Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18/20.7JELSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: M. CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
QUESTÃO NOVA
REJEIÇÃO PARCIAL
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRANSPORTE MARÍTIMO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 02/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A existência de dupla conforme, inclui a confirmação “in mellius”, ou seja, a decisão da relação que confirma o acórdão da 1.ª instância, melhorando a situação do condenado, v.g. quando reduz/diminui a pena que lhe tinha sido aplicada na 1.ª instância (Neste sentido, Pereira Madeira, in AAVV, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2014, p. 1254).
II - A confirmação in mellius integrando um juízo confirmativo “é relevante para os efeitos da al. f) do nº 1 do art. 400.º do CPP” e garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP).
III - Isto significa, visto o disposto nos art. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), salvo quanto à pena que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão.
IV - Assim, as questões de facto, as questões processuais, as questões de direito (incluindo, nomeadamente, as relativas à invocada “violação normativa do ponto de vista da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”), suscitadas nesse âmbito em que não é admissível o recurso para o STJ e, em que também não há decisão da relação sobre as novas questões colocadas, não podem ser conhecidas, nem sindicadas por este tribunal.
V - Os recursos destinam-se a apreciar a decisão de que se recorre (neste caso o acórdão do tribunal da relação de Lisboa impugnado) e não para apreciar questões novas que não foram colocadas no Tribunal recorrido, ressalvado aquelas que devam ser conhecidas oficiosamente, o que não é o caso.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 18/20.7JELSB.L1S1

Recurso

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I-Relatório

1. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 18/20.... do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., comarca ..., por acórdão de 9.04.2021, foi decidido (no que aqui interessa) julgar a pronúncia parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente:

A) Absolver os arguidos AA e BB relativamente à prática, em co-autoria material, de um crime de associação criminosa, p.p. pelo artigo 28.°, ns.° 1 e 2 do D.L. n.° 15/93, de 22/01;

B) Absolver o arguido BB relativamente à prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p.p. pelos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma;

C) Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, pelos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma, na pena de 11 anos e 6 meses de prisão;

D) Condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21.°, n.° 1 do D.L. 15/93, de 22/01, com referência à tabela anexa I-B, na pena de 9 anos de prisão;

E) Condenar o arguido AA na pena acessória de afastamento do território nacional após o cumprimento da pena principal, podendo o arguido requerer o levantamento da medida nos termos e prazo referidos no art. 27.°, n.°s 1 e 2 da Lei n.° 37/2006, de 9 de Agosto;

F) Determinar a aplicação ao arguido BB da pena acessória da expulsão do território nacional pelo período de 9 anos, em conformidade com o disposto nos arts. 34.° do D.L. n.° 15/93, de 22/01, 134.°, n.° 1, als. e) e f), 140.°, n.° 2 e 151.°, todos da Lei n.° 23/2007, de 4 de Julho;

G) Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido (art. 35.°, n.° 2 do D.L. n.° 15/93, de 22/01), determinando-se a destruição daquele que ainda não foi destruído;

H) Declarar perdidos a favor do Estado a embarcação de recreio, tipo Ketch (veleiro com dois mastros), denominada “...”, os oitenta e dois sacos desportivos e o telefone satélite, da marca ..., de cor ..., apreendidos aos arguidos (art. 35.°, n.° 1 do D.L. n.° 15/93, de 22/01);

(…)»

 2. Inconformados com essa decisão, recorreram os arguidos para o Tribunal da Relação ..., o qual por acórdão de 26.10.2021 decidiu:

 A) No provimento parcial do recurso interposto por AA, condenam o mesmo pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma, na pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão;

B) No provimento parcial do recurso interposto por BB, condenam o mesmo pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.°, n.° 1 do D.L. 15/93, de 22/01, com referência à tabela anexa I-B, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Mais, corrigiu “o acórdão recorrido na parte em que diz “Deixa-se consignado, para efeitos do disposto no art. 80.° do Cód. Penal, que os arguidos AA e BB se encontram sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem destes autos, desde 29/01/2020, tendo sido detidos em 26/01/2020”, por forma a que, onde se lê “detidos em 26/01/2020”, deverá ler-se “detidos em 19.01.2020”.

3. Inconformado com essa decisão, os arguidos AA e BB recorreram para este STJ.

3.1. Assim, o arguido AA no seu recurso apresentou as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo, ao reparar a indicação referente à data da detenção, deixando consignado que a detenção ocorreu no dia 19/01/2020, para efeitos de privação da liberdade ao abrigo destes autos, abriu precedente para consolidar a conclusão de que se verifica, ab initio, uma ilegalidade relacionada com o mandado e consequente detenção e recolha de prova.

2. Verificou-se “desrespeito do prazo de 48 horas”, situação que configura muito mais do que “apenas e tão-só uma mera irregularidade”, na medida em que estamos perante uma manifesta e grave compressão dos direitos de defesa de Arguido.

3. Em concreto, aquele direito só poderia ter sido derrogado até dia 21 de janeiro de 2020, dado que a detenção ocorreu no dia 19, tendo as autoridades competentes também incorrido na violação do artigo 5.º desta Diretiva 2013/48/UE, em conjugação com o artigo 143.º n.º 4 do CPP.

4. As autoridades policiais portuguesas tiveram até ao dia 21 de Janeiro de 2020 prazo para apresentar os Arguidos a autoridade judicial territorialmente competente, o que não lograram fazer, sendo que tal falha constitui nulidade insanável.

5. À luz da legislação nacional e europeia – que foi violada -, o conceito de detenção ou privação de liberdade implica que a pessoa não possa seguir rumo distinto daquele que as autoridades lhe impuserem.

6. Reputando-se, como o Tribunal recorrido reputou, que a embarcação não tinha registo válido, mas sendo o capitão de nacionalidade alemã, o Tribunal deveria ter considerado que as autoridades portuguesas abordaram e entraram de forma ilícita e com uso da força pois não dispunham de um mandado de captura e/ou de buscas e apreensão legalmente suportado pela devida autorização do Estado da nacionalidade do capitão (concretamente, da República Federal da Alemanha).

7. Nem o n.º 3, nem o n.º 5 do artigo 27.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar foram respeitados. Também não foi respeitado o procedimento plasmado no artigo 17.º n.º 3 da Convenção, mas, mais grave, foi violado o n.º 1 do artigo 97.º da Convenção in fine ao ignorar o mandatório contacto com as entidades diplomáticas alemãs dado que o visado tinha cidadania alemã e fazia-se transportar numa embarcação alegadamente sem registo.

8. A interpretação do artigo 97.º da Convenção que assegura, constitucional e internacionalmente, os direitos de defesa dos visados em casos que acarretem responsabilidade penal (que a Convenção não especifica) implica necessariamente considerar que sempre que a nacionalidade do capitão ou dos visados seja diferente da do registo da embarcação deverão ser contactadas as entidades diplomáticas de cada nacionalidade.

9. O Tribunal a quo validou e utilizou elementos de prova cuja invalidade constitui proibição de prova, nos termos do artigo 126.º, n.ºs 1 e 2, al. c), e 3, do CPP e que implicaria, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do CPP, a invalidade de todos os atos por esta afetados, incluindo a abordagem à embarcação, a entrada na mesma, o seu apresamento e condução, a privação da liberdade dos ARGUIDOS, as buscas e apreensões realizadas, bem como dos atos que dela dependerem ou dos atos posteriores por ela afetados, sendo certo que o acórdão condenatório é, neste enquadramento legal, igualmente nulo, já que as provas em que este se baseia e que foram determinantes para imputar aos ARGUIDOS os crimes pelo qual vêm condenados, foram apreendidas no decurso da referida busca nula e das diligências probatórias nulas efetuadas sobre as mesmas.

10. Por violação dos artigos 141.º n.º 1 e 254.º, n.º 1 al. a), ambos do CPP, como ainda do catálogo normativo constitucional e internacional que se acima se indicou, não estavam preenchidos os requisitos legais para reputar a abordagem e a detenção como legais, razão por que se verifica a nulidade insanável prevista no artigo 126.º, n.º 2 c) e n.º 3 do CPP.

11. Qualquer interpretação normativa dos artigos 141.º, n.º 1, 254.º, n.º 1, al. a) e 126.º, n.º 2 c) e n.º 3 do CPP, que permita ao Tribunal validar a detenção do suspeito nas circunstâncias de facto acima aduzidas, depois de ultrapassadas as 48 horas após efetiva detenção ou privação da liberdade, e, consequentemente, validar toda a prova recolhida é manifestamente inconstitucional por utilizar critério interpretativo que não assegura, como devia, a menor compressão possível dos direitos fundamentais do Arguido, tal como alude o artigo 28.º n.º 1 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

12. O Tribunal a quo, perante os factos apurados em julgamento, a personalidade do agente e as finalidades das penas, ao aplicar a pena de 10 anos e 6 meses, violou os artigos 40.º, n.º 2 e 71º, ambos do CP, já que várias circunstâncias militam a favor do RECORRENTE, e que não foram devidamente tidas em conta no acórdão recorrido.

13. A aplicação de pena pela metade do limite máximo afronta, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas, não sendo adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e ultrapassando, claramente, a medida da culpa do ARGUIDO, mostrando-se desproporcional e desadequada a uma linha uniforme e coerente na penalização dos agentes que verdadeiramente se dedicam ao tráfico internacional de droga.

14. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40.º, n.º 2 do C. Penal, na dimensão interpretativa que permita a aplicação de penas por força valorativa negativa das exigências de prevenção geral em detrimento das especiais, por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstrato ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, todas consagradas no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.

Termina pedindo o provimento do recurso, devendo com fundamento na verificação da proibição de prova, revogar-se a decisão recorrida, com a sua consequente absolvição e, sem conceder, será de aplicar uma pena abaixo da metade do máximo do limite legal, por realizar, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

3.2. Por sua vez, o arguido BB no seu recurso apresentou as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo validou e utilizou elementos de prova cuja invalidade constitui proibição de prova, nos termos do artigo 126.º, n.ºs 1 e 2, al. c), e 3, do CPP e que implicaria, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do CPP, a invalidade de todos os atos por esta afetados, incluindo a abordagem à embarcação, a entrada na mesma, o seu apresamento e condução, a privação da liberdade dos ARGUIDOS, as buscas e apreensões realizadas, bem como dos atos que dela dependerem ou dos atos posteriores por ela afetados, sendo certo que o acórdão condenatório é, neste enquadramento legal, igualmente nulo, já que as provas em que este se baseia e que foram determinantes para imputar aos ARGUIDOS os crimes pelo qual vêm condenados, foram apreendidas no decurso da referida busca nula e das diligências probatórias nulas efetuadas sobre as mesmas.

2. O Tribunal a quo, perante os factos dados como provados, a personalidade do agente e as finalidades das penas, ao aplicar a pena de 8 anos e 6 meses, violou os artigos 40.º, n.º 2 e 71º, ambos do CP, já que várias circunstâncias militam a favor do RECORRENTE, e que não foram devidamente tidas em conta no acórdão recorrido.

3. A co-autoria imputada é, comparativamente à do seu co-arguido, substancialmente menor. A matéria de facto apurada permite optar por uma diferenciação bastante superior à pena que vier a ser aplicada ao co-arguido AA. Uma diferença de 2 anos, como atualmente sucede, é também ela, sob a perspetiva do caso do ora RECORRENTE, totalmente desproporcional e injusta e concorre nas mesmas circunstâncias à verificação da violação dos artigos 40.º, n.º 2 e 71.º do C. Penal.

4. A aplicação de pena na metade do limite máximo afronta, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas, não sendo adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e ultrapassando, claramente, a medida da culpa do Arguido, mostrando-se desproporcional e desadequada a uma linha uniforme e coerente na penalização dos agentes que verdadeiramente se dedicam ao tráfico e efetiva comercialização de droga.

5. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40.º, n.º 2 e do artigo 71.º do C. Penal, na dimensão interpretativa que permita a aplicação de penas por força valorativa negativa das exigências de prevenção geral em detrimento das especiais, por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstrato ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, todas consagradas no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.

Termina pedindo o provimento do recurso, devendo com fundamento na verificação da proibição de prova, revogar-se a decisão recorrida, com a sua consequente absolvição e, sem conceder, será de aplicar uma pena abaixo da metade do máximo do limite legal, por realizar, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

4. Ambos os recursos foram admitidos, sem qualquer restrição, por despacho de 15.12.2021, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

5. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu aos recursos, apresentando as seguintes conclusões:

1.Na formulação do artigo 400.º, n.º. 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o legislador vedou a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão de Tribunal da Relação que confirme decisão de 1ª instância e aplique penas de prisão iguais ou inferiores a 8 anos, tendo implícito que a convergência de duas decisões, em 1ª instância e na Relação, confirma o seu acerto e a desnecessidade de repetir a argumentação perante outra instância.

2.Se o Tribunal da Relação confirmou a decisão de 1.ª instância [a chamada dupla conforme] só é admissível recurso relativamente aos crimes punidos com pena de prisão superior a 8 anos e/ou com pena conjunta superior a essa medida.

3.Havendo “dupla conforme”, só a pena de prisão que ultrapasse essa medida pode ser objeto de decisão, ficando prejudicadas a apreciação das demais questões suscitadas.

4.A irrecorribilidade abrange, em geral, todas as questões processuais ou de substância que tenham sido objeto da decisão, nomeadamente, as questões relacionadas com as proibições de prova, nulidades, qualificação jurídica dos factos, concurso de crimes, autoria, cumplicidade e com a determinação das penas parcelares.

5.No caso dos autos, por acórdão de 26 de outubro de 2021, o Tribunal da Relação ... condenou os recorrentes em penas de prisão superiores a 8 anos.

6.Este acórdão apenas divergiu do acórdão da 1.ª instância na determinação da medida das penas que aplicou aos arguidos, reduzindo cada uma delas. Em tudo o mais, confirmou o decidido no acórdão da 1.ª instância, desde logo quanto à proibição de prova e sua nulidade.

7.Quanto à data da detenção dos arguidos [19/01/2020], o acórdão do TR..., em crise, limitou-se a fazer uma correção dessa data no acórdão da 1.ª instância, em conformidade com o já anteriormente decidido pelo TR.... Na verdade, o acórdão da 1.ª instância, por lapso, indicou como data da detenção, para efeitos do disposto no art. 80.º, do CP, o dia 26/01/2020, quando a mesma já tinha sido definida pelo TR... como sendo o dia 19/01/2020, sendo que esse lapso em nada contamina o acórdão da 1.ª instância e, consequentemente, o acórdão do TR... em crise.

8.Donde, os recursos interpostos pelos arguidos para o STJ são inadmissíveis no que respeita à arguição da nulidade contemplada no art. 126.º, n.ºs 1, 2, al. c), e 3, do CPP, pelo que, nesta parte, não devem ser conhecidos e admissíveis quanto à determinação das penas aplicadas.

9.O crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 do D.L n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-B, anexa a este diploma, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

10.A pena prevista neste dispositivo, em conformidade com o disposto no art. 24.º, al. c) do mesmo diploma legal, é aumentada de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória, ou seja, cabe ao crime de tráfico de estupefacientes a pena de prisão abstrata compreendida entre 5 a 15 anos.

11.No caso do arguido AA o limite médio da pena situa-se nos 10 (dez) anos de prisão, e no caso do arguido BB situa-se nos 8 (oito) anos de prisão.

12.As penas concretas pelo crime em causa têm de corresponder a uma punição compatível com a elevada ilicitude do facto [tráfico internacional de produto estupefaciente, por via marítima, o que dificulta a sua deteção], com o elevado grau da culpa dos arguidos [motivação pelo dinheiro fácil sem curar de saber do tipo e quantidade de produto estupefaciente transportado e das suas consequências quando introduzido no “mercado”], com as prementes exigências de prevenção geral [proteção dos bens jurídicos tutelados e confiança da comunidade] e as exigências de prevenção especial [vulnerabilidade dos arguidos].

13.Constata-se, por isso, que cada um dos arguidos foi punido em apenas 6 (seis meses) acima do limite médio da pena de prisão abstratamente aplicável [10 anos e 6 meses e 8 anos e 6 meses], o que se mostra adequado, proporcional e ajustado em face dos factos provados, das finalidades das penas [art. 40.º, n.ºs 1 e 2, do CP - prevenção geral e especial, medida da culpa] e dos requisitos de determinação da medida da pena [art. 71.º, do CP – culpa do agente, exigências de prevenção, circunstâncias que não fazendo parte do tipo depõem a favor e contra o agente].

14.As penas aplicadas a cada um dos arguidos cumprem o estatuído nos arts. 40.º e 71.º do CP, não ultrapassam a medida da sua culpa, correspondem sensivelmente ao mínimo de pena imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias.

15.A redução da pena, nos moldes pretendidos pelos arguidos, é suscetível de pôr em causa a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.

16.À cautela, no que concerne à violação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10/12/1982 e consequente nulidade da prova por verificação do disposto no artigo 126.º do CPP, para o caso de se entender que o recurso deve ser conhecido nesta parte, equacionam os recursos duas questões jurídicas: a validade da abordagem e atos subsequentes e a validade da detenção.

17.Quanto à validade da abordagem, a Marinha de Guerra Portuguesa, perante uma embarcação sem nacionalidade, procedeu à abordagem da embarcação ... com a finalidade de proceder à sua identificação completa, em conformidade com o disposto no art. 17.º, da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas e do art. 110.º, n.º 1, al. d), da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.

18.A abordagem não é nula, como não são nulos os demais atos praticados na sua sequência, pelo que não se violaram os arts. 17.º, n.º 1, 27.º, n.ºs 3 e 5, 89.º, 97.º, n.º 1 e 110.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e, consequentemente, não tem aplicação o disposto nos arts. 126.º, n.ºs 1, 2, al. c), e 3, e 122.º, n.º 1, ambos do CPP.

19.Quanto à detenção dos arguidos, a Marinha de Guerra Portuguesa escoltou a embarcação ... e os arguidos para território português, porque aquela não tinha nacionalidade e, por isso, suspeita de ser utilizada na atividade delituosa de tráfico de estupefacientes.

20.A embarcação e os arguidos chegaram a território português no dia 26/01/2020, onde eram aguardados por agentes da Polícia Judiciária.

21.Foi esta autoridade policial que, no dia 26/01/2020, procedeu às buscas e apreensões na embarcação, e à detenção dos arguidos, em flagrante delito, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.

22.Ou seja, não obstante os arguidos terem sido escoltados pela Marinha de Guerra Portuguesa desde o dia 19/01/2020 até ao dia 26/01/2020, apenas ficaram formalmente privados da liberdade na data de 26/01/2020, quando lhes foi dada voz de detenção, pois que apenas nessa data se comprovou a existência de produto estupefaciente, cocaína, na embarcação ....

23.Até essa data os arguidos viram a sua liberdade ser comprimida, porque foram escoltados para um destino que lhes foi imposto, o que apenas foi possível porque a embarcação ... não tinha nacionalidade e, por isso, foi possível a sua abordagem, como acima se aludiu.

24.De resto, o art. 8.º, n.º 2, da CEDH, estatui o seguinte: “Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito [n.º 1 “Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência."} senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.” [negrito nosso].

25.O que quer dizer, que o direito dos arguidos a verem respeitado o seu domicílio, no caso a embarcação onde habitavam, enquanto no mar, pode ser objeto de ingerência por autoridade pública quando estiverem em causa interesses públicos que pela sua natureza são superiores ao interesse privado de cada cidadão, como é o caso.

26.Está, assim, justificada a abordagem e, consequentemente, a compressão da liberdade dos arguidos, que poderia ter terminado se, quando chegados a território português, a Polícia Judiciária nada de anómalo tivesse detetado na embarcação ..., o que não foi o caso.

27.Os arguidos foram apresentados a primeiro interrogatório judicial dentro do prazo legal de 48 horas após a detenção formal, pelo foram cumpridos os arts. 141.º, n.º 1 e 254.º, n.º 1 al. a), ambos do CPP.

28.Todavia, para efeitos de desconto nos termos do art. 80.º, do Código Penal, deve atender-se à data de 19/01 /2020, pois que foi nessa data que a liberdade de ação dos arguidos ficou comprimida, condicionada.

29.Não foram violados os arts. 8.º, da CEDH e 32.º, n.º 1, da CRP.

30.Nenhuma censura merece o acórdão recorrido que, como tal, deverá ser integralmente mantido.

6. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido de concordar com a resposta aos recursos apresentada na Relação, reafirmando que “a confirmação in mellius”, ou seja, a decisão que confirma, melhorando, a situação penal do condenados “é relevante para os efeitos da al. f) do nº 1 do art. 400º do CPP”, pelo que “garantido que foi o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, não podem os recorrentes pretender uma terceira apreciação”, por ser vedado por lei, o que abrange a matéria de direito, que igualmente não poderá voltar a ser escrutinada, a não ser relativamente à pena única”, concluindo que, mesmo nessa parte que pode ser reapreciada, não merece provimento o recurso.

7. Apenas o arguido AA respondeu ao parecer do Sr. PGA, alegando que não existe a “dupla conforme” no que se refere “ao modo como foi reapreciada a matéria de facto e apreciada a violação normativa do ponto de vista da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Com efeito, quanto à Convenção, entre cada recurso, várias situações de facto/direito foram suscitadas e, embora ambas levem necessariamente à conclusão de que aquele diploma com força de lei internacional foi violado em vários itens normativos, um dos normativos, agora invocado, não foi objeto de ponderação ou apreciação por parte da Relação. A norma que concretamente foi invocada perante esse Supremo Tribunal abrange o artigo 97.º da Convenção, cujo dispositivo aponta para que num incidente de alto mar, como o dos autos, que possa acarretar uma responsabilidade penal ou disciplinar para o capitão ou para qualquer outra pessoa ao serviço do navio, os procedimentos penais contra essas pessoas só podem ser iniciados perante as autoridades judiciais ou administrativas do Estado de bandeira ou perante as do Estado do qual essas pessoas sejam nacionais.” Nessa perspetiva, sustenta o recorrente que “o Tribunal da Relação focou-se na questão suscitada quanto à legalidade do pavilhão da embarcação, mas no recurso agora em apreço uma das questões de direito suscitada ex novo consiste no facto de, à data do apresamento, se dúvidas pudessem existir relativamente à nacionalidade da embarcação, nenhuma dúvida se suscitava quanto à nacionalidade do capitão, o que por si só impunha o cumprimento normativo acima destacado.”. Assim, conclui que “a questão que aqui se levanta é a de que, perante os factos apurados e à luz da Convenção, apenas o Estado alemão tinha o direito de decidir e ser diplomaticamente auscultado sobre a detenção de um seu cidadão” e, “Não tendo tal comando sido cumprido na vertente do próprio capitão, violou-se, como se sustenta no recurso ora em apreço, o artigo 97.º da Convenção, o que é factual e normativamente diferente do espectro decisório da 1ª como da 2ª instância.”

8. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais com o envio das peças processuais que fossem solicitadas, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. Fundamentação

Factos


9. Resulta do acórdão da 1ª instância, confirmado pelo Ac. do TR... de 26.10.2021, a seguinte decisão sobre a matéria de facto:

Da discussão da causa, com interesse para a decisão resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 7 de Agosto de 2019, o arguido AA adquiriu em ..., nas ..., uma embarcação de recreio, tipo Ketch (veleiro com dois mastros), denominado “...”, com 18,8 metros de comprimento e com o número de registo ...06, MMSI ...50, pelo valor de € 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros).

2. Em data não concretamente apurada, mas situada no decurso do mês de Setembro de 2019, a embarcação “...”, na qual vinham os arguidos AA e BB, zarpou da Guiana Francesa, tendo aí declarado que pretendiam navegar até à ....

3. Ainda no decurso do mês de Setembro de 2019, quando a embarcação “...” navegava rumo ao Brasil, já após ter cruzado a Linha do Equador, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a embarcação teve um buraco no casco e ficou com duas velas laceradas, o que levou os arguidos a conduzirem a embarcação até ao Porto ..., no Brasil, a fim de aí diligenciarem pela necessária reparação.

4. A embarcação “...” deu entrada nas águas da Marina ..., sita em ..., no dia 27 de Setembro, tendo-se aí mantido parqueada até ao dia 15 de Novembro de 2019.

5. Em data não apurada, mas situada entre o dia 27 de Setembro e o dia 15 de Novembro de 2019, o arguido AA foi abordado em ..., por um indivíduo cuja identidade se desconhece, que lhe propôs que transportasse na embarcação “...” embalagens de produto estupefaciente do Brasil para o continente europeu, por via marítima e a troco do recebimento de quantias monetárias.

6. O arguido AA deu disso conhecimento ao arguido BB, tendo ambos os arguidos aderido a esse projecto.

7. No dia 15 de Novembro de 2019, os arguidos AA e BB, em execução do plano previamente traçado com o indivíduo de identidade desconhecida, a que é feita menção em 5., introduziram-se na embarcação “...”, que se encontrava aportada na Marina ..., e deslocaram-se a ponto indeterminado em alto mar, situado a cerca de cem milhas náuticas da costa brasileira.

8. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, os arguidos recepcionaram no interior da embarcação “...”, proveniente de uma outra embarcação, 82 (oitenta e dois) sacos desportivos, os quais continham no seu interior 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas.

9. De acordo com o plano previamente traçado pelo arguido AA com o indivíduo de identidade desconhecida, a que é feita menção em 5., os arguidos deveriam proceder à entrega dos 82 sacos desportivos, contendo no seu interior 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), a que é feita menção em 8., num ponto indeterminado em alto mar, situado no mar ..., sensivelmente a meio caminho entre a Dinamarca e a Inglaterra, coincidente com as coordenadas geográficas indicadas ao arguido AA pelo indivíduo a que é feita menção em 5., a indivíduos, de identidade desconhecida, e que lhes fossem indicados, que aí os abordariam numa outra embarcação.

10. A embarcação “...” foi tripulada pelo arguido AA, cabendo ao arguido BB providenciar pela assistência técnica e mecânica que fosse necessária à embarcação.

11. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 7. e 8., o sistema de localização/identificação denominado AIS (...) da embarcação “...” encontrava-se desligado, em virtude de ter sido desligado pelos arguidos no dia 12 do mesmo mês de Novembro.

12. Os arguidos apenas voltaram a ligar este sistema no dia 25 de Dezembro de 2019, quando se encontravam em plena travessia atlântica (coordenadas 20.42053°N, - 043.06265°W).

13. No dia 13 de Janeiro de 2020, a embarcação encontrava-se a navegar entre a Ilha ... e a Ilha ..., no arquipélago ... (coordenadas 37.23201°N, - 24.9119°W), a uma velocidade de 5.6 nós marítimos, adoptando um rumo de 049°.

14. Nessa altura, foi activado o Protocolo de Cooperação com a Marinha e Força Aérea portuguesas, tendo-se iniciado de imediato as diligências operacionais necessárias.

15. Foram desenvolvidos contactos junto das Autoridades Francesas, visto que a embarcação ostentava a bandeira deste país, no sentido de, ao abrigo do disposto no art. 17.° da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, se obter autorização para proceder à abordagem e inspecção em alto mar da mesma.

16. Contudo, as autoridades francesas informaram que a certidão do pavilhão da embarcação ... havia já caducado.

 17. No dia 18 de Janeiro de 2020, pelas 13H06, a embarcação “...” navegava nas coordenadas ...N, ...W, rumo 036°T, à velocidade 04 nós marítimos, estando a aproximadamente 500 milhas náuticas de território nacional.

18. No dia 19 de Janeiro de 2020, pelas 06H30, quando se encontrava nas coordenadas geográficas ...N, ...W, a embarcação “...” foi abordada por elementos da Marinha de Guerra Portuguesa, no âmbito das suas competências, com a finalidade de se proceder à sua identificação completa.

19. Aquando da entrada na embarcação, elementos da Marinha Portuguesa verificaram que a mesma não apresentava bandeira, tendo sido apenas encontrada documentação relativamente ao pavilhão que hasteara até Setembro de 2019, da ..., França.

20. Verificou-se, igualmente, que, pese embora tivesse hasteada uma bandeira da República Federal Alemã, a embarcação não se encontrava registada nesse país, constatando-se, assim, que a embarcação navegava sem pavilhão efectivo, ou seja, sem nacionalidade.

21. Atendendo à factualidade verificada, a embarcação foi conduzida para território nacional, pela Marinha Portuguesa.

22. Assim, no dia 26 de Janeiro de 2020, pelas 00H16, a embarcação “...”, escoltada por um meio naval da marinha portuguesa, entrou em mar territorial português, mais concretamente nas coordenadas geográficas 38°33.31N, 009°40.00W, tendo-se dirigido para a Base Naval ..., em ..., onde viria a atracar pelas 10H40, no ....

23. Após a embarcação atracar, Inspectores da P.J. deram cumprimento ao Mandado de Busca emitido para a mesma.

24. No decurso da busca, pelas 10H45, foram encontrados e apreendidos:

- um total de 82 (oitenta e dois) sacos desportivos de várias cores, os quais continham no seu interior 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, dissimulados nos compartimentos à proa da embarcação, cujo acesso é efectuado pela zona comum do veleiro.

25. Foram, ainda, encontrados e apreendidos:

Na zona comum da embarcação:

- Um disco externo de cor ..., da marca ..., com o número de série ...;

- Um disco externo de cor ..., da marca ..., com o número de série ...;

- Um telemóvel da marca ..., de cor ..., com o IMEI ...01, contendo inserido no seu interior um cartão SIM da operadora ..., com o número de série..., e um cartão de memória de 8gb de capacidade, pertencente a BB;

- Um telemóvel da marca ..., modelo ..., de cor ..., acondicionado numa capa de cor ..., sem cartão SIM inserido, pertencente a AA;

- Um localizador ... de emergência, de cor ... e ..., com a inscrição “...”;

- Um computador portátil da marca ..., modelo ..., com o número de série ..., pertencente a AA, com respectivo carregador.

Na cabine da ponte:

- Um tablet, da marca ..., modelo ..., de cor ..., com o número de série ..., acondicionado numa capa de cor ..., pertencente a AA;

- Um leitor multimédia da marca ..., modelo ..., com o número de série ..., de cor ...;

- ... da marca “...”, de cor ... e preto, com o IMEI ...80;

- Telefone satélite, da marca ..., de cor ..., com o IMEI ...00, contendo inserido um cartão SIM da operadora “...”, com o número de série ..., com respectivo manual de instruções;

- Um aparelho de navegação ... da marca ..., modelo ... 73, com o número de série ...;

- Uma máquina fotográfica digital, da marca ..., contendo inserido um cartão de memória da marca ..., com 64Gb de capacidade, uma bateria. Ainda na bolsa em que a máquina se encontrava acondicionada, um cartão de memória da marca ..., com 64Gb de capacidade e 5 baterias extra;

- Um telemóvel da marca ..., modelo ..., com número de série ..., contendo inserido um cartão SIM sem operadora visível, com o número …5F, acondicionado em capa de cor ... e pertencente a AA.

No camarote da popa, utilizado pelo arguido AA:

- Um telemóvel da marca ..., modelo ..., dourado, acondicionado numa capa de cor ..., sem cartão SIM inserido;

- Um boarding pass da transportadora aérea ..., relativo ao voo ..., com origem em ... e destino a ..., no dia 09/11/2019, em nome de AA e voo de ligação ..., com origem em ... e destino a ..., no mesmo dia e em nome do mesmo indivíduo;

- Um talão da transportadora aérea ..., de 02/11/2019, contendo no verso anotações manuscritas;

- Recibo da “...”, datado de 25/05/2019;

- 2 talões de abastecimento de gasóleo, efectuados em ..., Brasil;

- 3 recibos da Marina ..., em nome de AA, relativos aos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2019;

- Um pedaço de uma folha com um número de contacto manuscrito;

- 2 recibos de estadia em hotel “...”, em ..., em nome de AA, entre os dias 14 e 16 de Novembro de 2019;

- Uma factura de abastecimento de gasóleo, com data de 12/09/2019, em ..., Guiana Francesa;

- diversa documentação relativa à embarcação “...” - 29 (vinte e nove) folhas;

- a quantia monetária de R$ 170,00 (cento e setenta reais brasileiros);

- Um tablet da marca ..., modelo ..., de cor ..., com o número de série ...;

 - A quantia monetária de € 210,00 (duzentos e dez euros) em notas do Banco Central Europeu;

- Um tablet da marca ..., modelo ..., de cor ..., com o número de série ...;

- Um computador portátil da marca ..., modelo ..., de cor ..., com o número de série ...;

- Um caderno de folhas quadriculadas, com a menção “Quarto ...”, com várias anotações manuscritas.

No camarote utilizado pelo arguido BB:

- Um livro de notas de cor ..., com várias anotações manuscritas;

- Um telemóvel de marca ..., modelo ..., de cor ..., com os IMEI ... e ..., contendo inserido no seu interior um cartão SIM sem operadora identificada, com o n.° ...68.

26. Os arguidos AA e BB, não conhecendo a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente (cocaína) que lhes foi apreendido, a que é feita referência no ponto 24., sabiam tratar-se o mesmo de uma das drogas mencionadas nas tabelas I a III anexas ao D.L. n.° 15/93.

27. Os arguidos AA e BB actuaram nos moldes descritos, em conjugação de vontades e esforços, com indivíduos ainda não identificados, com o propósito concretizado de receber e carregar consigo as 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, a que é feita referência em 24., do Brasil para a Europa, e pese embora não conhecessem a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente (cocaína) que lhes foi apreendido, sabiam tratar-se o mesmo de uma das drogas mencionadas nas tabelas I a III anexas ao D.L. n.° 15/93, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias.

28. Os arguidos AA e BB actuaram nos moldes descritos com a finalidade comum de obterem benefícios económicos, não obstante saberem serem proibidas as respectivas condutas.

 29. O arguido AA actuou nos moldes descritos visando obter, por essa via, a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros).

30. O arguido BB actuou nos moldes descritos visando obter, por essa via, quantia não inferior a € 14.000,00 (catorze mil euros).

31. O telefone satélite, da marca ..., de cor ..., com o IMEI ...00, apreendido aos arguidos, destinava-se a ser usado por estes nos contactos necessários à entrega do referido produto.

32. Os arguidos AA e BB agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização deste produto (cocaína) eram proibidos e punidos por lei.

33. O arguido AA não tem quaisquer familiares, amigos ou emprego em Portugal.

34. Onde apenas se deslocou para praticar os factos antes descritos, qualificados pela lei como crime.

35. Existe perigo de que o arguido AA continue a praticar crimes idênticos, caso seja autorizada a sua entrada e permanência em Portugal, atenta a facilidade de circulação de que irá beneficiar.

36. Os factos que o arguido AA cometeu são lesivos da tranquilidade e ordem pública, causando perturbação e alarme social.

37. O arguido BB é natural/nacional da ..., não possuindo quaisquer ligações familiares e/ou profissionais em Portugal, só se encontrando em Portugal para transportar a cocaína.

38. Deste modo existe fundado receio de que o arguido BB continue a cometer crimes da natureza do imputado, caso permaneça em território nacional.

Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:

39. O arguido AA possui nacionalidade ..., sendo o segundo de uma fratria de três irmãos germanos. A mãe trabalhava como ... e o pai trabalhava por conta própria na ..., sendo proprietário de um barco, permitindo os proventos por ambos obtidos no exercício das respectivas actividades profissionais sustentar o agregado familiar sem dificuldades, pautando-se a dinâmica familiar por uma relação harmoniosa entre os diferentes membros do agregado.

40. O arguido iniciou o seu percurso escolar em idade própria, tendo, desde sempre, revelado motivação para a aprendizagem escolar. O seu percurso escolar foi interrompido pelo cumprimento do serviço militar na Marinha, motivo pelo qual terminou os estudos aos 26 anos de idade, possuindo, como habilitações literárias, a licenciatura em engenharia mecânica.

41. Após ter completado o ensino superior, o arguido obteve colocação laboral na sua área de formação, tendo, ao longo do seu percurso profissional, exercido outras actividades de forma regular e com vínculos contratuais. Há cerca de 25 anos empreendeu, em regime de sociedade, uma actividade na área das energias renováveis.

42. No domínio afectivo, contraiu matrimónio há cerca de 20 anos, tendo desta união nascido três filhas, já adultas. Este relacionamento afectivo foi sempre gratificante, pautando- se pela estabilidade, coesão e entreajuda entre o casal.

43. No que respeita aos seus relacionamentos sociais, o arguido sempre privilegiou o convívio no seio familiar e com pares com comportamentos socialmente ajustados, beneficiando de uma imagem positiva na comunidade onde residia.

44. Nos tempos livres dedicava-se à prática desportiva de vela, tendo dado a volta ao mundo por três vezes num veleiro de sua propriedade, e, antes de um acidente de trabalho que o vitimou, sido piloto de rally em competições não profissionais.

45. À data dos factos objecto dos presentes autos, o arguido residia na Alemanha, na companhia da esposa e das duas filhas gémeas do casal, de 18 anos de idade, residindo o agregado familiar numa habitação arrendada, numa zona ordeira, habitada essencialmente por famílias de estrato social médio alto. Mantinha actividade regular na empresa de que é sócio e o cônjuge detinha igualmente um posto de trabalho regular, o que permitia ao agregado familiar manter um nível de vida sem constrangimentos económicos relevantes.

46. Desde que se encontra sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, o arguido apresenta um comportamento adequado e normativo, isento de sanções disciplinares, e boa integração e adaptação ao meio prisional.

 47. Durante o tempo de reclusão não recebeu visitas, contactando com a família por via telefónica, no sentido de manter laços afectivos.

48. O arguido AA não tem antecedentes averbados no respectivo registo criminal.

*

49. O arguido BB é natural da ..., sendo fruto da relação entre um casal de médio estrato social, dissolvida durante o primeiro ano de vida do próprio, circunstância que determinou que tivesse sido junto do agregado da mãe e da avó materna que tenha decorrido o seu processo de desenvolvimento, num ambiente familiar afectivamente gratificante e harmonioso, isento de restrições a relevar ao nível da subsistência económica, porquanto a progenitora, que trabalhava como secretária de direcção numa fábrica de artigos de vestuário desportivo, auferia de uma condição financeira compatível com as necessidades existentes por parte do descendente.

50. Não obstante ter vivido até se autonomizar junto do agregado familiar materno, o arguido sempre manteve uma relação próxima e convívio regular com a figura paterna, alfaiate de profissão e proprietário de um estabelecimento comercial no ramo, residente na mesma cidade, juntamente com a família conjugalmente recomposta, relacionamento do qual nasceram duas irmãs consanguíneas mais novas do arguido.

51. O arguido iniciou o percurso escolar em idade própria, tendo concluído o ensino secundário com a idade de 18/19 anos, registando uma trajectória motivada e marcada por razoável desempenho escolar.

52. Posteriormente ingressou no serviço militar obrigatório, findo o qual, após um ano, retomou o percurso formativo, tendo ingressado num curso de ensino politécnico no ramo da mecânica, que frequentou durante dois anos, e que não viria a concluir devido ao início da guerra no país de origem, em 1992.

53. Este conflito militar despoletou a sua saída voluntária do país, com destino à Dinamarca, onde permaneceu, durante cerca de um ano e meio, acolhido num campo de refugiados.

 54.Em 1994, o arguido acabou por abandonar o país, tendo naquele ano emigrado para a Suécia, país em que a sua família do lado materno (mãe, avó e tios) havia fixado residência, após o despoletar da guerra em território bósnio, tendo constituído negócio familiar no sector da restauração.

55. Em território sueco, o arguido veio a assumir relacionamento afectivo com uma cidadã sueca, com quem viveu, durante quatro anos, em união de facto, tendo neste período retomado os estudos, tendo ingressado na Universidade onde frequentou e concluiu, ao fim de seis anos, o curso de engenharia mecânica. A nível laboral, no mesmo período, o arguido constituiu negócio em nome individual, tendo aberto uma oficina de reparação de bicicletas que manteve cerca de quatro anos, tendo, na sequência da mudança de residência para outra cidade, voltado a abrir novo estabelecimento de reparação de bicicletas e motociclos, que manteve durante um período de cinco anos. Seguiu-se um período de desemprego, em que, durante dois anos, o arguido subsistiu com apoios sociais do Estado, após o que conseguiu colocação como operário numa empresa de reparação de viaturas automóveis.

56. O arguido acabou por abandonar o posto de trabalho, na sequência de ter assumido relacionamento com uma cidadã irlandesa, com quem contraiu casamento, tendo o casal fixado residência em Inglaterra. Este relacionamento conjugal, que perdurou durante cerca de oito anos, veio a terminar há dois anos, não existindo descendentes. Durante o período em que se manteve casado, o arguido trabalhou como engenheiro, durante cerca de três anos, numa empresa de reparação e manutenção de maquinaria pesada, tendo padecido de um acidente de trabalho (lesão num dedo de uma das mãos) que motivou a cessação das funções que desempenhava, tendo-lhe, neste contexto, sido atribuída, há dois anos atrás, uma pensão de invalidez, no valor mensal de € 500,00.

57. Posteriormente veio a trabalhar por conta de outrem, de forma irregular e sem vínculo, na construção civil, como trabalhador indiferenciado, em oficinas de reparação automóvel e na entrega de produtos farmacêuticos ao domicílio, para empresa do ramo.

58. Neste enquadramento, decidiu emigrar para a Alemanha, em meados do ano de 2019, tendo sido acolhido por um amigo de nacionalidade ..., com quem coabitou, durante cerca de dois meses, na cidade de .... Era objectivo do arguido fixar residência no país, tendo adquirido habitação (vivenda com terreno adjacente), que se encontrava em fase de construção à data da prática dos factos objecto dos presentes autos.

59. No plano da saúde, o arguido é portador de doença infetocontagiosa (hepatite C), condição de saúde que se encontra clinicamente controlada, e padece de stress pós-traumático (sequela deixada pela guerra no país natal), beneficiando o arguido de acompanhamento pelos serviços clínicos da prisão onde se encontra.

60. Ao nível aditivo, o arguido mantinha, desde os 35 anos de idade, consumos regulares de marijuana, bem como de álcool, adição para a qual já efectuou tratamento num passado remoto, no âmbito de uma injunção judicial.

61. Manifesta vontade de uma vez restituído à liberdade, constituir actividade agrícola por conta própria, com recurso a um pequeno terreno agrícola, adjacente à habitação adquirida, nomeadamente a exploração e cultivo de camomila, para a indústria de produtos cosméticos, nomeadamente a marca “...”.

62. Desde que se encontra sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, o arguido apresenta um comportamento regular, sem registo de sanções disciplinares.

63. O arguido BB não tem antecedentes averbados no respectivo registo criminal.

Quanto a factos não provados ficou consignado no acórdão recorrido (transcrição):

a Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos constantes da pronúncia e/ou da contestação:

a) - que os arguidos, actuando de forma concertada com outros indivíduos não identificados, integram uma organização que se dedica à aquisição e venda de elevada quantidade de cocaína, do Brasil para a Europa, passando por território nacional, por via marítima;

b) - que, dentro da referida rede de narcotráfico, os arguidos estavam incumbidos de efectuar o transporte do estupefaciente, no interior de uma embarcação marítima, por eles conduzida;

c) - que, ao adquirir a embarcação “...”, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 1., o arguido AA o tivesse feito de acordo com um plano previamente delineado por membros da referida organização, a que ambos os arguidos aderiram, de forma a proceder ao transporte do referido produto;

d) - que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 2., nunca fosse intenção dos arguidos a de navegar até à ..., pois pretendiam rumar ao Brasil;

e) - que, durante o período compreendido entre os dias 6 e 8 de Novembro de 2019, a embarcação navegou ao largo da cidade de ..., no Brasil;

f) - que os arguidos adquiriram 1687326,125 gramas de cocaína (cloridrato);

g) - que, após dissimularem a cocaína no interior de sacos desportivos de várias cores, os arguidos transportaram-na para o interior da embarcação “...”;

h) - que os arguidos sabiam que o produto estupefaciente que lhes foi entregue e apreendido, a que é feita referência nos pontos 8. e 24. da Matéria de Facto, se tratava de cocaína (cloridrato);

i) - que os arguidos integravam uma organização constituída e dirigida nos termos referidos, destinada a operações de importação e exportação de elevadas quantidades de cocaína com vista à colocação no mercado europeu, aceitando colaborar nos termos supra referidos;

j) - que a cocaína apreendida se destinava a ser entregue a outros membros da organização a que os arguidos pertenciam, e que lhes fosse indicada, e a ser comercializada com vista a auferirem elevada compensação económica;

k) - que, atento o peso e a quantia por que tal produto é normalmente vendido (não inferior à quantia de € 48,00 a grama), os arguidos visavam obter com a introdução e comercialização do produto em Portugal quantia superior a 54 milhões de euros;

l) - que as quantias monetárias apreendidas aos arguidos tinham sido obtidas com os proventos resultantes de transacções de cocaína efectuadas;

m) - que os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos eram usados por estes nos contactos necessários à comercialização do referido produto e tinham sido adquiridos com proventos daí resultantes;

n) - que os arguidos nunca constituíram, aderiram ou sequer estavam cientes de que poderia existir uma associação criminosa, muito menos agiram com tal desiderato;

o) - que em momento algum os arguidos cogitaram encontrar-se ou filiar-se no seio de um grupo destinado, com carácter de permanência e estabilidade, à prática de crimes.

E, quanto à motivação, escreveu-se que “O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

Nos termos do art. 205.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei, consagrando o Código de Processo Penal a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97.°, n.° 5 e 374.°, n.° 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

No caso vertente, o tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos considerados como demonstrados na apreciação, conjugada e de acordo com as regras da experiência comum, dos elementos de prova constantes dos autos e resultantes da audiência de julgamento, a saber as declarações dos arguidos AA e BB, e o depoimento da testemunha CC, inspector da Polícia Judiciária, interveniente na investigação dos autos, que foram conjugados com o acervo documental junto aos autos, designadamente com os documentos que adiante se particularizam:

- informação da MAOC (Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics), datada de 16/01/2020, que integra fls. 1 e 1v. (cujo teor foi determinante para prova da factualidade a que é feita menção nos pontos 11., 12. e 13. da Matéria de Facto);

- cota de fls. 5 e fotografias da embarcação “...” de fls. 6;

- informação, remetida aos autos pelas Autoridades Francesas, datada de 17/01/2020, que integra fls. 33 (tradução a fls. 1295v.);

- o auto de busca e apreensão, que integra fls. 40 e 43 dos autos, de onde resulta que no dia 26/01/2020, na sequência da busca efectuada à embarcação “...”, levada a cabo na Base Naval ..., sita no ..., ..., foram apreendidos, designadamente, no interior dos dois camarotes à proa e do compartimento de arrumação sitos à proa, oitenta e dois sacos desportivos de várias cores, os quais continham no seu interior várias placas de uma substância em pó de cor branca, com um peso total bruto e aproximado de 1.820,80 Kg, que, submetida a teste rápido, reagiu positivamente para Cocaína: 81 sacos com cerca de 20 placas cada e 1 saco com apenas 10 placas;

- boarding pass da transportadora aérea ..., relativo ao voo ..., com origem em ... e destino a ..., no dia 09/11/2019, em nome de AA, e voo de ligação ..., com origem em ... e destino a ..., no mesmo dia e em nome do mesmo indivíduo, que integra fls. 44;

- três recibos emitidos pela “Marina ...”, em nome de AA, referentes à embarcação “...” e ao pagamento das diárias de 26/09 a 03/10/2019, de 13/10 a 27/10/2019 e de 27/10 a 10/11/2019, respectivamente, que integram fls. 47 e 48;

- dois talões de abastecimento de gasóleo efectuados em ..., Brasil, no dia 12/11/2019, que integram fls. 49;

- dois recibos respeitantes ao pagamento de estadia no hotel “...”, em ..., Brasil, em nome de AA, referentes ao período compreendido entre os dias 14 e 16 de Novembro de 2019, que integram fls. 50 e 51;

- declaração de entrada/saída de embarcação estrangeira de fls. 54, de onde resulta que a embarcação “...” deu entrada nas águas do Porto ..., com dois tripulantes a bordo, os ora arguidos AA e BB, no dia 27/09/2019, e daí saiu no dia 15/11/2019;

- requerimento apresentado pelo ora arguido AA, dirigido à Alfândega ..., com data de 07/07/2019, solicitando a anulação do pavilhão francês da embarcação “...”, com vista ao seu registo na Alemanha, que integra fls. 71 (tradução a fls. 1296);

- declaração simplificada de importação de fls. 72 e 73, com data de registo de 11/11/2019, relativa a uma vela para veleiro, em que figura como importador o ora arguido AA, com endereço em ..., e como país de procedência Alemanha;

- reportagem fotográfica de fls. 83 a 98;

 - auto de apreensão de embarcação, que integra fls. 99 dos autos, de onde resulta que, na mesma data, foi apreendida a embarcação “...”;

- auto de notícia e de detenção em flagrante delito de fls. 100 a 103 (cujo teor foi determinante, designadamente, para prova da factualidade a que é feita menção nos pontos 18. e 22. da Matéria de Facto);

- imagens referentes às coordenadas geográficas da embarcação “...”, relativas às datas de 13/01/2020, 18/01/2020 e 19/01/2020, respectivamente, de fls. 105 e 106;

- reportagem fotográfica de fls. 108 a 123;

- registo da embarcação “...” na associação ... de desportos náuticos, denominada “W...”, que integra fls. 1098 a 1100 (tradução a fls. 1233v. a 1234v.);

e

- informação da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa, remetida aos autos em 23/09/2020, que integra fls. 859, e da legislação em língua alemã remetida em anexo, que integra fls. 860 e 861 (disposições legais que, em sede de debate instrutório, foram traduzidas para língua portuguesa pelo Senhor Intérprete nomeado nos autos - a este propósito, cfr. acta de debate instrutório, realizado em 25/09/2020, que integra fls. 867 a 877, e CD com a tradução dos documentos juntos aos autos a fls. 860, 861, 863, 864, 865 e 866, que integra fls. 878), cujo teor foi determinante para prova da factualidade considerada como demonstrada no ponto 20. da Matéria de Facto.

Nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido AA confirmou, no essencial, a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 1. a 5., 9., 10., 16., 17., 29., 31. e 33. e 34. da Matéria de Facto, tendo, a este respeito, adiantado ser praticante de vela desde os 5 anos de idade, e que, no início do ano de 2019, ao pesquisar anúncios relativos à venda de embarcações na internet, encontrou um anúncio relativo à venda do veleiro “...”, que se encontrava aportado num estaleiro na Ilha de ..., que lhe suscitou interesse, tendo viajado para este local, com o propósito de proceder à inspecção do barco e negociar o respectivo preço, tendo procedido à sua compra ao então proprietário, de nacionalidade ..., pelo preço de € 200.000,00, sendo sua intenção a de usufruir do veleiro durante alguns anos, e, depois, proceder à sua revenda no continente europeu. Uma vez que era necessário conduzir a embarcação, através do oceano Atlântico, para a Europa, e não tinha capacidade de o fazer sozinho, já depois de ter procedido à sua compra, contactou o co- arguido BB, ..., que já conhecia há alguns anos, por terem amigos em comum, que se prontificou a acompanhá-lo, e que teria por função providenciar pela assistência técnica e mecânica que fosse necessária à embarcação, tendo, neste contexto, ambos os arguidos viajado para a Ilha de ..., tendo efectuado um circuito pelas ilhas das ..., rumando, depois, à Guiana Francesa. Já depois de terem zarpado da Guiana Francesa, decidiram cruzar a Linha do Equador, após o que, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a embarcação teve um buraco no casco, motivado pelo embate da âncora, e ficou com duas velas laceradas, motivo pelo qual ambos decidiram conduzir a embarcação até ao Porto ..., no Brasil, por ser o porto marítimo mais próximo e dispor das infraestruturas necessárias à sua reparação. No decurso das suas declarações, o arguido foi confrontado com as fotografias juntas a fls. 6, tendo reconhecido nelas a embarcação “...”, que, na ocasião, se encontrava aportada no Porto ..., e arvorava pavilhão francês. Referiu, ainda, que enquanto a embarcação se encontrou aqui aportada, teve de efectuar três deslocações à Alemanha para adquirir peças necessárias à sua reparação (encontrando as declarações do arguido, neste particular, suporte de prova, no boarding pass da transportadora aérea ..., relativo ao voo ..., com origem em ... e destino a ..., e voo de ligação ..., com origem em ... e destino a ..., que integra fls. 44, nas fotocópias do passaporte da titularidade do arguido, que integram fls. 130 a 134, e na declaração simplificada de importação de fls. 72 e 73, relativa a uma vela para veleiro), e que, nesse período, foi abordado, em ..., por um indivíduo que apenas conhece pelo nome de “DD”, que falava fluentemente alemão, e lhe propôs o transporte, na embarcação, de bolsas, contendo produto estupefaciente, para o continente europeu, mediante o pagamento do valor global de € 100.000,00, o que acabou por aceitar, por na altura se encontrar a passar por dificuldades económicas, uma vez que a reparação da embarcação foi muito dispendiosa, motivo pelo qual, nas suas palavras, “o dinheiro falou mais alto”, isto pese embora não tivesse conhecimento da concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente que iria transportar. Nessa sequência, e depois de a embarcação “...” se encontrar em condições de navegabilidade, o referido indivíduo entregou-lhe um papel em que se encontravam anotadas as coordenadas geográficas correspondentes ao local, em alto mar, situado a cerca de cem milhas náuticas da costa brasileira, onde iriam recepcionar, proveniente de uma outra embarcação, as mencionadas bolsas, como, de facto, veio a suceder, bolsas essas que deveriam ser entregues pelos arguidos num ponto indeterminado em alto mar, situado no mar ..., sensivelmente a meio caminho entre a Dinamarca e a Inglaterra, coincidente com as coordenadas geográficas que, oportunamente, lhe viriam a ser indicadas pelo “DD”. No decurso das suas declarações, o arguido foi, ainda, confrontado com as reportagens fotográficas de fls. 84 a 98 e de fls. 109 a 123, e com o requerimento de fls. 71, redigido em língua francesa, por si assinado (tendo, na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11/03/2021, sido confrontado com a tradução deste mesmo documento para língua alemã), cujo teor confirmou.

Nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido BB confirmou que o arguido AA o contactou, solicitando a sua colaboração para o ajudar na condução do veleiro “...” da Ilha de ... até à cidade de ..., na Alemanha, o que aceitou, por na altura se encontrar sem ocupação profissional, e mediante uma remuneração que se cifraria entre as £ 3000,00 (três mil libras esterlinas) e as £ 5000,00 (cinco mil libras esterlinas) mensais, equivalente à remuneração da última actividade profissional que tinha desempenhado, em Inglaterra, quantias estas que, atente-se, correspondem a cerca de € 3500,00 e a cerca de € 5.900,00, respectivamente (e daí o tribunal ter considerado como provada a factualidade a que é feita menção no ponto 30., sendo que a quantia a que aí é feita menção corresponde aos valores que o arguido BB iria auferir nos meses de Novembro e de Dezembro de 2019, e de Janeiro e Fevereiro de 2020, já depois de ter aderido ao projecto que lhe foi apresentado, em ..., pelo co-arguido). Referiu que viu a embarcação “...”, pela primeira vez, na Ilha de ..., e que acompanhou o co-arguido em todo o percurso efectuado até ..., tendo adiantado que, na sequência de uma tempestade ocorrida em alto mar, a vela principal da embarcação ficou danificada, motivo pelo qual a embarcação ficou retida no Porto ..., durante um período de cerca de quarenta dias, tempo necessário para a sua reparação. Confirmou, ainda, encontrar-se a bordo da embarcação no momento do transbordo dos sacos de desporto, efectuado em alto mar, sacos estes que, salientou, ajudou a acondicionar no interior da embarcação “...”, tendo acrescentado que, no decurso da travessia atlântica que se seguiu, o co-arguido trocou a bandeira francesa, que se encontrava hasteada na embarcação, pela bandeira alemã, tendo-lhe, na ocasião, referido que a embarcação tinha o direito de hastear a bandeira alemã, adiantando, ainda, que desde o momento em que foi efectuado o transbordo dos sacos de desporto, em alto mar, e o momento em que se deu a abordagem pela Marinha de Guerra Portuguesa, a embarcação “...” não aportou em nenhum país, nem em nenhum porto. No decurso das suas declarações, o arguido BB foi confrontado com as fotografias de fls. 6 e com as reportagens fotográficas de fls. 83 a 98 e de fls. 108 a 123, cujo teor confirmou, tendo igualmente confirmado a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 10. e 37. da Matéria de Facto.

Atendeu-se, igualmente, ao depoimento, claro, isento e preciso, da testemunha CC, inspector da Polícia Judiciária, interveniente na investigação dos autos, que começou por explicar a razão como a investigação se iniciou, a saber, por ter chegado àquela entidade policial a informação, proveniente da MAOC (Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics), junta a fls. 1 e 1v., dando conta de que no âmbito da análise de risco realizada por esta entidade foi detectado que o sistema AIS da embarcação “...” se encontrava a funcionar de forma intermitente, o que foi considerado um indício relevante, e, na sequência da monitorização da embarcação efectuada, apurou-se que a embarcação, após ter saído de ..., no Brasil, esteve dois meses sem aportar, tudo isto a permitir legitimar a suspeita de a mesma puder transportar produto estupefaciente, tendo-se a Polícia Judiciária, na tentativa de localizar a embarcação, socorrido da colaboração da Força Aérea Portuguesa e da Marinha, e uma vez localizada, procedido à sua abordagem em águas internacionais. A testemunha CC referiu, ainda, que antes desta abordagem, a Polícia Judiciária encetou diligências tendentes a apurar qual o pavilhão que a embarcação “...” arvorava, tendo obtido uma resposta das autoridades francesas dando conta de a certidão da embarcação “...” já ter caducado no ano de 2019 (encontrando o seu depoimento, neste particular, suporte de prova na informação, remetida aos autos pelas Autoridades Francesas, datada de 17/01/2020, que integra fls. 33), tendo dado conta ao tribunal de não ter tomado parte na abordagem inicial à embarcação, efectuada em águas internacionais, apenas tendo subido a bordo quando a embarcação se encontrava na Base Naval ..., em .... No decurso da sua inquirição, a testemunha CC foi confrontada com a informação da MAOC de fls. 1 e 1v., com a cota de fls. 5 e as fotografias da embarcação “...” de fls. 6, recolhidas pelas autoridades brasileiras, com o auto de busca e apreensão, de fls. 40 a 43 (determinante para prova da factualidade a que é feita menção nos pontos 23. a 25. da Matéria de Facto), com o auto de apreensão de embarcação de fls. 99, com o auto de notícia e de detenção em flagrante delito, de fls. 100 a 103, e com o auto de teste rápido e pesagem de fls. 107, por si lavrados, com as reportagens fotográficas de fls. 83 a 98 e de fls. 108 a 123, e com as imagens referentes às coordenadas geográficas da embarcação “...” de fls. 105 e 106, tendo confirmado o teor de todos estes documentos, tendo explicitado, no que respeita às coordenadas geográficas da embarcação “...”, que as primeiras foram dadas pela localização do sistema AIS, as segundas pela Força Aérea Portuguesa e as terceiras pela Marinha. Inquirido, referiu não haver nenhuma informação que a embarcação “...” tivesse como destino Portugal, bem como ser a rota seguida pela embarcação compatível com o destino mar .... O depoimento da testemunha CC foi, na matéria aludida, relevante, atento o conhecimento directo demonstrado, obtido no âmbito e por virtude do exercício das suas funções, tendo o mesmo deposto com isenção, de forma desinteressada, explicativa, circunstanciada e sem qualquer outro desígnio que não o de colaborar com o tribunal na descoberta da verdade, motivo pelo qual nos mereceu credibilidade.

Quanto à qualidade e quantidade do estupefaciente em causa - cocaína (cloridrato), atendeu-se, ainda, para além do auto de busca e apreensão já referenciado, ao auto de teste rápido e pesagem de fls. 107, e ao exame toxicológico do Laboratório de Polícia Científica de fls. 701 dos autos.

O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos atinentes aos elementos subjectivos e à ilicitude, constantes dos pontos 6., 7., 26., 27., 28., 30. e 32., considerando-se a concreta forma de actuação de cada um dos arguidos nos termos apurados e as circunstâncias que as envolveram, à luz de regras de normalidade e de experiência, que permitem inferir estes factos subjectivos, sendo que não há o menor indício de que qualquer um dos arguidos tivesse sido coagido a actuar da forma como o fez. Aliás, é do conhecimento geral a ilicitude criminal deste tipo de condutas, e que, no concernente à droga, é de todos conhecido que o transporte e a simples detenção de estupefaciente, ainda para mais, quando esse produto se destina a ser entregue a terceiros, não é permitido, resultando, aliás, no caso vertente, de forma exuberante, dos cuidados empregues pelos arguidos com vista à ocultação da sua conduta, de que são elucidativas as circunstâncias de a operação de transbordo dos sacos desportivos, contendo as embalagens/placas de cocaína (cloridrato) ter tido lugar num ponto em alto mar, situado a cerca de cem milhas náuticas da costa brasileira, e de na viagem que se seguiu, com destino ao continente europeu, o sistema de localização/identificação denominado AIS da embarcação “...” ter permanecido desligado durante um período de cerca de dois meses, até ao dia 13 de Janeiro de 2020 (apenas tendo sido ligado, no aludido período, no dia de Natal) e de, desde o momento em que foi efectuado o mencionado transbordo dos sacos de desporto, em alto mar, no dia 15/11/2019, e o momento em que se deu a abordagem pela Marinha de Guerra Portuguesa, no dia 19/01/2020, a embarcação “...” não ter aportado em nenhum porto ou marina, o que inviabilizou não apenas que os arguidos pudessem descansar, mas também que pudessem proceder a um reabastecimento de água, comida e/ou combustível, comportamentos estes que, conjugados com a própria postura dos arguidos em audiência de julgamento, denota que os mesmos são imputáveis e têm consciência dos actos que praticam.

A este respeito, cumpre referir que, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, e ao ser confrontado com a circunstância, de, no decurso da viagem, o sistema de localização/identificação AIS da embarcação “...” se ter encontrado desligado, o arguido AA adiantou que que tal resultou da circunstância de todos os três aparelhos de navegação que possuía na embarcação apresentarem defeito, e, por esse motivo, não funcionarem em condições, desligando-se automaticamente, tendo o arguido BB, pelo contrário, asseverado que o sistema de ligação/identificação da embarcação se manteve sempre ligado, sendo certo que, neste ponto, as declarações de cada um dos arguidos, contraditórias entre si, não mereceram ao tribunal colectivo qualquer credibilidade, por se encontrarem em patente desconformidade com a informação da “Maritime Analysis and Operations Centre (Narcotics)”, que integra fls. 1 e 1v., a qual, pela isenção e especial preparação da entidade (agentes policiais) que a elaborou, nos mereceu o máximo crédito.

Os arguidos AA e BB referiram, ainda, de forma coincidente, que o segundo apenas teve conhecimento de que iria ser efectuado o transbordo dos sacos desportivos, contendo produto estupefaciente, para a embarcação “...”, em alto mar, e no momento em que o transbordo estava a ser afectuado, bem como de, até então, este desconhecer em absoluto tal situação, tendo ambos adiantado que, no período em que a embarcação “...” se encontrou ancorada em ..., o arguido BB não presenciou os contactos e conversas que o arguido AA manteve com o indivíduo que o abordou, que apenas se identificou como tendo o nome de “DD”, e que, a realização do aludido transbordo motivou uma discussão e um conflito entre ambos, por o arguido BB não concordar com o transporte do produto estupefaciente, tendo este adiantado que, na sequência da discussão, “ameaçou saltar borda fora” e que ambos os arguidos ficaram duas semanas sem se falar.

No entanto, no caso vertente, em face das concretas circunstâncias em que tiveram lugar os factos objecto dos presentes autos, e tendo em conta a lógica, a experiência acumulada e aquilo que se pode designar por senso comum, a versão adiantada por ambos os arguidos em audiência de julgamento, no sentido de o arguido BB apenas em alto mar, e no momento em que o transbordo estava a ser afectuado, ter tomado conhecimento de que iriam ser transportadas embalagens de produto estupefaciente na embarcação “...”, e de não ter concordado com tal transporte, não mereceu credibilidade ao tribunal colectivo, desde logo por um transporte de droga desta dimensão não se compadecer com uma estrutura e com participações amadoras, antes sendo antecipada e meticulosamente programada, visando, também, que as operações decorram com a máxima descrição, rapidez e segurança, até para que os seus agentes se furtem à acção das autoridades.

 Atente-se, desde logo, ter ficado demonstrado em audiência de julgamento, até porque ambos os arguidos o referiram, de forma coincidente, não ser viável que uma só pessoa conduza uma embarcação, com as características da embarcação “...”, através do oceano Atlântico, do Brasil para a Europa, tendo o arguido BB concretizado que o habitual é uma embarcação desta natureza ser navegável com, pelo menos, cinco navegantes, sendo de todo imprescindível a presença de, no mínimo, dois tripulantes, um com a função de estar ao leme e outro com a função de estar a arrear as velas, por a embarcação “...” não dispor de um sistema de velas automático, pelo que não é crível que o arguido AA acedesse a fazer um transporte de produto estupefaciente desta dimensão, por via marítima, sem disso dar prévio conhecimento ao arguido BB, em virtude de a intervenção deste, quer a arrear as velas, quer a providenciar pela assistência técnica e mecânica que, ao longo da viagem, se viesse a revelar necessária, ser de todo imprescindível e indispensável à sua realização.

Refira-se, ainda, que, neste particular, as declarações prestadas pelo arguido BB revelaram contradições intrínsecas que lhes retiraram qualquer crédito. Ilustrando o que se acaba de concluir, saliente-se, a título meramente exemplificativo, que o arguido BB referiu que, na sequência da discussão mantida entre ambos, o arguido AA lhe implorou que o acompanhasse, pelo menos até chegarem a África, com o argumento de não poder efectuar a viagem sozinho. Tendo sido perguntado ao arguido, na primeira sessão da audiência de julgamento, o motivo de não ter abandonado a embarcação “...” quando a mesma passou ao largo do arquipélago ..., disse que não teve possibilidade de o fazer devido às condições meteorológicas, por, na altura, haver uma tempestade de categoria 3, que perdurou ao longo de um período de três dias. No entanto, tendo sido perguntado ao mesmo arguido, na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11/03/2021, o motivo de não ter abandonado a embarcação “...” quando a mesma passou ao largo de África (ou seja, em momento prévio aquele em que a embarcação navegou ao largo do arquipélago ...), referiu que não o fez por ter preferido esperar pela chegada da embarcação à Bélgica ou à Holanda, tudo isto a permitir legitimar o entendimento de que, ao contrário do que referiu, em momento algum foi intenção do arguido BB a de abandonar a embarcação antes de a mesma chegar ao mar ... e de a entrega das 1628 embalagens/placas de cocaína acordada ser concretizada, precisamente por ter aderido ao projecto de que, ainda em ..., lhe foi dado conhecimento pelo arguido AA, o que fez movido pelo propósito de obter benefícios económicos, motivo pelo qual não nos mereceram qualquer credibilidade as declarações prestadas pelo arguido na primeira sessão da audiência de julgamento, ao referir que no momento em que iniciou o transbordo dos sacos de desporto e o seu acondicionamento no interior da embarcação “...” se encontrar na convicção de os sacos conterem dinheiro no seu interior, e apenas no decorrer do transbordo se ter apercebido, pelo cheiro que os sacos exalavam, que continham produto estupefaciente (a este respeito o arguido concretizou que na altura pensou tratar-se de “heroína ou de alguma coisa mais forte”), que não teve outra opção, por ter estado sempre sobre pressão, desde logo em virtude de tal versão não ter sido corroborada por qualquer outro elemento probatório, sendo certo que de toda a actividade por si desenvolvida nada permite inferir que tal tivesse sucedido, e que era sua ideia a de saltar borda fora na primeira terra e fugir, por saber que “a uma viagem destas ninguém sobrevive’, da mesma forma que não nos mereceram qualquer credibilidade as declarações prestadas pelo arguido na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11/02/2021, quando asseverou que, no momento em que efectuava o transbordo, apenas se apercebeu que os sacos continham droga, depois de ter recebido o quarto ou quinto saco, e isto por ter notado que as pessoas que seguiam na outra embarcação se encontravam armadas, o que o levou a olhar para o co-arguido, que lhe disse para continuar a colocar os sacos no interior da embarcação “...”, tanto mais que esta versão se encontra em patente contradição com as declarações prestadas na sessão de julgamento precedente, em que, reitere-se, o arguido afirmou ter-se apercebido que os sacos de desporto continham droga pelo cheiro que os mesmos exalavam.

Assim, perante os referidos elementos de prova, analisados criticamente, face aos dados da experiência comum, é possível, no entendimento do tribunal colectivo, formar um juízo seguro de certeza jurídica de que os arguidos AA e BB, em execução de um plano previamente traçado pelo primeiro com um indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, e a que o segundo aderiu, actuando em comunhão de vontades e esforços, aceitaram receber e carregar consigo as 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 1687326,125 gramas, apreendidas nos autos, do Brasil para a Europa, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias, o que fizeram com a finalidade comum de obterem benefícios económicos (o montante de € 100.000,00, no caso do arguido AA; e montante não inferior a € 14.000,00, no caso do arguido BB), não obstante saberem serem as respectivas condutas proibidas por lei, constituindo a factualidade a que é feita menção nos pontos 35. e 38. o corolário lógico de, tendo os arguidos incorrido na prática dos factos objecto dos presentes autos, puderem no futuro sentir-se tentados a repetir comportamentos da mesma natureza, atentos os proventos fáceis e avultados que o tráfico internacional de produtos estupefacientes, designadamente de cocaína, possibilita aos seus agentes

Em suma, atentas as declarações dos arguidos AA e BB e o depoimento da testemunha CC, conjugados com a análise crítica da prova documental e pericial, a que acima se fez menção, e com as regras da experiência comum, formou o Tribunal Colectivo a convicção, firme, racional e estruturada, de que se verificaram efectivamente os factos vertidos nos pontos 1. a 38. da Matéria de Facto Provada.

Foram, igualmente, valorados os relatórios sociais para julgamento elaborados pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, relativamente à pessoa de cada um dos arguidos, onde se abordam os dados relevantes do respectivo processo de socialização, as respectivas condições sociais e pessoais, bem como o impacto da situação jurídico-penal (cfr. fls. 1061 a 1063; e fls. 1030 a 1033, respectivamente), cujo teor foi complementado e actualizado pelas declarações prestadas pelos próprios em audiência de julgamento, determinantes para prova da factualidade enunciada nos pontos 39. a 47. e 49. a 62., mostrando-se a ausência de antecedentes criminais de cada um dos arguidos certificada a fls.1096 e a fls. 1097, respectivamente, ambos com data de emissão de 12/01/2021.

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Já a convicção do tribunal no que se refere à factualidade considerada como não demonstrada, a que é feita menção nas als. a) a o), resultou da ausência de elementos de prova suficientes para convencerem da sua verificação, encontrando-se a factualidade a que é feita menção nas als. f), g) e h) em patente contradição com a matéria de facto considerada como demonstrada.

No que respeita à factualidade a que é feita menção nas als. a), b), c), i) e j), importa salientar que, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido AA referiu não ter conhecimento da identidade do dono das embalagens/placas de cocaína que foram apreendidas no interior da embarcação “...”, nem da identidade das pessoas a quem as mesmas se destinavam, desconhecendo onde tal produto foi plantado, produzido e/ou embalado, bem como o preço de venda que o mesmo poderia atingir no mercado, frisando não ter ideia nenhuma de qual o preço de venda de uma grama de cocaína, sem que, neste particular, as declarações do arguido tivessem sido infirmadas por qualquer prova em contrário. Na realidade, dos elementos constantes dos autos não se olvida que o produto estupefaciente em causa nos autos (cocaína - cloridrato) terá sido produzido por terceiros não identificados e, considerando a quantidade, bem como, o grau de pureza, admite-se a possibilidade de estarmos perante uma organização, susceptível de integrar o tipo legal de associação criminosa. No entanto, não resultam dos autos quaisquer elementos probatórios que sustentem a existência de uma organização desta natureza, designadamente quanto ao seu carácter permanente e estável. Porém, no que diz respeito à sua comercialização e transporte, apesar do produto estupefaciente apreendido na embarcação “...”, nos termos considerados como demonstrados, não resulta dos autos que os arguidos AA e BB, ao assim proceder, estivessem a prestar colaboração a qualquer organização criminosa, para efeitos do citado tipo legal, redundando que o faziam de modo próprio, para o seu interesse pessoal, com intervenção de terceiros, em conjugação de esforços, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 26.° do Cód. Penal. Efectivamente, os autos apenas evidenciam a existência de uma conjugação de vontades entre os arguidos AA e BB, para concretização do transporte das embalagens/placas de cocaína (cloridrato) apreendidas, sem que tivesse ficado demonstrado que qualquer um dos arguidos tivesse aderido ou prestado colaboração a qualquer associação, mas antes que os mesmos, por comum acordo, decidiram concertar vontades e saberes para, a troco de quantia monetária, procederem ao transporte do aludido produto estupefaciente, ainda que tivessem recebido instruções de terceiros, designadamente relativas ao concreto ponto, situado em alto mar, a cerca de cem milhas náuticas da costa brasileira, onde se deveriam dirigir, para recepcionarem o produto estupefaciente, tendo, ainda, ficado acordado que, no momento oportuno, o arguido AA iria receber instruções de terceiros quanto ao concreto ponto, situado em alto mar, no mar ..., onde a embarcação “...” se deveria dirigir, para o efeito de os arguidos procederem à entrega das embalagens/placas de cocaína transportadas.

A este propósito, importa, no entanto, concretizar que o tribunal não considerou provado “que os arguidos nunca constituíram, aderiram ou sequer estavam cientes de que poderia existir uma associação criminosa, muito menos agiram com tal desiderato”, em virtude de uma total ausência de prova nesse sentido, motivo pelo qual a factualidade a que é feita menção nas als. n) e o) foi considerada como não demonstrada.

No que respeita à factualidade a que é feita menção em k), a mesma foi considerada como não provada, por não ter sido produzida prova de qual o país ou países em que a cocaína, após ser entregue pelos arguidos no mar ..., a indivíduos que aí os abordariam, iria ser distribuída, nem por quanto seria comercializada.

Importa, igualmente, ponderar que o tribunal não considerou provado “que os arguidos sabiam que o produto estupefaciente que lhes foi entregue e apreendido, a que é feita referência nos pontos 8. e 24. da Matéria de Facto, se tratava de cocaína (cloridrato)”, mas unicamente que os arguidos “pese embora não conhecessem a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente (cocaína) que lhes foi apreendido, sabiam tratar-se o mesmo de uma das drogas mencionadas nas tabelas Ia III anexas ao D.L. n.° 15/93, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, no mercado europeu, a troco de quantias monetárias”. Isto em virtude de todo o circunstancialismo fáctico indicar que a actividade de que os arguidos foram incumbidos se cingia a efectuar o transporte das 1628 embalagens/placas de cocaína (cloridrato) desde o Brasil até ao continente europeu, e à sua subsequente entrega, no mar ..., a indivíduos, de identidade desconhecida, que aí os abordariam numa outra embarcação. Ora, dizem-nos as regras da experiência que, normalmente, quem contrata este tipo de colaboradores ocasionais tem o cuidado de deixar que eles não conheçam de onde vem a droga ou quem é o seu dono. Percebe-se que assim seja. Não pertencendo estes colaboradores ocasionais ao núcleo de pessoas que detém e decide o destino da droga, nem sendo da sua confiança, há que acautelar a possibilidade de os mesmos serem detidos e disporem-se a colaborar com as autoridades, revelando quem os contratou e onde está a fonte da droga. Mas se, tudo o indica, terá sido também assim no caso destes autos, sendo perfeitamente natural que os arguidos AA e BB não soubessem muitos pormenores sobre a qualidade e quantidade do produto estupefaciente em questão, não podiam deixar de saber, pelo carácter sigiloso da conduta, pela sofisticação da actuação, por estar em causa um tráfico de cariz transcontinental, que se tratava de um transporte de droga e que se tratava necessariamente de um estupefaciente valioso, dos mais valiosos, e portanto daqueles cujo tráfico é mais severamente reprimido.”

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Direito

10. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os  poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP.

Vejamos, então, cada um dos recursos.

10.1. Recurso do arguido AA

Analisadas as conclusões do recurso apresentado pelo arguido AA para o STJ, verifica-se que coloca as seguintes questões, que já suscitara no seu recurso para a Relação[1]:

1.º- ter sido violada a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de dezembro de 1982 e, por via disso, foram obtidos e utilizados elementos de prova nulos, por força do disposto no artigo 126.º, n.º 2, al. c) e n.º 3, do CPP, que implicam, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do CPP, a invalidade de todos os atos por esta afetados, sendo o acórdão condenatório igualmente nulo, por as provas em que se baseia serem nulas;

2.º- ser excessiva e desproporcionada a pena que lhe foi imposta, tendo sido violados os artigos 40.º, n.º 2 e 71.º do Código Penal.

Pois bem.

Compulsado o teor do acórdão do Tribunal da Relação sob recurso verifica-se que o mesmo analisou e decidiu (além do mais), as questões acima referidas colocadas pelo recorrente AA e, inclusivamente, reduziu a pena que lhe foi imposta na 1ª instância.

Portanto, resulta do acórdão do TR... sob recurso que existe dupla conforme parcial, isto é, houve um duplo juízo condenatório quanto às questões de facto e de direito que a defesa entendeu colocar no seu recurso, sendo reduzida a pena que lhe foi imposta.

A existência de dupla conforme, inclui a confirmação in mellius[2], ou seja, a decisão da Relação que, como sucede neste caso, confirma o acórdão da 1ª instância, melhorando a situação do condenado, na medida em que reduziu/diminuiu a pena que lhe tinha sido aplicada na 1ª instância.

A confirmação in mellius integrando um juízo confirmativo “é relevante para os efeitos da al. f) do nº 1 do art. 400º do CPP” e garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP).

Isto significa, visto o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), salvo quanto à pena que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão.

Por isso, tem razão o Sr. PGA quando alega que não pode o recorrente pretender uma terceira apreciação dessa questão.

Apesar disso, o recorrente AA insiste em ver reapreciada pelo STJ questões decididas em definitivo pelo Tribunal da Relação, alegando, para tanto, na sua resposta ao parecer do Sr. PGA, que neste caso não se verifica a “dupla conforme”, uma vez que no que se refere “ao modo como foi reapreciada a violação normativa do ponto de vista da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”, entre cada recurso, várias situações de facto/direito foram suscitadas e, a vertente colocada neste recurso para o STJ (onde invoca ter sido concretamente violado o disposto no artigo 97.º daquela Convenção) não foi objeto de ponderação e nem sequer foi colocado no recurso da Relação, pelo que não houve ainda um juízo sobre essa matéria que está a ser invocada de novo.

Mas sem razão.

Esqueceu o recorrente que os recursos destinam-se a apreciar a decisão de que se recorre (neste caso o acórdão do Tribunal da Relação ... impugnado) e não para apreciar questões novas que não foram colocadas no Tribunal recorrido, ressalvado aquelas que devam ser conhecidas oficiosamente, o que não é o caso.

Portanto, se o recorrente pretendia que a questão da violação normativa do ponto de vista da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, fosse apreciada também na vertente da violação de outras situações de facto/direito, nomeadamente da violação do disposto no artigo 97.º da mesma Convenção (tal como agora coloca no recurso para o STJ), devia ter apresentado essas novas questões (que agora suscita) no recurso para a Relação, para serem por esse Tribunal apreciadas.

Não o tendo feito (por opção da defesa), como devia, perante a Relação, não pode agora suscitar ex novo essas questões, com essa nova apresentação (suscitando outras situações de facto/direito) no recurso para o STJ.

O acórdão da Relação ... é definitivo quanto às questões que apreciou e que o recorrente volta a colocar no recurso para o STJ, salvo quanto à reapreciação da medida da pena que lhe foi imposta, por ser superior a 8 anos de prisão.

Assim, as questões de facto, as questões processuais, as questões de direito (incluindo, nomeadamente, as relativas à invocada “violação normativa do ponto de vista da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”), suscitadas nesse âmbito em que não é admissível o recurso para o STJ e, em que também não há decisão da Relação sobre as novas questões colocadas, não podem ser conhecidas, nem sindicadas por este Tribunal.

Em conclusão: nessa parte, não se toma conhecimento do recurso, por inadmissibilidade legal, uma vez que há dupla conforme parcial e, mesmo que assim não fosse, dado que o recorrente estava a colocar questões novas, também não podiam ser sindicadas pelo STJ, por não existir decisão da Relação sobre as mesmas, o que impedia o seu reexame no recurso ora em apreço.

Improcede, pois, a primeira questão colocada.

Adiante iremos analisar a questão relativa à medida da pena imposta no acórdão da Relação sob recurso, que é a única suscetível de ser sindicada por este STJ.

10.2. Recurso do arguido BB

Analisadas as conclusões do recurso apresentado pelo arguido BB para o STJ, verifica-se que coloca as seguintes questões:

1.º- por adesão à fundamentação do recurso do co-arguido AA, no sentido de considerar que o Tribunal a quo validou e utilizou elementos de prova cuja invalidade constitui proibição de prova, nos termos do artigo 126.º, n.ºs 1 e 2, al. c), e 3, do CPP e que implicaria, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do CPP, a invalidade de todos os atos por esta afetados, sendo o acórdão condenatório igualmente nulo, por as provas em que se baseia serem nulas;

2.º- ser excessiva e desproporcionada a pena que lhe foi imposta, tendo sido violados os artigos 40.º, n.º 2 e 71.º do Código Penal.

Ora, compulsado o teor do acórdão do Tribunal da Relação verifica-se que as questões que ali colocou foram as seguintes (tal como foram identificadas nessa mesma decisão):

“- vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova;

- determinação da medida da pena.”

Portanto, vem agora o recorrente, neste recurso para o STJ, em primeiro lugar, suscitar uma questão nova, que não colocou na Relação.

Esqueceu o recorrente que os recursos destinam-se a apreciar a decisão de que se recorre (neste caso o acórdão do Tribunal da Relação ... impugnado) e não para apreciar questões novas que não foram colocadas no Tribunal recorrido, ressalvado aquelas que devam ser conhecidas oficiosamente, o que não é o caso.

Assim, se o recorrente pretendia (mesmo por adesão à fundamentação do recurso do co-arguido AA) colocar as mesmas questões daquele recorrente (no sentido de considerar que o Tribunal a quo validou e utilizou elementos de prova cuja invalidade constitui proibição de prova, nos termos do artigo 126.º, n.ºs 1 e 2, al. c), e 3, do CPP e que implicaria, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do CPP, a invalidade de todos os atos por esta afetados, sendo o acórdão condenatório igualmente nulo, por as provas em que se baseia serem nulas) deveria as ter apresentado no recurso para a Relação.

Não o tendo feito (por opção da defesa), como devia, perante a Relação, não pode agora suscitar novas questões no recurso para o STJ.

Em conclusão: incumbindo ao STJ rever a decisão da Relação, não existindo decisão da Relação sobre as questões que o recorrente alega (mesmo por adesão ao recurso do co-arguido), não pode o mesmo pedir o seu reexame no recurso ora em apreço.

Com efeito, tratam-se de questões novas que o STJ não pode sindicar, pelo que nessa parte improcede o recurso ora em apreciação.

Mais adiante conhecer-se-á da questão relativa à medida da pena que lhe foi imposta no acórdão da Relação sob recurso, que é a única suscetível de ser sindicada por este STJ.

10.3. Mérito do recurso

Os autos prosseguem para conhecimento da questão da apreciação da medida da pena aplicada a cada um dos recorrentes, sendo nessa parte analisados os respetivos recursos para este STJ.

Cada um dos recorrentes alega ter sido excessiva e desproporcionada a pena que lhes foi imposta, considerando terem sido violados os artigos 40.º, n.º 2 e 71.º do Código Penal.

            Pois bem.

            A esse propósito escreveu-se no acórdão do TR... sob recurso, quanto ao arguido AA:

“3.1.3. Insurge-se o arguido contra a pena de prisão aplicada, que considera manifestamente excessiva.

Lê-se no acórdão recorrido:

«Apreciada a conduta dos arguidos AA e BB, vejamos as suas consequências penais, sendo a primeira operação a efectuar, naturalmente, a determinação da respectiva moldura penal ou pena abstractamente aplicável a cada um dos crimes em cuja prática cada um dos arguidos incorreu:

- crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo art. 21.°, n.° 1 do D.L. n.° 15/93, de 22/01: moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão;

- crime de tráfico de estupefacientes agravado, p.p. pelos arts. 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), ambos do D.L. n.° 15/93, de 22/01: moldura penal abstracta de 5 a 16 anos de prisão.

Na ponderação concreta da pena, tendo em atenção os critérios do artigo 71.° do Código Penal, cumpre determinar a medida da pena em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, sem olvidar que a finalidade última da intervenção penal é a reinserção social do delinquente.

No entanto, e conforme ensina Figueiredo Dias, a medida concreta da pena não deve baixar para além do “quantum da pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais. Essa medida mínima da moldura de prevenção, denominada de defesa do ordenamento jurídico, em nada pode ser influenciada por considerações seja de culpa seja de prevenção especial” - Direito Penal Português, Vol. II - As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pp. 242 e 243.

No caso vertente está-se, pois, perante o tráfico de cocaína, substância incluída na tabela I-B anexa do D.L. n.° 15/93, cujo abastecimento e disseminação tem vindo a aumentar com os efeitos perniciosos conhecidos, sendo de atender às elevadas exigências de defesa do ordenamento jurídico, estando em equação, por colocado em perigo e sobressalto constante, por forma directa, um dos mais apreciáveis bens da comunidade, a saúde pública, para além dos consabidos efeitos colaterais, sendo o custo social e económico derivado do tráfico e consequentemente do consumo de droga, designadamente cocaína, acentuado, já que essa actividade continua a ser um dos flagelos da actualidade, que urge combater com firmeza, dado os crimes e violência que origina e erosão dos valores que provoca, sendo, por isso, muito acentuada a necessidade de prevenir e reprovar a prática de crimes desta natureza. Trata-se de um crime de acentuada danosidade social.

Na verdade, há que ter em atenção as grandes necessidades de prevenção geral numa sociedade assolada pelo fenómeno do tráfico de droga, que a jusante gera outro tipo de criminalidade, mas inteiramente relacionada com esta, senão mesmo por ela determinada, pois é das leis de mercado que os bens têm um preço de aquisição e quando escasseia o meio para a sua obtenção muitas poderão ser as formas de alcançar o necessário e imprescindível poder aquisitivo, em vistas da satisfação das necessidades geradas pela toxicodependência e como é sabido uma dessas formas mais comuns é a prática de crimes contra o património, máxime furtos e roubos, havendo que dar satisfação ao sentimento de justiça da comunidade.

Ponderando toda a factualidade provada, debruçados sobre a gravidade objectiva e subjectiva dos factos, recorta-se acentuada a ilicitude, como o é o grau de culpa dos agentes, que, actuando com dolo directo e adequado à dinâmica delitiva, se mostraram indiferentes ao malefício das drogas, às consequências terríveis e nefastas decorrentes do seu consumo, contando apenas o desejo da obtenção do lucro.

A ilicitude é, de facto, elevadíssima, face à enorme quantidade de estupefaciente em causa e à dimensão dos meios empregues, pois estamos em presença de um transporte, por um veleiro com dois mastros, de cerca de 1687 (mil seiscentos e oitenta e sete) quilos de cocaína (produto estupefaciente de elevado teor aditivo, quer pelo grau elevado de dependência que cria, quer pelos efeitos que provoca no dependente, fonte de ampla criminalidade directa e indirecta), do Brasil para o continente europeu, com vista à sua comercialização, tudo isto a denotar que se tratava de uma actividade de tráfico de grande envergadura.

E embora os arguidos AA e BB sejam meros agentes de transporte de estupefacientes, por conta de outrem, não são vítimas do sistema criminoso, antes assumindo uma função preponderante na violação do bem jurídico, permitindo e incrementando o negócio do tráfico, uma vez que, de forma consciente e intencional, se predispuseram a transportar a droga, do fornecedor ao destinatário, representando um papel fundamental na cadeia de comercialização do tráfico de estupefacientes, pois é graças aos “transportadores” ou “correios” que aos grandes traficantes é possível fazer circular com facilidade parte do produto estupefaciente que comercializam e fazê-lo à escala mundial, sendo que, no caso vertente, os arguidos aceitaram ser uma peça na cadeia que leva a droga do produtor aos consumidores, ultrapassando continentes, sujeitando-se a riscos que os grandes traficantes não quereriam correr, deste modo participando na globalização deste crime e não se importando, cada um deles, de ser usado como instrumento descartável nas mãos dos grandes traficantes, tendo como única motivação o lucro e encontrando-se os arguidos bem cientes de que, com a sua actividade, poderiam proporcionar a outrem avultada compensação económica, manifestando, ao assim procederem, uma total indiferença para os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e sociedade em geral, o que não abona em favor da sua personalidade.

As razões de prevenção geral são muito elevadas, uma vez que o tráfico de produto estupefaciente é um crime frequente, sendo, nos dias de hoje, a necessidade de combate ao tráfico de droga, em particular o tráfico internacional, indiscutivelmente, uma exigência da comunidade internacional, interiorizada na consciência da generalidade das pessoas, a que os tribunais não podem ficar indiferentes ao administrar a justiça, cumprindo o dever de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos (art. 202.°, n.° 2 da C.R.P.), e que razões de política criminal impõem seja punido por forma suficientemente dissuasora;

- as exigências de prevenção especial, decorrentes, desde logo, da quantidade elevadíssima de cocaína transportada pelos arguidos, o que denuncia uma particular ilicitude e insinua um acentuado juízo de censura, sendo ponderável em desfavor de cada um dos arguidos o motivo determinante da acção, a obtenção de lucro, que merece censura através da aplicação da pena;

 - o produto apreendido não chegou a entrar no “giro” comercial, por ter sido apreendido na fase do transporte, antes de qualquer distribuição, circunstância que não pode subvalorizar-se;

- nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais, evidenciando ambos hábitos de trabalho, sendo que qualquer um deles tem mantido um comportamento adequado no Estabelecimento Prisional.

Face a todos estes factores, considerando que a aplicação de penas tem como primordial finalidade a de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico- penal, considerando todas as envolventes do comportamento dos arguidos, tendo em conta as exigências de reprovação e prevenção da prática de futuros crimes e os demais factores estabelecidos no art.° 71.° do Código Penal, face ao quadro punitivo aplicável a cada um dos arguidos, entende-se adequada a aplicação:

- ao arguido AA da pena concreta de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão, situada um pouco acima do termo médio da moldura abstracta aplicável;

e

- ao arguido BB da pena concreta de 9 (nove) anos de prisão, situada um pouco acima do termo médio da moldura abstracta aplicável.

A aplicação a cada um dos arguidos das referidas penas não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas (art. 18.°, n.° 2 C.R.P.), nem as regras da experiência, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa dos arguidos, mostrando-se proporcional e adequada a uma linha uniforme e coerente na penalização dos agentes que se dedicam ao tráfico internacional de droga.»

A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cfr., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exacto de pena.

O juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.

Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer.

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:

“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.”

In casu, tendo em vista as diversas circunstâncias sopesadas pelo tribunal recorrido, o grau de ilicitude dos factos é de grande intensidade, participando activamente o arguido numa operação de transporte internacional por via marítima de quase duas toneladas de cocaína – droga considerada “dura”, de que são conhecidos os efeitos nefastos do consumo, responsável directo ou indirecto de grande parte da criminalidade e fonte de desagregação familiar e social –, ainda que o produto apreendido não tenha chegado a entrar no “giro” comercial, por ter sido apreendido na fase do transporte, o que não deixa de relevar.

A ideia que o arguido/recorrente pretende transmitir, de ser um mero peão na engrenagem do tráfico, com uma “função mínima na violação do bem jurídico”, não é aceitável e não se enquadra nos factos provados.

Como ressalta o acórdão recorrido, embora o arguido seja mero agente de transporte de estupefacientes, por conta de outrem, não é uma vítima do sistema criminoso, antes assumindo uma função preponderante na violação do bem jurídico, uma vez que, de forma consciente e intencional, se predispôs a transportar droga, do fornecedor ao destinatário, através da sua embarcação, em viagem de travessia do Atlântico, movido unicamente pelo desejo do lucro, representando um papel fundamental na cadeia do tráfico de estupefacientes, deste modo participando na globalização deste crime e não se importando com os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e sociedade em geral.

Ainda assim, o tribunal deu como provado que o arguido não conhecia a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente, embora sabendo tratar-se de uma das drogas das tabelas I a III anexas ao D.L. n.º 15/93.

As necessidades de prevenção geral são prementes, atendendo à elevada dimensão e repercussão social que assume uma operação como a dos autos, de tráfico internacional de mil seiscentos e oitenta e sete quilos de cocaína, com o elevado sentimento de insegurança que gera na comunidade.

O arguido não tem antecedentes criminais, evidenciando hábitos de trabalho, tem mantido um comportamento adequado no Estabelecimento Prisional, contando no seu país com integração familiar, social e profissional.

Tudo visto e ponderado, sopesando todas as circunstâncias no quadro do binómio culpa e prevenção, tendo como limite insuperável a culpa do arguido - que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas - , entendemos justa, adequada e proporcional a pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão – pena que não viola os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas e é consentida pela culpa do arguido /recorrente.

Finalmente, não se identifica que haja sido efectuada qualquer interpretação do artigo 40.º do Código Penal contrária ao artigo 18.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa.”

Por sua vez, quanto ao arguido BB escreveu-se no acórdão do TR... sob recurso o seguinte:

“O recorrente questiona a pena de prisão aplicada, que considera “manifestamente excessiva, injusta e desproporcional (nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa) e violadora dos artigos 40.°, 70.°, 71.° e 72.° do Código Penal, por ultrapassar claramente a medida da culpa do arguido manifestamente excessiva”.

Em 3.1.3. tecemos considerações sobre o procedimento de determinação da pena, que aqui damos como reproduzidas.

Tendo em vista as diversas circunstâncias sopesadas pelo tribunal recorrido, o grau de ilicitude dos factos é de grande intensidade, participando o arguido numa operação de transporte internacional por via marítima de quase duas toneladas de cocaína – droga considerada “dura”, de que são conhecidos os efeitos nefastos do consumo, responsável directo ou indirecto de grande parte da criminalidade e fonte de desagregação familiar e social –, ainda que o produto apreendido não tenha chegado a entrar no “giro” comercial, por ter sido apreendido na fase do transporte, o que não deixa de relevar.

Como ser diz no acórdão recorrido:

«E embora os arguidos AA e BB sejam meros agentes de transporte de estupefacientes, por conta de outrem, não são vítimas do sistema criminoso, antes assumindo uma função preponderante na violação do bem jurídico, permitindo e incrementando o negócio do tráfico, uma vez que, de forma consciente e intencional, se predispuseram a transportar a droga, do fornecedor ao destinatário, representando um papel fundamental na cadeia de comercialização do tráfico de estupefacientes, pois é graças aos “transportadores” ou “correios” que aos grandes traficantes é possível fazer circular com facilidade parte do produto estupefaciente que comercializam e fazê-lo à escala mundial, sendo que, no caso vertente, os arguidos aceitaram ser uma peça na cadeia que leva a droga do produtor aos consumidores, ultrapassando continentes, sujeitando-se a riscos que os grandes traficantes não quereriam correr, deste modo participando na globalização deste crime e não se importando, cada um deles, de ser usado como instrumento descartável nas mãos dos grandes traficantes, tendo como única motivação o lucro e encontrando-se os arguidos bem cientes de que, com a sua actividade, poderiam proporcionar a outrem avultada compensação económica, manifestando, ao assim procederem, uma total indiferença para os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e sociedade em geral, o que não abona em favor da sua personalidade.»

Ainda assim, o tribunal deu como provado que o arguido não conhecia a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente, embora sabendo tratar-se o mesmo de uma das drogas das tabelas I a III anexas ao D.L. n.º 15/93.

As necessidades de prevenção geral são prementes, atendendo à elevada dimensão e repercussão social que assume uma operação como a dos autos, de tráfico internacional de mil seiscentos e oitenta e sete quilos de cocaína, com o elevado sentimento de insegurança que gera na comunidade.

O arguido não tem antecedentes criminais e tem mantido um comportamento adequado no Estabelecimento Prisional. Manifesta vontade de, uma vez restituído à liberdade, constituir actividade agrícola por conta própria, com recurso a um pequeno terreno agrícola, adjacente à habitação adquirida, nomeadamente a exploração e cultivo de camomila, para a indústria de produtos cosméticos, nomeadamente a marca “...”.

Tudo visto e ponderado, sopesando todas as circunstâncias no quadro do binómio culpa e prevenção, tendo como limite insuperável a culpa do arguido - que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas - , entendemos justa, adequada e proporcional a pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão – pena que não viola os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas e é consentida pela culpa do arguido /recorrente.”

Vejamos então.

Como sabido, as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade[3].

Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida[4].

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.
Diz Jorge de Figueiredo Dias[5], que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”
Mais à frente[6], esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.
Acrescenta, também, o mesmo Autor[7] que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.
Sendo aplicada pena de prisão, consoante o seu quantum (caso seja aplicada pena de prisão até 5 anos) impõe-se ao tribunal determinar se é caso de a substituir por uma pena não detentiva ou por uma pena detentiva prevista na lei.

Feitas estas considerações teóricas, vejamos então o caso concreto.

Medida da pena do arguido AA

Argumenta o recorrente, em resumo, que a pena imposta na decisão sob recurso é excessiva e desproporcionada (pois devia ser inferior à metade do máximo do limite legal) violando o disposto nos arts. 40.º, n.º 2 e 71.º do CP, sendo uma afronta ao art. 18.º, n.º 2 da CRP e, como tal, integrando uma inconstitucionalidade, não tendo tido em devida conta, que o grau de ilicitude dos factos não é elevado (face à dimensão dos meios empregues e atuação do arguido, como mero transportador, por conta de outrem, para além de ser uma intervenção isolada, meramente instrumental, residual que, como resultou provado, os arguidos nem conheciam o tipo de produto, qualidade ou quantidade em causa), que quanto às consequências da conduta importa valorizar que o produto estupefaciente não chegou a entrar no “giro” comercial (por ter sido apreendido na fase do transporte), quanto ao modo de execução a sua atuação foi diminuta (porque se o transporte não fosse feito por si, teria sido certamente feito por terceiro), importando, por outro lado, valorizar devidamente as suas condições pessoais de vida, situação económica, comportamento anterior e posterior (que são exemplares), não tendo antecedentes criminais, estando socialmente integrado, sempre se mostrando colaborante com a Justiça (tendo prestado declarações, confessado integralmente a realização do transporte e mostrado profundo arrependimento, sendo irrepetível essa conduta), não se lhe assacando qualquer conduta perturbadora do andamento do processo e, além disso, tendo mantido um comportamento adequado no Estabelecimento Prisional, não lhe podendo ser aplicada pena que ultrapasse a ilicitude do facto e a sua culpa, para além de ficar por explicar a desproporcionalidade nas penas comparando com situações mais graves que foram punidas menos severamente (como sucedeu no caso do Acórdão do STJ de 29.09.2021, proferido no processo 274/17.8JACBR).

Pois bem.

Como sabido a medida da pena é determinada a partir do que resulta dos factos provados (e do que deles se pode deduzir) em relação a cada arguido que tenha cometido ilícito penal e não a partir de considerações feitas pelo recorrente que não se extraem ou que não encontrem apoio nesses mesmos factos dados como provados.

Perante os factos apurados e o que deles se pode deduzir, como veremos, no essencial, estamos de acordo com as considerações feitas pela Relação, quanto à determinação da medida da pena individual que foi imposta ao recorrente, acima já transcritas, considerando a moldura abstrata (pena de prisão de 5 anos a 16 anos) do crime de tráfico de estupefacientes agravado por si cometido.

Assim, havia que considerar que o arguido agiu com dolo (directo) e com consciência da ilicitude da sua conduta.

Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a ação concreta em questão nos autos, por si praticada, ainda que fosse uma intervenção isolada e mesmo que não conhecesse em concreto a qualidade e quantidade do estupefaciente que transportaram em co-autoria os dois arguidos/recorrentes até serem intercetados (não podendo desconhecer que era uma operação de transporte de estupefacientes que, apesar de ser realizada por conta de outrem, era valiosa não só pela preparação que exigiu, pelo que foi possível observar quando fizeram o carregamento em alto-mar, como pelo próprio volume do transporte naquele veleiro até serem intercetados, mas também pelo valor de 100.000 euros que visava obter, o que tudo demonstrava bem os avultados lucros que iriam ser proporcionados ao dono do negócio, para além de mostrar a sua indiferença pelos malefícios para a vida e para a saúde dos futuros consumidores, suas famílias e para a sociedade em geral).

A ilicitude dos factos apurados é elevada, não podendo esquecer-se todo o seu modo de atuação (incluindo meios utilizados), período de tempo da sua conduta até à sua interceção, a quantidade e qualidade (cocaína) de estupefacientes transportada em viagem intercontinental no seu veleiro (o que mostra bem a gravidade da sua conduta) e elevado montante que visava obter (conforme tudo melhor ficou descrito no acórdão sob recurso).

Note-se que o modo de atuação em relação ao crime cometido é muito grave (tratou-se do transporte, através de um veleiro de dois mastros, de cerca de 1687 quilos de cocaína, do Brasil para o continente europeu, com vista à sua comercialização, que decorreu entre 15.11.2019 e 19.01.2020, data esta da interceção pela Marinha de Guerra Portuguesa e condução para território nacional), sendo revelador da maior desatenção à advertência de conformação ao direito e denotando ter uma personalidade adequada aos factos que cometeu (não obstante toda a sua formação, idade e maturidade, atuou motivado pela obtenção de dinheiro fácil e indiferente às consequências dos seus atos).

São também elevadas as exigências de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade da norma violada), tendo em atenção o bem jurídico violado (genericamente a saúde pública) no crime de tráfico de estupefacientes, que deve ser combatido com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causa e tendo em atenção as particulares circunstâncias do caso (estando aqui em causa uma operação de transporte intercontinental integrada em tráfico de estupefacientes internacional, cometido por via marítima, o que torna mais difícil a deteção).

Ou seja, ao contrário do alegado pelo recorrente, o grau de ilicitude dos factos foi elevado.

Também, não se concorda com o recorrente quando invoca que, não foi devidamente valorizado, a nível das consequências da conduta, que o produto estupefaciente não chegou a entrar no “giro” comercial (por ter sido apreendido na fase do transporte).

Essa matéria foi concretamente abordada na decisão sob recurso.

Discorda-se igualmente da sua perspetiva quando defende que, quanto ao modo de execução a sua atuação foi diminuta (porque se o transporte não fosse feito por si, teria sido certamente feito por terceiro).

Nesse aspeto, como bem diz a Relação o papel do recorrente foi “fundamental na cadeia do tráfico de estupefacientes, deste modo participando na globalização deste crime e não se importando com os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e sociedade em geral”, apesar de (se ter dado igualmente como provado) que não conhecia a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente, embora soubesse tratar-se de uma das drogas das tabelas I a III anexas ao D.L. n.º 15/93.

São de média intensidade as razões de prevenção especial, atendendo ao que se apurou em relação às condições de vida do recorrente, ao seu comportamento anterior e posterior aos factos (sendo que na Alemanha, antes dos factos, mostrava-se integrado pessoal, familiar e profissionalmente, estando socialmente inserido e, após os factos, manteve um comportamento adequado no EP, não tendo familiares, nem amigos em Portugal, nem recebendo visitas, contactando a família pelo telefone), notando-se que, no conjunto, apesar de não ter antecedentes criminais e ter confessado parcialmente factos, o que denota algum arrependimento, mas sem grande relevância, ainda assim revelou ter uma personalidade adequada aos factos que cometeu, tanto mais que, não foi capaz de resistir à proposta que lhe foi feita no Brasil, apesar de não poder desconhecer que era penalmente censurável.

Ao contrário do que alega o recorrente, não se pode considerar que o mesmo tenha tido outro comportamento ou postura (mesmo processual) suscetível de merecer uma atenuação da pena, tendo ficado por demonstrar o mais que alegou em sede recurso, não sendo comparável a situação descrita nestes autos com a do Acórdão do STJ de 29.09.2021, proferido no processo 274/17.8JACBR, para se poder concluir que existe uma desproporcionalidade nas penas comparando com situações mais graves que foram punidas menos severamente (como teria sucedido no caso assinalado no dito ac. de 29.09.2021, o qual não sendo equiparável ao destes autos, não pode funcionar como elemento de comparação por se tratarem de situações distintas).

Assim, tudo ponderado, olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do recorrente, bem como os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se adequada e ajustada a pena de 10 anos e 6 meses de prisão que lhe foi imposta pela Relação.

Na perspetiva do direito penal preventivo, a pena de prisão que lhe foi aplicada mostra-se adequada, equilibrada e proporcionada em relação à gravidade dos factos cometidos e carência de socialização do recorrente (evidenciada pela personalidade adequada aos factos que cometeu), satisfazendo as finalidades das penas.

A pretendida redução da pena mostra-se desajustada e comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena inferior à que lhe foi imposta.

Improcede, pois, a argumentação do recorrente, não tendo sido violados os princípios e normas por ele citados.

Por isso, apenas se pode concluir (acompanhando a decisão sob recurso) que a pena imposta, agora confirmada, não significa qualquer interpretação dos arts. 40.º, n.º 2 e 71.º do Código Penal contrária ao artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

Medida da pena do arguido BB

Alega o recorrente, em resumo, que a pena imposta na decisão sob recurso é excessiva e desproporcionada (pois devia ser inferior à metade do máximo do limite legal) violando o disposto nos arts. 40.º, n.º 2 e 71.º do CP, sendo uma afronta ao art. 18.º, n.º 2 da CRP e, como tal, integrando uma inconstitucionalidade, não tendo tido em devida conta, que o grau de ilicitude dos factos não é elevado (face à dimensão dos meios empregues e atuação do arguido, como mero transportador, por conta de outrem, para além de ser uma intervenção isolada, meramente instrumental, residual que, como resultou provado, os arguidos nem conheciam o tipo de produto, qualidade ou quantidade em causa, devendo ter-se em atenção que a sua participação foi muito menor do que a do arguido AA, sendo certo que enquanto mero passageiro/assistente de manutenção da embarcação, o montante que visava obter é manifestamente reduzido, enquadrando-se no que poderia ser entendido como remuneração pelo trabalho e não pelo transporte do produto estupefaciente e, mesmo tendo sido considerado co-autor do arguido AA, o seu papel foi bem menor, pelo que deve ser bem diferenciado, traduzindo-se em pena substancialmente menor, sob pena de haver uma injusta desproporção entre as penas aplicadas a um e a outro), que quanto às consequências da conduta importa valorizar que o produto estupefaciente não chegou a entrar no “giro” comercial (por ter sido apreendido na fase do transporte), quanto ao modo de execução a sua atuação foi diminuta (porque limitou-se a executar tarefas de manutenção da embarcação, não a pilotou, nem detinha a logística do transporte em causa, nem, muito menos, a conhecia no seu todo ou sequer dos seus detalhes lhe foi dado conhecimento), importando, por outro lado, valorizar devidamente as suas condições pessoais de vida, situação económica, comportamento anterior e posterior (que são exemplares), não tendo antecedentes criminais, estando socialmente integrado, sempre se mostrando colaborante com a Justiça (prestando declarações, ainda que com algum distanciamento da realidade factual só conhecida do co-arguido AA, acabando por confessar a realização do transporte e, ademais, mostrando profundo arrependimento por tal ato, que será irrepetível), não se lhe assacando qualquer conduta perturbadora do andamento do processo e, além disso, tendo mantido um comportamento adequado no Estabelecimento Prisional, não lhe podendo ser aplicada pena que ultrapasse a ilicitude do facto e a sua culpa, para além de ficar por explicar a desproporcionalidade nas penas comparando com situações mais graves que foram punidas menos severamente (como sucedeu no caso do Acórdão do STJ de 29.09.2021, proferido no processo 274/17.8JACBR).

Pois bem.

Como sabido a medida da pena é determinada a partir do que resulta dos factos provados (e do que deles se pode deduzir) em relação a cada arguido que tenha cometido ilícito penal e não a partir de considerações feitas pelo recorrente que não se extraem ou que não encontrem apoio nesses mesmos factos dados como provados.

Perante os factos apurados e o que deles se pode deduzir, como veremos, no essencial, estamos de acordo com as considerações feitas pela Relação, quanto à determinação da medida da pena individual que foi imposta ao recorrente, acima já transcritas, considerando a moldura abstrata (pena de prisão de 4 anos a 12 anos) do crime de tráfico de estupefacientes por si cometido.

Assim, havia que considerar que o arguido agiu com dolo (directo) e com consciência da ilicitude da sua conduta.

Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a ação concreta em questão nos autos, por si praticada, ainda que fosse uma intervenção isolada e mesmo que não conhecesse em concreto a qualidade e quantidade do estupefaciente que foi transportada em co-autoria com o co-arguido AA até serem intercetados (não podendo desconhecer que aquela operação de transporte de estupefacientes, realizada por conta de outrem, era valiosa não só pelo que lhe foi possível observar quando fizeram o carregamento em alto-mar, como pela forma como decorreu a operação em si, bem assim pelo volume que transportaram até serem intercetados, além do valor de 14.000 euros que visava obter, o que tudo demonstrava bem os avultados lucros que iriam ser proporcionados ao dono do negócio, para além de mostrar a sua indiferença pelos malefícios para a vida e para a saúde dos futuros consumidores, suas famílias e para a sociedade em geral).

A ilicitude dos factos apurados é elevada, não podendo esquecer-se todo o seu modo de atuação (incluindo meios utilizados, sendo o envolvimento do recorrente BB diferente do co-arguido AA) e período de tempo da sua conduta até à sua interceção, a quantidade e qualidade (cocaína) de estupefacientes transportada em viagem intercontinental no veleiro que pertencia ao arguido AA, mas no qual também viajava e era elemento essencial para a sua navegação, uma vez que para o efeito aquela embarcação precisava no mínimo de dois tripulantes (o que mostra bem a gravidade da sua conduta) e montante que visava obter (conforme tudo melhor ficou descrito no acórdão sob recurso).

Note-se que o modo de atuação em relação ao crime cometido é muito grave (tratou-se do transporte, através de um veleiro de dois mastros, de cerca de 1687 quilos de cocaína, do Brasil para o continente europeu, com vista à sua comercialização, que decorreu entre 15.11.2019 e 19.01.2020, data esta da interceção pela Marinha de Guerra Portuguesa e condução para território nacional), sendo revelador da maior desatenção à advertência de conformação ao direito e denotando ter uma personalidade adequada aos factos que cometeu (não obstante toda a sua formação, idade e maturidade, acabou por atuar motivado pela obtenção de dinheiro fácil e indiferente às consequências dos seus atos).

São também elevadas as exigências de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade da norma violada), tendo em atenção o bem jurídico violado (genericamente a saúde pública) no crime de tráfico de estupefacientes, que deve ser combatido com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causa e tendo em atenção as particulares circunstâncias do caso (estando aqui em causa uma operação de transporte intercontinental integrada em tráfico de estupefacientes internacional, por via marítima, o que torna mais difícil a sua deteção).

Ou seja, ao contrário do alegado pelo recorrente, o grau de ilicitude dos factos foi elevado.

Também, não se concorda com o recorrente quando invoca que, não foi devidamente valorizado, a nível das consequências da conduta, que o produto estupefaciente não chegou a entrar no “giro” comercial (por ter sido apreendido na fase do transporte).

Essa matéria foi concretamente abordada na decisão sob recurso.

Discorda-se igualmente da sua perspetiva quando defende que, quanto ao modo de execução a sua atuação foi diminuta (alegando que participou como mero passageiro/assistente de manutenção da embarcação, limitando-se a executar tarefas de manutenção da embarcação).

Os factos dados como provados não suportam essas suas deduções, antes deles resultando que a sua participação foi essencial para a prática do crime pelo qual foi condenado.

Do mesmo modo, também não lhe assiste razão quando alega que “o montante que visava obter é manifestamente reduzido, enquadrando-se no que poderia ser entendido como remuneração pelo trabalho e não pelo transporte do produto estupefaciente.”

Aliás, o recorrente, tal como o co-arguido AA, ao efetuarem aquela volumosa operação de transporte de estupefacientes, estava a assumir um papel essencial “na cadeia do tráfico de estupefacientes, deste modo participando na globalização deste crime e não se importando com os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e sociedade em geral”, apesar de (se ter dado igualmente como provado) que não conhecia a concreta qualidade e quantidade do produto estupefaciente, embora soubesse tratar-se de uma das drogas das tabelas I a III anexas ao D.L. n.º 15/93.

São de média intensidade as razões de prevenção especial, atendendo ao que se apurou em relação às condições de vida do recorrente, ao seu comportamento anterior e posterior aos factos (sendo que, antes dos factos, mostrava-se integrado pessoal, familiar e profissionalmente, estando socialmente inserido, tendo vivido na Dinamarca, na Suécia, na Inglaterra e na Alemanha, onde acabou por comprar uma habitação, com um terreno adjacente e, após os factos, manteve um comportamento adequado no EP, não tendo familiares, nem amigos em Portugal, perspetivando vir a dedicar-se à atividade agrícola no terreno adjacente à habitação que adquiriu na Alemanha, nomeadamente explorando e cultivando camomila para a indústria de produtos cosméticos, v.g. marca ...), notando-se que, no conjunto, apesar de não ter antecedentes criminais e ter admitido parcialmente factos, o que denota algum arrependimento, mas sem relevância, ainda assim revelou ter uma personalidade adequada aos factos que cometeu, tanto mais que, não foi capaz de resistir à proposta que lhe foi feita pelo co-arguido AA.

Ao contrário do que alega o recorrente, não se pode considerar que o mesmo tenha tido outro comportamento ou postura (mesmo processual) suscetível de merecer uma atenuação da pena, tendo ficado por demonstrar o mais que alegou em sede recurso, não sendo comparável a situação descrita nestes autos com a do Acórdão do STJ de 29.09.2021, proferido no processo 274/17.8JACBR, para se poder concluir que existe uma desproporcionalidade nas penas comparando com situações mais graves que foram punidas menos severamente (como teria sucedido no caso assinalado no dito ac. de 29.09.2021, o qual não sendo equiparável ao destes autos, não pode funcionar como elemento de comparação por se tratarem de situações distintas).

Assim, tudo ponderado, olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do recorrente, bem como os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se adequada e ajustada a pena de 8 anos e 6 meses de prisão que lhe foi imposta pela Relação.

Note-se, ainda, que as penas aplicadas a cada um dos arguidos/recorrentes, que atuaram em co-autoria, mostram-se adequadamente diferenciadas, tendo em atenção a participação de cada um deles nos factos dados como provados, bem como as finalidades das penas, não se justificando fazer qualquer outra distinção entre ambas, nem revelando que exista qualquer injusta desproporção entre uma e outra, tal como alega o recorrente BB de forma abstrata e subjetiva.

De resto, na perspetiva do direito penal preventivo, a pena de prisão que lhe foi aplicada mostra-se adequada, equilibrada e proporcionada em relação à gravidade dos factos cometidos e carência de socialização do recorrente (evidenciada pela personalidade adequada aos factos que cometeu), satisfazendo as finalidades das penas.

A pretendida redução da pena mostra-se desajustada e comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena inferior à que lhe foi imposta.

Improcede, pois, a argumentação do recorrente, não tendo sido violados os princípios e normas por ele citados.

Por isso, apenas se pode concluir (acompanhando a decisão sob recurso) que a pena imposta, agora confirmada, não significa qualquer interpretação dos arts. 40.º, n.º 2 e 71.º do Código Penal contrária ao artigo 18.º, n.º2, da CRP.

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III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento aos recursos interpostos, relativos ao acórdão do TR... de 26.10.2021, pelos arguidos AA e BB.

Custas por cada um dos recorrentes/arguidos, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 6 UC`s.

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelo Senhor Juiz Conselheiro Adjunto.

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Supremo Tribunal de Justiça, 17.02.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo

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[1] No acórdão da Relação de Lisboa foram identificadas, no recurso apresentado pelo arguido Andreas Brandenburg as seguintes questões a decidir:

“- erro de julgamento e consequente violação normativa na apreciação e aplicação do artigo 27.º, n.ºs 3 e 5, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10/12/1982 e do artigo 17.° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas / verificação de proibição de prova / violação do artigo 340.º do C.P.P.;

-  não preenchimento da alínea c) do artigo 24.º do D.L n.º 15/93;

- determinação da medida da pena com alegada violação dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal.”
[2] Neste sentido, Pereira Madeira, in AAVV, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2014, p. 1254.
[3] Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.
[4] Neste sentido, v.g. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Noticias, 1993, p.198.
[5] Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.
[6] Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.
[7] Jorge de Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.