laborais do trabalhador/sinistrado não estava coberto.

   Por outro lado – e ao contrário do que pretende o recorrente – a existência de um acordo com o subempreiteiro, segundo o qual seria o recorrente a assumir os encargos com os seguros de pessoal, não legitima nem confere eficácia ao procedimento irregular seguido, de ficcionar uma relação laboral para obter uma indevida cobertura dos riscos dos trabalhadores do subempreiteiro : o que tal cláusula justificaria era que, no acerto de contas entre os interessados, o recorrente compensasse o subempreiteiro pelos custos decorrentes do seguro obrigatório de cuja celebração este, como efectiva e real entidade patronal, não podia obviamente desvincular-se.

   Finalmente, é evidente que não tem o menor sentido imputar às decisões recorridas o vício de apreciação arbitrária ou discricionária da prova: esclarecido cabalmente o equívoco que radicava na injustificada confusão do recorrente entre os conceitos fundamentais de boa fé objectiva e subjectiva – e assente, consequentemente, que a responsabilidade civil, assacada ao recorrente, apenas se conexiona com a violação culposa de deveres laterais ou acessórios de conduta, inferíveis do princípio normativo da boa fé no cumprimento dos contratos, irrelevando para o tema da responsabilidade civil a possível má fé subjectiva, consubstanciada num eventual dolo ou intenção de prejudicar a contraparte – importa realçar que a inveracidade da informação prestada  à seguradora quanto à existência de uma relação laboral com o sinistrado decorre cabalmente de reconhecimento confessório, documentado pela carta de fls.97…

    Tal como não se mostram obviamente violados pela decisão recorrida os múltiplos preceitos legais, quer do CC, quer do CPC, arrolados pelo recorrente, sem que muitos deles tenham, aliás, a menor conexão com a verdadeira questão a debater e decidir no presente recurso.

   E carece identicamente de fundamento sério a questão e constitucionalidade delineada na parte final da alegação, a qual, aliás, não consubstancia suscitação adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para abrir a via do recurso de fiscalização concreta, já que se não identifica minimamente qual é, afinal, a interpretação normativa do heterogéneo bloco de preceitos legais arrolados pelo recorrente que se tem por violadora da Lei Fundamental.

    5. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, nega-se provimento à revista.

   Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Maio de 2012

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor