Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1849
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PARALISAÇÃO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DO USO
OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO DO VEÍCULO
EXCESSIVA ONEROSIDADE DA REPARAÇÃO
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ2007070500018492
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1. A privação do uso de um veículo automóvel, em consequência dos danos por ele sofridos em acidente de trânsito, envolve, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade do veículo – a de o utilizar quando e como lhe aprouver – que, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.
2. Assim, essa privação constitui, só por si, um dano patrimonial indemnizável, devendo recorrer-se à equidade, nos termos do disposto no art. 566º/3 do CC, para fixar o valor da respectiva indemnização.
3. Em matéria de obrigação de indemnização vale, como princípio geral, o da reconstituição natural, sendo a indemnização pecuniária um sucedâneo a que se recorre apenas nos casos previstos no n.º 1 do art. 566º do CC, e, designadamente, quando aquela seja excessivamente onerosa para o devedor, isto é, quando exista flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural para o responsável.
4. Na ponderação da excessiva onerosidade para o devedor não podem, assim, deixar de ser considerados factores subjectivos, respeitantes não só à pessoa deste, e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, mas também às condições do lesado, e ao seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado, antes que no percebimento do seu valor em dinheiro.
5. Um veículo já com muito uso pode ter um valor comercial pouco significativo, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, por não lhe permitir a aquisição de uma viatura da mesma marca, com as mesmas características e com o mesmo uso.
6. Está vedado ao Supremo, como tribunal de revista, pronunciar-se sobre o erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa, a não ser que haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.
AA intentou, no Tribunal Judicial de Viana do Castelo contra a BB, SA, a presente acção com processo ordinário pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:
a) a quantia global de 12.066,31 €, acrescida de juros vincendos, à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento;
b) Os danos a liquidar em execução de sentença e relativos, quer à imobilização do veículo, quer à sua reparação, quer aos salários que a A. deixou de auferir, dores e despesas que terá de suportar, atentas as sequelas de que é portadora.
Alegou, em síntese, a ocorrência de um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula VX…, propriedade e conduzido pela Autora e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …CH, segurado na Ré, e conduzido por um empregado da sua proprietária no interesse, com ordem e conhecimento desta. Imputou a culpa na produção do acidente ao condutor do CH, que conduzia de forma distraída, alcoolizado e em excesso de velocidade, e veio, por isso, embater na traseira do veículo da Autora, daí resultando, para esta, lesões corporais, dores, sequelas, despesas, perda de uso do veículo e perdas de vencimento, danos esses por que pretende ser indemnizada.
A Ré contestou, imputando o acidente a actuação culposa da autora, e concluiu pela improcedência da acção. Requereu, ao abrigo do artigo 330º do Código de Processo Civil, a intervenção acessória de CC, condutor do veículo CH, que foi admitida.
O chamado contestou igualmente, sustentando a ilegalidade do chamamento e impugnando a versão factual da autora, imputando a esta a culpa exclusiva na eclosão do sinistro. Concluiu pela sua absolvição da instância e pela improcedência da acção.
Seguindo o processo a sua normal tramitação, veio a realizar-se a audiência de discussão e julgamento e a ser proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré seguradora a pagar à autora
a) a indemnização de € 3.840,98 acrescida de juros de mora a contar, às sucessivas taxas legais, da data da citação até ao efectivo reembolso; e
b) pela paralisação do veículo, a indemnização de € 10 por dia, contada desde a data da citação e até ao pagamento da quantia aludida em a), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da sentença, até ao efectivo pagamento da indemnização fixada em a).
Quanto à restante parte do pedido foi a ré absolvida.
Da sentença apelaram o chamado e a ré, tendo a autora interposto recurso subordinado.
O recurso do chamado veio a ser julgado deserto, por falta de alegações do recorrente.
Na apreciação do recurso principal (da ré) e do recurso subordinado, a Relação de Guimarães julgou-os, a ambos, improcedentes, confirmando a sentença recorrida.
De novo inconformada, a ré seguradora pede revista, em recurso interposto para este Supremo Tribunal. E a autora reage também, com a interposição de recurso subordinado.
A ré remata as suas alegações de recurso enunciando um leque conclusivo que se pode sintetizar desta forma:
1º - Nos autos apenas se provou que a autora se encontra ainda privada do uso do seu automóvel, não tendo sido alegado nem dado como provado qualquer prejuízo daí decorrente; e porque a mera privação, desacompanhada da alegação e prova de danos dela resultantes, não constitui, só por si, um dano indemnizável, não pode, em consequência da provada privação, ser arbitrada qualquer quantia à autora;
2º - Seria de todo inaceitável que, pelo recurso a juízos de equidade, fosse arbitrada à autora uma quantia que atingiria hoje mais de € 20.000,00, perfazendo em muito o valor do veículo em causa, que tem um valor de mercado de € 2.000,00, e representando, por ano, mais do dobro do valor desse veículo;
3º - A reparação do veículo, que importa em € 3.740,98, significa quase o dobro do valor do mesmo (não inferior a € 2.000,00) à data do acidente, o que leva a concluir ser a reparação excessivamente onerosa para a recorrente; e, não tendo a autora procedido à reparação nem nela tendo demonstrado interesse, apenas lhe deve ser arbitrada a quantia correspondente ao valor da viatura.
4º - A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 563º e 566º do Código Civil.
Por seu turno, a autora encerra as suas alegações apresentando um acervo de conclusões que se reconduzem ao seguinte:
1º - O veículo sinistrado era, e é, indispensável para as suas deslocações; e, sendo o valor diário a pagar por um carro de aluguer, não inferior a € 25/30, o valor a fixar em termos de equidade, a título de indemnização diária pela imobilização do veículo, deve ser de € 25, e não os € 10, fixados no acórdão recorrido;
2º - O Ex.mo Juiz não teve em consideração os resultados, expressos no respectivo relatório junto aos autos, do exame pericial efectuado pelo Instituto de Medicina Legal, que reportou as consequências do acidente para a autora, sendo certo que não ordenou – como podia e devia se entendesse que tal relatório enfermava de deficiência, contradições ou inexactidões – uma segunda perícia, colegial, nem a presença do perito em tribunal para esclarecer eventuais dúvidas suscitadas;
3º - Assim, os resultados da perícia devem ser dados como provados, podendo e devendo este tribunal de recurso alterar nesta parte, em conformidade, a matéria de facto, ou podendo e devendo reenviar os autos à 1ª instância para o fazer;
4º - Do referido exame pericial e da matéria fixada nos n.os 27, 28 e 29, resulta que a autora, em consequência do acidente, sofreu contusão do joelho direito, com hemartrose, que trabalhava como telefonista para a firma DD, e que a sua actividade implicava estar sentada durante longos períodos de tempo; e, dos documentos juntos aos autos e do depoimento das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, resulta que auferia um salário não inferior a € 900,00, montante que deve ser considerado;
5º - Atendendo às lesões dadas como provadas, ao exame feito pelo IML, ao salário referido e à idade da autora (57 anos), a quantia de € 100,00 fixada pelas instâncias, a título de danos morais, é manifestamente insuficiente, devendo, nessa parte, o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que condene nos montantes reclamados pela recorrente;
6º - O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 562º, 566º, 568º, 653º e 668º do CPC, e nos arts. 342º, 483º e 487º do CC.
Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.
2.
Estão provados os seguintes factos:
1 - No dia 28 de Março de 2001, cerca das 00:45 horas, na E.N. 13, Km. 64,7, em Darque, Viana do Castelo, ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …CH, propriedade de EE e conduzido no “interesse, ordem e com o conhecimento desta” pelo seu empregado CC, e o ligeiro de passageiros de matrícula VX…, propriedade e conduzido pela autora;
2 - Antes da ocorrência do acidente, o VX encontrava-se estacionado no parque do Restaurante-…, sito no lado direito da E.N. 13, atento o seu sentido Darque-Viana do Castelo, de onde a autora pretendia sair e passar circular na referida via e sentido;
3 – A autora iniciou então a manobra, ligando o pisca do lado direito do VX e parando o veículo à saída do parque, na intersecção deste com a plataforma da via por onde pretendia seguir;
4 - À data do acidente a autora contava 57 anos de idade;
5 - A proprietária do CH havia transferido para a ré a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação causados pelo veículo a terceiros, mediante a apólice de seguro em vigor à data do acidente, com o n°7171179;
6 - A autora imprimiu velocidade ao VX, invadindo a faixa direita, atento o sentido Darque – Viana do Castelo, e começando a circular por ela;
7 - Fazendo-o à velocidade de cerca de 30 km/hora;
8 - Quando a autora já havia circulado cerca de 40 metros, o CH colidiu com a traseira do VX;
9 - O condutor do CH imprimia ao veículo uma velocidade não inferior a 80 km/h;
10 - No momento do acidente, o condutor do CH era portador de uma TAS de 0,43g/l;
11 - O CH deixou marcados no piso 4 rastos de travagem, com 25,5 metros de comprimento;
12 - Os rastros de travagem têm início a meio da faixa de rodagem;
13 - O local do acidente configura unia recta com cerca de 100 metros de comprimento;
14 - Tendo a plataforma da estrada cerca de 10 metros de largura;
15 - Quando ocorreu o acidente não chovia;
16 - Encontrando-se o piso seco e em “bom estado” de conservação;
17 - Na altura do sinistro não circulava qualquer veículo em sentido contrário ao seguido pela autora;
18 - Na sequência do embate o VX só se imobilizou a cerca de 80 metros do local do embate;
19 - Existe um sinal no local a aconselhar a velocidade de 50 km/h;
20 - No local do acidente existe uma passadeira para peões, pintada no piso da estrada e previamente sinalizada por sinal vertical e por sinalização luminosa;
21 - Quando a condutora do VX entrou na faixa de rodagem da E.N. 13 não se apercebeu da presença nem da aproximação do CH;
22 - O embate ocorreu totalmente sobre a metade direita da faixa de rodagem da E.N. 13, tendo em conta o sentido Darque/Viana do Castelo;
23 - A colisão deu-se entre a parte frontal direita do CH e a parte traseira esquerda, ao nível do canto do mesmo lado, do VX;
24 - Presentemente, a autora encontra-se ainda privada do uso do VX;
25 - À data do acidente o VX tinha um valor não inferior a € 2.000,00;
26 - A reparação do VX importa em € 3.740,98;
27 - Como consequência directa do embate resultou contusão do joelho direito da autora, com hemartrose, mas sem lesões ligamentares;
28 - À data do acidente, a autora trabalhava como telefonista para a firma DD,
29 - Actividade que implica estar sentada durante “longos períodos” de tempo.
3.
A ré, recorrente principal, coloca duas questões à apreciação deste Supremo Tribunal – as mesmas que, sem êxito, suscitou na apelação – manifestando a sua discordância quanto ao tratamento que uma e outra mereceram nas instâncias: a da condenação pelo dano decorrente da paralisação do veículo da autora, e a da obrigação de reparação deste veículo.
3.1. Sustenta, antes de mais, que a mera privação do uso do veículo (único facto provado), desacompanhada da alegação e prova de danos dela decorrentes, não constitui, só por si, dano indemnizável. O recurso à equidade (art. 566º/3 do CC) tem como pressuposto a impossibilidade de apuramento do exacto valor do dano, sendo indevido quando o dano não foi alegado nem provada a sua verificação.
Como a autora não alegou qualquer prejuízo (ter de alugar outro veículo, sofrer incómodos pela utilização de transportes públicos, ter necessidade diária do veículo para se deslocar para o trabalho ou transportar dependentes, etc.) e os danos específicos invocados, tais como o aluguer de veículos alternativos, foram dados como não provados, não pode, a este título, ser-lhe arbitrada qualquer quantia, por inexistir obrigação de indemnizar.
Qual a valia desta argumentação?
Cabe, antes de mais, salientar que não vem questionada a responsabilidade na produção do evento danoso. A sentença da 1ª instância evidencia, de modo claro e convincente, que o acidente é, em exclusivo, imputável a actuação culposa – porque negligente e violadora de normas estradais – do condutor do veículo CH, o que foi aceite por autora e ré.
Verificada e assente a existência de facto ilícito culposo, está apenas em causa apurar a existência de danos indemnizáveis e fixar os respectivos montantes.
Dizendo de outro modo: assente que o direito da autora à sua integridade física e patrimonial foi violado pela conduta ilícita e culposa do condutor do veículo automóvel …CH, segue-se que a seguradora, ora recorrente – por via das obrigações assumidas através do contrato de seguro que celebrou com a proprietária do indicado veículo CH – se acha obrigada a reparar os danos que, para a demandante, resultaram da violação daquele direito.
Ora, não é, desde logo, exacta a afirmação (da seguradora recorrente) de não ter a autora alegado qualquer prejuízo decorrente da privação do uso do seu veículo. A simples leitura da p.i. – e designadamente dos seus n.os 41º, 43º, 44º, 50º, 53º, 54º, 55º – desmente, de todo, tal afirmação. Os factos respectivos foram, aliás, impugnados pela recorrente, na contestação, e, por isso, levados à base instrutória (cf. quesitos 29Com vista a efectuar as deslocações que, diariamente, tinha de fazer, a A. reclamou à R. que esta lhe colocasse à disposição um veículo alternativo?; 30 Perante a inércia da R., a A. alugou veículos alternativos?; 31 ... o que fez durante o período compreendido entre 1 de Abril de 2001 a 15 de Outubro de 2001?; 32... no que gastou € 663,78?; e 33Presentemente, a A. encontra-se ainda privada do uso do VX?), sucedendo apenas que, à excepção do 33, cuja matéria foi dada como provada, todos estes quesitos receberam a resposta de não provado.
De salientar ainda que a autora, nos aludidos n.os 54º e 55º da p.i., fez como que o cômputo global destes prejuízos, alegando, no primeiro, a matéria, acima transcrita, que integrou o quesito 33 – Presentemente, a A. encontra-se ainda privada do uso do VX – e, concluindo, no segundo, desta forma: Tendo de suportar com a privação do seu uso – quer em deslocações efectuadas em veículos alternativos, quer pelo facto de pedir carros emprestados, quer nos incómodos suportados – despesas cujo valor não deve computar-se em quantia inferior a € 24,94 diários; e pediu que o montante deste dano fosse liquidado em execução de sentença.
Dúvidas não existem, pois, quanto a ter sido alegado o dano resultante da privação do uso do veículo, e reclamada a respectiva indemnização, vindo provado que, em resultado do embate ocorrido, o veículo da autora sofreu danos, cuja reparação importa em € 3740,98, encontrando-se esta ainda privada do uso da viatura (que ainda não foi reparada).
Na análise desta questão, e do correspondente pedido indemnizatório formulado pela autora, ponderou-se na sentença da 1ª instância que “dada a relevância que os automóveis assumem nos tempos modernos para quem deles pode dispor, podendo mesmo dizer-se que multiplicam de forma exponencial a liberdade de circulação dos seus donos”, “a privação de uso de um veículo constitui para o seu proprietário, não apenas fonte de danos patrimoniais, mas também de incómodos, nomeadamente a restrição da referida liberdade de circulação,” com a gravidade suficiente, exigida pelos n.os 1 e 3 do art. 496º do CC, para serem considerados danos morais relevantes e merecerem, assim, a tutela do direito.
Acrescentou-se que, porque cabe ao lesante reparar o mais depressa possível os danos, para que estes não se agravem, e a ré nada fez nesse sentido, deverá indemnizar a autora pela privação do uso do veículo; e concluiu-se que, não tendo resultado provado que esta tenha tido despesas provocadas pela privação do uso do veículo, a indemnização dessa privação, desse dano moral, seria de fixar de acordo com a equidade, à taxa de € 10/dia, contabilizada desde a data da citação, data em que a ré entrou em mora, até integral pagamento, entendendo-se não ser de relegar para execução de sentença, uma vez que a quantia devida pelo dano é susceptível de fixação.
A Relação, pronunciando-se sobre a mesma questão, expressou o seguinte entendimento:
Ficando provado apenas que “presentemente, a autora encontra-se ainda privada do uso do VX”, porque não está demonstrado que deste evento lhe resultou dano patrimonial, também lhe não é devida indemnização referente a tal contrariedade.
No entanto, acompanhamos o raciocínio posto na sentença recorrida no que diz respeito aos dissabores e arrelias que a inusitada falta de uso do veículo produz no seu normal detentor.
Tal limitação imposta à liberdade de circulação do utente do veículo, em virtude da sua privação, integra a exigida gravidade enunciada pelo art. 496º n.º 1 e 3 do Código Civil para ser considerada no contexto de um dano moral relevante e, assim, merecer a tutela do direito.
A indemnização diária de € 10,00 está criteriosamente aplicada e enquadrada no espírito deste tipo de compensação.
O acórdão recorrido, aderiu, assim, à tese defendida na sentença da 1ª instância, entendendo que a privação do uso do veículo pode constituir, não apenas um dano patrimonial, mas também um dano moral, um dano não patrimonial indemnizável.
E aceitou, sem reservas, a ilação extraída pelo juiz sentenciador, que, partindo do facto provado – Presentemente, a autora encontra-se ainda privada do uso do VX – concluiu que a privação do veículo causou incómodos (dissabores e arrelias, nas palavras da Relação), designadamente a restrição da liberdade de circulação, à sua proprietária.
Quid juris?
Entendemos que a privação de uso de um veículo automóvel durante um certo lapso de tempo, em consequência dos danos sofridos em acidente de trânsito, constitui, só por si, um dano indemnizável. Essa tem sido também a jurisprudência deste Tribunal. (1)
O dono do veículo, ao ser-lhe tornada impossível a utilização desse veículo durante o período em causa, sofre uma lesão no seu património, uma vez que deste faz parte o direito de utilização das coisas próprias. E essa lesão é avaliável em dinheiro, uma vez que a utilização de um veículo automóvel no comércio implica o dispêndio de uma quantia em dinheiro. A medida do dano é, assim, definida pelo valor que tem no comércio a utilização desse veículo, durante o período em que o dono está dele privado.
O dano produzido atinge, neste caso, a propriedade – direito que tem como manifestações, entre outras, a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela; possibilidade e capacidade que são retiradas ao proprietário durante o tempo em que, por via do dano produzido, está privado do veículo. E a perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como lhe aprouver tem, claramente, valor económico, e não apenas quando outro veículo é alugado para substituir o danificado.
Cremos ser este o entendimento de alguma doutrina alemã; e, não parece ser diferente o pensamento do Prof. Gomes da Silva, para quem o dano consiste sempre ou na privação ou deterioração de um bem, ou na frustração de um fim. “O bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e, nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. “No dano há sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.(2)
A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é, pois, um dano – e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.
O seu carácter indemnizável também não parece suscitar dúvidas, decorrendo do disposto no n.º 1 do art. 483º do CC. E, na fixação da respectiva indemnização terá de recorrer-se à equidade, nos termos do disposto no art. 566º/3 do mesmo Código. (3)
À mesma solução chegaram as instâncias, perfilhando embora o entendimento de que em causa está, não um dano patrimonial, mas um dano não patrimonial.
Pela razão já apontada – o uso do veículo é, em si mesmo, uma utilidade com valor pecuniário – divergimos desta qualificação. Observa Gomes da Silva que “a utilidade do bem, considerada em si mesma, pode ser desprovida de valor pecuniário, e então o ser-se privado dela representará simples dano moral, portanto só reparável quando se verificarem as condições exigidas para a satisfação dos danos não patrimoniais.(4). Mas não é esse, repete-se, o caso vertente.
De qualquer modo, cremos que a quantia arbitrada – € 10,00/dia – por recurso à equidade, deverá manter-se, porquanto se mostra prudentemente fixada. E, se o Supremo pode sindicar o quantum indemnizatório, fixado pelo tribunal recorrido, quando seja manifestamente arbitrário face às circunstâncias expressas na motivação, já, porém, não deve sobrepor-se ao juízo equitativo da Relação, pois são as instâncias a sede própria dos juízos equitativos (5).
A ré recorrente reage contra esta solução, chamando a atenção para os resultados inaceitáveis a que ela conduz, no caso concreto, levando a atribuir à autora uma quantia que atingiria hoje mais de € 20.000,00, pela privação de um bem que tem um valor de mercado de € 2000,00.
Porém, só de si própria se pode queixar, já que, sendo responsável pelos danos determinantes da paralisação do veículo, não promoveu, como lhe competia, a reparação da viatura, de modo a eliminar o dano da privação do seu uso, que a autora vem suportando desde a data do acidente, ocorrido em 28.03.2001. Não o fez ... sibi imputat – devendo, agora, suportar as consequências desvantajosas decorrentes do seu incumprimento.
O que vem de ser referido, quanto à fixação do quantum indemnizatório relativamente ao dano em causa, deixando já perceber a resposta a dar a essa questão, tal como vem colocada no recurso subordinado da autora, impõe que, de imediato, se passe à análise da matéria da 1ª conclusão da alegação desse recurso, antecipando-se, por razões de método, o seu conhecimento.
Entende a autora que a indemnização diária pela paralisação da sua viatura deve ser fixada, não nos € 10,00 fixados pela Relação, mas em € 25,00, por ser tal veículo indispensável para as suas deslocações, e rondar os 25/30 euros o valor diário a pagar por um carro de aluguer.
A sua pretensão carece, porém, de fundamento.
O montante da indemnização – é dizer, o valor do dano – não pode ser reportado ao valor diário do aluguer de um veículo automóvel, tanto mais que a autora alegou, mas não logrou provar, que utilizava diariamente o seu veículo nas suas deslocações, nem tão pouco que reclamou da ré a disponibilização de um veículo alternativo, nem ainda que, perante a inércia da ré, teve de alugar veículos alternativos. Apenas conseguiu provar que ficou privada do uso do VX, sendo certo que essa situação ainda persiste.
Não está, assim, minimamente provado que o valor do dano seja equivalente ao custo do aluguer de um veículo alternativo; e, por outro lado, e face às considerações acima expressas, a pronúncia, de acordo com a equidade, emitida pela Relação, confirmatória da dimanada da 1ª instância, não deve ser censurada pelo Supremo.
3.2. Vejamos agora a outra questão suscitada nas conclusões da alegação da ré recorrente – a da excessiva onerosidade da reparação do veículo da autora.
Vem, a este propósito, provado das instâncias que o veículo da autora tinha um valor não inferior a € 2000,00, e que a sua reparação importa em € 3740,98.
Na tese da recorrente, é do cotejo entre o valor necessário à satisfação do interesse do credor lesado e o inerente custo financeiro que se afere a excessiva onerosidade da restauração in natura. Esta é excessivamente onerosa se representar um sacrifício manifestamente desproporcionado para o responsável, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património; e é isso que sucede no caso em apreço, atento o valor venal do VX ao tempo do acidente e o da sua reparação, pelo que, nos termos do art. 566º/1 do CC, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – em quantia equivalente ao valor do veículo à data do acidente.
A Relação não sufragou este entendimento, tendo rejeitado a invocada onerosidade da reparação.
Não merece censura a decisão da Relação.
Em matéria de obrigação de indemnização vale, como princípio geral, o da reconstituição natural, expresso no art. 562º do CC: quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Só quando a reparação natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor é que a indemnização é fixada em dinheiro (art. 566º/1 do mesmo Código).
Há, pois, uma clara opção da lei civil pela reconstituição in natura face à indemnização pecuniária, o que vale dizer que a obrigação de indemnização se cumpre, fundamentalmente, através da reparação do objecto danificado ou da entrega de outro idêntico.
Como refere o Prof. Almeida Costa, a indemnização pecuniária apresenta-se como um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os prejuízos ou é demasiado gravosa para o devedor, verificando-se esta última situação “sempre que exista flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural para o responsável.(6)
Na verdade, a lei não se contenta com a simples onerosidade da reparação: exige que esta (a reparação) seja excessivamente onerosa para o devedor. Exige, isto é, que a restauração natural não imponha ao devedor “um encargo desmedido, desajustado e a exceder manifestamente os limites postos legalmente a uma legítima indemnização”, como se lê no acórdão recorrido. E aqui, na ponderação deste elemento, não podem deixar de ser considerados factores subjectivos, respeitantes não só (mas primacialmente) à pessoa do devedor, e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, mas também às condições do lesado, e ao seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado, antes que no percebimento do seu valor em dinheiro.
Ora, é conhecida a utilidade que, hoje em dia, um veículo automóvel proporciona ao seu proprietário, sendo facto notório a imprescindibilidade ou a grande necessidade da sua utilização no dia-a-dia do comum dos cidadãos, da generalidade das pessoas, e as vantagens decorrentes, para o seu dono, de poder dele dispor a seu bel-prazer. Como se evidencia no acórdão deste Tribunal, de 07.07.99 (7), um veículo já com muito uso pode ter – e tem habitualmente – um valor comercial pouco significativo, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, o mesmo é dizer que pode não reconstituir a situação que o lesado teria se não tivesse ocorrido o dano.
Não está, designadamente, demonstrado – e cabia à ré fazê-lo – que, com a quantia de € 2000,00, valor de mercado do veículo à data do acidente, lograsse a autora/lesada adquirir um carro da mesma marca, com as mesmas características e com o mesmo uso. Daí que o interesse desta, no caso em apreço, aponte para a reparação do seu veículo, repondo-o na situação em que se encontrava antes do acidente, para dele continuar a dispor como anteriormente o fazia.
E, por outro lado, não pode considerar-se excessivamente oneroso para a ré o dispêndio de € 3740,98, não só atendendo ao montante em si – recte, à diferença entre esse montante e o que traduz o valor da viatura antes do acidente – sem reflexos significativos na situação patrimonial da ré, mas ainda porque, como também se refere no aresto citado, “actualmente, e devido ao encarecimento da mão-de-obra, existe um desequilíbrio entre o preço das coisas e o da sua reparação”, desequilíbrio, acrescentamos nós, que não pode, in casu, volver-se em factor penalizante da lesada, que nenhuma culpa teve na eclosão do dano nem na dimensão deste.
A opção pela restauração natural não configura nem concretiza, pois, flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo daquela para o responsável, razão por que por ela deve optar-se.
Cumpre ainda salientar que a obrigação de indemnizar, de operar a reconstituição in natura – é dizer, de reparar o objecto danificado – recai sobre aquele que está obrigado à reparação. Daí que nenhum efeito útil possa lograr a ré recorrente do facto de não ter a autora a ela procedido; e, quanto à alegada não demonstração de interesse, por parte da autora, na reparação, o pedido por ela formulado na acção desmente esta asserção da ré recorrente.
4.
Cumprirá, agora, analisar o recurso subordinado da autora, que igualmente traz à apreciação deste Tribunal duas questões, com as quais a recorrente visa a alteração da indemnização diária pela imobilização do seu veículo, e a alteração do montante fixado nas instâncias a título de danos morais.
4.1. No que concerne à primeira das apontadas questões, já acima se tomou posição e se definiu a solução a adoptar, nada havendo a acrescentar, aqui e agora.
Resta, pois, enfrentar a segunda.
4.2. Na p.i. a autora reclamou, além do mais, a condenação da ré a pagar-lhe, a título de danos não patrimoniais, pelas sequelas das lesões que disse ter sofrido, e pelas dores e mal-estar decorrentes dessas lesões, a quantia de € 2992,79; e também reclamou “os danos que se vierem a apurar – a liquidar em execução de sentença – e relativos aos salários que deixará de auferir, dores e despesas que terá de suportar, no futuro, e atendendo às sequelas e incapacidade de que ficou portadora, e que (a) afectarão para toda a sua vida”.
A sentença da 1ª instância, considerando ter ficado provado que a autora, em consequência do acidente, sofreu contusão no joelho direito, com hermatrose, mas sem lesões ligamentares, qualificou este facto como revelador de um dano moral relevante, merecedor de indemnização, e, em atenção à extensão e gravidade da mencionada lesão, entendeu equitativo fixar a indemnização por estes danos, já devidamente actualizada, em € 100,00. E a Relação avalizou este entendimento, sustentando ser tal indemnização a que deve ser atribuída à autora, “pois toma em consideração os critérios legais aos quais se tem de atender para aferição do circunstancialismo envolvente da situação criada pelo acidente”.
Este entendimento das instâncias não mereceu reacção da ré seguradora; mas não convenceu a autora, que contra ele reagiu em ambos os recursos subordinados que interpôs.
Para defender a alteração do montante fixado, a autora recorrente começa por pedir a alteração da matéria de facto, em termos de serem dados como provados os resultados da perícia médico-legal efectuada pelo IML, que – diz ela – o Ex.mo Juiz não teve em consideração.
Existe um manifesto equívoco nesta pretensão da recorrente.
Os resultados da perícia médico-legal são apenas um elemento de prova, de livre apreciação pelo tribunal, de que, aliás, no caso em análise, o Ex.mo Juiz se serviu, como refere a fundamentação das respostas à matéria de facto quesitada (cf. fls. 320):
De especial interesse para se apurar dos efeitos do acidente na pessoa da autora, nomeadamente lesões e tratamentos sofridos, tiveram muito interesse os relatórios do IML e os documentos – fichas e elementos clínicos juntos aos autos
Foram, assim, considerados e valorados, juntamente com outros elementos de prova, na resposta aos quesitos elaborados com a matéria de facto alegada pela autora, respeitante às consequências físicas do acidente, às lesões que alegou ter sofrido.
Não podiam tais resultados constar do elenco factual dado como provado, precisamente porque não foram alegados pela autora, na p.i., nem, por isso, quesitados.
A matéria de facto a ter em conta é, pois, apenas a que vem provada das instâncias e que acima se acha alinhada.
Tal como decorre do disposto nos arts. 729º/2 e 722º/2 do CPC, ao Supremo, como tribunal de revista, está vedado pronunciar-se sobre o erro na apreciação das provas, ou na fixação dos factos materiais da causa, a não ser que haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
E, conforme textua o n.º 3 do citado art. 729º, o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.
Ora, não se verifica, in casu, o condicionalismo previsto nos n.os 2 e 3 do art. 729º do CPC, pelo que não há que alterar os factos materiais fixados pelas instâncias.
E, porque assim é, cai pela base a pretensão da autora recorrente, de ver alterado o montante indemnizatório que lhe foi fixado, a título de danos não patrimoniais, pelas dores e mal-estar resultantes da contusão do joelho direito, com hermatrose, mas sem lesões ligamentares, que sofreu por via do acidente.
Essa indemnização foi fixada, como devia, pelas instâncias, com base em critérios de equidade (art. 496º/3 do CC).
E, como já se disse e agora se repete, sendo as instâncias a sede própria dos juízos equitativos, não deve o Supremo – salvo em caso de manifesto arbítrio na fixação da indemnização – sobrepor-se ao juízo de equidade da Relação, formulado na determinação do quantum indemnizatório.
5.
Decorre, de tudo quanto se deixa exposto, a improcedência de ambos os recursos – o principal, interposto pela ré, e o subordinado intentado pela autora.
Negam-se, pois as revistas, condenando-se cada um dos recorrentes nas custas respectivas.
Lisboa, 5 de Julho de 2007

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
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(1) Cf., por todos, o Ac. de 29.11.2005, Col. Jur.- Acs. do STJ, ano XIII, tomo III, pág.151, e os mais aí citados.
(2) Manuel Gomes da Silva, O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, vol. I, pág. 78.
(3) Ac. do STJ, de 29.11.2005, citado na nota 1.
(4) Ob. cit., pág. 80.
(5) Neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 15.01.2002 (revista n.º 4048/01), e de 28.05.2002 (revista n.º 1435/02), ambos da 6ª Secção.
(6) Direito das Obrigações, 3.ª ed., pág. 526.
(7) Col. Jur. – Acs. do STJ, ano VII, tomo III, pág. 16.