Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
500/08.4TBESP.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
Data do Acordão: 03/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
A movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário não é oponível ao depositante, que a ela foi alheio, independentemente de culpa do banco depositário nessa movimentação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

   I

            AA e BB moveram a presente acção ordinária contra Banco ... SA, pedindo que o réu fosse condenado a pagar-lhes a quantia de € 116.660,65, acrescida dos juros legais vincendos.

            Em resumo alegam que o réu praticou actos de disposição de um seu depósito bancário, sem que para tanto tivesse o acordo dos autores.

            O réu contestou alegando que praticou todos os actos de diligência que lhe eram exigíveis, pelo que não lhe pode ser imputado qualquer responsabilidade.

            O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente o pedido e condenou o réu apenas em relação a uma das duas transferência em causa, por só em relação a uma delas se ter provado a culpa do réu.

            Apelaram os autores e subordinadamente o réu, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente o recurso do réu e totalmente procedente o dos autores, condenando no pedido o réu, a título de risco.

            Recorre novamente o réu, o qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes conclusões:

            1 Os factos em causa devem ser apreciados, como se fez em 1ª instância à luz do art.º 799º do C. Civil e não do art.º 796º do mesmo código, como fez a Relação.

            2 Os empregados do réu foram igualmente diligentes, quer na 1ª transferência, quer na 2ª, pelo que nenhuma culpa é de assacar ao banco.

            2 Estando assim ilidida a presunção de culpa em relação a ambas as ditas transferências e devendo o réu ser absolvido, em relação a qualquer delas.       

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.     

II

            Vêm dados por provados os seguintes factos:
        

A) Em 9 de Setembro de 2004, e mercê de contrato há vários anos celebrado, os autores eram titulares da conta de depósitos à ordem nº ..., junto da agência da Apúlia do banco réu.
B) Nessa data, o saldo existente na referida conta dos autores ascendia a 103.196,91 (cento e três mil cento e noventa e seis euros e noventa e um cêntimos).
C) Nesse mesmo dia, o banco réu debitou a referida conta pelo montante de 60.000 (sessenta mil euros), que transferiu para uma conta da "..., LP" junto do Banco ... Bank, NA, domiciliado nos Estados Unidos da América.
D) O autor marido possuía uma aplicação financeira associada à conta referenciada em A), denominada ... REFORMA SEGURA PPR/E, constituída por 4.350,7237 unidades de participação num fundo de investimento, subscrito junto do banco réu que, à data de 13 de Outubro de 2004, tinha um valor correspondente a 55.721,89 (cinquenta e cinco mil setecentos e vinte e um euros e oitenta e nove cêntimos).
E) Com data de 24 de Janeiro de 2005, o banco réu remeteu ao autor marido uma missiva com o seguinte teor:
"( ... )
Transferência de USD 72.780,00 e 54.243,00
Exmo Senhor,
Reportamo-nos à reclamação telefónica apresentada por V. Exa, junto da Agência deste Banco, sita em Apúlia, sobre as transferências de 72.780,00 e 54.243,00, efectuadas em 09/09/2004 e 08/11/2004, a favor de ..., LP.
Concluídas as averiguações a que procedemos, constatámos que o Banco procedeu de acordo com as instruções recebidas, conferindo as assinaturas das mesmas, por semelhança, com o espécime existente nos nossos arquivos.
Ainda no que concerne à 2ª transferência, e porque a assinatura suscitou algumas dúvidas, foram enviadas duas cartas registadas com aviso de recepção para a morada que consta nos ficheiros deste Banco. Tal transferência somente veio a ser efectuada após ter sido recepcionada uma carta com assinatura reconhecida notarialmente, carta de que remetemos fotocópia.
Face ao exposto, compreenderá V. Exa que este Banco não atende a reclamação apresentada. ( ... )".
F) Os débitos e transferências mencionados em C) não emanaram de quaisquer instruções dos autores, nem por eles foram autorizados.
G) O banco réu debitou ainda na conta referida em A), sem autorização dos autores, a quantia de 59,80 (cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos), correspondente a comissões, despesas de portes e telecomunicações e imposto de selo, relativa ao débito e transferência mencionado em C).
H) Sem autorização de qualquer dos autores, o banco réu procedeu, em 27 de Outubro de 2004, ao resgate da totalidade daquelas unidades de participação.
I) Aproveitando o saldo gerado pelo produto daquele resgate, que foi creditado na conta de depósitos à ordem dos autores, o banco réu, em 8 de Novembro 2004, debitou a conta dos autores no montante de 42.000 Euros e transferiu novamente para a conta da "..., LP" junto do Banco ... Bank, NA.
J) Os débitos e transferências mencionados não emanaram de quaisquer instruções dos autores, nem por eles foram autorizados.
L) O banco réu debitou ainda aos autores, sem autorização destes, as quantias de 59,80 (cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos), correspondente a comissões, despesas de portes e telecomunicações e imposto de selo, e de 972,45 (novecentos e setenta e dois euros e quarenta e cinco cêntimos), correspondente a uma diferença cambial, relativa ao débito e transferência mencionado em 4).
M) A transferência referida em C) foi executada pelo banco réu na sequência da recepção de carta datada de 30 de Agosto de 2004, cuja cópia se encontra junto a fls. 26 dos autos.
N) Tal carta foi recebida no banco réu, via fax, na data que dela consta, mas não pôde ser executada de imediato, pois tal tipo de operação não pode ser ordenado por fax, carecendo de ser conferidas as instruções e assinatura do cliente por confronto com o documento original.
O) O original daquela carta foi remetido pelo correio ao banco réu, após o que a gerência do balcão da Apúlia conferiu a assinatura daquele por semelhança com a existente na respectiva ficha de assinatura de abertura de conta depositada nos seus arquivos e executou a ordem.
P) Em 13 de Outubro de 2004, o banco réu recebeu uma comunicação com o seguinte teor:
“São Paulo, 13 de Outubro de 2004
Ao Banco ... Apúlia
ATT: CC / Gerência
Solicito que providenciem nesta data o resgate total do meu ... Reforma Segura PPR, com o valor aproximado de EUR 55.717,36 (cinquenta e cinco mil setecentos e dezassete euros e trinta e seis cêntimos), existente na minha conta n? ....
Solicito que seja feito uma transferência no valor de EUR 42.000 (quarenta dois mil euros) de acordo com as instruções abaixo. Solicito que esta transferência seja feita em dólares norte americanos.
... BANK
ADRESS ...
ACCOUNT NUMBER - ...
...ABA NUMBER - ...
SWIFT - PNBPUS ...
BENEF - ..., LP
ADRESS - ...
USA. Solicito que a confirmação desta operação seja enviada ao meu fax ... ou por email ... ( ...).
Q) O Banco Réu respondeu, em 18 de Outubro de 2004, por carta registada com aviso de recepção, com seguinte teor:
"( ... )
Desmobilização integral de PPR
Transferência para os E.U.A.
Exmo Senhor,
Acusamos a recepção da mensagem remetida por V. Exa em 13/10/2004, em resposta, aliás, à N/ mensagem da véspera.
Considerando porém que V. Exa aproveita para solicitar a transferência de 42.000 (quarenta e dois mil euros) para os E.U.A., renovamos a nossa anterior informação de que as n/ normas internas de segurança não nos permitem a execução de transferências para o exterior, a não ser em presença de instruções expressas e com a assinatura original do ordenador.
(…)
Assim, e a fim de procedermos em conformidade com as instruções de V. Exª solicitamos que subscreva e nos devolva o texto anexo com as instruções para o efeito, que tivermos a oportunidade de transcrever do fax recebido.
Ficamos desde já disponíveis para qualquer esclarecimento adicional, através do telefone n? ..., desta Agência. ( ... )".
R) O banco réu, em 4 de Novembro de 2004, remeteu nova carta registada com aviso de recepção ao autor marido com o seguinte teor:
Assunto : Transferência para os EUA
Exmo Senhor,
Confirmando o teor do n/ fax de 28/10, ao qual não obtivemos, até ao momento, qualquer resposta, e não dispondo ainda do contacto telefónico de V. Exª no estrangeiro, informamos que, pretendendo efectuar a transferência de 42.000 (quarenta e dois mil euros) solicitada por V. Exª, foi considerado que a assinatura constante na respectiva carta / pedido não está conforme a existente nos nossos ficheiros (há diferenças bem visíveis entre ambas).
Assim, e por razões de segurança, solicitamos que, por correio (expresso, se entender conveniente) nos devolva carta minutada que lhe remetemos em 18/10/04, subscrita igualmente pela esposa de V. Ex.ª. Em alternativa, e prevenindo até eventuais dúvidas que possam subsistir, sugerimos o reconhecimento notarial da(s) assinatura(s). ( ... ).
S) Por carta datada de 2 de Novembro de 2004, o banco recebeu o seguinte:
"São Paulo, 2 de Novembro de 2004
Ao Banco ... Apúlia
Att: DD / Gerência
Solicito que providenciem nesta data o resgate total do meu ... Reforma Segura PPR, com o valor aproximado de EUR 55.717,36 (cinquenta e cinco mil setecentos e dezassete euros e trinta e seis cêntimos), existente na minha conta nº. ....
Solicito que seja feito uma transferência no valor de EUR 42.000 (quarenta e dois mil euros) de acordo com as instruções abaixo. Solicito que esta transferência seja feita em dólares norte americanos.
... BANK
ADRESS ...
ACCOUNT NUMBER - ...
...ABA NUMBER - ...
SWIFT - PNBPUS ...
BENEF - ..., LP
ADRESS - ...
USA. FOR FINAL CEDIT: AA, meu telefone pessoal é ....
Solicito que a confirmação desta operação seja enviada ao meu fax ... ou por email ... ( ... )".
T) O banco réu procedeu ao controle da assinatura mencionada em 15), mediante o confronto da assinatura daquele por semelhança com a existente na respectiva ficha de assinatura de abertura de conta.
U) O banco réu, em 22 de Novembro de 2004, remeteu uma carta registada com aviso recepção ao Autor marido com o seguinte teor:
"Assunto: Transferência de USD.53.159,40 para os EUA
Exmo Senhor,
Em carta datada de 13/10/04, solicitava-nos o resgate total do PPR – ... Reforma Segura (conta nº -...), e, imediatamente após, a transferência de USO equivalentes a 42.000 para os EUA, a favor de ..., LP.
Assim, com o montante de PPR disponível na conta 0.0. em 27/10/04, providenciámos, no dia seguinte (28), através da n/ Sala de Mercados, a compra, com câmbio negociado (1,2657), dos dólares à transferência solicitada.
Porém, quando pretendemos concretizar a transferência para o exterior, concluiu-se, na conferência obrigatória da assinatura do ordenador, que esta não correspondia à existente nos n/ ficheiros, pelo que, conforme prevêem as normas de segurança, se impunha que a operação ficasse suspensa até que V. Exª nos fizesse chegar idênticas instruções com assinatura conforme. Nesse sentido, contactamos V. Exª via fax e, em confirmação, via carta registada, ao que V. Exª correspondeu com carta datada de 02/11/04, com assinatura reconhecida em cartório notarial.
Ultrapassado, assim, o problema da conferência da assinatura do ordenador, providenciamos, em 08/11/04, a transferência solicitada. Todavia, por lapso, no cálculo do contravalor dos USD a transferir, considerámos o câmbio do próprio dia (1,2957), quando o câmbio a considerar correctamente era aquele (1,2657) a que tínhamos comprado os USD em 28/10, conforme atrás referimos. Do lapso, resultou uma diferença de 972,45 euros, importância esta que tomamos a liberdade de debitar na conta D.O. de V. Exª, por forma a fazer o acerto correspondente. ( ... )".
V) Após a recepção da missiva referida em U), o autor marido apresentou reclamação telefónica ao banco réu, suscitando a questão da inexistência de ordens para as transferência supra mencionadas, ao que aquele respondeu pela carta referida em E).

           III

            Apreciando

      

Em 1ª instância considerou-se que o réu banco, nas duas indevidas transferências bancárias efectuadas sobre a conta dos autores, apenas conseguira provar, como lhe competia, que numa delas (na segunda) efectuara todas as diligências que lhe eram exigíveis. Assim, considerou-o responsável pela primeira transferência, nos termos do art.º 799º do C. Civil, ou seja, não considerou ilidida a presunção de culpa no incumprimento que o referido preceito impõe.

            Foi outro o entendimento da Relação, que submeteu o caso dos autos à disciplina jurídica do art.º 796º nº 1 do mesmo código. Determina este preceito que corre por conta do adquirente o perecimento ou deterioração da coisa nos contratos que implicam a  transferência do domínio sobre essa mesma coisa. Desde que a causa desse perecimento ou deterioração não sejam imputáveis ao alienante. Por esta razão, considerou que o onerado pelo facto da indevida perda de valor do depósito dos autores era o próprio banco e condenou-o no respectivo pagamento, não atendendo à questão da sua culpa na ocorrência do evento danoso.

            Vejamos.

            A principal obrigação do depositário no depósito bancário é conservar disponível, nos termos contratuais, o valor depositado. Mas dificilmente se poderá dizer aqui que o banco mantém o domínio sobre a coisa, uma vez que estamos perante dinheiro, ou seja, coisa fungível. O depositário não perdeu a possibilidade de pagar ao depositante. Deste modo, não pode ter aplicação o princípio consagrado no citado art.º 796º nº 1 do res perit domino, uma vez que não existe coisa que possa perecer.

O que acontece é que há um depósito bancário, cujo respectivo valor, só pode ser movimentado, como dissemos, nos termos contratuais, nomeadamente, com autorização do depositante. O que ocorreu foi uma movimentação fora desses termos contratuais, estranha ao depositante que a não autorizou e que, portanto, não lhe é oponível, não sendo relevante no que à sorte do deposito respeita.

Consequentemente, não cabe ver se o banco agiu com ou sem culpa. Perante o depositante mantém-se válido e inalterado o depósito, com a consequente obrigação do depositário  de prestar.

A posição do banco de não prestar compreende-se perante a sua alegação – cf. a contestação – de que as transferências em causa tinham sido autorizadas pelo autor. Mas, ficou provado o contrário, que o mesmo autor fora estranho às ordens de transferência.  

            Deste modo, o banco é responsável, independentemente de culpa, pela movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário – cf. Acórdão deste STJ de 18.12.08 Cons. Santos Bernardino www.stj.pt 08B2688 - :

            “Recai sobre o banco o ónus da prova de que a movimentação da conta ocorreu por motivo justificado, designadamente, porque tinha ordem ou autorização de transferência emanada do cliente, pelo que, não demonstrado este pressuposto, o banco responde perante o cliente.”  

            Nem se diga, como o recorrente, que o domínio do réu sobre o depósito não era total, uma vez que o depositante mantém poderes de mobilização e disposição do depósito. Estes poderes do depositante têm como pressuposto o principal dever do depositário que é o de conservar a quantia, mas não o limitam. A conservação do depósito bancário, como um valor, compete unicamente ao banco. Não sendo, pois, de imputar, por qualquer modo, ao depositante a perda em questão.

            Com o que improcede o recurso, por ser de confirmar, embora por outros motivos, a decisão em apreço.

            Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam, com outra fundamentação, o acórdão recorrido.

            Custas pelo recorrente.

Lisboa, 8 de Março de 2012

Bettencourt de Faria (Relator)
Pereira da Silva
João Bernardo