Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
365/06.0TBALSB.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: REPRESENTAÇÃO
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
PROIBIÇÃO
ADMISSIBILIDADE
REQUISITOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I) - O negócio consigo mesmo, também apodado na doutrina portuguesa de autocontrato, e acto jurídico consigo mesmo, tem na sua base a emissão de uma procuração, o que coloca a questão dos poderes representativos, convocando o normativo do art. 258º do Código Civil.

II) – O Código Civil adoptou como regra a proibição do negócio consigo mesmo, abrindo, no entanto, três excepções no sentido da validade; quando uma disposição especial da lei permita o negócio; quando o representado o consinta, em determinados termos, e quando “o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses”.

III) – Se a outorga de poderes representativos implica uma relação de fiducia do representado no representante, confiando aquele que os seus interesses são eficazmente defendidos, mais exigente deve ser a actuação do representante a quem, além da representação, são conferidos poderes para negociar consigo mesmo, sendo aqui claro que, a um tempo, representa o emitente da procuração e ele mesmo – clara situação de autocontrato.

IV) – A lei exige o assentimento para o autocontrato e, como é inerente ao acto jurídico unilateral (procuração), [onde avulta o cariz intuitu personnae e a confiança no representante], o representado confia na sua honesta actuação, já que colocou nas mãos do representante a condução do negócio, em que este está duplamente interessado, pelo que o risco de actuação lesiva (tendência para o auto-favorecimento) não é de somenos, dada a possibilidade de existirem interesses conflituantes.

V) - O representante deve agir com imparcialidade, probidade, moralidade e fidúcia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado.

VI) – O conflito de interesses pode decorrer de excesso ou abuso de representação, não podendo o representante, mesmo no caso de assentimento do representado, agir de modo egoísta acautelando apenas os seus próprios interesses por lhe competir a defesa dos interesses do outro contraente que representa.

VI) – Da conjugação dos arts. 268º e 269º do Código Civil, resulta que o negócio celebrado com abuso de representação é ineficaz em relação ao representado, a menos que este o ratifique.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, instaurou em 7.4.2006, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-a-Velha – 2º Juízo – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

BB e mulher CC,

Alegando, em resumo, que, em 26 de Setembro de 1988, emitiu uma procuração a favor do Réu, pela qual lhe conferiu poderes para proceder às partilhas por falecimento de seu pai DD, mas aquele abusou de tais poderes, tendo-se aproveitado da sua debilidade física e psíquica e outorgado escritura em que adjudicou todos os bens à Ré mulher, irmã da Autora, não tendo ela recebido quaisquer tornas, além de que os valores aí declarados para os bens estão muito aquém do seu valor real, tendo o Réu beneficiado, dolosamente, a esposa, sendo o negócio ineficaz em relação a si.

Concluiu, pedindo que seja declarada a ineficácia do negócio consubstanciado nessa escritura em relação à Autora (fls. 2 a 5).

Os Réus apresentaram contestação, invocando a falta de atribuição de valor à acção e impugnando parte dos factos alegados, dizendo, em síntese, que o Réu não abusou dos poderes que lhe foram conferidos por tal procuração, nem a Autora estava incapacitada física ou psiquicamente na altura, tendo-lhe sido dado conhecimento da realização da escritura poucos dias após, sendo que foi ela que combinou com a irmã Ré que todos os bens seriam adjudicados a esta, dizendo que as tornas já se encontravam pagas, como efectivamente sucedia, nunca tendo questionado a validade e eficácia de tal escritura nos quinze anos seguintes após a sua celebração, pelo que a acção deverá improceder (fls. 22 a 26).

A Autora havia, entretanto, indicado o valor da acção e, após notificação da contestação, apresentou novo articulado a reafirmar a sua versão e a impugnar o alegado pelos Réus (fls. 15 e 37).

No prosseguimento dos autos, foi dispensada a realização de audiência preliminar em consequência do que foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto relevante tida por assente e a provar, de que não houve reclamação, mas, oficiosamente, teve lugar uma correcção à redacção do quesito 18.º da base instrutória – cfr. despacho de fls. 57.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova testemunhal nela produzida, finda a qual, foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação, tal como consta de fls. 245 e 246, sem que lhe tenha sido formulada qualquer reclamação.
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Foi proferida a sentença – fls. 251 a 253 verso – na qual se julgou a acção improcedente e, em consequência, foram os Réus absolvidos do pedido.

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Inconformada, a Autora recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão de 21.4.2009 – fls. 292 a 296 – negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
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De novo inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

l. Parece que a ninguém se deve oferecer dúvidas para os fins da procuração consistiam em permitir, sem a intervenção da Autora, a venda de bens mas com equilíbrio das prestações, ou seja, por preços equilibrados e justos e na determinação deles, ninguém melhor do que o Réu, que vive na zona onde se situam os bens, saberia “movimentar-se”.

2. Aliás, se esta questão fosse destituída de interesse, a 1ª instância não teria deferido a perícia.

3. Então para que serviu a perícia?

4. “Vender” os bens por um preço muito interior ao real, não pode, evidentemente, deixar de constituir abuso de representação que existe sempre que o representante utiliza conscientemente os seus poderes em sentido contrário ao fim da representação ou as indicações do representado (cfr. resposta ao quesito 5° e relatório pericial).

5. Os RR. alegaram que as quantias mencionadas em 9° e 10° da Base Instrutória correspondiam ao valor das tornas por ela (Autora) haver nas partilhas dos bens aludidos em B) da Base Instrutória.

6. As respostas aos quesitos não consentem dar como provado o pagamento das tornas.

7. Conforme ensina o douto acórdão desse Venerando Tribunal, cuja junção se requer, o valor da venda tem uma “ligação” à apreciação do bom pai de família.

8. Sabendo o Réu que ao proceder como procedeu, estaria a contribuir para gerar conflitos e ódios entre a sua mulher e a sua cunhada, ora Autor.

9. O douto acórdão recorrido deve ser substituído por outro que julgue procedente a acção.

Os RR. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que as Instâncias consideraram provados os seguintes factos:

a) Por documento escrito, datado de 26 Setembro 1988 e epigrafado de Procuração, a Autora declarou constituir seu procurador o Réu BB, “ (…) a quem confere os poderes necessários para com os demais interessados proceder às partilhas por falecimento do seu Pai DD (…) dar ou receber tomar, vender a parte que lhe couber da herança que consiste de um pinhal misto situado na arrôta cabo, outorgar e assinar as respectivas escrituras e tudo o que necessário for (…), recrerer registos na conservatória, provisórios e definitivos, cancelamentos e abervamentos, representá-la em repartições publicas, recrendo e acionando o que for necessário.”

b) Por escritura pública realizada no dia 14 de Fevereiro de 1991, na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha, os Réus CC e marido BB, casados sob o regime da comunhão geral e outorgando este último por si e como procurador da Autora, declararam proceder à partilha da herança do falecido pai da Autora e da Ré (DD, falecido em 19.08.1985), composta dos seguintes imóveis:

Um - Pinhal com 1.050 m2 de área, sito na Tomada, freguesia de Frossos, inscrito na matriz rústica sob o art. 487, com o valor tributável de 2.074 escudos e sem descrição na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha;

Dois - Terra de cultura com 808 m2 de área, sito nas C..., freguesia de São João de Loure, inscrito na matriz rústica sob o artigo 268, com o valor tributável de 10.480 escudos e sem descrição na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha;
Três - Casa térrea, com duas divisões para habitação, e casa de moinhos, com uma roda para moer com 40 m2 de superfície coberta, dependências com 20 m2 e logradouro com 15 m2 de área, sita no Vale de Silva de Baixo, da freguesia de São João de Loure, inscrito na matriz urbana sob o artigo 6, com o valor tributável de 2.842 escudos e sem descrição na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha;

Quatro - Casa térrea com duas divisões para habitação, com 40 m2 de superfície coberta, dependências com 50 m2 e logradouro bom 150 m2 de área, sita no Vale de Silva de Baixo, da freguesia de São João de Loure, inscrito na matriz sob o artigo 5, com o valor tributável de 2,309 escudos e e sem descrição na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha.

c) No âmbito da aludida escritura mais declararam os que nela outorgaram que em partilha adjudicam todos os imóveis à herdeira CC e a herdeira AA recebe o respectivo quinhão hereditário em tornas, havendo dito o seu procurador que as recebeu já.

d) Mais consta da aludida escritura que os nela outorgantes foram prevenidos pela Sr.ª Notária que aquele acto é anulável a requerimento do mandante AA, nos termos do artigo 261º do Código Civil.

e) Os valores dos bens declarados na escritura aludida em b), correspondentes aos tributáveis, são muito inferiores ao seu valor real.

f) O Réu mandou efectuar a avaliação dos bens da herança aberta por óbito do pai da Autora e da Ré, DD, tendo sido pago o custo desse serviço ao avaliador.

g) Foram pagas as despesas do funeral do pai da Autora e da Ré, no valor total de 44.780$00.

h) O Réu pagou 40.000$00 a EE para poder reaver o prédio descrito sob o artigo 625 da freguesia de Frossos e na medida em que a Autora havia declarado vender metade daquele prédio àquela EE, integrando-o na descrição 557 de Frossos, sem que a este pertencesse.

i) O Réu, em 19 de Setembro de 1988, procedeu ao pagamento, na Tesouraria da Fazenda Pública de Albergaria-a-Velha, do imposto de Sisa relativo ao prédio rústico, composto de terreno a pinhal, inscrito na matriz da freguesia de Frossos sob o art. 487, que declarou ter comprado à Autora pelo preço de 30.000$00.

j) A Autora referiu que não valia a pena fazer escritura dessa venda do pinhal, apenas pretendendo receber o preço, dizendo ainda para o Réu colocar tal prédio nas partilhas a fazer pela morte do pai.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a partilha feita pelo Réu, ao abrigo da procuração emitida pela Autora, acarretou prejuízos para a representada e, por isso, deve, quanto a ela, ser considerada negócio inválido.

Dispõe o artigo 261º do Código Civil:

“1. É anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio excluía por sua natureza a possibilidade de conflito de interesses.
2. Considera-se celebrado pelo representante, para o efeito do número precedente, o negócio realizado por aquele em quem tiverem sido substabelecidos os poderes de representação”.

O negócio celebrado pelo representante consigo mesmo (negotium a semet ipso), seja nomine próprio, seja nomine alieno (em representação de terceiro), é meramente anulável, a não ser que o representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua, por sua natureza, a possibilidade de um conflito de interesses – n.º 1 do art. 261º do Código Civil – Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 26.06.2003, Proc. 1826/03, da 2ª secção, Relator Conselheiro Ferreira de Almeida.

O negócio consigo mesmo (1) , também apodado na doutrina portuguesa de autocontrato, acto jurídico consigo mesmo e, na doutrina italiana, “stipulazione dei contratto ad opera di una sola persona”, tem na sua base a emissão de uma procuração, o que coloca a questão dos poderes representativos, convocando o normativo do art. 258º do Código Civil (2) .

São pressupostos da representação: a realização de um negócio em nome do representado; a declaração, em maior ou menor escala, de uma vontade própria do representante e não pura e simplesmente de uma vontade do representado – Mota Pinto, “Teoria Geral”, 1967,280.

O Código Civil adoptou como regra a proibição do negócio consigo mesmo, abrindo, no entanto, excepções no sentido da validade do negócio.

Essas excepções são três:

- quando uma disposição especial da lei permita o negócio;
- quando o representado consinta, em determinados termos, na realização do negócio;
- quando “o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses” (art. 261.°, n. °l, in fine, do Código Civil)” (4) .

Se a outorga de poderes representativos implica uma relação de fiducia do representado no representante, confiando aquele que os seus interesses são eficazmente defendidos, mais exigente deve ser a actuação do representante a quem, além da representação, são conferidos poderes para negociar consigo mesmo, sendo aqui claro que, a um tempo, representa o emitente da procuração e ele mesmo – clara situação de autocontrato.

A lei exige o assentimento para o autocontrato e, como é inerente ao acto jurídico unilateral (procuração), [onde avulta o cariz intuitu personnae e a confiança no representante], o representado confia na sua honesta actuação, já que colocou nas mãos do representante a condução do negócio, em que este está duplamente interessado, pelo que o risco de actuação lesiva (tendência para o auto-favorecimento) não é de somenos, dada a possibilidade de existirem interesses conflituantes.

É condição de validade do negócio consigo mesmo, que não haja conflito de interesses, no acto de constituição ou conclusão do negócio, pois se houver conflito de interesses o contrato é anulável.

O representante deve agir com imparcialidade, probidade, moralidade e fidúcia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado.

Como refere Pais de Vasconcelos – “Teoria Geral do Direito Civil” – 2005 – pág. 481, acerca dos negócios fiduciários (observamos que não se pode deixar de considerar essa componente no negócio consigo mesmo):

“A fidúcia tem inerente o risco de infidelidade. A característica principal dos negócios fiduciários consiste na especial confiança depositada pelo fiduciante no fiduciário.
O fiduciário é tipicamente uma pessoa de confiança do fiduciante, pessoa em relação a quem o fiduciante tem a certeza de que vai cumprir, pessoa que não lhe suscita quaisquer dúvidas, quer quanto à seriedade, quer quanto à vontade de cumprir.”

O conflito de interesses pode decorrer de excesso ou abuso de representação.

Não pode o representante, mesmo no caso de assentimento do representado, agir de modo egoísta acautelando apenas os seus próprios interesses, sob pena de anulabilidade.

Compete-lhe a defesa dos interesses do outro contraente que representa.

Como ensina o Professor Galvão Telles, in “Manual dos Contratos em Geral”, pág. 319:
“Sendo dois, e contrários, os interesses em presença, e uma só a vontade que os defende; estando de todo eliminada a luta, como meio de alcançar equilíbrio e justiça na conjugada realização daqueles interesses, obra de uma pessoa única – há grave perigo do iníquo sacrifício de um dos interessados em prol do outro”.

Estas palavras são da maior acuidade se nos lembrarmos que, se até na clássica negociação, podem existir desequilíbrios contratuais, desprotecção e lesão de uma das partes, muito maior é o risco daquele que intervém sozinho na formação e conclusão do contrato, agindo, ele mesmo, em defesa de interesses seus e, também, nos daquele que representa.

Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – págs.551 e verso:

“O chamado negócio consigo mesmo, p. ex. A procurador de B, compra em nome próprio um objecto que vende em nome de B (autocontrato) —, manifestação particular da representação sem poderes (na medida em que o negócio é perfeitamente válido, desde que o representado tenha especificadamente consentido na celebração), está ferido de anulabilidade (art. 261º) e não de ineficácia, como, prima facie, se poderia pensar e se teria de concluir se o caso não estivesse expressamente hipotizado em norma especial (art. 261º).
A razão de ser da proibição do negócio consigo mesmo é impedir dada a colisão de interesses, um prejuízo para o representado ou para um dos representados.
Por identidade de razão deve ter lugar uma aplicação analógica da proibição do artigo 261° a casos de igual colisão de interesses: p. ex., a hipótese de o representante nomear um outro representante e concluir com este um negócio sobre o património do representado.
Haveria uma possibilidade de fraude ao artigo 261° se o seu conteúdo proibitivo não abrangesse, por aplicação analógica ou directa, a hipótese exemplificada no período anterior”.

Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 3.3.1998, in BMJ 475, 610.

“I – O negócio consigo mesmo, “negotium a semet ipso”, é o celebrado por uma só pessoa, que intervém simultaneamente a título pessoal e de representante de outrem, ou como representante ao mesmo tempo de mais de uma pessoa.
II – Tal contrato, porque envolve perigos evidentes, como seja, desde logo, a circunstância de o representante se sentir tentado a sacrificar os interesses do representado em benefício dos seus, é anulável, conforme o disposto no artigo 261º, nº1, do Código Civil.
III – A viabilidade da anulação do negócio fica afectada desde que se possa concluir pela existência de consentimento ou confirmação do representado, caso em que o mesmo, de anulável, em princípio, passa a ser inteiramente válido.”

Vejamos o caso concreto.

A Autora conferiu ao Réu, em 26.9.1988, procuração para proceder às partilhas por morte de seu pai DD, pai também da Ré CC.

Essa procuração conferiu, além dos latos poderes que dela constam, permissão para o Réu vender a parte que à Autora coubesse nessa herança.

Por escritura pública de 14.2.1991, procedeu-se à partilha dos imóveis indicados em b) dos factos provados – quatro prédios – tendo os que outorgaram a escritura adjudicado os imóveis à Ré CC, na qualidade de filha do de cujus, tendo aí sido afirmado que as tornas de que a Autora era credora tinham sido já recebidas pelo seu procurador – o Réu.

Também se provou que aqueles imóveis foram mandados avaliar pelo Réu, mas que os valores dos bens declarados na escritura de partilha “correspondentes aos valores tributáveis, são muito inferiores ao seu valor real” – item e) e f) dos factos provados.

Poder-se-á considerar que, no caso, não se trata de negócio consigo mesmo, porque o Réu foi incumbido como procurador da Autora para a representar procedendo à partilha que teria de fazer com a sua irmã, casada com ele Réu, e que assim seria de excluir a aplicação daquele regime legal.

Não esquecendo que as partilhas apenas tinham dois interessados directos, a Autora e a Ré sua irmã, sendo o Réu cunhado da Autora, e, como tal, interessado poderia beneficiar ou não o património conjugal dos RR.

Ora, o que a Autora sustenta, é que o Réu se prevaleceu dos poderes conferidos pela procuração para proceder a uma partilha que a lesou patrimonialmente e que teria havido, deste modo, abuso de representação sendo então aplicável o regime legal do art. 269º do Código Civil.

Da conjugação deste normativo com o art. 268º do mesmo diploma, resulta que o negócio celebrado com abuso de representação é ineficaz em relação ao representado, a menos que este o ratifique.

Muito embora a problemática que o recurso encerra possa ser abordada nesta perspectiva, a causa de pedir invocada poderá contemplar o enquadramento na figura do negócio consigo mesmo, entendido o instituto numa perspectiva mais lata já que o Réu, no caso, colheria pela via da procuração, uma vantagem consoante a forma como procedesse sozinho à partilha na qual, sendo a sua mulher interessada, ele também o era (na escritura pública de fls. 30 a 31, de Justificação, lavrada em 28.9.1988, não arguida de falsidade, consta que os RR. são casados no regime de comunhão geral de bens), pelo que, ainda aqui de forma indirecta, o negócio envolvia uma faceta assimilável ao negócio consigo mesmo, com os inerentes perigos e prevenções, dada a patente conflitualidade dos interesses que se perfilavam – o risco denunciado pela Autora de uma partilha injusta e não equitativa com a atribuição de todo o acervo partilhando à Ré sua mulher e pelo preço que ao Réu aprouvesse.

Há, na realidade, um facto perturbador, se analisado à luz da famigerada procuração – seja ela habilitante para o Réu negociar consigo mesmo, seja na perspectiva do abuso dos poderes representativos, pura e simplesmente (art. 269º do Código Civil), esse facto é o de ter o Réu mandado avaliar os prédios a partilhar, como a boa fé e as regras prudenciais de uma partilha equitativa postulavam [não aceitando prima facie os valores fiscais], mas vindo a declarar na escritura esses valores que, como se provou, são muito inferiores ao valor real.

Aqui existiria violação das regras da boa-fé, sobretudo da fiducia que no Réu fora depositada.

Importa então saber se esse facto primordial foi do conhecimento da Autora, já que, ela mesmo afirma não ter recebido as tornas que lhe cabiam e que o Réu, como seu procurador, declarou na escritura que ela as tinha já recebido.

Importa ter presente que a escritura pública (de partilha) – documento autêntico – apenas faz prova plena da materialidade dos factos aí declarados, e já não da sinceridade/verdade da declaração feita perante o notário – art. 371º, nº1, do Código Civil.

Ora, para lá de não se ter provado que o Réu se prevaleceu do débil estado de saúde que a Autora alegara para obter tal procuração, também não se provou o que a Autora alegara acerca da ausência de informação sobre o modo como seria feita a partilha.

Tal como não se provou que a Autora não tenha recebido as tornas que lhe eram devidas (4) .

Assim, mesmo que se enquadre a questão na problemática do abuso da representação, os factos não revelam que o Réu tivesse utilizado os poderes conferidos pela Autora para colher benefícios em seu proveito (indirectamente) pela atribuição dos valores dos bens a partilhar, adjudicados na totalidade à sua mulher.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado” – vol. I, pág. 249:

Há abuso dos poderes de representação, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado”.

Não logrou a Autora provar que, mesmo a existir abuso de representação o desconhecia, sendo que o ónus da prova desse facto por si alegado, lhe competia – art. 342º, nº1, do Código Civil.

Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.10.2004, in CJSTJ, 2004, III -52:

“O negócio consigo mesmo, não sendo excedidos os poderes contidos na procuração, não coenvolve abuso de representação ou representação sem poderes, sancionados com a ineficácia em relação ao representado”.

Neste entendimento o recurso soçobra.

Decisão:

Nestes termos, posto que com fundamentação em parte diversa da do Acórdão recorrido, nega-se a revista.

Custas pela recorrente sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.


Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Dezembro de 2009

Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso de Albuquerque
Salazar Casanova

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1- Conforme assinala Díez-Picazo, o denominado contrato consigo mesmo teve origem nas antigas cidades italianas e alemãs, de intenso tráfico mercantil, pela prática comum de banqueiros e comissionistas se considerarem autorizados pelos seus clientes para contratar em nome de dois clientes, ou de um deles consigo mesmo, especialmente quando se tratava da comercialização de produto com preço fixado em bolsa.
2- “O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.”
3- Vide “Negócio Consigo Mesmo” de Jorge Duarte Pinheiro, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV Volume – “Novos Estudos de Direito Privado” – pág.160.
4- Mereceram resposta negativa os seguintes quesitos – “Há data em que emitiu a procuração aludida em a) a Autora encontrava-se física e psiquicamente debilitada, em convalescença de um ataque de miocárdio que pouco tempo antes havia sofrido?” – “O réu Amândio aproveitou a situação descrita em 1° para conseguir da autora a procuração com o teor da descrita em a) com vista a utilizá-la na escritura de partilha aludida em b)?” – “O réu nunca informou a autora de que iria efectuar a partilha nos termos que constam descritos em c)?” – “A autora não recebeu as tornas aludidas em c)?” – “Ao outorgar na escritura publica aludida em b) nos termos em que o fez, utilizando a procuração aludida em a), o réu quis beneficiar exclusivamente a ré Mana Nunes Sequeira, sua mulher?”.