Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
134116/13.2YIPRT.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: REJEIÇÃO DO RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
TRANSCRIÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
RECURSO DE APELAÇÃO
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO EM GERAL / ATOS PROCESSUAIS / ATOS EM GERAL / NULIDADES DOS ATOS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 128 ; 2017, 4.ª Edição, p.159 a 164;
-Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, 1.ª Edição, p. 418.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 2, ALÍNEA A), 201.º, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 640.º, N.º 2, ALÍNEAS A), 662.º, N.º 1 E 666.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 29-10-2015, PROCESSO N.º 233/09.4TBVNG.G1.S1;
-DE 31-05-2016, PROCESSO N.º 889/0.5TBFIG.C1-A.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

-DE 19-06-2014, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :   
I. A razão de ser do requisito de impugnação estabelecido na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do mesmo Código.

II. Complementarmente, tal exigência constitui um fator de concentração da argumentação probatória do recorrente, numa base substancial, sobre a caracterização do erro de facto invocado, refreando, por outro lado, eventuais tendências para meras considerações de natureza generalizante e especulativa.

III. Todavia, o nível de exigência na exatidão das passagens das gravações não se pode alhear da metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados e colhidos em audiência.

IV. Assim, à luz dessas coordenadas, impõe-se aferir a medida de proporcionalidade adequada à exatidão das passagens das gravações a que se refere o normativo em foco.

V. Nessa conformidade, a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face ao grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efetuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso.               

VI. No caso em que vem impugnado apenas um juízo probatório negativo, convocando-se diversos depoimentos prestados nessa sede com argumentação crítica sobre a valoração feita pela 1.ª instância e questionamento da credibilidade dada às testemunhas da A. em detrimento das da R., complementada ainda pela transcrição desses depoimentos com indicação do dia da sessão de julgamento em que foram prestados, do ficheiro de que consta a respetiva gravação e das horas e tempo de duração, tal como ficou consignado em ata, tem-se por observado o nível de exatidão suficiente do teor dessas gravações suscetíveis de relevar para a apreciação do caso, à luz do preceituado no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

VII. De resto, a forma como os depoimentos foram prestados e colhidos naquelas gravações, bem como a latitude da impugnação deduzida, versando nomeadamente sobre a credibilidade desses depoimentos, não se afigura de molde a exigir um minucioso parcelamento das respetivas passagens como foi entendido no acórdão recorrido, tanto mais que nem sequer tal forma de impugnação constituiu óbice ao exercício do contraditório por parte da apelada.

Decisão Texto Integral:
Acordam da 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


 

I – Relatório


1. A sociedade “AA - Produtos para a Agricultura, Lda” (A.), deduziu procedimento de injunção, em 25-09-2013, contra BB - Sociedade Unipessoal, Lda (R.) a pedir que esta lhe pagasse a quantia de € 43.570,61, acrescida de juros vencidos e vincendos, alegadamente correspondente ao valores em dívida na sequência de diversos contratos de compra e venda de produtos para a agricultura celebrados entre as partes.

2. Deduzida oposição, foi realizada audiência prévia (fls. 236-238), no decurso da qual se procedeu à identificação do objeto do processo e a enunciação dos temas da prova, tal como consta do despacho de fls. 237.  

3. Realizada a audiência final com gravação da prova, conforme o consignado nas atas de fls. 260-261, 298-305 e 320-321, foi proferida a sentença de fls. 322-332, datada de 17/06/2015, a julgar a ação parcialmente procedente, condenando-se a R. a pagar à A. a quantia de € 43.570,69, acrescida de juros de mora, desde a data da citação, às sucessivas taxas legais para juros comerciais.

4. Inconformada com tal decisão, a R. apelou, em sede de impugnação de facto e de direito, para o Tribunal da Relação de … que, por unanimidade, confirmou inteiramente a sentença recorrida, conforme acórdão proferido a fls. 472-491, datado de 16/06/2016, tendo-se concluído que a impugnação de facto “improcedia”, porquanto a ali apelante não observara o ónus impugnativo prescrito no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, na medida em que se limitara a fazer uma mera transcrição integral dos depoimentos prestados pelas testemunhas por si arroladas, mas sem especificar com exatidão quais as passagens concretas das respetivas gravações em que fundava o recurso.

5. Novamente inconformada, a R. veio pedir revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A recorrente deduziu recurso da sentença Tribunal de 1.a instância por não ter sido considerado como não provado o facto da A. e R. terem convencionado um desponto financeiro de 8% a deduzir do valor das faturas na altura do pagamento, tendo sido nesse sentido incorretamente valorada pelo tribunal de 1.a instancia a prova testemunhal carreada para os autos, requerendo por isso que seja alterada a factualidade dada como provada;

2.ª – O Tribunal “a quo”, veio manter a decisão da 1.ª instância, porquanto considera que no recurso com base de impugnação da matéria de facto, “se for possível ao recorrente identificar precisa e separadamente os depoimentos, o ónus de alegação, no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto apoiada em tais depoimentos, (...) a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda (...)”;

3.ª - Tendo rejeitado o pedido de valoração da prova produzida em sede de 1.ª instância, por entender que não foram indicadas com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso - “A recorrente, se bem que se possa considerar ter, minimamente, cumprido o disposto nas alíneas a), b), e c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, não deu cumprimento, de todo ao estipulado na alínea a) do n.º 2 deste normativo, (...)”.

4.ª - E face ao que entendeu o tribunal “a quo”, conforme transcrito em alegações, o acórdão recorrido rejeitou do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, que se discorda;

5.ª - A jurisprudência que se cita, entende que: “O legislador exige que o recorrente seja meticuloso, incisivo e concernido na forma como impugna a decisão de facto, impondo-lhe a especificação dos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados e quais os concretos meios probatórios, constantes e existentes no processo, que impõem decisão factual diversa, exigindo, também, que o tribunal de recurso seja meticuloso e consciencioso no momento em que procede à reapreciação da prova”;

6.ª - À 2.a instância cabe proceder ao julgamento da decisão de facto por forma a corrigir erros de julgamento patentes nos tribunais de 1.a instância, mas dentro de limites que não podem exacerbar ou expandir-se para além do que a lei comina;

7.ª - Não podendo o julgamento a que o tribunal de recurso procede redundar num novo e total julgamento da causa, não deixa de ser menos verdade que, tal como o legislador entendeu dever regular o recurso da decisão de facto – v.g. artigos 690.º-A e 522.º-C, do CPC, na redação emergente do DL n.º 303/2007, de 24-08 –, não pode esse tribunal eximir-se à reapreciação da prova, escoltado e respaldado numa ausência de indicação expressa das passagens das gravações em que se encontrem registados os depoimentos que impõem decisão diversa;

8.ª - Sendo certo que a recorrente delimitou a matéria de facto que entende que deve impugnar, bem como veio referir quais os meios de prova que impunham outra decisão, neste caso com a indicação de algumas testemunhas, e os elementos do depoimento das testemunhas constantes em ata, bem como indicou as passagens da gravação, ainda que em alguns depoimentos sejam na sua globalidade, por os mesmos serem globalmente relevantes para a impugnação da matéria de facto em que o seu recurso se baseia, indicando também qual a decisão que no seu entender devia ser proferida sobre os factos que impugnou, cumpriu os requisitos legal impostos pelo citado artigo.

9.ª - Quanto à indicação das passagens da gravação em que se funda a impugnação, como a lei não diz, sendo esta omissão suscetível de criar dúvidas e interpretações diferentes, como na pratica é feita pelos recorrentes, tem entendido a jurisprudência, que esta não deve conter uma impugnação genérica dos factos, devendo o recorrente delimitar os pontos concretos e os concretos meios de prova.

10.ª - No caso do recurso em causa, a recorrente delimitou a um facto, e a algumas das provas concretamente produzidas, pelo que o tribunal “a quo”, não iria com recurso em causa apreciar a totalidade da matéria facto, nem a totalidade dos meios de prova;

11.ª - Pelo que o tribunal "a quo", por a recorrente ter cumprido o seu dever face ao disposto legal, não podia deixar de conhecer o recurso por estarem cumpridos os requisitos legais para esse efeito, devendo reapreciada a prova e a matéria de facto, devendo a mesma ser alterada como provada;

12.ª - Face ao exposto, o Tribunal “a quo” julgou incorretamente, ao improceder o recurso de apelação, violando o disposto no artigo 640.º do CPC, o que culmina numa nulidade por omissão de pronúncia nos termos do artigo 201.º do CPC, que se invoca para todos os efeitos legais.

6. Tal recurso foi rejeitado pela Relação, mas acabou por ser admitido em conformidade com a decisão de fls. 635-643, de 30/06/2017, proferida em sede de procedimento de reclamação.  


Cumpre apreciar e decidir.


II – Delimitação do objeto da revista


Dado o teor das conclusões da Recorrente, o objeto da revista tem por objeto:

  i) – a alegada omissão de pronúncia;

  ii) – a invocada violação do disposto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, quanto ao decidido em sede de impugnação da decisão de facto, por se considerar verificada a falta de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos em que se fundavam os factos conducentes a um diverso juízo probatório da decisão ali recorrida.


II – Fundamentação


1. Factualidade como provada pela 1.ª instância


Vem dada como provada pela 1.ª instância a seguinte factualidade:

1.1. A A. é uma sociedade que se dedica à comercialização e fornecimento de produtos para a agricultura.

1.2. No exercício da sua atividade a A., a pedido da R., forneceu à mesma os produtos constantes das faturas a seguir descriminadas, que os aceitou:

- Fatura n.º 11P…27 com data de 31/03/2011 no montante de € 15.683,26;

- Fatura n.º 11P…57 com data de 08/042011 no montante de € 3.508,58;

- Fatura n.º 11P…00 com data de 13/04/2011 no montante de € 1.972,64;

- Fatura n.º 11P…65 com data de 16/05/2011 no montante de € 12.557,36;

- Fatura n. 11P…74 com data de 14/07/2011 no montante de € 9.346,19;

- Fatura n.º 11P…47 com data de 10/0/2011 no montante de € 5.213,13;

- Fatura n.º 11P…49 com data de 19/09/2011 no montante de € 159,00;

1.3. As quais totalizam o valor de € 48.440,16.

1.4. Não foi convencionado qualquer acordo quanto ao vencimento, nem quanto ao prazo de pagamento dos fornecimentos feitos pela A. à R., sendo prática entre ambos que os pagamentos fossem efectuados através de entregas irregulares para abatimento na conta corrente, imputando-se os pagamentos às facturas mais antigas;

1.5. A R., através do cheque n.º CA8…57 entregou à A. a quantia de € 50.000,00, para abatimento na conta corrente, tendo esta imputado ao pagamento de diversas faturas do ano de 2010 e 2011 [Fatura n.ºs 10P…74, 10P…75, 10P…69, 10P…48, 11P…2, 11P..1, 11P …3, 11P…0, 11P…5 e 11P…27] tendo sido imputado o pagamento de € 3.205,77 à fatura n.º 11P…27 de 31/03/2011, referida no ponto anterior [Vide recibo de fls. 175].

1.6. A A. emitiu ainda notas de crédito no montante de € 808,92 e € 854,78, pelo que o montante em dívida de capital se cifra em € 43.570,69 [€ 48.440,16 – € 3.205,77 – € 808,93 – € 854,78 = € 43.570.69].

1.7. Entre 2008 e 2009, a R. adquiriu à A. produtos nos seguinte montantes: em 2008, € 122.836,13; em 2009, € 214.038,28; no total de € 336.874,41;

1.8. Procedeu ao pagamento dos referidos produtos através de entregas fracionadas, nos seguintes montantes: em 2008, € 93.645,72; em 2009, € 30.000,00; em 2009, € 50.000,00; em 2010, € 92.463,04; em 2010, € 50.000,00; no total de € 316.108,76;

1.9. Em 31/10/2008, a A. emitiu uma nota de crédito de € 3.200,00, pelo que ficou em dívida para o ano de 2011 a quantia de € 17.565,65, que transitou para o ano seguinte;

1.10. No ano de 2010, a R. adquiriu produtos no montante de € 222.836,13 (inclui despesas bancárias) e em 2011 no montante de € 80.103,81 (inclui igualmente despesas bancárias], tudo num total de € 302.939,94, tendo efetuado o pagamento através de aceites de letras no montante de € 250.000,00 (€ 150.000 + € 100.000,00);

1.11. Por diversas vezes a A. solicitou à R. o pagamento das quantias em dívida.


2. Facto dado como não provado


Foi dado como não provado, no ponto 2.2.1. da sentença) que:

Entre a A. e a R. tivesse sido convencionada a concessão de um desconto de 8% na altura de efetuar os pagamentos, a efetuar através de notas de crédito que a A., apesar de solicitada para o efeito, não emitiu. 

 

3. Do mérito do recurso


3.1. Quanto à alegada omissão de pronúncia


A R. Recorrente alude e invoca, na parte final das suas alegações e respetiva conclusão V, a verificação de uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 201.º do CPC, ao que supomos, por decorrência da violação do art.º 640.º do mesmo diploma.

Todavia, não se divisa, minimamente, que a alegada preterição do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do citado Código se traduza, direta ou indiretamente, no referido vício, muito menos por via do disposto no indicado art.º 201.º.  

O que sucedeu foi que o Tribunal da Relação deixou de conhecer da impugnação da decisão de facto por considerar que a ali apelante não observou o requisito impugnativo de indicar com exatidão as passagens das gravações em que se funda o recurso. 

Significa isto que o tribunal a quo se ocupou, em termos preliminares, da questão suscitada ainda que no sentido de não tomar conhecimento do seu objeto em virtude da considerada falta daquele requisito formal, o que, evidentemente, se não reconduz ao alegado vício de omissão de pronúncia, nos termos previstos, conjugadamente, nos artigos 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, aplicáveis por via do artigo 666.º, n.º 1, do CPC.     

Termos em que improcede o sobredito fundamento da revista.    


3.2. Quanto à questão de fundo


Como já acima ficou enunciado a questão de fundo suscitada pela Recorrente consiste em saber se a decisão da Relação sobre a impugnação de facto, com fundamento na inobservância do ónus impugnativo estabelecido no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC enferma de violação do ali preceituado.

Ora o referido normativo estabelece que:

Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

 A propósito dos requisitos de impugnação estabelecidos, nomeadamente no artigo 640.º, n.º 1 e n.º 2, aliena a), Abrantes Geraldes escreve o seguinte[1]:  

«As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça. Rigor a que, por seu lado, deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida nos termos a que se referem na anotação do artigo 662.º.

Contudo, importa que não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador. Ou seja, jamais deve transparecer a ideia – que por vezes perpassa em alguns arestos da Relação – de que a elevação do nível de exigência além dos parâmetros que a lei inequivocamente determina constitui, na realidade, um mero pretexto para recusar a apreciação do mérito da impugnação da decisão da matéria de facto, com invocação, do incumprimento de requisitos de ordem adjectiva ou, numa segunda oportunidade, com a explanação de argumentário de pendor genérico (…)


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   Em diversas ocasiões o Supremo tem realçado a necessidade de extrair do texto legal soluções capazes de integrar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando prevalência aos aspectos de ordem material.

      E no respeitante à indicação das passagens das gravações, observa o mesmo Autor que[2]:

«(…) se, em lugar de uma sincopada e por vezes estéril localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da decisão da matéria de facto, deve considerar-se razoávelmente cumprido o ónus de alegação neste campo. A indicação exacta das passagens das gravações não passa necessariamente pela sua localização temporal, sendo a exigência legal compatível com a transcrição das partes relevantes do depoimento.»


       Por seu turno, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a flexibilizar a rigidez literal com que, por vezes, o referido normativo vem sendo interpretado.

      Assim, no acórdão do STJ de 29/10/2015, proferido no processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1[3], foi considerado, sumariamente, o seguinte:

«Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do n.º 1 do art.º 640.º do CPC e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art.º 640.º, n.º 2, al. a), do CPC):

Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento – como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso.»            

           

De resto, orientação similar tem sido seguida noutros arestos deste Supremo Tribunal, como o foi no acórdão de 31/05/2016, proferido no processo n.º 889/0.5TBFIG.C1-A.S1[4], com citação vasta de outros acórdãos do mesmo Tribunal.

Nessa linha de entendimento, consideramos, pois, que a razão de ser do ónus impugnativo estatuído na indicada alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do Recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do referido Código. Complementarmente, tal exigência constitui um fator de concentração da argumentação probatória do recorrente, numa base substancial, sobre a caracterização do erro de facto invocado, refreando, por outro lado, eventuais tendências para meras considerações de natureza generalizante e especulativa.

    Todavia, importa não esquecer que o nível de exigência de exatidão das passagens das gravações não se pode alhear da metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados em audiência.

Assim sendo, perante depoimentos extensos ou prolongados mas obtidos de forma segmentada ou parcelada consoante determinados pontos ou blocos de facto, a exatidão das passagens bem poderá ser feita em função de tal recorte, de modo a deixar de fora as partes desses depoimentos irrelevantes para a matéria em causa. Tratando-se, porém, de depoimentos disseminados, prolixos ou saltitantes, sobre temas de prova de pendor genérico ou aberto, temos de admitir uma maior flexibilidade do critério de exatidão das passagens.

Impõe-se, pois, à luz dessas coordenadas, aferir a medida de proporcionalidade adequada à exatidão das passagens das gravações a que se refere o normativo aqui em foco.

Por isso mesmo é que a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face do grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efetuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso.                


Posto isto, vejamos o caso em apreço.


Antes de mais, importa ter presente que a Recorrente, formulou, em sede de apelação, no que aqui releva, as seguintes conclusões:

I - A recorrente discorda do facto dado como não provado:

“Que entre A. e R. tivesse sido convencionado a concessão de um desconto de 8% na altura de efectuar os pagamentos, a efectuar através de notas de crédito, que a Autora, apesar de solicitada para o efeito nunca emitiu.”

II - A recorrente discorda dos pontos 2.2.1 dos factos não provados, nomeadamente que não tivesse sido provado em audiência de julgamento um desconto convencionado entre a A. e a ré do valor facturado, a efectuar através de notas de crédito, que apesar de solicitadas nunca foram entregues.

III - A fundamentação da sentença que baseia-se nos depoimentos considerados relevantes para a matéria dada como provada, conforme consta da sentença, nomeadamente as testemunhas arroladas pela A.

IV - Alega a ré na sua oposição que consoante o fecho das contas, a A. conforme acordado emitia uma nota de crédito no valor de no mínimo 8% do total da facturação anual, a favor da ré, a forma e prazo de pagamento acordado entre a A. e ré, iria processar-se no final das respetivas campanhas, conforme a R. iniciasse os recebimentos dos produtos produzidos, o que ocorria geralmente mais de um ano após o fornecimento dos produtos.

V - Pelo que acordaram a A. e R., que a mesma poderia levantar os produtos necessários para efetuar as culturas e que no final das campanhas os mesmos seriam pagos, e foi sempre desta forma que ocorreu.

VI - Esta é a prática habitual dos agricultores e seus fornecedores existir este acordo de pagamento.

VII - Sendo desta forma que ocorria também a relação comercial da A. e R..

VIII - A recorrente discorda da matéria de facto dada como não provada, bem como da fundamentação pela decisão de esta ser dada como não provada. Pelo que não se trata meramente de uma diferença de posição quanto a essa matéria de facto, mas efetivamente por considerar que a prova produzida a ser considerada levava a uma decisão diferente.

IX - Não se trata de pôr em causa a livre apreciação de prova, mas efetuando a análise da mesma, tudo o que se passou em sede da audiência de julgamento e as regras de experiência comum, o tribunal na sentença violou ao desconsiderar as provas produzidas da audiência de julgamento pela ré, pois não existem dados objetivos para a motivação do tribunal sobre tais depoimentos.

X - Atendendo às regras de experiência comum, consideramos que o tribunal, tendencialmente apenas valorou as provas trazidas em sede de julgamento pela A., que para além do vínculo laboral com a A., foi tendencioso, da forma como as testemunhas falaram, os seu gestos, inclusivamente a testemunha CC, que trabalha no escritório da A. e que podia ter sido a única testemunha da A. com conhecimento direto dos factos, ao depor, trazia consigo e ia lendo, os articulados processuais, bem como inclusive o despacho proferido em sede da audiência prévia, enquanto prestava depoimento, apesar de ter sido referido tal facto ao tribunal, sem que o mesmo fosse impedido de o fazer, tendo continuado a ler os articulados enquanto prestava depoimento.

XI - Pelo que, face a tal postura, não podia o tribunal ter dado mais credibilidade a esta testemunha, comparativamente ao depoimento das testemunhas da ré. Esta testemunha teve autêntica parcialidade perante a A., não sendo o seu depoimento minimamente isento, pelo que este não deveria ser considerado. Relativamente às restantes testemunhas, DD e EE, estas não trabalham diretamente no escritório da A. pelo que nada sabem sobre os negócios entre a A. e ré.

XII - Pelo que não pode aceitar a Ré, que seja dada prevalência a estes depoimentos, que são parciais, e não têm conhecimento direto dos factos, em relação às restantes testemunhas, que depuseram de forma espontaneidade.

XIII - Relativamente às testemunhas da R., nomeadamente FF e GG, que corroboram com as declarações de BB, pela Ré, estas assistiram a factos e os seus depoimentos, conjugados com os restantes elementos dos autos e com as regras de experiência comum levam a que seja dado como provado o facto de existir um acordo referente a um desconto de 8% aquando dos pagamentos.

XIV - Concretamente relativamente ao depoimento da testemunha DD este esteve sempre com muitas ressalvas, e até inicialmente receio em prestar o seu depoimento, ao referir que tinha uma amizade com ambas as partes, no entanto, assistiu a um episódio de entrega de uma letra de cambio, que inclusivamente estranhou estar a ser assinada em branco e entregue a um funcionário da A., tendo ouvido da parte da A., garantir ao R. que o desconto do ano de 2010 estava garantido e que depois seriam enviados os recibos, sendo que por se reportar a um pagamento por letra, ocorreu, apesar da testemunha não se recordar, ao ano de 2010. Pois durante este ano, conforme consta dos documentos carreados para os autos, que a ré iniciou os pagamentos através de letras, a testemunha ouviu que entre a A. e Ré tinham acordado um desconto, sendo que desconhece o seu valor. Relativamente ao depoimento da testemunha GG, esta refere um episódio, de Maio de 2010, quando se deslocou às instalações da A., por indicação do seu gerente, que referiu para esta lá aparecer pois este também se ia lá deslocar, e que ouviu relativamente ao pagamento (de 50.000,00 euros), que correspondia ao fecho do ano de 2009 ficaria encerrado uma vez que iria ser efetuado um desconto de 8% do valor. A referida testemunha foi questionada pelos intervenientes sobre o local, sobre como setinha deslocado, as horas o ano, porque se recordava da data, de forma a verificar se estava a falar com verdade, tendo esta espontaneamente respondido a todas as questões, de referir que uma vez que a testemunha faz serviços para a Ré, tais factos ter-lhe-ão ficado na memória e a testemunha explicou as razões pelas quais se recorda, não tendo ao contrario do que consta da fundamentação da sentença uma memória seletiva, uma vez que explicou fundamentando a todas as questões colocadas, até porque posteriormente teve conhecimento do litigio entre a A. e a Ré, e a situação foi falada, sendo que quanto à data e local esta também explicou espontâneamente como era, o seu depoimento foi verdadeiro e espontâneo, tendo esta referido que ouviu parte da conversa quando chegou ao local, e o que as partes estavam a fazer no momento em que chegou e como se desenrolou o que assistiu, pelo que não se vislumbra razão para não dar credibilidade ao depoimento da testemunha, nem razão para o tribunal não dar credibilidade a nenhuma testemunha da ré e dar credibilidade ao depoimento das testemunhas da A., quando estes foram nas condições já referidas, a não ser porque violação dos princípios para a formação da convicção, pelo que foram ignorados a totalidade destes testemunhos. Refere ainda a fundamentação da sentença que o tribunal estranhou que a ré se tenha lembrado de arrolar esta testemunha 5 anos após ter acontecido o facto que a testemunha assistiu, no entanto, face ao que este testemunha refere, esta é empregada da ré, e refere no seu testemunho que quando lhe foi transmitido pelo Sr. BB o litigio com a A. esta veio a recordar-lhe os factos a que tinha assistido anos antes.

XV - Relativamente ao depoimento de HH, que tinha sido técnico de contas da Ré, referiu que o seu conhecimento é com base nos documentos, bem como nos factos que ao longo da relação comercial entre A. e R., lhe ia sendo transmitida, e era com base nesses factos que elaborava a conta corrente da A. como fornecedora da ré, que não era coincidente com a conta corrente da A., que apenas se verificaram foi entregue por esta em 2013, depois de inúmeras insistências da parte da ré que lhe fosse remetida, sendo que apenas quando foi enviada pela A. à ré a sua conta corrente a ré verificou que não estavam deduzidos um valor de 50.000,00 euros, liquidado em Maio de 2010, bem como não estavam deduzidos os descontos de 8%, entre a A. e a Ré. Se durante mais de três anos a contabilidade da ré foi sempre efetuada com base no que lhe era transmitido pelo seu gerente e mediante comprovativos de pagamento, uma vez que a A. não enviava os recibos e notas de credito que lhe competiam, enviando apenas em 2013, data em que a ré se apercebe que a A. não tinha contemplado o desconto acordado.

XVI - Conforme consta das transcrições efetuadas e que se reproduzem para todos os efeitos legais.

XVII - Relativamente à livre apreciação da prova, reitera-se a jurisprudência acima mencionada.

XVIII - Neste caso existe uma clara violação a este entendimento e aos procedimentos para chegar a valorar a prova, pois, face ao que foi referido pelas testemunhas da ré, à forma como depuseram, aos elementos trazidos por estas que envolvem directamente factos em causa nos autos, à sua espontaneidade e imparcialidade ao depor, deveria o tribunal ter considerado tais depoimentos.

XIX - Por outro lado, considera a ré que existe uma contradição na sentença recorrida. Pois para fundamentar a decisão de dar como não provado o desconto estabelecido entre as partes, relativamente ao facto da R. ter de pagar atempadamente as faturas para poder beneficiar de um desconto. No entanto o tribunal dá como provado na sentença que não existia nenhum acordo relativamente ao prazo de pagamento e de vencimento do valor das facturas, conforme ficou provado no ponto 2.1.3 da sentença. Pelo que não pode o tribunal fundamentar a sua decisão sobre a não existência de um desconto financeiro acordado pela A. e R. pelo facto desta não pagar atempadamente as facturas, quando dá ao mesmo tempo como provado que não havida estabelecido prazo de pagamento e de vencimento das facturas, existindo por conseguinte contradições entre os factos dados como assentes e a fundamentação da decisão.

XX - Pelo que mais uma vez a fundamentação da sentença entra em contradição com os factos dados como provados, devendo ser considerado provado a existência de um desconto.

XXI - Pelo que face à prova produzida em sede de julgamento, nomeadamente as provas acima identificadas, deveria o tribunal ter dado como provado que a A. e a R. tivessem convencionado a concessão de um desconto de 8% na altura de efectuar os pagamentos, a efetuar através de notas de crédito, que a A., apesar de solicitada para o efeito, nunca emitiu.

XXII - Pelo que estamos perante um erro de apreciação da prova, devendo ser considerados os meios probatórios acima referidos e consequentemente ser dado como provado a existência de um desconto de 8% a favor da R., pelo que se requer que a decisão proferida seja substituída por outra que dê como provado tal facto.

  

A impugnação da decisão de facto da apelante incide unicamente sobre o facto dado como não provado sob o ponto 2.2.1., em relação ao qual a Recorrente convocou diversos depoimentos, criticando a valoração relativa que lhe foi dada pela 1.ª instância, como se alcança do teor do corpo de alegações de fls. 338-340.

Complementarmente, a apelante transcreveu (fls. 340 a 386) cada um dos depoimentos convocados que, no seu entender, relevavam para a apreciação dessa argumentação probatória, com a indicação do dia da sessão de julgamento em que foi prestado, do ficheiro de que consta a respetiva gravação e das horas e tempo de duração, tal como ficou consignado em ata.  

Por sua vez, das contra-alegações da apelada não se depreende que tenha tido dificuldades em exercer o contraditório sobre a impugnação assim deduzida pela Recorrente, como, de resto, exerceu.


Sucede que, no acórdão recorrido, após se enunciar como 1.ª questão suscitada – saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada – e de se proceder ao enquadramento teórico do ónus impugnativo em sede do artigo 640.º do CPC, foi considerado o seguinte:

«A recorrente, se bem que se possa considerar ter, minimamente, cumprido o disposto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, não deu cumprimento, de todo, ao estipulado na alínea a) do n.° 2 deste normativo, sendo certo que tal omissão, ao ser detectada por este Tribunal Superior, não é passível de correção, através de prolação de despacho de aperfeiçoamento, uma vez que não obstante as expressões utilizadas no art.640° do CPC (no corpo do n.° 1 "rejeição" e no n.° 2 al. a) "imediata rejeição") não serem totalmente coincidentes, as mesmas significam que o efeito de rejeição não é precedido de qualquer despacho de aperfeiçoamento" sendo que a comparação "com o disposto no art° 639° do CPC não deixa margem para dúvidas quanto à intenção do legislador de reservar o convite ao aperfeiçoamento para os recursos da matéria e direito - cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág.128 (sublinhado nosso).

Na verdade, as exigências legais relativamente "a impugnação da matéria de facto, devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor" decorrente do princípio da auto-responsabilidade das partes, devendo impedir-se que as situações de impugnação "se transformem numa mera manifestação de inconsequente inconformismo", e como será evidente, "ao mesmo tempo, racionalizar o exercício do direito de recurso, reduzindo abusos" e colocando "sobre o recorrente a tarefa de, na sua auto-responsabilidade, restringir o objeto do recurso." - cfr., nesse sentido, Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, 1 a ed., pág.418.

No caso em apreço, verifica-se que a R., nas suas alegações recursivas, e no que tange aos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, limitou-se a fazer uma mera transcrição integral dos depoimentos prestados pelas testemunhas por si arroladas - HH, FF, II e GG -. mas sem especificar, com exactidão, quais as passagens concretas da respectiva gravação em que se funda o seu recurso, nomeadamente quais eram as frases ou expressões contidas em tais depoimentos que, no seu entender, impunham, necessariamente, uma alteração da factualidade dada como não provada, o que demonstra, também, uma clara violação pela R. do ónus que lhe é imposto no art.640.°, n.° 2, alínea a), do C.P.C. e, por isso, determina a imediata rejeição do recurso no que tange à impugnação da matéria de facto efectuada pela aqui apelante.

Neste sentido, aliás, pode ver-se, entre outros, o Ac. da R.G de 19/6/ 2014 (relator Manuel Bargado), disponível in www.dgsi.pt, onde, a dado passo, é afirmado o seguinte:

- (..) Ora, o artigo 640° do novo CPC, estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prescrevendo no seu n° 2, alínea a), que no caso de ter havido gravação da prova, «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes»

Com este n.° 2 «introduziu-se mais riqor no modo como deve ser apresentado o recurso de impuqnação da matéria de facto» impondo-se que «se, pelo modo como foi feita a gravação e elaborada a acta, for possível (exigível) ao recorrente identificar precisa e separadamente os depoimentos, o ónus de aleqação, no que concerne à impuqnação da decisão da matéria de facto apoiada em tais depoimentos, (...) a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda (...).» E «o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.»

Na verdade, «impugnando o recorrente a decisão sobre a matéria de facto, encontra-se sujeito a alguns ónus que deve satisfazer, sob pena de rejeição do recurso», sendo um deles o de «indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda _(..) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a indicação precisa e separada dos depoimentos».

Por outro lado, decorre também da letra da lei que a mesma não comporta qualquer outra interpretação que não seja a da imposição da imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, caso não seja observado pelo recorrente algum dos ónus mencionados, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria.

O novo CPC veio, aliás, manter em termos praticamente idênticos todos os ónus anteriormente existentes, aditando ainda o de o recorrente dever especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, mantendo igualmente a cominação da imediata rejeição do recurso para o seu incumprimento - (sublinhado nosso).

Assim sendo, atentas as razões e fundamentos acima referidos, forçoso é concluir que improcede a primeira questão suscitada pela R., mantendo-se integralmente toda a factualidade que veio a ser apurada no tribunal "a quo" e que consta da sentença recorrida, a qual, aliás, se mostra transcrita supra.»


     A primeira observação crítica a fazer é de que o tribunal a quo concluiu pela improcedência da sobredita questão, quando a respetiva fundamentação se estriba na inobservância do ónus impugnativo prescrito no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, sem que se tivesse ocupado, portanto, da procedência da impugnação da decisão de facto.

     Estamos assim perante uma rejeição do objeto da apelação nessa parte e nunca ante um juízo de improcedência da impugnação de facto deduzida.

Em segundo lugar, o acórdão recorrido envereda por uma linha de mera exegese do texto legal e dos princípios que lhe estão subjacentes, sem qualquer ponderação das circunstâncias e modo como tais depoimentos se mostram prestados, considerando que a Recorrente de limitou:

“(…) a fazer uma mera transcrição integral dos depoimentos prestados pelas testemunhas por si arroladas - HH, FF, II e GG - mas sem especificar, com exactidão, quais as passagens concretas da respectiva gravação em que se funda o seu recurso, nomeadamente quais eram as frases ou expressões contidas em tais depoimentos que, no seu entender, impunham, necessariamente, uma alteração da factualidade dada como não provada (…).»

     Significa isto que o tribunal a quo não aferiu a medida de proporcionalidade do nível de exigência da exatidão das passagens que no caso se impunha, na linha do que tem vindo a ser seguido pela jurisprudência deste Supremo.

     E não se poderá deixar de observar o facto de, no acórdão recorrido, se ter aderido ao entendimento de um acórdão do Tribunal da Relação de … de 19/6/2014 com alheamento absoluto e desvio da vasta jurisprudência deste Supremo sobre o tipo de questão em apreço.


     Sucede que da identificação do objeto do litígio e da enunciação dos temas da prova feitas em sede de audiência prévia (fls. 237) consta o seguinte:

«1. Os presentes autos têm como objecto o alegado fornecimento de bens por parte da Autora à Ré, a pedido (leste, pelo período compreendido entre 31.03.2011 a 25.09.2013, ou, de modo mais abrangente, a relação comercial estabelecida entre estes desde o ano de 2008 até ao ano de 2011, nos tenros dos artigos 790.° e seguintes, e artigos 874.° e seguintes, todos do Código Civil.

2. Como temas da prova, que irão guiar a produção da prova em julgamento, temos:

2.1 Da relação comercial estabelecida entre a Autora e a Ré: do fornecimento a pedido da Ré dos bens constantes das facturas n.° 11P…27, n.° 111…57, n.° 11P…00, n.° 11P…65, n.° 11P…74, n.° 11P…47 e n.° 11P…49; dos respectivos valores, datas e modos de pagamento acordadas; das datas de emissão e de entrega à Ré dessas facturas.

2.2 Ainda da relação comercial estabelecida entre a Autora e a Ré: da correspondência acordada entre o preço de venda e o preço de tabela; da quantificação cio valor anual de vendas da Autora à Ré pelos anos de 2008 a 2011; dos pagamentos efectuadas pela Ré à Autora nesse período, por conta dessas vendas; cio alegado acordo de desconto de 896 do valor anual de compras da Ré à Autora, sua quantificação anual e respectivas condições; cio valor das notas de crédito realizadas pela Autora nesse período.» 

      Por sua vez, dos depoimentos transcritos pela apelante colhe-se que os mesmos foram prestados, de certo modo, de forma disseminada, sem recorte definido por pontos ou blocos de facto específicos.    

       Acresce que vem posta em causa pela apelante a credibilidade dada pela 1.ª instância às testemunhas da A. em detrimento das testemunhas da R., o que dificilmente poderá ser perquirido pelo tribunal de recurso através de passagens meramente cirúrgicas das gravações.

      Nestas circunstâncias, salvo o devido respeito, afigura-se que a forma como a apelante indicou o conteúdo das gravações dos depoimentos convocados se mostra adequada ao perfil de tais depoimentos e ao modo como foram prestados e colhidos, não se revelando que tenha embaraçado o exercício do contraditório nem constitua óbice relevante para o tribunal de recurso proceder à apreciação da impugnação deduzida, não se tendo por isso como verificada a inobservância do disposto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

        Termos em que procedem as razões da Recorrente.


IV – Decisão


Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista e decide-se revogar a decisão recorrida, determinando-se a remessa do processo ao Tribunal da Relação para conhecer da impugnação da decisão de facto deduzida pela R./apelante e, conforme o que for julgado nessa sede, conhecer novamente da questão de direito.  

As custas do recurso são a cargo da parte que ficar vencida a final ou na proporção em que o for.   


Lisboa, 15 de Fevereiro de 2018


Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

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[1] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017 – 4.ª Edição, pp. 159-164. 
[2] Ob. cit. p. 159, nota 264.
[3] Relatado pelo Juiz Cons. Lopes do Rego, acessível na Internet http://www.dgsi.pt/jstj.
[4] Relatado pelo Juiz Cons. Roque Nogueira, acessível na Internet http://www.dgsi.pt/jstj.