Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1990
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: PODERES DA RELAÇÃO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: SJ20070705019901
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
1 – A Relação não pode dar como provados certos e determinados factos com base em pseudo não impugnação de documentos meramente particulares.
2 – É que os documentos particulares são meios de prova (de livre apreciação, aliás) e não factos. Só em relação a estes é que tem total cabimento a doutrina do nº 3 do art. 659º do CPC.
3 – Aliás, não tendo a parte recorrente pedido a reapreciação do juízo probatório feito pelo tribunal de 1ª instância, nos termos no art. 712º do CPC, tal tarefa estava vedada ao Tribunal da Relação.
4 – Para que a exceptio possa ser invocada não basta que se esteja perante um contrato obrigatório para ambas as partes ou que crie obrigações para ambas as partes.
5 - Para que a mesma possa ser invocada é necessário que uma obrigação seja o sinalagma da outra. Ora, isso não acontece num contrato de subempreitada relativamente à obrigação de pagamento de multas imposta ao subempreiteiro por via do seu atraso na execução da obra e o pagamento de facturas correspondentes a parte do preço a cargo do empreiteiro (aqui dono da obra): é que na economia do contrato uma coisa não tem nada a ver com a outra – a exceptio aqui não tem aplicação.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

IRelatório
Sociedade de Construções AA Lª intentou acção ordinária contra BB, Lª com vista a obter a sua condenação no pagamento de € 23.757,00, a título de danos morais e patrimoniais, valor este reduzido posteriormente para 15.757,00 €.
Para fundamentar o pedido invocou o cumprimento defeituoso de um contrato de subempreitada para além de prejuízos de natureza não patrimonial decorrentes de actuação ilícita da R. junto da dona da obra.
A R. contestou, pedindo a improcedência da acção, tendo, para o efeito, impugnado parte da factualidade vertida na petição inicial. Ademais, reconveio com vista a obter a condenação da A.-reconvinda no pagamento de 8.244,00 € por via da resolução do contrato por esta decretada e de encargos suportados.
Houve réplica e tréplica e acção seguiu para julgamento, após o que foi decidido dar parcial provimento à acção com condenação da R. no pagamento à A. no montante de 5.357,00 € e juros até efectivo pagamento, por um lado, e dar outrossim provimento à reconvenção, com a condenação da A. no pagamento à R. de 3.021.00 €.
A decisão da 1ª instância foi criticada junto do Tribunal da Relação do Porto por ambas as partes, tendo a apelação da A. sido julgada totalmente improcedente e a da R. parcialmente e, por força disso, esta saiu absolvida da totalidade do pedido de condenação em multas contratuais, e a A.-reconvinda condenada no pagamento das despesas efectuadas pela R. com a reforma de letras destinadas a pagamento de facturas emitidas exclusivamente no âmbito da subempreitada, a liquidar em execução.

Porém, a A. não acatou a decisão do aresto e pediu a sua revista, tendo, para o efeito, apresentado a sua minuta a coberto do seguinte quadro conclusivo:
I – A procedência da apelação da R. quanto à improcedência do pedido da A. na sua (dela R.) condenação em multas contratuais (vide pág. 38 do acórdão recorrido) assenta em circunstâncias, ou melhor, em conclusões de matéria que não foi discutida em 1ª instância.
II – A recorrida/R. não justificou o seu incumprimento do prazo contratual (30.06.2004) com a falta de material a fornecer pela A.; esse foi um argumento novo, criado pela R. só em fase de recurso, para contornar o resultado da prova alcançada em 1ª instância. Basta passar os olhos pela Base Instrutória para se concluir que não esteve em discussão saber se a R. foi impedida de cumprir aquele prazo por falta de fornecimentos da competência da A..
III – É de evidenciar que, relativamente aos documentos em que a Relação se deteve para desenvolver o raciocínio conducente ao resultado de que ora se recorre (docs. 2 a 5 juntos com a réplica) pretendeu a R. impugná-los no art. 43° da tréplica, afirmando apenas o seguinte: " Quanto aos demais documentos apresentados pela Autora – e à semelhança do que sucede com o anterior - eles nada permitem concluir ou provar para a sua tese ". E, já agora, notar que tais documentos foram unicamente votados a demonstrar a falsidade da R., quando afirmou que os materiais a fornecer pela A. só começaram a chegar à obra em fins de Setembro e durante Outubro de 2004.
IV – Mas, ainda que se queira entender que tais documentos não foram impugnados, importa salientar que a própria parte (R.) os desvalorizou, deles não retirando – como seria evidente retirar! - a consequência ora extraída pelo acórdão recorrido.
E PORQUÊ? Porque nunca durante a discussão da causa em 1a instância a R. usou como argumento para justificar o seu incumprimento do prazo – conclusão dos trabalhos a seu cargo até 30.06.2004 –, a falta de fornecimento de material por parte da A..
V – Pelo contrário, antes da acção e durante a fase dos articulados a R. sempre afirmou que não tinha contrato assinado, que não tinha plano de trabalhos, que não sabia as datas de conclusão das respectivas tarefas, que não abandonou a obra e que, portanto, não aceitava qualquer responsabilidade conexionada com prazos de obra – cfr. docs. nºs 2 e 3 anexos à contestação.
VI – Só mudou de "sintonia" depois de ver dada como provada a alegação da A., designadamente a matéria constante dos factos provados sob os nºs 14, 18, 19, 20 e 21 que, por economia, aqui se dão por reproduzidos; só então, numa clara tentativa de “virar o bico ao prego”, veio dizer que afinal não cumpriu o prazo de conclusão da subempreitada (30.06.04) porque a A. não lhe disponibilizou os equipamentos sanitários antes de finais de Agosto de 2004.
VII – Está, pois, certíssima a sentença da 1ª instância quando, na pesquisa da culpa pelo incumprimento, afirma:
" ... a ré iniciou a execução das obras a seu cargo no prazo acordado (01.11.2003) mas não cumpriu com o prazo de entrega ....
Invocou que tal se ficou a dever ao facto de a autora não ter apresentado as ditas louças ... e o equipamento de aquecimento central no tempo devido, pois só o fez em finais de Setembro e Outubro de 2004.
Não logrou a Ré provar a sua tese, como resulta das respostas negativas aos quesitos 20° a 22°, 24°, 27° e 28° da base instrutória.
De acordo com o mapa de fls. 19 (a que, como se provou, ficou subordinada a subempreitada), a ré deveria ter iniciado a colocação das louças sanitárias em Maio de 2004, o que não aconteceu.
Mais se apurou que, em 12.10.2004, a ré retirou da obra todos os materiais, equipamentos e ferramentas que lhe pertenciam ... e deixou de comparecer na obra, tendo suspenso por completo a execução dos trabalhos que lhe estavam confiados.
Não se logrou apurar qual o motivo que levou a a abandonar a obra, pelo que, face ao preceituado no art. 799°, 1, do CC, tem de se concluir que a falta de cumprimento pontual do contrato e o abandono da obra lhe são imputáveis."
VIII – O acórdão recorrido também destaca estes factos e conclusões colhidos na sentença da 1a instância, sobre os quais remata: “Nada temos a censurar nessa ponderação” - observação sábia mas que, salvo o devido respeito, dificilmente se compagina com a decisão final, aparentemente contraditória.
IX – Na realidade, o que se verificou e adquiriu na audiência de discussão julgamento foi a falência total da tese da R. e, pelo contrário, a convicção, assente na prova, de que os equipamentos cujo fornecimento competia à A., sempre estiveram na obra a tempo e horas, ou seja, quando eram necessários para serem montados pela subempreiteira aqui recorrida.
X – A R. “jogou” dolosamente com argumentos falsos, que deveriam ter-lhe custado uma condenação também por litigância de má fé, e veio para o recurso animada da mesma malícia, com a qual construiu, desta feita, o sofisma de afirmar que não podia ter concluído a subempreitada até 30.06.2004, porque os equipamentos cujo fornecimento competia à A. só foram depositados na obra em fins de Agosto de 2004.
XI – Como se disse (mas não é de mais repetir) trata-se de matéria que não foi discutida nem apreciada em 1ª instância e que, enquanto tal, não podia ser aproveitada para a decisão proferida em 2a instância: o Tribunal da Relação não pode conhecer de questões não invocadas nem decididas no Tribunal recorrido, ao que acresce que o recurso em matéria de facto visa apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e, seguramente, excepcionais erros de julgamento; " O recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância" (Forum Justiça, Maio de 1999).
XII – Ao invés do decidido, deveria ter improcedido a apelação da R. e procedido a apelação da A. relativamente ao seu direito de ser indemnizada, com a multa contratualmente prevista, pelo atraso que aquela lhe causou na conclusão da subempreitada que tinha a seu cargo (dela R.) e, consequentemente, na conclusão e entrega de toda a obra.
XIII – Direito esse que, conforme pedido, deveria ser ampliado em relação ao montante atribuído pela sentença em 1ª instância, pelas razões expostas na apelação e que aqui vão reiterar-se, em síntese: analisando a troca epistolar de que dão conta os factos provados sob os nºs 8, 9, 10 e 11, constata-se que só em 16.11.2004 a A. pôde considerar rescindido o contrato que celebrara com a R..
XIV – Assim, o atraso causado pela R. na conclusão da obra não terminou no dia 12.10.2004 (como se considerou na sentença da 1ª instância), mas antes prolongou-se até ao dia 16.11.2004, data em que recebeu da A. a comunicação de rescisão do contrato, à qual acrescem os oito dias que a sentença considerou necessários para efectuar os trabalhos em falta para concluir a obra, ou seja, efectivamente até ao dia 24.11.2004.
XV – Consequentemente, é desde o dia 01.09.2004 e até ao dia 24.11.2004 que deve contabilizar-se a multa diária de € 100,00 a pagar pela R. à A., o que, feitas as contas, resulta, a esse título, numa indemnização de € 8.500,00 (85 dias x € 100,00).

Em contra-alegações a R. contrariou a pretensão da recorrente e aproveitou para, ao abrigo do disposto no art. 684º-A do CPC, ampliar o objecto do recurso em dois pontos: o primeiro para fazer valer a ideia de que foi a própria A.(e não ela) que se colocou em mora ao não colocar os equipamentos nos locais a que se destinavam; o segundo para fazer valer a exceptio, justificando, dest’arte, o seu próprio incumprimento.

A recorrente não usou da faculdade concedida pelo art. 698º, nº 5, do CPC para responder à matéria de ampliação.

IIAs instâncias fixaram o seguinte quadro factual:
1) A A. e R. dedicam-se ambas à indústria de construção civil e obras públicas.
2) Por contrato celebrado com a sociedade CC a A. obrigou-se a realizar a obra designada por construção de prédio, constituído por cave, rés-do-chão e quatro andares, sito no gaveto da Rua ... com a Rua ..., em Matosinhos.
3) Após a R. ter enviado à A., a pedido desta, o orçamento junto de fls. 15 a 18 dos autos, no valor de € 24.081,28, seguiu-se entre ambas um período de negociações.
4) Assim, em Setembro de 2003, a R. celebrou e remeteu à A., a pedido desta, um novo orçamento, conforme doc. de fls. 94 a 97, no valor total de € 18.500,00 acrescidos de IVA à taxa legal em vigor, compreendendo a execução da R. os seguintes trabalhos:
- Equipamento sanitário (só montagem);
- Equipamento de aquecimento central (só montagem),
- Rede de Saneamento;
- Rede de água fria;
- Rede de água quente;
- Rede de gás;
- Rede de ventilação natural;
- Rede de exaustão de gases,
- Rede de águas pluviais;
5) Do mesmo orçamento ficaram expressamente excluídas:
- Todos os trabalhos de construção civil de apoio;
- A abertura e o fecho de roços ou valas;
- Qualquer tipo de pintura;
- As ligações eléctricas;
- E ainda tudo o quanto não fosse especificado no próprio orçamento.
6) Finalmente estipulava-se que as condições de pagamento eram as habituais.
7) Em 12 de Outubro de 2004 a R. enviou à A. a carta cujo teor é o de fls. 98-99 dos autos (onde refere, nomeadamente que «(…) Só quando as referidas obras chegaram à fase de montagem de equipamento que são V. Exas., a fornecer “bacias de retrete, bidés, móveis de lavatórios c/os respectivos lavatórios, misturadores, caldeiras, radiadores”, etc. Então aí sim as obras praticamente pararam tal é a desorganização que os materiais chegam às obras, hoje chega um equipamento amanhã chega outro por variadas vezes não é o equipamento correcto».
8) Em 13 de Outubro de 2004 a A., por sua vez, enviou à R. o fax e a carta de fls. 23 a 29 dos autos, (retirando-se do fax que « (…) Hoje dia 13/10/04, pelas 11:00 horas foi analisado pelo Sr. ..., Sr. ...o e Sr. ... S. C. AA, Sr. ... – representante do Dono da Obra, que V. Exªs não estavam em obra e tinham retirado todo o material e equipamento que tinham para a execução da obra em epígrafe.(…) Como se pode alcançar V. Exas abandonaram a obra ou melhor dizendo rescindiram o contrato unilateralmente(…) Feito um levantamento dos trabalhos em falta verificou-se que faltava executar os seguintes trabalhos: - colocação de louças, ferragens e acessórios no r/chão, 2º andar, 3º andar, 4º andar, 5º andar; - montagem de aquecimento central em todo o prédio; - montagem de rede de gás em todo o prédio; - ligação da água da cisterna e montagem do grupo de bombagem; -rectificação às louças de casa de banho de 1º andar que estão mal colocadas; - colocação de acessórios no 1º andar; - colocação e ligação das bancas de cozinha e pios de lavar roupa».
9) Tendo a R. retorquido mediante a carta cujo teor se encontra junto a fls. 30-31 dos autos, datada de 14 de Outubro de 2004 (Da mesma se extrai, nomeadamente, o seguinte: «(…) mais uma vez vos informámos que não abandonámos a obra em título conforme nosso fax de 12.10.2004 e reunião com o Sr. ... nas vossas instalações em 13.10.2004, explicámos pessoalmente e conforme nos foi pedido por ele, toda a situação e pensámos que ficou bem claro a nossa posição, depois de terem todos os materiais por vós fornecidos, nos sítios que são para aplicar então aí sim nós voltaríamos, para a montagem dos mesmos, conforme nosso Orçamento».
10) Em 27 de Outubro de 2004 a A. enviou à R. a carta registada com aviso de recepção junta a fls. 35-37 dos autos na qual, após alguns considerandos, concedia a esta um prazo de 8 dias “para retomarem os trabalhos de subempreitada que v/foi confiada e os concluírem (com a máxima brevidade)” sob pena de considerar o contrato definitivamente não cumprido.
11) Ainda por carta registada com aviso de recepção, enviada a 12/11/04 e recebida a 16/11/04, a A. comunicou à R. a rescisão do contrato.
12) Por carta datada de 11 de Novembro de 2004, a R. deu conhecimento à dona da obra “CC” da outra carta enviada à A. em 09/Nov/04, nos termos dos documentos de fls. 43 a 47 dos autos, «(…) em virtude dos múltiplos atropelos contratuais por ela praticados naquela obra»).
13) Os bens referidos em 9º (louças sanitárias e outros equipamentos) foram depositados pela A. num espaço da obra situado ao nível do 1º andar.
14) A. e R. não celebraram um contrato escrito com vista à execução dos trabalhos aludidos em 4) e 5) da matéria assente, tendo acordado adoptar o contrato de empreitada referido em 2), mormente quanto aos projectos e mapa de trabalhos a observar, prazos de execução da obra, montante das multas e garantias.
15) Por o orçamento referido em 4) e 5) da matéria assente conter em si todos os aspectos sobre os quais as partes julgaram conveniente a existência de um acordo, e por a A. o ter aceite integralmente de forma verbal, esta e a R. celebraram o contrato nos seus precisos termos e condições.
16) Ao longo dos meses que se seguiram, a A. deu conta que o orçamento existente era o necessário e suficiente para o normal desenrolar dos trabalhos.
17) A execução da subempreitada, a cargo da R., teve início em 01/11/03, com a execução das redes de água, esgotos e ventilação e primeira fase das redes de aquecimento e gás.
18) E, pela calendarização estabelecida, deveria ter ficado concluída, com a colocação das louças e finalização das redes de aquecimento e gás, até 30/06/2004.
19) A R. não cumpriu tal prazo de entrega, nem corrigiu os defeitos que a A. lhe denunciou, mormente as assimetrias colocadas na colocação das louças sanitárias.
20) Em 12/10/04 a R. retirou da obra todos os materiais, equipamentos e ferramentas que lhe pertenciam.
21) E, a partir dessa data, deixou de comparecer na obra, tendo suspenso por completo a execução dos trabalhos que lhe estavam confiados.
22) Os defeitos aludidos em 6) traduziam-se em haver diferenças notórias nos ajustamentos entre peças sanitárias e a parede, entre aquelas peças entre si e, por último, entre peças sanitárias e o móvel da casa de banho.
23) A eliminação desses vícios implica a rectificação da montagem de tais louças a qual custa à A. € 357,00.
24) O dono da obra manifestou contrariedade ao receber a carta referida no nº 12).
25) Tendo a R. questionado a A. sobre a possibilidade de esta lhe ceder temporariamente alguns trabalhadores seus para efectuar o transporte/deslocação do equipamento, esta sempre recusou categoricamente tal possibilidade.
26) E, doutra via, que os mesmos fossem depositados/entregues nos pisos das fracções a que se destinavam.
27) Simplesmente, a A. assim não procedeu.
28) A parte do trabalho da R. referente à execução de todos os trabalhos de tubagens estava concluída desde Janeiro de 2004.
29) Para esta parte dos trabalhos (montagem de caldeiras, radiadores e louças sanitárias) a R. necessitaria apenas de um funcionário.
30) E para a execução das tubagens foi necessário material que não mais seria necessário, como as próprias tubagens, sifões de PVC, ferramentaria e máquinas para trabalhar tubagem.
31) Uma vez terminada essa parte, tais materiais sobrantes, por não serem necessários, foram retirados.
32) Para o equipamento sanitário e aquecimento central era suficiente uma mala de ferramenta de picheleiro que sempre acompanhava os funcionários da R..
33) As condições de pagamento habituais, referidas em 6) da matéria assente, eram de 60 dias após a data de emissão da factura correspondente aos trabalhos efectuados no mês a que ela respeitasse.
34) À data de 09/11/2004 encontrava-se já vencida e por pagar a factura junta a fls. 109 dos autos, correspondente aos trabalhos efectuados no mês de Agosto de 2004, de € 3.021,00.
35) A R. teve encargos bancários com o desconto de letras e reformas que aceitou da A., como forma de pagamento de diversas facturas dizendo respeito, além da subempreitada dos autos, à do empreendimento Alta Vista, estando tais encargos incluídos nas notas de débito documentadas a fls. 119 a 137 dos autos.

IIIQuid iuris?
Sopesando as argumentações expostas nas alegações, à luz das respectivas conclusões, eis que somos confrontados com a seguinte questão:
– Tem a A. direito a perceber os montantes reclamados, não só inicialmente mas também os acrescidos em sede de ampliação do pedido, relativamente às multas?
A resposta que vier a ser dada a esta questão envolve necessariamente um juízo sobre o mérito das objecções suscitadas pela R. na (dupla) ampliação do objecto de recurso.
Vejamos.

Abandonado o pedido de indemnização/compensação dos danos não patrimoniais por alegadas violações da R. ao seu direito à imagem, a A. vira todas as suas atenções para o pedido que formulou contra esta por multas resultantes do incumprimento do contrato firmado.
A 1ª instância concedeu, de um modo geral, provimento a esta pretensão da A., sublinhando que, por força da cláusula 5ª do contrato (cfr. fls. 13) a R. (segunda contraente), no caso de incumprimento por motivo que lhe seja imputável, ficou obrigada ao pagamento de uma multa de 100 € por cada dia de atraso, passados dois meses depois de cessado o prazo para a execução da empreitada, previsto no nº 1 da mesma cláusula.
E daí partiu para a seguinte conclusão:
“Feitas as devidas adaptações desta cláusula ao contrato estabelecido entre autora e ré, a obra deveria ter terminado em 30 de Junho de 2004, pelo que a multa só é exigível no 1º dia de Setembro”.
Porém, anotou que o direito da A. à pretendida indemnização devia terminar na data do incumprimento definitivo e não na data da resolução do contrato, pois “doutra forma gerar-se-ia a possibilidade de abusos, bastando à contraparte protelar tal declaração de resolução do contrato para obter um maior montante”.
Por fim e dentro deste campo indemnizatório, acabou por conceder à R. o direito ao total de mais 8 dias de multa por força dos dias necessários gastos pela A. para a realização das obras deixadas por fazer pela R. e para correcção dos defeitos.

A Relação não consagrou esta solução.
Pelo contrário, negou à A. todo e qualquer direito a ser indemnizada por mor do atraso no cumprimento do contrato.
É certo que aceitou a argumentação da 1ª instância no tocante à falta de cumprimento pontual do contrato e ao abandono da obra por parte da R. (“… não é possível dar por assente um incumprimento por parte da Autora, por falta de distribuição de equipamentos, determinante do incumprimento por parte da Ré e justificativo do seu incumprimento”).
Mas…
Baseada em documentos juntos (meramente particulares: guias de remessa) juntos com a réplica e alegadamente não impugnados na tréplica, concluiu que “tendo o material chegado à obra apenas em finais de Agosto de 2004, não é possível atribuir à Ré qualquer mora pelo atraso na colocação em data anterior”.
E, rematou:
“Assim, admitindo como prazo razoável a alegação da Autora na p.i., de que seriam necessários 15 dias para a colocação de tal equipamento (…), a Ré deveria ter procedido a tal colocação até 15 de Setembro”.
“… a multa só é exigível a partir de 15 de Novembro de 2004.
Sucede que em tal data já o contrato se encontrava resolvido”.

Id est, na base desta argumentação, na análise primeira do recurso da R., a Relação afastou não só a indemnização que a 1ª instância concedeu à A. como, logicamente, não lha concedeu até à data da resolução do contrato como aquela defendera nas cinco primeiras conclusões da apelação.

Que dizer de tudo isto?
Que a Relação errou.
Ainda que se tivesse como certo que os ditos documentos (apresentados pela A. na réplica) não foram objecto de impugnação (e foram-no – cfr. art. 43º da tréplica), nada permitia à Relação chegar à conclusão a que chegou … partindo apenas da análise de documentos meramente particulares.
Os documentos particulares são meios de prova (servem para provar ou para contra-provar) factos alegados. Não são factos.
O nº 3 do art. 659º do CPC obriga o juiz a tomar em consideração “os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas que lhe cumpre conhecer”.
Os ditos documentos são, como ficou dito, meramente particulares.
Caem, portanto, na alçada de apreciação livre do julgador (cfr. arts. 655º, nº 1, do CPC). A sua força probatória está limitada às declarações atribuídas ao seu autor, desde que não impugnadas (cfr. art. 376º do CC).
Não foi, com base nos mesmos, pedida a reapreciação da prova, nos termos do art. 712º do CPC.
Nunca poderia a Relação convocá-los para legitimar a sua conclusão.
Mas há mais.
A Relação esqueceu-se dos factos. Dos não provados. Dos que foram alegados pela R. com vista a afastar a sua responsabilidade pelo não pagamento das multas.
Concretizando:
Que a R. alegou que, nos inícios de Outubro de 2004 (nessa data o contrato estava em pleno vigor pois só foi declarado resolvido pela A. em 16 de Novembro de 2004), ainda faltava a entrega de certos materiais, que outros estavam trocados, que disso deu conta à A., que esta deu “ouvidos de mercador” (cfr. arts. 79º, 80º e 81º da contestação), que “numa primeira fase, a Ré não recebeu, da Autora, o equipamento sanitário e de aquecimento (a entrega só teve lugar a partir de Setembro de 2004)” (cfr. art. 99º da contestação) e que tudo isso foi dado como não provado como claramente resulta das respostas (negativas) dadas aos quesitos 20º, 21º, 22º, 27º e 28º.
Isso mesmo foi enfatizado pelo Mº Juiz da 1ª instância (cfr. fls. 332 vº)
Se a Relação tivesse atendido aos factos alegados e não provados não teria “tirado” o argumento da mora da A. para justificar o comportamento moroso da R..
Os documentos em causa não tiveram o mérito de determinar respostas diferentes aos quesitos referidos.
E, pelos vistos, as partes conformaram-se com tal juízo probatório, já que não o puseram em crise através dos mecanismos próprios, os consagrados no citado art. 712º do CPC.
Ademais, sempre se dirá que é ilegítima, porque despida de qualquer suporte fáctico, a conclusão “seriam necessários 15 dias para a colocação de tal equipamento (…), a Ré deveria ter procedido a tal colocação até 15 de Setembro”.
O contrato foi resolvido por carta da A. dirigida à R. e datada de 12 de Novembro de 2004. Esteve em vigor até à data da recepção da carta resolutiva.
Até então, pôde sempre a R. cumprir as suas obrigações, interrompendo a sua mora motivadora e legitimadora das multas clausuladamente previstas.
Não acompanhamos, neste ponto concreto do terminus da contagem do prazo de multa, o raciocínio da 1ª instância.
Não se nos antolha certa a argumentação avançada – da possibilidade de abusos se a condenação de prolongasse para além da data do incumprimento até à data da resolução – pela singular razão de que até esse último momento o contrato permaneceu de pé com todas as consequências, inclusive para efeitos de cumprimento por parte da R..
Aqui chegados, caso não tivesse a R. suscitado as questões referidas, ao abrigo do nº 3, do art. 684º-A do CPC, estávamos em condições de dizer que a A. tinha direito não só às multas reclamadas não só ab initio, como, depois, por via da ampliação do pedido.
Há, pois, que a apreciar as ditas questões.
A 1ª diz respeito à alegada mora da A..
Em abono da sua intenção (impeditiva do direito da A.) alegou a R. que àquela competia não só o fornecimento do material e equipamento, como de todos os actos acessórios, designadamente a deslocação e transporte e colocação à disposição de molde a poder dar cumprimento à obrigação assumida.
Este ponto foi objecto de quesitação (cfr. quesito 9º) e foi dado como não provado.
Daí que a Relação (aqui com todo o acerto) tenha concluído que “a R. não provou que competia à Autora a deslocação dos equipamentos sanitários desde o ponto onde estavam depositados … até aos locais específicos, onde deveriam ser colocados”.
E sublinhou (e com argúcia) que “não é pelo facto de o orçamento da Ré apenas mencionar a expressão «montagem» que se pode extrair caber à Autora a deslocação dos equipamentos dentro da obra e sua distribuição pelos diversos locais de montagem”.
Ao darmos a nossa concordância à conclusão tirada a este respeito pela Relação – “à Autora não pode assim ser imputado um incumprimento por falta de distribuição pelos diversos locais de colocação e montagem do respectivo equipamento” – logicamente estamos a dizer que à R. não assiste razão neste ponto concreto.
Passemos, pois, à apreciação do 2º ponto (também ele pretensamente impeditivo do direito da A.), à relevância da invocação da exceptio.
A este propósito a Relação nada disse, como é evidente: a sua linha argumentativa assim o impunha.
O certo é que a sentença da 1ª instância nem uma linha gastou sobre o tema. Limitou-se a concluir que, perante a factualidade alegada (e não provada) a falta de cumprimento pontual do contrato e o abandono da obra são imputáveis à R..
Apesar de tal omissão a R. limitou-se a invocar a exceptio na sua minuta na ânsia de ver consagrado incumprimento por parte da A..
De balde, como vimos.
A Relação, não obstante não ter reconhecido o alegado incumprimento da A. com base na invocada obrigação de colocação dos materiais, acabou, como já referimos, por isentar a R. de qualquer pagamento de multas por força da alteração do juízo (errado) probatório a que já fizemos referência.
Sobre a omissão de pronúncia cometida pela 1ª instância não tirou a R. nenhuma consequência, maxime ao nível das nulidades da decisão.
Na ampliação do objecto da revista invocou, de novo, a R. a exceptio, ora para pretender justificar o não pagamento das multas contratuais.
A invocação da exceptio como justificativa do não pagamento das multas contratuais surge assim, inexoravelmente, como questão nova.
Anotemos, no entanto, que a invocação desta excepção material substantiva foi feita pela R. por mor do alegado incumprimento da A. no que tange ao fornecimento da totalidade do equipamento e substituição de outro a cargo desta.
Não nos refugiaremos, no entanto, no argumento puramente processual e eventualmente pouco consistente da qualificação da questão como nova para fugir ao debate.
Analisemos, pois, a relevância da exceptio.
O art. 428º do CC preceitua que “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o cumprimento simultâneo”.
Como bem observam Pires de Lima e Antunes Varela, “para que a exceptio se aplique, não basta que o contrato seja obrigatório, ou crie obrigações para ambas as partes: é necessário que as obrigações sejam, …, correspectivas ou correlativas, que uma seja o sinalagma da outra” (in Código Civil Anotado, Volume I – 4ª edição -, pág. 406, nota 2).
Com toda a pertinência, observa Calvão da Silva que “aquilo que legitima a exceptio non adimpleti contractus é a ausência de correspondência ou reciprocidade que está na origem das obrigações (sinalagma genético) e que deve continuar a estar presente no seu cumprimento (sinalagma funcional) (in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 330).
Consequência directa da exceptio é o impedimento da aplicação da mora (cfr. arts. 804º e ss. do CC) e do incumprimento definitivo (cfr. art. 808º do CC), mesmo que tenha havido interpelação da outra parte.
E, à luz das considerações expostas, salta logo à vista a questão de saber se o não pagamento da dívida por parte da A. e relativamente a facturas vencidas é causa justificativa do não pagamento das multas contratuais.
Dito isto por outras palavras: as obrigações são aqui recíprocas entre si?
Vejamos.
O pagamento de multas era imposto à subempreiteira, a aqui R., para o atraso no cumprimento da execução do contrato (cfr. cláusula 5ª).
Já o não pagamento atempado das prestações acarretava a favor da subempreiteira o vencimento de juros, o atraso pela execução da obra e, até, a suspensão dos trabalhos (cfr. cláusula 4ª).
Facilmente se entende que não há reciprocidade entre a obrigação pelo pagamento de multas, por um lado, e o pagamento de um factura referente a uma prestação do preço, por outro.
Na economia do contrato uma coisa não tem nada a ver com a outra: a exceptio não tem aqui aplicação.
A obrigação recíproca ao pagamento (esta por parte da A.) é a execução pontual da obra (por parte da R.).
O não pagamento de multas decorre do incumprimento desta obrigação de execução pontual da obra.
Ora, é precisamente na base do reconhecimento (pelo menos implícito) do incumprimento que a R. pretende fazer valer o pagamento (parcial) do preço.
Não pode ser!
Não diremos, como é óbvio, que o não pagamento por parte da A. da referida factura não pudesse (não possa) ter implicações ao nível da extinção parcial da dívida.
Mas a compensação não foi invocada.
Nada a fazer, portanto.
Em suma, nada impede que a A. veja aqui reconhecido (definitivamente) o direito ao pagamento por parte da R. do montante peticionado a título de multas pela não execução atempada do contrato de subempreitada.
IV Decisão
Concede-se a revista e condena-se a recorrida no pagamento das respectivas custas.

Lisboa, aos 05 de Julho de 2007
Urbano Dias (relator)
Paulo Sá
Faria Antunes