Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3410/10.1T2SNT-E.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
HONORÁRIOS
INTERVENIENTE ACIDENTAL
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
COMISSÃO DE CREDORES
MASSA INSOLVENTE
REMUNERAÇÃO
AUTORIZAÇÃO
INEFICÁCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - ÓRGÃOS DA INSOLVÊNCIA / ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE O DEVEDOR E OUTRAS PESSOAS / EFEITOS PROCESSUAIS - RELATÓRIO DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA / LIQUIDAÇÃO / PAGAMENTO AOS CREDORES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CIRE (DL N.º 53/2004, DE 18-3): - ARTIGOS 9.º, N.º1, 14.º, N.º1, 55.º, 61.º, 62.º, 81.º, 82.º, 84.º, 85.º, 155.º, 156.º, 161.º, 162.º, 163.º, 172.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 144.º, N.º1, 145.º, N.ºS 5 E 6, 150.º, N.º 1, ALÍNEA B), 254.º, N.º3, 685.º, N.º1, 691.º, N.º5.
DL N.º 303/2007, DE 24-8: - ARTIGOS 11º, N.º 1, E 12º, N.º 1.
Sumário :
I - A disposição contida no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, que no âmbito da insolvência exclui, em regra, o recurso para o STJ, não tem aplicação a uma acção apensa que não tem por objecto a insolvência em si, nem integra, formal e estruturalmente, o próprio processo de insolvência ou quaisquer dos seus incidentes, no âmbito dos quais o legislador sentiu necessidade de estabilizar as decisões aí proferidas, incluindo nessa rápida estabilização também as questões incidentais.

II - O administrador de insolvência tem um leque variado de funções e competência – cf. arts. 55.º, 61.º, 62.º, 81.º, 82.º, 84.º, 85.º, 155.º, 162.º e 172.º do CIRE –, desempenhando as suas funções com a cooperação da comissão de credores, se existir, e sob a fiscalização não só do mesmo órgão, mas também submetido à tutela fiscalizadora do juiz. Para o efeito, dispõe de amplas faculdades, cujo exercício, em alguns casos, depende do parecer da comissão de credores, que é um órgão obrigatório no processo de insolvência e cuja intervenção, em alguns casos, é imprescindível.

III - Sempre que a actuação do administrador de insolvência esteja condicionada pela comissão de credores, não pode ele agir sem previamente obter dela as autorizações necessárias para o efeito. A sua actividade é predominantemente dirigida à preparação do pagamento das dívidas do insolvente, o que passa, normalmente pela liquidação do património deste. Compreende-se, por isso, que uma das suas primeiras tarefas seja a de apurar o património existente e seu valor actual e com base em tal informação (e demais necessárias) elaborar o relatório a que alude o art. 155.º do CIRE, para ser presente à primeira reunião da assembleia de credores, permitindo que esta, com melhor conhecimento de causa, tome as deliberações que tenha por apropriadas – art. 156.º do CIRE.

IV - No exercício das respectivas funções, o administrador de insolvência pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão; porém, só os actos que se mostrem especialmente decisivos ou relevantes, pela sua dimensão ou implicações na massa ou na situação dos credores, é que necessitam de prévia consulta da comissão de credores ou do juiz – cf. art. 161.º, n.ºs 1 a 3, do CIRE.

V - Em concreto, atendendo ao valor acordado entre o administrador da insolvência e o interveniente acidental/recorrente (€ 47 783) e o critério definido no art. 161.º, n.º 2, do CIRE (riscos envolvidos, as suas repercussões e perspectivas de satisfação dos credores) não resta a menor dúvida de que se tratava de um acto de especial relevo. Deveria, assim, ter sido obtida a prévia concordância da comissão de credores ou do juiz para tal contratação.

VI - Na medida em que nem o negócio nem o crédito dele resultante para o recorrente foram reconhecidos pela massa insolvente, pela comissão de credores ou pelo tribunal, e existindo um notório e manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas, tal implica a ineficácia do acto, nos termos do art. 163.º do CIRE.

Decisão Texto Integral:
           
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório

I –AA intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra "BB - Sociedade de Construções, SA", a correr termos por apenso ao respectivo processo de insolvência, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €37.783,00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde 20.09.2010 até integral e efectivo pagamento.

Invoca para tanto que no exercício da sua actividade, de engenheiro civil, a pedido do administrador da insolvência, Dr. CC, em representação da BB, e após lhe ter sido comunicado pelo dito administrador ter sido aprovado o orçamento por si apresentado, efectuou serviços de avaliações para a insolvência.

Dos honorários acordados - no montante de €47.783,00 - a ré apenas procedeu ao pagamento da quantia de €10.000,00, encontrando-se ainda em débito a quantia peticionada.

A ré apresentou contestação, onde, para além de invocar a excepção de caso julgado, sustentou, em síntese, que o autor, se levou a cabo as diligências que afirma ter realizado, fê-lo por sua conta e risco e/ou por contrato celebrado com quem não tinha poderes para vincular a massa insolvente, pois a comissão de credores que estava designada nunca foi chamada a pronunciar-se sobre a contratação do autor e, menos ainda, sobre a actividade a desenvolver e o valor dos honorários a pagar.

Com tais fundamentos concluiu pela improcedência da acção, tendo ainda deduzido pedido reconvencional, visando obter a condenação do autor, caso se prove que recebeu €10.000,00 a título de adiantamento por conta de honorários, pagos pela massa insolvente, a devolver-lhe tal quantia.

O autor apresentou resposta à contestação, pugnando pela improcedência da excepção deduzida e bem como da reconvenção.

No saneador a arguida excepção de caso julgado foi refutada, condensou-se a matéria de facto, com especificação da já assente e organização da base instrutória.

Realizada audiência de discussão e julgamento, com gravação dos depoimentos aí prestados, e, dirimida a matéria de facto, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção e total improcedência da reconvenção, condenou a ré a pagar ao Autor a quantia de €37.783,00 (trinta e sete mil, setecentos e oitenta e três €uros), acrescida de juros de mora, à taxa legal desde 17.02.2011 até integral e efectivo pagamento, absolvendo o autor do pedido reconvencional.
A ré apelou, com total êxito, tendo a Relação de Lisboa revogado a sentença e, na improcedência da acção, absolvido a ré do pedido.
Agora inconformado, interpôs o autor recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:
1) O presente recurso tem como fundamento a violação da lei processual, por ofensa da disposição da lei que regula as funções e o exercício do Administrador de Insolvência previsto mais especificamente, o art.° 55° do CIRE, o qual terá de ser alvo de uma análise complexa, sob pena de não se atender à isenção e à zelosidade como condições imprescindíveis para a consecução dos poderes funcionais a que o Administrador de Insolvência está investido;
2) Sendo que, a independência e isenção são necessárias e determinantes para prosseguir os objectivos do processo de insolvência, de forma a defender os interesses do insolvente e principalmente dos seus credores, pelo respeito pelo Princípio da igualdade destes e na defesa genérica dos seus interesses;
3) A circunstância de a pedido do Administrador de insolvência, Dr. CC, em representação da BB, ter contratado um perito, o aqui recorrente, para no exercício da sua actividade elaborar um orçamento relativo a avaliações para a BB, deve ser entendido como um acto essencial, necessário e conveniente à tutela dos interesses a proteger;
4) Se entendermos tal como fez o douto acórdão da Relação de Lisboa e salvo douto entendimento em contrário, que o art.° 55° do CIRE, deve ser entendido de forma, a que o Administrador sempre que necessitar de ser coadjuvado por técnicos e ou auxiliares careça de autorização da comissão de credores ou de autorização do juiz, está-se a esvaziar as funções do Administrador e a tornar-se o processo moroso;
5) Situação que não se coaduna com a celeridade de um processo de insolvência;
6) Assim, o Administrador de Insolvência ao não promover a prévia autorização para a prática do acto de contratação do perito para efectuar avaliações, não viola nenhum dos seus deveres inerentes ao cargo que desempenha, pelo contrário!;
7) Pois, pese embora os valores em questão, não se pode descuidar de que se tratava de um acto necessário, dado que havia urgência, quer na entrega de proposta de honorários, quer na execução dos trabalhos;
8) Pelo que, ao contrário do que fez o Tribunal recorrido, não se pode declarar ineficaz o acto praticado pelo Administrador de insolvência;
9) Sendo certo que não poderá ser revogada a sentença do Tribunal de 1ª Instância, objecto de recurso, devendo o presente Tribunal proceder à condenação da BB;
10) O Tribunal da Relação de Lisboa fez uma incorrecta interpretação do art.° 55° do CIRE, dado que considera que o Administrador de Insolvência deveria ter tido concordância da comissão de credores ou do Tribunal para a contratação;
11) Assim, como fez uma incorrecta apreciação do acto de adjudicação praticado, não considerando tal acto abrangido pelo art. 163° do CIRE;
12) Dispõe o art.º 163° do CIRE: "A violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.";
13) Ora, o legislador quis proteger o terceiro de boa fé que negoceia com o Administrador de insolvência, mesmo à custa interesses dos credores;
14) No caso sub judice, o Sr. Administrador da Insolvência em exercício de funções à data, Sr. Dr. CC aprovou a proposta de honorários, apresentada pelo recorrente no valor de €47.783,00, referente a avaliações de imóveis da BB e acertou com este o início dos trabalhos;
15) A Comissão de credores nunca foi chamada a pronunciar-se sobre a contratação do recorrente, a actividade a desenvolver e honorários a este pagar;
16) Daqui resulta de que o acto praticado pelo Sr. Administrador de Insolvência é válido, só não o seria se existisse desequilíbrio de prestações;
17) Não resulta dos autos, nem existe sequer prova nesse sentido, de que existiu excesso ou desequilíbrio da obrigação/prestação;
18) Desta forma, não se pode declarar o acto praticado pelo Sr. Administrador de Insolvência como ineficaz, pois tal só poderia ser feito se "...excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte." Cfr. artº 163° do CIRE.
19) O recorrente discorda do Acórdão da Relação de Lisboa, pois baseia-se numa incorrecta interpretação da lei reguladora da Insolvência (nomeadamente o artº 55° e 163° do CIRE);
20) Surge a questão de saber, em que se baseou o Tribunal da Relação de Lisboa para quantificar o manifesto desequilíbrio?
21) Como foi feita esta avaliação entre obrigação/prestação?
22) Teria de ficar provado e fundamentado na decisão - que não ficou - que a avaliação realizada pelo recorrente teria um valor inferior ao indicado nos autos! ou que o trabalho desenvolvido pelo autor foi manifestamente inferior á obrigação (valor pago) pelo administrador de insolvência.
23) E dos autos não resulta prova de que o valor dos honorários do aqui recorrente fora excessivo!
24) E não basta um desequilíbrio qualquer...tendo que existir um desequilíbrio manifesto!
25) Muito além do aceitável pelo homem comum...
26) O manifesto desequilíbrio tem de ser discutido, avaliado, analisado e provado para que se possa chegar à conclusão que aquilo que o administrador de insolvência pagou, foi manifestamente superior à prestação efectuada pelo autor.
27) Ora, não resulta dos autos prova de que as obrigações assumidas pelo Sr. Administrador de Insolvência excederam manifestamente as da contraparte, pelo que, não pode prejudicar a eficácia dos actos praticados pelo mesmo;
28) O Acórdão em crise limita-se a fundamentar a sua decisão no facto de que existe um manifesto desequilibro entre as obrigações assumidas pelo Sr. Administrador em funções na data dos factos e pela contraparte;
29) Contudo não indicia logicamente nem fundamenta como chega a esta conclusão, não indica em que se baseia, qual o excesso, qual a quantificação...ou o porque de ser existir um manifesto desequilíbrio.
30) Assim, tivesse o autor cobrado o valor de 5.000,00 € ou 30.000,00 € seria sempre um valor desequilibrado...
31) Dado que o trabalho desenvolvido pelo aqui recorrente não foi avaliado, como se decide que existe manifesto desequilíbrio?
32) Deveria o Tribunal da Relação ter aplicado a regra geral, ou seja, de que a violação da lei, traduzida na falta do consentimento necessário para a prática do acto, nos termos do sucedido, e de que o administrador devia munir-se, não pode afectar a eficácia do acto, o que significa a inoponibilidade do vício à contraparte;
33) Pois o Autor actuou e trabalhou de boa fé!
34) A preços de mercado, e viu os seus honorários serem previamente aprovados;
35) E trabalhou na expectativa de receber pelo seu trabalho os valores acordados;
36) Assim, como fez uma incorrecta apreciação do acto de adjudicação praticado, não considerando tal acto abrangido pelo art. 163° do CIRE.
A ré contra-alegou, suscitando a inadmissibilidade do recurso, a sua intempestividade e pugnando pelo seu insucesso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II -  Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1) Em 20.09.2010, o autor foi notificado do despacho proferido no âmbito dos autos de insolvência, que correm termos sobre o n.° 3410/10.1T2SNT, do Juízo do Comércio da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, com o seguinte teor "Considerando que tal avaliação terá sido pedida pelo anterior Administrador, sem que tenha consultado o Tribunal ou a Comissão de Credores, nomeada na sentença, conforme deveria ter feito, de acordo com o artigo 55°, n.° 3, do Cire (particularmente em face dos valores claramente excessivos e quase abusivos, que estão em causa), entende o Tribunal que deverá ser ao Sr. Dr.CC, que o ora requerente deverá pedir o pagamento, já que a massa insolvente não deverá pagar um serviço que foi decidido contratar autonomamente e sem qualquer consulta, por aquele (...);

2) Em Março de 2010, o Sr. Dr. CC era Administrador de Insolvência da Ré;

3) O autor exerce a actividade de engenheiro civil - resposta ao art.° 1o da base instrutória;

4) O autor é perito oficial da CMVM - resposta ao art.° 2o da base instrutória;

5) O autor foi contactado, no início de Março de 2010, pelo Exmo. Sr. Dr. CC com vista à prestação de serviços para elaborar orçamento relativo a avaliações para a insolvência da ré - resposta ao art.° 3o da base instrutória;

6) O autor entregou em data não concretamente apurada do mês de Março de 2010, mas seguramente após dia 12 e antes de dia 25, ao Sr. Administrador da Insolvência nomeado a proposta de honorários no valor de €47.783,00 - resposta ao art.° 5o da base instrutória;

7) No dia 25 de Março de 2010 o Sr. Administrador da Insolvência nomeado e os Srs. DD e EE aprovaram o orçamento apresentado pelo autor - resposta ao art.° 6o da base instrutória;

8) E acertaram o início dos trabalhos - resposta ao art.° 7° da base instrutória;

9) O autor analisou algumas envolventes - resposta ao art.° 9o da base instrutória;

10) E consultou alguns PDMs - resposta ao art.° 10° da base instrutória;

11) O que obrigou a diversas visitas - resposta ao art.° 11o da base instrutória;

12) E fez análise comparativa do mercado - resposta ao art.° 12° da base instrutória;

13) E trabalho de secretaria, reportagem fotográfica e execução dos relatórios - resposta ao art.° 14° da base instrutória;

14) O autor realizou reuniões com o Eng. EE - resposta ao art.° 15° da base instrutória;

15) E inúmeros contactos telefónicos para ser elucidado de pequenos pormenores - resposta ao art.° 16o da base instrutória;

16) E recolheu todas as certidões prediais e matriciais, com deslocação às Conservatórias e Finanças respectivas - resposta ao art.° 17° da base instrutória;

17) O autor colocou uma equipa no terreno para descobrir e tirar cópias das certidões matriciais e prediais - resposta ao art.° 20° da base instrutória;

18) Até à presente data, o autor apenas recebeu €10.000,00 por conta dos serviços efectuados - resposta ao art.° 23° da base instrutória;

19) A Comissão de Credores nunca foi chamada a pronunciar-se sobre a contratação do autor, actividade a desenvolver e honorários a este pagar - resposta ao art.° 25° da base instrutória.         
III – Fundamentação de direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil[1]) passam pela análise e resolução da única questão jurídica por ele colocada e que consiste em determinar se a massa insolvente é responsável pelo pagamento dos honorários por ele peticionados.
Antes, porém, há que apreciar e decidir da admissibilidade e tempestividade do recurso, temáticas que a recorrida suscitou na contra-alegação que apresentou.
Debrucemo-nos, então, separadamente sobre cada uma dessas questões.
1 – Admissibilidade e tempestividade do recurso
No âmbito da insolvência, o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça está, em regra, excluído, como resulta do art.º 14º, n.º 1, parte inicial, do CIRE[2] sendo consequentemente a Relação a última instância. Só assim não sucede, como se vê da última parte do preceito, quando o acórdão da Relação estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Tribunal da Relação e não tiver sido fixada ainda jurisprudência pelo Supremo conforme à decisão de que se recorre.
Esta limitação do grau de recurso, que constitui, como é fácil de ver, mais um mecanismo tendente a conferir celeridade ao processo de insolvência, objectivo afirmado expressamente nos pontos 12 a 17 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, não tem aplicação ao caso em apreço, na medida em que se trata de uma acção apensa que não tem por objecto a insolvência em si, nem integra, formal e estruturalmente, o próprio processo de insolvência ou qualquer dos seus incidentes, no âmbito dos quais, frise-se, o legislador sentiu necessidade de estabilizar as decisões aí proferidas, incluindo nessa rápida estabilização também as questões incidentais.
 Deste modo, ao invés do que sustenta a recorrida, o acórdão da Relação é susceptível de recurso de revista, nos termos gerais, sendo certo também que foi tempestivamente interposto.
Com efeito, tratando-se de um processo de natureza urgente (art.º 9º, n.º 1, do CIRE), o prazo de recurso é reduzido para 15 dias e conta-se desde a data da notificação (art.ºs 685º, n.º 1, e 691º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil), podendo ser acrescido de mais três dias úteis, mediante o pagamento de multa (art.º 145º, n.ºs 5 e 6 do Cód. Proc. Civil). Considerando que o acórdão foi notificado, através de via postal registada, com data de 05/11/2012 (fls. 178), a notificação considera-se efectuada no dia 8 desse mês, o terceiro dia posterior ao do registo (art.º 254º, nº 3, do Cód. Proc. Civil). Iniciou-se no dia seguinte a contagem do dito prazo, que correu continuamente (art.º 144º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) e terminou no dia 23 desse mês, uma sexta-feira, podendo ainda o recorrente beneficiar ainda dos três dias úteis subsequentes (26, 27 e 28 de Novembro[3]), para interpor o recurso, mediante o pagamento de multa (art.º 145º, n.ºs 5 e 6 do Cód. Proc. Civil).
Ora, como se vê de folhas 221, o recorrente remeteu o recurso, com registo postal datado de 28 desse mês, data que vale como data de entrada, nos termos do art.º 150º, n.º 1, alínea b), do Cód. Proc. Civil, e tendo pago a multa devida (fls. 219, 220) há que concluir pela tempestividade do recurso.
2 – Entrando, agora, no mérito deste que envolve a determinação da responsabilidade da recorrida massa insolvente pelo pagamento dos honorários peticionados pelo recorrente, contratado pelo Administrador da insolvência, sem autorização de qualquer outro órgão, interessa ponderar que, no âmbito do CIRE, o Administrador da insolvência tem um leque variado de funções e competências (cfr. art.ºs 55º, 61º, 62º, 81º, 82º, 84.º, 85.º, 155.º, 162.º, e 172.º), assumindo um papel de grande importância dentro do processo de insolvência. Desempenha as suas funções com a cooperação da comissão de credores, se existir, e sob a fiscalização não só do mesmo órgão, mas também submetido à tutela fiscalizadora do juiz. Para o efeito, dispõe de amplas faculdades, cujo exercício, em alguns casos, depende do parecer da comissão de credores, que é um órgão obrigatório no processo de insolvência e cuja intervenção, em alguns casos, é imprescindível.
Tais poderes têm em vista a satisfação de interesses que não lhe são próprios, assumindo a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que o Administrador da insolvência não só pode como deve desempenhar com a natural diligência de um gestor prudente, criterioso e ordenado. Mesmo quando a lei lhe confere possibilidade de opção entre várias alternativas, Administrador da insolvência deve agir de acordo com aquela que for, segundo o critério de um gestor ordenado, a mais adequada à defesa dos interesses dos credores. A sua actividade deve ser levada a cabo com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, que representa estes e tem papel determinante na condução do processo de insolvência.
Resulta daí que sempre que a actuação do administrador de insolvência esteja condicionada pela comissão de credores, não pode ele agir sem previamente obter dela as autorizações necessárias para o efeito. A sua actividade é predominantemente dirigida à preparação do pagamento das dívidas do insolvente, o que passa, normalmente pela liquidação do património deste. Compreende-se, por isso, que uma das suas primeiras tarefas seja a de apurar o património existente e seu valor actual e com base em tal informação (e demais necessárias) elaborar o relatório a que alude o art.° 155° do CIRE, para ser presente à primeira reunião da assembleia de credores, permitindo que esta, com melhor conhecimento de causa, tome as deliberações que tenha por apropriadas (art.° 156° do CIRE).
No exercício das respectivas funções, o administrador de insolvência pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão. Contudo, nem todos os seus actos se encontram sujeitos a esse regime. Só os actos que se mostrem especialmente decisivos ou relevantes, pela sua dimensão ou implicações na massa ou na situação dos credores, é que necessitam da prévia consulta da comissão de credores ou do juiz. Será assim, nomeadamente, com os actos que a lei qualifica de especial relevo nos termos do art.° 161°, n.ºs 1 a 3, do CIRE.
No caso em apreço, atento o valor acordado entre o Administrador da insolvência e o recorrente (€47.783,00) e o critério definido no art.° 161°, n.° 2, do CIRE (riscos envolvidos, as suas repercussões e perspectivas de satisfação dos credores) não resta a menor dúvida de que se tratava de um acto de especial relevo. Deveria, assim, ter sido obtida a prévia concordância da comissão de credores ou do juiz para tal contratação, o que não sucedeu.
As instâncias qualificaram convergentemente a contratação dos serviços do recorrente como acto de especial relevo, mas divergiram quanto à ineficácia desse negócio relativamente à massa insolvente e à responsabilidade desta pelo pagamento dos honorários acordados com o administrador da insolvência. A 1ª instância entendeu responsabilizar a massa insolvente, enquanto a 2ª instância considerou que esta nada tem que pagar ao recorrente.
Afigura-se-nos acertada a decisão da última, na medida em que nem o negócio nem o crédito dele resultante para o recorrente foram reconhecidos pela massa insolvente, pela comissão de credores ou pelo tribunal, que inclusive, como bem salienta o acórdão impugnado, entendeu, no âmbito do respectivo processo de insolvência, que os valores peticionados eram claramente excessivos e quase abusivos, cabendo a responsabilidade pelo seu pagamento ao anterior administrador de insolvência (cf. ponto 1. do elenco factual provado).
Assim, ao invés do que sustenta o recorrente, existe um notório e manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas, o que implica a ineficácia do acto, nos termos do art.° 163° do CIRE, pois aquelas excederam manifestamente as da contraparte, a massa insolvente, com o que se intenta evitar o enriquecimento do recorrente, à custa da massa insolvente e o correspondente prejuízo dos credores, a quem, declaradamente, o processo de insolvência visa tutelar.
Deste modo, não se acolhe a argumentação arquitectada pelo recorrente em ordem a concluir pela eficácia da sua contratação e responsabilização da recorrida pelo pagamento dos honorários que peticionou, apresentando-se deslocadas ou improcedentes as conclusões que tal propósito extraiu, o que implica o naufrágio total da revista e a confirmação do bem elaborado impugnado aresto.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e consequentemente confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


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Lisboa, 16 de Abril de 2013

António Piçarra (Relator)

Sebastião Póvoas

Moreira Alves

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[1] Na versão introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, uma vez que o processo foi instaurado depois de 01 de Janeiro de 2008, data em que entrou em vigor tal diploma legal (cfr. os seus art.ºs 11º, n.º 1, e 12º, n.º 1).
[2] A que pertencem as disposições indicadas sem qualquer menção de origem.
[3] Os dias 24 e 25 foram sábado e domingo, respectivamente.