Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B1686
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NORONHA DO NASCIMENTO
Descritores: COMPRA E VENDA
EMPREITADA
PRÉDIO DESTINADO A LONGA DURAÇÃO
COISA DEFEITUOSA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
BEM IMÓVEL
DEFEITO DA OBRA
DENÚNCIA
PRAZO
DIREITO A REPARAÇÃO
DOLO
CADUCIDADE DA ACÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: SJ200407060016862
Data do Acordão: 07/06/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3290/03
Data: 06/24/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I- O DL n.º 267/94 de 25/10 que altera os prazos previstos nos arts. 916º e 1225º do C.Civil é de aplicação imediata neste particular.
II- Aquele diploma harmonizou a tutela dos interesses do comprador e do dono da obra na compra de coisa defeituosa e empreitada defeituosa de imóveis de longa duração, uniformizando os prazos de defesa e reacção daqueles contraentes.
III- O direito à reparação da coisa previsto no art. 914º pressupõe a denúncia prévia do defeito e está sujeito, no seu exercício, aos prazos previstos nos arts. 916º e 917º.
IV- A denúncia do defeito funciona como o acto do credor que certifica e comunica ao devedor o seu cumprimento defeituoso para que este possa corrigir a prestação e ainda como pressuposto para o exercício posterior do direito de acção.
V- A denúncia do defeito só está dispensada se tiver havido dolo de vendedor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
O Condomínio do prédio sito na Rua ......, nº 6 a 6-D em Lisboa propôs acção com processo ordinário contra a Ré “A” pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 271.363$00 e juros de mora à taxa legal sobre 250.000$00 e a reparar imediatamente todos os defeitos originários de construção do prédio nomeadamente as fissuras no alçado principal do 5º andar, o pavimento das garagens, as infiltrações de água nas garagens, o pavimento do terraço exterior, as clarabóias situadas por cima do estacionamento da loja C-D (no 6º andar direito) e as cantarias das janelas do 1º andar esquerdo.
Após contestação da Ré e na sequência normal da tramitação processual, foi proferida sentença que condenou a Ré a pagar à A. a quantia de 250.000$00 e os juros de mora à taxa legal , absolvendo-a do restante.
Inconformada, apelou sem êxito a Autora.

De novo inconformada recorre agora de revista, formulando as seguintes conclusões:
a) o acórdão recorrido do T.Relação de Lisboa é nulo por omissão de pronuncia já que não abordou sequer a questão da caducidade que lhe fora colocada;
b) devem, pois, os autos baixar à 2ª instância para que seja suprida esta nulidade, nos termos dos arts. 660 nº 2, 668 nº 1 d) e 713 nº 2, todos do C.P.C.;
c) o direito do A. a exigir as reparações peticionadas não caducou, ao contrário do que foi decidido;
d) estamos perante diversos casos de venda de coisa defeituosa em que se pede ao vendedor a reparação da coisa nos termos do art. 914 do C.Civil:
e) não é pois, aplicável ao caso dos autos nem o disposto no art. 1225 (com os seus prazos de denuncia e de propositura de acção) nem o disposto nos arts. 916 e 917 (todos do C.Civil) porque o A. não pretende a anulação dos contratos efectuados;
f) o que se pode é a reparação da coisa nos termos do art. 914 e para tanto não há qualquer prazo legal dentro do qual a acção respectiva tenha que ser proposta, nem sequer se impõe prazo algum para a denuncia dos defeitos:
g) assim, não se pode interpretar extensivamente o disposto nos arts. 917 e 1225 aplicando os prazos aí previstos à reparação da coisa prevista no art. 914: não só não se pede a anulação da compra e venda como também o nº 2 do art. 1225 só se aplica às relações contratuais entre empreiteiro e dono da obra e não às relações entre vendedor e terceiros adquirentes;
h) o que nesta acção se pretende com a reparação dos defeitos é tão-só o cumprimento do contrato nos seus precisos termos enquanto na anulação contratual por defeito da coisa se quer a destruição do contrato;
i) desta forma, o prazo para a reparação de defeitos é o prazo ordinário de prescrição de 20 anos constante do art. 309 do C.Civil.

Pede, em conformidade, que o T.Relação de Lisboa supra a nulidade processual invocada e que se julgue improcedente a excepção peremptória da caducidade devendo conhecer-se do pedido de reparação de defeitos formulado.
Contra–alegou a Ré defendendo a bondade da decisão.
Não se verifica qualquer nulidade processual, como pretende o recorrente.
O acórdão recorrido, verdadeiramente, confirma e decide por remissão nos termos do art. 713 nº 5 do C.P.C. (que, aliás, invoca) a sentença proferida na 1º instância. E, englobada nessa remissão, está obviamente a questão da caducidade que a 1ª instância tratou, aliás, muito bem e o acórdão recorrido confirma.
Daí que se não preencha a aludida nulidade processual.
Aquilo que se coloca nuclearmente neste recurso cinge-se em saber se o disposto no artº 914 do C.Civil, (como todos os que se citarem sem indicação de diploma) que se reporta à reparação e substituição de coisa vendida, prescinde da denuncia pelo comprador dos defeitos da coisa e se a reparação pode ser exigida ao longo de 20 anos ou se obedece aos prazos que a lei estipula nos arts. 916, 917 e 1225.
O que se passou em termos de factos provados foi sucintamente o seguinte:
a) a Ré construiu um edifício que submeteu ao regime da propriedade horizontal, e vendeu as fracções autónomas a diversos compradores;
b) começaram a surgir defeitos de construção que foram denunciados pelos condóminos à Ré que aceitou algumas das denuncias, efectuando reparação no prédio;
c) a partir de dada altura a Ré não reconheceu a sua responsabilidade nos defeitos que lhe foram denunciados;
d) o Condomínio do prédio fez, então, algumas obras de correcção e eliminação de defeitos.

A sentença proferida em 1ª instância (muitíssimo bem elaborada) decidiu que as denúncias foram feitas em prazo (quer o prazo relativo a cada defeito concretamente determinado, quer aquele outro geral de 5 anos relativo a imóveis destinados a longa duração) mas que a presente acção foi proposta muito para além do prazo de um ano de que o Condomínio dispunha para – depois da denuncia - introduzir o diferendo em juízo.
Daí que, por caducidade do direito de acção, tenha absolvido a Ré do pedido.
Efectivamente, o direito de acção do Autor caducou; e caducou pelas exactas razões e nos precisos termos referidos na decisão da 1ª instância.
O recorrente nada traz de novo, nas alegações para este Supremo Tribunal; assim remete-se a presente decisão para os termos do acórdão recorrido de acordo com o disposto no art. 713 nº 5 do C.P.C.
Sem embargo, e atento o teor das alegações do recorrente aditaremos algo mais em reforço do decidido.
Vejamos, pois:
1º) A decisão da 1ª instância considerou que o D.L. nº 267/94 de 25/10, que alterou o disposto nos arts. 916 e 1225 do C.Civil, é aplicável ao caso dos autos.
A nosso ver, considerou bem já que tal diploma – em relação às normas referenciadas – é de aplicação imediata segundo o disposto no art. 12 nº 2, 2ª parte, tal como já decidimos anteriormente (revista nº 793/99). O D.L. nº 267/94 veio, neste particular, introduzir duas modificações fundamentais: por um lado, sujeitou ao regime do contrato de empreitada (mais favorável para o adquirente – consumidor) o vendedor que tenha sido simultaneamente o construtor do edifício vendido; por outro lado, alargou o prazo de denuncia dos defeitos (quer na empreitada quer na venda de coisa defeituosa) e do subsequente direito de acção judicial, uniformizando tais prazos nos dois tipos contratuais.
Quanto ao primeiro ponto (alteração do art, 1225), aquele diploma veio seguir a solução há muito proposta por Vaz Serra, e durante muito tempo rejeitada até que as iniquidades da vida social tornaram demasiado patente a justeza da sua posição; assim, o empreiteiro tornou-se responsável pelos prejuízos causados por defeitos na construção de imóveis não só perante o dono da obra mas também perante o terceiro-adquirente, além de o regime legal da empreitada de imóveis poder ser invocado pelo comprador sempre que o empreiteiro tenha sido também o vendedor.
Com esta modificação legal, obstaculizou-se a uma das iniquidades flagrantes e frequentes: o mau empreiteiro, vendia a terceiro o produto defeituoso da sua empreitada e, a seguir, confrontado com o cumprimento defeituoso alijava o regime legal do contrato de empreitada, e invocava – a seu favor – o regime mais favorável da venda de coisa defeituosa.
O segundo ponto – uniformização de prazos quanto aos arts. 916 e 1225 – veio reforçar essa preocupação legal.
Antes do diploma de 1994, o regime do art. 1225 (relativo à empreitada de imóveis de longa duração) era manifestamente mais favorável ao dono da obra do que o dos arts. 916 e 917 (referentes à venda de coisa defeituosa) para o comprador.
Após a alteração legislativa, os prazos tenderam a uniformizar-se, harmonizando-se a tutela dos interesses do comprador e do dono da obra; a própria previsão do nº 4 do art. 1225 sugere a aplicação desta norma, e dos seus prazos, no contrato de coisa defeituosa sempre que o vendedor seja simultaneamente o empreiteiro.
Não tem razão, por conseguinte, o recorrente na leitura restritiva que pretende fazer do art. 1225, limitando esta norma à esfera do dono da obra e do empreiteiro.
2º) No âmbito da empreitada de imóveis destinados a longa duração é frequente o entendimento que considera que há que respeitar a ordem sequencial que os arts. 1220 a 1225 fixam quanto à panóplia de direitos conferidos ao dono da obra.
Não entendemos que, no caso do artº 1225, essa ordem sequencial seja obrigatória sob pena de o dono da obra ver frustrados muitas vezes as suas faculdades legais; na verdade, o direito indemnizatório aí conferido é independente no seu exercício da ordem sequencial referida (cfr. neste sentido, o Ac. S.T.J., C.J. Acs. S.T.J., ano 9, I, p.159, do ora relator).
Aliás, esta mesma leitura aparece, hoje, confirmada pela Lei nº 24/96 de 31/7 (a denominada vulgarmente lei de defesa do consumidor) porquanto, no seu art. 12, onde se define o leque de direitos do consumidor por incumprimento contratual, não se estipula qualquer ordem sequencial sucessiva para o respectivo exercício. O próprio direito indemnizatório, aí previsto, aparece-nos desligado e independente de todos os outros.
3º) No caso dos autos, os compradores-condóminos das fracções em causa podiam lançar mão do regime legal que melhor lhes aprouvesse.
Invocam, concretamente, a protecção do art. 914, inserido no regime de venda de coisa defeituosa; poderiam, se quisessem, invocar o do art. 1225 porque o nº 1 (in fine) da norma o permite.
Por força da uniformização dos prazos dos arts. 916 e 1225 (levado a efeito pelo D.L. nº 267/94), o recorrente não tirava benefício algum quanto à invocação do regime-regra da venda de coisa defeituosa ou da empreitada defeituosa de imóveis. Os prazos eram iguais quanto ao exercício dos direitos de modo que as conclusões finais eram, também, similares.
Simplesmente, o recorrente introduz, aqui, um elemento diferenciador: entende que a reparação da coisa prevista no art. 914 nem pressupõe previamente a denuncia dos defeitos da coisa nem está sujeito a qualquer prazo de caducidade mais curto que o prazo ordinário de prescrição de 20 anos.
Não tem o recorrente razão alguma.
O cumprimento defeituoso em regra não é autonomizado pelo legislador porque ou é insignificante e nenhuma influência tem na economia contratual sendo, pois, equiparado ao cumprimento, ou é significativo rompendo o equilíbrio prestacional e é equiparado ao incumprimento.
Na compra e venda e na empreitada, contudo, o cumprimento defeituoso é autonomizado gerando regimes legais específicos.
E deles extrai-se, à evidência, a necessidade de denuncia, pelo credor, dos defeitos da coisa.
O que, aliás, é lógico e compreensível: só denunciando ao devedor os defeitos do seu cumprimento defeituoso é que se pode exigir, em conformidade, a correcção da prestação para que ele a cumpra pontualmente.
Não faz sentido que o credor solicite a terceiro a prestação defeituosamente cumprida sem que antes, exija ao devedor a eliminação do defeito e a reparação da coisa, tal como não faz sentido que o credor demande judicialmente e de imediato o devedor sem que, antes, lhe diga que ele cumpriu mal e que deve reparar a prestação.
A denuncia do defeito funciona como o acto do credor que certifica e comunica ao devedor o seu incumprimento defeituoso e, por extensão, como pressuposto para o exercício posterior do direito de acção do credor.
A denuncia do defeito ao devedor – até para permitir a este a defesa que representa a correcção de uma prestação defeituosa – tem que ser sempre feita, seja na venda de coisa defeituosa seja na de empreitada defeituosa.
Só assim não será num caso: o de ter havido dolo do devedor; aqui, a lei dispensa a denuncia porque o dolo (ao contrário da culpa) põe ao devedor o conhecimento do seu próprio incumprimento desde o início da sua conduta (art. 916).
Significa isto, que, no caso de venda de coisa defeituosa, mesmo quando o credor quer o cumprimento da prestação através da reparação da coisa, tem que denunciar ao devedor o defeito para que este o elimine. Ou seja, o art.914 pressupõe sempre a denuncia dos defeitos, denuncia à qual são aplicáveis os prazos que as normas dos arts. 916 e 917 fixam.
Conforme se viu, a exigência da denuncia como pressuposto de direito de acção do credor não tem nada que ver com o facto de o credor pretender anular o contrato ou exigir o seu cumprimento; tem que ver apenas com um cumprimento defeituoso que deve ser comunicado ao devedor (que pode até ignorar esse defeito) para que ele o corrija, quer o credor vá seguir a via da anulação contratual quer a do cumprimento integral da prestação.
Daí que tenha aplicação ao caso em apreço a doutrina do Ac.Uniformizador do S.T.J. de 4/12/96 (D.R. de 30/1/97); apesar de o teor literal do Ac. não o abranger, o certo é que a doutrina aí firmada permanece válida por força das razões acima aludidas.
Por último, e a confirmar tudo o que se disse, temos ainda a referida Lei nº 24/96 aplicável, não a todas mas a muitas vendas e empreitadas defeituosas (basta, para tanto, que estejam abrangidas pela previsão do seu art.2).
Do art. 12 (na redacção originária desta norma) extrai-se o leque de direitos do consumidor: direito à reparação da coisa, à sua substituição, à redução do preço, à resolução contratual, à indemnização.
Três conclusões se podem inferir desta norma: ela confere os mesmos direitos que o Código Civil com iguais nomenclaturas; não há nenhuma ordem sequencial sucessiva que se exija; todos os direitos do credor-consumidor (nomeadamente o de reparação da coisa) estão condicionados pela denuncia do defeito.
A lei de defesa do consumidor, na sua versão inicial, vem repetir a leitura do C.Civil: a denuncia é uma consequência legal adveniente de um cumprimento defeituoso e não tem nada a ver com o tipo ou a modalidade de direito potestativo que credor vai querer seguir.
Siga ele o cumprimento do contrato (através da reparação ou substituição da coisa ou redução do preço) ou a sua destruição (através da resolução contratual), terá sempre que, previamente, denunciar os defeitos.

Termos em que se nega a revista confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 6 de Julho de 2004
Noronha do Nascimento
Moitinho de Almeida
Bettencourt de Faria