Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2622
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: CLÁUSULA CUM POTUERIT
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
DEFESA POR EXCEPÇÃO
RÉPLICA
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
FORMA DO CONTRATO
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
Nº do Documento: SJ200210300026222
Data do Acordão: 10/30/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 455/02
Data: 03/14/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1. Constitui defesa por excepção a alegação da ré de que ficara combinado entre as partes que a quantia emprestada seria devolvida apenas e na medida em que ela pudesse.
2. Se o autor não replica relativamente aos factos alegados em excepção têm-se estes por confessados.
3. A nulidade do negócio acarreta necessariamente a irrelevância da cláusula cum potuerit alegada em excepção e tacitamente confessada pelo autor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


1. Em 20/4/99, A, intentou na comarca de Oeiras acção com processo declarativo comum na forma ordinária contra B em que alegou ter-lhe emprestado 10.000.000$00 sem a necessária escritura.
Nulo, por isso, esse negócio, pediu a condenação da demandada a restituir-lhe aquela quantia, com juros legais desde a citação.
Contestando, a Ré, sogra do A., excepcionou convénio cum potuerit, isto é, no sentido de que devolveria a quantia peticionada apenas, quando, e na medida em que pudesse (art. 778º, nº1º, C.Civ.), e a consequente inexigibilidade da obrigação, e, bem assim, subsidiariamente, o reembolso parcial da dívida, mediante a entrega, por conta da mesma, do veículo de marca Mitsubishi e matrícula ES, no valor, estabelecido pelas partes de 3.500.000$00, e, ainda, de 2.000.000$00, encontrando-se, pois, a obrigação, parcialmente extinta, reduzida a 4.500.000$00, através da dação em cumprimento e pelo pagamento referidos.

Não houve réplica.

Dispensada a audiência preliminar, indicou-se, após saneador tabelar, a matéria de facto assente e fixou-se a base instrutória, uma e outra objecto de reclamação da Ré, cujo conhecimento se relegou para o momento indicado no nº2º do art.508º-B CPC, isto é, para o início da audiência de discussão e julgamento - altura em que foi desatendida.
Considerou-se para tanto que os factos integrantes das excepções (peremptórias ou materiais) deduzidas na contestação, levados aos quesitos 3º a 7º, se encontravam antecipadamente impugnados na petição inicial.
O recurso que a Ré interpôs do saneador não foi admitido, em vista do nº4º do art.510º CPC.
A Ré agravou ainda de despacho, proferido em audiência, que admitiu a junção de documentos oferecidos pelo A.
Após julgamento, foi proferida sentença que condenou a demandada a pagar ao demandante a quantia de 4.500.000$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento
O agravo mencionado foi admitido para subir com a apelação, e, na falta da competente alegação, foi julgado deserto.
A apelação que a Ré interpôs da predita sentença, em que invocava o art.511º, nº3º, CPC, mas restrita, visto que no mais vencedora, à primeira das excepções aludidas, foi julgada improcedente.
Pediu, então, revista dessa decisão.
A espécie desse recurso foi, no entanto, alterada em vista do disposto no nº2º do art.721º CPC, prosseguindo como de agravo.
A recorrente formulou, com efeito, a finalizar a alegação respectiva, as seguintes conclusões:
1ª - Invocando factos determinantes da inexigibilidade da obrigação sem contraditar ou pôr em causa os factos alegados pelo recorrido constitutivos da obrigação, a recorrente defendeu-se por excepção , não por impugnação.
2ª - Ao decidir de modo diferente, o acórdão recorrido violou o nº2º do art.487º CPC.
3ª - Não impugnando, em réplica, os factos da excepção, nem podendo eles ser julgados em contradição com a petição inicial no seu todo, o recorrido admitiu-os, conforme arts.490º, nº2º, e 505º CPC.
4ª - Ao decidir de modo diferente, o acórdão recorrido violou as normas dos arts.487º, 490º, nº2º, e 505º CPC.
Não houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.
3. A matéria de facto fixada pelas instâncias é a seguinte (indicando-se entre parênteses as correspondentes alíneas e quesitos) :
( a ) - Em 16/7/97, o A. emprestou à Ré a quantia de 10.000.000$00 para esta proceder ao pagamento to duma dívida que tinha para com C (A).
( b ) - Esse empréstimo foi concretizado através da emissão, em 16/7/99, dum cheque visado sacado sobre a conta à ordem do Banco ............ de que o ora A . é titular solidário com D, na importância de 10.000.000$00, cujo beneficiário foi precisamente o já aludido C (B).
( c ) - Na posse desse cheque, a Ré entregou-o a C e celebrou, em 18/07/97, com este um acordo extrajudicial que reduziram a escrito, conforme fotocópia de documento particular a fls.6 dos autos, nos termos do qual, aquele declarou ter recebido da ora Ré a quantia de 10.000.000$00 através de cheque visado dessa quantia, tendo-lhe conferido a competente quitação ( C ).
( d ) - Em 19/11/97, A. e Ré acordaram que esta faria ( com ) que seu ex-marido, E, transmitisse, por conta da dívida, ao A. um veículo ligeiro de mercadorias da marca Mitsubishi, modelo Contec, com a matricula ES, cujo valor para efeito de imputação ao reembolso do crédito do A. estabeleceram em 3.500.000$00 ( 5º).
( e ) - Em cumprimento do acordado, o ex-marido da Ré assinou e entregou ao A., sem que estivesse preenchido, o impresso da Conservatória do Registo que o A. depois preencheu, fazendo, por essa forma, registar a propriedade do veículo a favor duma sociedade ".........- Aves, Coelhos e Produtos Alimentares, Lda ( 6º).
( f ) - Em 16/7/98, a pedido do A ., e igualmente, para ser imputada ao reembolso do seu crédito, a Ré, fez emitir por seu ex-marido cheque pelo montante de 2.000.000$00 que foi depositado a credito na conta de depósito à ordem do A. no BPA em Cascais ( 7º).
4. A recorrente assaca ao acórdão recorrido dois erros de direito em que, a nosso ver, na realidade incorre (1)
O primeiro consiste no entendimento de que a invocação de cláusula cum potuerit ( art.778º, nº1º, C.Civ.) feita no artigo 4º da contestação, em que a Ré afirma ter ficado combinado entre as partes que a quantia emprestada seria devolvida " apenas e na medida em que ela pudesse ", constitui defesa por impugnação.
Não assim, se bem se crê.
Defesa directa, a defesa por impugnação consiste na contradição dos factos aduzidos pelo autor como constitutivos do seu direito, ou do efeito jurídico que deles pretende tirar, e que, neste caso, é a obrigação de restituição da quantia adiantada.
A contestação apresentada não nega a realidade ou a concludência dos factos invocados pelo A.: opõe-lhes causa ou contra-facto modificativo desse direito, que retarda a sua exercitabilidade, e conducente, por isso, a sentença desfavorável àquele, que é o convénio aludido.
Trata-se, sem margem para dúvida, de questão nova, de modo nenhum aludida no articulado inicial (2); e, em vista do disposto no nº2º do art. 487º CPC está-se, na verdade, sem margem para grande hesitação, perante defesa indirecta ou por excepção (3).
Nem tal contraria - antes, de algum modo, corrobora - a consideração de que, estabelecida no art. 777º, nº1º, C.Civ., mencionado no acórdão recorrido, a regra de que " na falta de estipulação ou de disposição especial da lei ", o credor tem o direito de exigir o cumprimento da obrigação " a todo o tempo ", a previsão no n. 1 do invocado artigo seguinte de ter sido estipulado que o devedor cumprirá quando puder, e correspondente estatuição de que, nesse caso, a prestação só é exigível tendo este a possibilidade de cumprir constituem, de modo manifesto, excepção a essa regra, que, em princípio moldado o ónus da alegação pelo da prova fixado no art. 342 C.Civ. (4), é ao devedor demandado que incumbe alegar para, em cumprimento do seu n. 2, poder provar, uma vez que, em vista des se dispositivo, lhe compete a prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos do direito invocado contra ele (5).
5. O segundo dos erros aludidos decorre da não consideração de que, conforme expressamente determinado no art. 505 CPC, a falta de apresentação de réplica (ou a falta de impugnação nela dos novos factos alegados pela parte contrária no articulado anterior) tem o efeito previsto no art. 490, cujo n. 2 manda que se considerem admitidos por acordo os factos não impugnados.
A principal função da réplica é mesmo, por isso, a de resposta às excepções invocadas pelo demandado (6).
Em vista da sanção prevista para a sua falta, essa resposta torna-se, para o autor, uma necessidade (7).
A distinção entre defesa por impugnação e defesa por excepção assume, por consequência, a maior importância prática, sempre devendo o autor, em caso de dúvida, replicar, a fim de evitar terem-se por assentes os factos alegados pelo réu ( citado art.505º).
Não é, realmente, demais frisá-lo: admissível a réplica sempre que deduzida defesa por excepção, se o autor não replicar, têm-se por confessados os factos que integrem excepção invocada pelo réu na contestação (mesmo art.505º) (8).
O acórdão recorrido incorre, ainda, numa terceira inexactidão, que se tem constatado vir sendo frequente, que é a invocação do art. 713º, n. 5º, CPC em caso em que - em tal, precisamente, se centrando a apelação - houve impugnação da matéria de facto.
6. Com interesse para a resolução da questão sub judicio, cabe notar, por fim, quanto segue:
Mostra-se alegado na petição que, não reduzido imediatamente a escrito o empréstimo efectuado dada a confiança existente entre as partes, mas combinada a redução desse mútuo a escritura pública , a Ré, para tanto abordada, faltou ao combinado e manifestou a sua oposição à outorga de qualquer escritura ( artigos 7º, 8º e 10 º), e vem-se recusando a pagar a quantia emprestada apesar das múltiplas insistências do A. (artigo 12º): o que tudo na contestação se nega (artigos 13º a 19º).
Nesse articulado, a Ré confessa a existência do empréstimo e assume a obrigação da competente devolução ( artigos 1º a 3º).
Afirma, no entanto, que ficou combinado entre as partes que a quantia emprestada seria devolvida "apenas quando, e na medida em que, pudesse " (artigo 4º) e ser-lhe economicamente impossível proceder a qualquer outro reembolso ( artigo 20º) - matéria esta levada aos quesitos 3º e 4º, que receberam resposta negativa.
Não se vê que tal possa considerar-se antecipadamente contrariado, seja como for, no articulado inicial, em que, de facto, não há alusão alguma a condições de vencimento da obrigação.
Nem também, aliás, foi antecipadamente contrariada a outrossim excepcionada extinção parcial da dívida ajuizada ( depois efectivamente provada ).
Desta forma, a acção podia, e devia, realmente, ter sido decidida logo no saneador ( art. 510º, nº 1º, al b), CPC ).
Mas, contra o que a recorrente pretende, pelo modo por que o veio a ser a final, em que, dado estar-se perante contrato nulo por falta de forma legal, acertadamente se julgou prejudicada a excepção da estipulação da cláusula cum potuerit
É que, como já feito notar em ARL de 20/4/89, CJ, XIV, 2º, 143 ss (IV e V) (9), a relevância de uma tal cláusula pressupõe a validade do contrato a que respeita.
Nulo esse contrato, a restituição que o art. 289 C.Civ. impõe terá de efectuar-se independentemente dessa estipulação, que só poderia funcionar se o contrato fosse válido.
Por outras palavras: a nulidade do negócio em questão acarreta necessariamente a irrelevância da cláusula cum potuerit excepcionada.
Tal sendo o que nesta altura não poderá deixar de ter-se em consideração (arts. 664º, 713º, nº2º, 749º, e 762, nº1º CPC), prejudicada, como notado na 1ª instância, uma tal convenção e, assim, a excepção nela fundada, pela nulidade do mútuo em referência, a causa foi julgada de maneira adequada, em vista dos arts. 220º, 289º, 559º, 805º, nº1º, 1142º, e 1143º C.Civ. (10).

7. Daí a decisão seguinte:

Nega-se provimento ao recurso.

Confirma-se, bem que pela razão ora apontada, a decisão final das instâncias.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 30 de Outubro de 2002
Oliveira Barros,
Diogo Fernandes,
Miranda Gusmão.
---------------------------------
(1) Tem-se, com frequência, observado que, como próprio das ciências sociais, o Direito " não é uma ciência exacta. Tem, seguramente, imanente a controvérsia, mormente em naturais zonas fronteiriças, cinzentas ", como observado em Ac. STJ de 11/5/93, BMJ 427/466. Isso reconhecido, não pode, a outro tempo, deixar-se de notar que, no dizer de Husserl, o Direito " é uma ciência de rigor " ; ou que, pelo menos, deve procurar sê-lo, de modo a arredar,- tanto quanto possível -, eventual arbítrio.
(2) V. aresto e Bol.cits., 466 e 467.
(3) Como, de igual modo, será o caso de alegar-se moratória. Esta, se bem a entendemos, sendo a lição de Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil " ( 1976 ), 126 ( nº70.) ss e 129 ss.
(4) V. Vaz Serra, BMJ, 110/112-113, Anselmo de Castro, " Direito Processual Civil Declaratório ", III, 157-158 , e Andra de, ob. e ed.cits., 196-a) ss,.maxime, 200.
(5) Ao autor caberia, por sua vez, a prova a que alude o nº3º do art.343º C.Civ.
(6) Antunes Varela e outros, " Manual de Processo Civil ", 2ª ed., 354.
(7) Como observa Rodrigues Bastos, " Notas ao CPC ", III, 65. É, de facto, assim que Mota Pinto, " Teoria Geral do Direi to Civil ", 3ª ed., 180, define ónus: como a necessidade de adopção de um certo comportamento para a realização de um interesse próprio (nomeadamente consistente em evitar determinado prejuízo).
(8) Abílio Neto, " CPC Anotado ", 15ª ed., reimp. (2000), 672, nota 2 ao art.502º. V., para melhor compreensão, Rui Manuel de Freitas Rangel, " O Ónus da Prova no Processo Civil " ( 2000 ), 272 ( 13.3.) ss, maxime, 275 (último par.-276 ).
A admissão - e não, propriamente, confissão - que no caso ocorre tem, nomeadamente, por efeito libertar a parte contrária do encargo do ónus da prova - idem, 280.
(9) V., bem assim, 145, 2ª col.-9., e 146-12. e 13. E também, quanto a juros, 146-14.-147.
(10) De que, no entanto, a 1ª instância transcreve com menos a-propósito a redacção actual visto que se trata de empréstimo anterior a 1/1/99 - v. 3., ( a ), supra, e art.28º do DL 343/98, de 6/11. Vale no caso a dada pelo DL 163/95, de 13/7. Bem assim, em obediência ao nº2ºdo art.446º CPC, a condenação em custas devia ter sido na efectiva proporção do vencido, e não, propriamente, a meias ( o que, por exceder o objecto do recurso, só incidentalmente fica notado ).