Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1838
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200607060018381
Data do Acordão: 07/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1) A omissão de conhecimento, como causa de nulidade da decisão, implica o silenciar de qualquer das questões a que se refere o nº2 do artigo 660º do Código de Processo Civil.
Se a questão é abordada mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, erro de julgamento, que não "errore in procedendo".

2) A redacção do artigo 690ºA do CPC introduzida pelo Decreto-Lei nº 183/2000 de 18 de Agosto, é de aplicação imediata, dispensando o recorrente, que impugna a matéria de facto, de proceder à transcrição das passagens da gravação em que se funda.

3) A indicação dos pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgada deve constar da alegação, nos termos do nº1, alínea a) do artigo 690º A do CPC.

4) Se o recorrente elenca os depoimentos em que se funda, por referencia aos assinalados na acta com indicação da gravação, cumpre o ónus da alínea b) do nº1 daquele preceito e, discordando dos ilações tiradas, é inequívoco pretender impugnar a matéria de facto a que esses depoimentos se reportam.

5) O convite ao aperfeiçoamento das peças processuais recuperáveis, é resultado principio geral da cooperação, constante do nº do artigo 265º, conjugado com o artigo 266º, e é aplicável quando é incumprido o ónus da alínea a) do nº1 do artigo 690º A da lei adjectiva.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"Empresa-A" instaurou execução ordinária, para pagamento de quantia certa contra "Empresa-B", AA e BB.

Os executados deduziram oposição por embargos que a 11ª Vara Cível de Lisboa julgou improcedentes.

A Relação de Lisboa negou provimento à ulterior apelação, confirmando a sentença recorrida.

Pedem, agora, revista concluindo nuclearmente:

- O Acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, já que não se pronunciou sobre a impugnação da matéria de facto, com o argumento de os recorrentes não terem transcrito as passagens da gravação tidas por pertinentes - nº2 do artigo 690 A e nº 2 do artigo 522 C do CPC;

- Não tinham de proceder a essa transcrição face ao Decreto-Lei nº 183/2000, já em vigor aquando da propositura da acção, sendo que indicaram os depoimentos que puseram em crise;

- A sentença e o Acórdão são nulos por a execução ter sido intentada antes do vencimento da última prestação do titulo - livrança - e não foi alegada a forma de preenchimento, tratando-se de livrança em branco;

- A livrança teve na sua origem um contrato de empréstimo para aquisição de um automóvel pela "Empresa-B", nunca tendo o exequente facultado os documentos para o veiculo circular, o que traduz incumprimento que se excepciona;

- Os pedidos de indemnização devem proceder por tal resultar dos depoimentos prestados.

Não foram produzidas contra-ordenações.

A Relação pronunciou-se pela ausência de nulidades.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Omissão de pronúncia.
2- Alteração da decisão de facto.
3- Aperfeiçoamento.
4- Conclusões.


1- Omissão de pronúncia.

Cumpre, antes do mais, abordar o primeiro ponto das conclusões da alegação.

Referem os recorrentes que a Relação não se pronunciou sobre a matéria de facto impugnado e que tal integra uma omissão de pronúncia geradora de nulidade.

Mas, e na perspectiva em que a coloca a questão, não lhe assiste razão.

O vício do nº1, alínea d) do artigo 668º do Código de Processo Civil, tem ínsito o incumprimento do nº2 do artigo 660º, caracterizado pelo absoluto silenciar de pronúncia sobre uma questão que a parte submeteu.

Trata-se de um mero vício formal, que não deve ser confundido com o erro de julgamento.

Este é um vício de conteúdo - "errare in judicando" - caracterizado por uma divergência entre o afirmado e a verdade fáctica ou jurídica.

O vício de limite não é um erro judicial incidente no mérito.

Trata-se, tão somente, de "errores in procedendo".

Na omissão de conhecimento, a decisão embora esteja estruturada de forma regular e todas as suas afirmações sejam porventura juridicamente exactas e factualmente verdadeiras, não contém tudo o que devia conter por o julgador ignorar, ou esquecer, o tratamento de alguma questão que devia apreciar e decidir.

Claro que tal não implica que tenha de emitir juízo sobre todos os argumentos das partes mas, apenas, ao que cabe no nº 2 do artigo 660º.

Ora a Relação abordou a questão que lhe foi posta mas decidiu não a conhecer por entender existirem motivos legais de tal impeditivos.

Não há, em consequência, omissão de pronúncia.

Mas haverá erro de julgamento?

2- Alteração da decisão de facto.

Disse-se no Acórdão "sub judicio":

"Também já decorre do exposto que a pretendida alteração da decisão de facto se acoberta na previsão da alínea a) do nº1 do artigo 712º do CPC, ou seja, a decisão da 1ª instância pode ser alterada pelo Tribunal da relação "se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do Artigo 690º A, a decisão com base neles proferida."

Mas neste caso e igualmente com a cominação de rejeição do recurso, a lei impõe ao recorrente um ónus adicional, mais precisamente aquele que decorre do preceituado no nº2 do citado artigo 690º A.

No regime actual, introduzido pelo DL nº 183/00, de 10/8, esse ónus cinge-se à mera indicação dos depoimentos em que se funda o reparo, "... por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº2 do artigo 522º C". (...) "Sucede que a recorrente não procedeu a qualquer transcrição, limitando-se a fazer uma sumária analise critica dos depoimentos das testemunhas, censurando a valorização que destes foi feita pelo tribunal e opinando no sentido de que afinal este ou aquele depoimento lhe parece mais valorativo em relação aos demais.

Assim sendo, não tendo sido feita a transcrição dos respectivos depoimentos, é processualmente impossível sindicar a prova testemunhal recolhida e, logo, a decisão factual assente nesse meio probatório."

2.1- É patente a sem razão.

A lide foi intentada em 6 de Novembro de 2002.

É-lhe aplicável a redacção do artigo 690º A do Código de Processo Civil, introduzida pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 18 de Agosto (artigo 8º).

Na redacção anterior (Decreto-Lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro) o nº 2 exigia ao recorrente, "sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda".

Actualmente, cumpre, apenas, ao recorrente "indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 522º C".

E o nº5 do mesmo preceito impõe à Relação a audição ou visualização dos depoimentos indicados, "excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas, para tanto contratadas pelo tribunal."

Os recorrentes referem, nas suas alegações de apelação a "cassete 1, lado B, 1886 a 2535 e cassete 2, lado A, 0000 a 590, Dr.ª CC, testemunha do Banco", remetendo para a acta da audiência, tal como "testemunha DD, cassete 1, lado A, 0000 a 1289", DD, "cassete 1, lado A, 2095 a 2535 e cassete 1, lado B, 0000 a 0560, EE"; "cassete 1, lado B, 0561 a 1239 e FF, cassete 1, lado B, 1240 a 1885".

Estas indicações surgem, respectivamente, nos pontos 3, 6, 9 e 10 das conclusões.

Foi, assim, claramente preenchido o ónus do nº1, alínea b) e nº2 do citado artigo 690º A.

2.2- Mas também incumbe ao impugnante da matéria de facto indicar os "concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados".

O nº1 do artigo 712º do diploma adjectivo dispõe a possibilidade de alteração, pela Relação, da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto, se do processo constarem todos os elementos que serviram de base à decisão ou se, tendo ocorrido a gravação, tiver havido impugnação de acordo com o citado artigo 690º A.

Como refere o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Novembro de 2005 (Pº 3153/05 - 1ª) "foi intenção do legislador, aliás expressamente confessada no relatório do Decreto-Lei nº 39/95, criar um duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, embora temperada pelo ónus imposto ao recorrente de delimitação concreta do objecto do recurso e da respectiva fundamentação, a fim de evitar a impugnação genérica da decisão de facto no seu todo."

E assim é porque - embora a Relação forme a sua própria convicção dentro do principio da livre apreciação das provas nos mesmos termos do Tribunal "a quo" - a ausência da imediação do contacto directo com a prova, a não suficiência, para percepção de detalhes e características idiossincráticas das testemunhas (o que releva para estribar convicções), de sistemas de gravação, não permitem uma perfeita documentação do ocorrido na 1ª instância.

Será uma actividade difícil e penosa, passar várias horas a ouvir gravações, tentando identificar e reconhecer vozes dos depoentes e de outros intervenientes, relacioná-las com o que consta da acta e cotejá-las com as motivações, tantas vezes sem o necessário apuro técnico.

Por isso é que o 2º grau de jurisdição em matéria de facto deve ser visto com cautela buscando interpretações rigorosas - embora não necessariamente restritivas - dos preceitos que o regulamentam.

A exigência da alínea a) do nº 1 do artigo 690º A do Código de Processo Civil - e deixemos a da alínea b), por já acima abordada - destina-se precisamente a balizar a área de reapreciação, evitando uma reprodução integral de toda a prova, com as escolhas atrás acenadas.

A importância dessa especificação é tal que o legislador fulmina a sua ausência com a rejeição do recurso.

2.2.1- Os recorrentes não cumpriram, com rigor, esse ónus, não tendo indicado, com precisão, os pontos de facto que pretendiam ver reapreciados pela Relação.

Limitaram-se a - aqui, com cumprimento da alínea b) do nº1 do artigo 690º A - a elencar os meios probatórios concretos e os registos de gravação - mas sem os reportarem a quesitos concretos, antes a pontos de argumentação ("relação triangulada", "falta de documentos", "prejuízos referidos" e "aluguer da viatura").

Aqui chegados, resta decidir se essa omissão será causa da rejeição imediata do segmento do recurso ou se deveria ter havido convite ao aperfeiçoamento das conclusões, em termos de serem indicados os pontos de facto concretos a escrutinar.

3- Aperfeiçoamento.

Quando o recorrente não refere com rigor os meios probatórios, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido no sentido da imediata rejeição do recurso (cf v.g. Acórdãos de 20 de Outubro de 2005- 05B2407- de 12 de Outubro de 2004- P 2774/04 1ª- e de 25 de Novembro de 2004- P. 3450/04 2ª).

Mas quando se trata apenas de indicar os pontos de facto controvertidos, a parte deve ser convidada a apresentar novas conclusões onde os concretize, desde que na sua alegação seja perceptível a matéria de facto que pretende impugnar.

Só este entendimento permitirá garantir o recorrente contra uma decisão surpresa (artigo 3º do CPC) que seria uma rejeição, ainda que parcial, do recurso quando até os elementos de prova foram elencados e estará em sintonia com o disposto nos artigos 701º, nº1 e 704º do Código de Processo Civil (cf. Acórdão de 12 de Janeiro de 1999; cf., no sentido do convite a aperfeiçoar, os Acórdãos de 1 de Outubro de 1998 - BMJ 480-438, e de 27 de Janeiro de 2005 - 04B4257. Em sentido contrário, o Cons. Amâncio Ferreira "... fosse essa a intenção do legislador, e tê-lo-ia declarado como o fez, para situações diversas, nos artigos 690º nº4 e 75º A nº5, este da LTC. Compreende-se a rejeição imediata do recurso na situação que analisamos por os ónus impostos ao recorrente visarem o corpo da alegação, insusceptível de ser corrigido ou completado no nosso ordenamento processual, pela via do convite. (apud "Manual dos Recursos em Processo Civil", 6ª ed., 171).

Não se vê esta opção a contrariar os princípios gerais.

O despacho de aperfeiçoamento nunca é definitivo e é sempre seguido de outro que ponha termo a esse ponto controvertido.
Acentua o princípio da cooperação que, hoje, é basilar no processo civil - artigos 266º, 519º, 519-A.1, 535º, 569º nº1 a), 569º.2, 612º.1, 645º.1, v.g.). A omissão desse dever é sancionada (artigo 456º, nº2, c)).

Tem por objectivo a justa composição do litígio, de forma eficaz e célere.

Por isso a lei processual admite, e incentiva, o aperfeiçoamento de articulados (sem qualquer "distinguo" entre o corpo e a parte conclusiva, que sempre existe, até para formular o pedido - artigo 508º nºs 2 e 3; artigo 812º nº4).

Aliás, o nº2 do artigo 265º do Código citado contém uma regra geral que conduz à consagração do convite ao aperfeiçoamento.

É certo que, no tocante às alegações de recurso, o nº4 do artigo 690º apenas refere as conclusões que, por deficientes, obscuras ou prolixas, podem ser sujeitas a essa sugestão-convite.

Mas tal é consequência de serem as mesmas delimitadoras do objecto do recurso (nº3 do artigo 684º) e ser obrigatória a formulação dessas proposições sintéticas a resumirem o explanado no corpo das alegações.

No caso em apreço, os recorrentes levaram às conclusões os pontos da alínea b) do nº1 do artigo 690ºA e foram inequívocos no propósito de questionarem certos factos assentes.

Seria, pois, caso da Relação os convidar à inserção dos pontos concretos, nos termos da alínea a) do nº1 do mesmo artigo 690º A.

Só se tal fosse incumprido, ou deficientemente acatado, é que poderia seguir-se a rejeição do segmento do recurso.

4- Conclusões.

De concluir que:

a) A omissão de conhecimento, como causa de nulidade da decisão, implica o silenciar de qualquer das questões a que se refere o nº2 do artigo 660º do Código de Processo Civil.
Se a questão é abordada mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou factica, erro de julgamento, que não "errore in procedendo".

b) A redacção do artigo 690ºA do CPC introduzida pelo Decreto-Lei nº 183/2000 de 18 de Agosto, é de aplicação imediata, dispensando o recorrente, que impugna a matéria de facto, de proceder à transcrição das passagens da gravação em que se funda.

c) A indicação dos pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgada deve constar da alegação, nos termos do nº1, alínea a) do artigo 690º A do CPC.

d) Se o recorrente elenca os depoimentos em que se funda, por referencia aos assinalados na acta com indicação da gravação, cumpre o ónus da alínea b) do nº1 daquele preceito e, discordando dos ilações tiradas, é inequívoco pretender impugnar a matéria de facto a que esses depoimentos se reportam.
e) O convite ao aperfeiçoamento das peças processuais recuperáveis, é resultado principio geral da cooperação, constante do nº do artigo 265º, conjugado com o artigo 266º, e é aplicável quando é incumprido o ónus da alínea a) do nº1 do artigo 690º A da lei adjectiva.

Nos termos expostos, acordam conceder revista e, revogando o Acórdão recorrido, determinam a remessa do processo ao Tribunal da Relação para que, se cumprido o convite a aperfeiçoar as suas conclusões, nos termos expostos, proceder a novo julgamento, com reapreciação da prova em relação aos pontos indicadas.

Custas a final.

Lisboa, 6 de Julho de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho