Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A4010
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: ENERGIA ELÉCTRICA
FORNECIMENTO
PREÇO
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ200701230040101
Data do Acordão: 01/23/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
- Quando o n.º 1 do art. 10º da Lei n.º 23/96 alude ao direito de exigir o pagamento, não se refere ao direito de o exigir judicialmente, mas o de interpelar o devedor para pagar através da apresentação da factura prevista no art. 9º-1.
- Omitido, em tempo – seis meses -, este acto de interpelação, prescreve, reflexamente, o crédito do preço do serviço.
- Porém, apresentada tempestivamente a factura, exigiu-se o pagamento e não ocorreu aquele efeito prescricional, havendo que atender, então, ao prazo de extinção do crédito cominado no C. Civil (art. 310º).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - “EDP Distribuição – Energia, S.A.” intentou acção declarativa contra “M... – Estamparia Têxtil, S.A.”, reclamando o pagamento das quantias de € 38 763,68, relativos ao preço de energia eléctrica fornecida e não paga, de € 4 818,43 de juros vencidos e juros vincendos, á taxa legal.

A Ré contestou e arguiu a excepção peremptória da prescrição do crédito peticionado.

No despacho saneador, a Ré foi absolvida do pedido com fundamento na invocada prescrição, decisão que a Relação, por remissão, manteve.

A Autora interpôs recurso de revista, pedindo a revogação do acórdão e a condenação da Ré no pedido, ao abrigo da seguinte síntese conclusiva:
- A Recorrente celebrou com a Recorrida um contrato de fornecimento de energia eléctrica à tensão de 15.000V, designada “média tensão”, designação técnica enquadrável noutra mais abrangente – “alta tensão (Dec. Reg. nº. 98/84, de 26/12 e n.º 1/92, de 18/2);
- A EDP forneceu a energia à Recorrida entre 1 e 30 de Abril e entre 1 e 31 de Maio de 2004, tendo-lhe remetido, para pagamento, duas facturas, uma no dia 1 de Maio de 2004 e a outra no dia 31 do mesmo mês, correspondentes ao referidos serviços;
- Não decorreu o prazo a que alude o n.º 1 do art. 10º da Lei n.º 23/96 entre o momento da entrega da energia e a interpelação da Recorrida para pagar o respectivo preço;
- A citada Lei diz que “ o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a prestação” e não diz que o serviço prestado prescreve no prazo de seis meses.
- Igualmente não decorreu o prazo a que alude a al. g) do art. 310º C. Civil entre o momento da prestação do serviço e a citação para a acção.
- Aos fornecimentos de energia eléctrica em “Alta Tensão”, neste conceito se abrangendo os fornecimentos em “Média Tensão” (entre 1 000 e 45 000 volts), “Alta Tensão” (entre 45 000 e 110 000 volts) e “Muito Alta Tensão” (superior a 110 000 volts), não é aplicável o regime de prescrição e de caducidade previstos nos n.ºs 1 e 2 do art. 10º da Lei n.º 23/96, por força do n.º 3 do mesmo dispositivo legal;
- O conceito de “Alta Tensão” do n.º 3 do art. 10º citado é utilizado numa acepção ampla, abrangendo indistintamente todos os valores que excedam a “Baixa Tensão”, e é aquele que melhor se enquadra na ratio da Lei 23/96, diploma que visou proteger essencialmente os pequenos consumidores;
- A aplicação das definições constantes dos diplomas legais publicados em 17/7/95, nomeadamente os DL 182/95, 184/95, 185/95 e 186/95, é neles expressamente restringida ao seu âmbito próprio;
- Se o legislador tivesse usado o conceito de “Alta Tensão” em sentido restrito, coerentemente e por maioria de razão, natural seria que do n.º 3 constasse igualmente o conceito de “Muito Alta Tensão”;
- Entre a “Alta Tensão” (em sentido restrito) e a “Média tensão” não se detectam traços distintivos (condições técnicas de fornecimento e perfil dos utentes) significativos de uma diferenciação de regime de preclusão dos créditos do fornecedor;
- Só a concepção ampla de “Alta Tensão”, abrangendo a “Média tensão” e a “Muito Alta Tensão”, por contraposição a “Baixa Tensão” (tipologia bipolar), permite delinear de forma adequada o âmbito de exclusão do n.º 3 do art. 10º,
- Tal interpretação é a única compatível com os limites do princípio constitucional da igualdade, enquanto proibição do arbítrio.

A Recorrida apresentou contra-alegações, em defesa do julgado.

2. - Como decorre do conteúdo das conclusões da Recorrente, propõe-se a resolução de duas questões sucessivas:

- A primeira, de saber se o direito ao preço da energia fornecida pela Recorrente à Recorrida se encontra prescrito, por terem decorrido mais de seis meses desde a apresentação das respectivas facturas até à citação da R. para esta acção, ou seja, o prazo prescricional extintivo estabelecido no n.º 1 do art. 10º da Lei n.º 23/96, de 26/7;
- Depois, a de saber se a aplicação do regime do preceito está excluída, nos termos do seu n.º 3, por dever aplicar-se apenas aos fornecimento de energia em “baixa tensão”, conceito a contrapor ao de “alta tensão” a que a norma retira aplicabilidade.

3. – Factos.

Vem definitivamente assente a seguinte factualidade:
- A A. dedica-se à aquisição transporte e distribuição de energia eléctrica;
- No exercício da sua actividade, celebrou com a R. o “contrato de fornecimento de energia eléctrica” para abastecimento das instalações industriais desta, à tensão de 15 000 volts (tensão média), com potência instalada de 1 000,00kva;
- Em execução desse contrato, a A. forneceu à R. energia eléctrica nas quantidades e tarifas que constam das facturas juntas a fls. 15 e 18, uma de 01/05/2004 e outra de 31/05/04, no valor, respectivamente, de € 22 798,04 e € 28 123,12;
- Tais facturas foram enviadas à R. para pagamento nas respectivas datas, delas constando o prazo de pagamento;
- A Ré não as pagou;
- Em 01/06/2004, a R. denunciou o contrato de fornecimento que, desde 1987, mantinha com a A., passando as suas instalações a ser abastecidas por outra empresa distribuidora de energia eléctrica;
- A A. reclamou várias vezes, junto da R., o pagamento da quantia em causa (capital + juros), no montante global de € 51 135,46;
- Da Seguradora que garantira o pagamento dos fornecimentos, a A. logrou cobrar a quantia de € 12 247,48;
- Em 15/3/05, a R. apresentou à A. proposta de pagamento do valor da energia em dívida e dos juros de mora calculados até 31/7/04, em quatro prestações mensais, com início em 31/3/05, proposta que a A. aceitou, o que, no mesmo dia, comunicou à R.;
- A R. não efectuou o pagamento de qualquer das prestações por si propostas e aceites pela EDP.

- A citação da R. teve lugar em 21/9/05.

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - A prescrição. Âmbito de aplicação do n.º 1 do art. 10º da Lei n.º 23/96.

4. 1. 1. - Trata-se, como dito, de saber se o prazo de extinção do direito da Autora de exigir judicialmente o pagamento se extingue por prescrição decorridos que se mostrem seis meses sobre a data do fornecimento, como vem decidido, ou se esse prazo de seis meses se refere apenas ao lapso temporal entre a prestação dos serviços e a apresentação da respectiva factura, extinguindo-se o direito de exigir o pagamento através dessa apresentação, mas, sendo apresentada, é, a partir de então, aplicável o prazo prescricional previsto no C. Civil, como sustenta a Recorrente.
Como variante da primeira posição, cabe ainda o entendimento segundo o qual, havendo apresentação tempestiva da factura, a prescrição tem lugar decorridos que sejam seis meses sobre essa apresentação, funcionando este acto como interruptivo do prazo prescricional de seis meses previsto na norma.

Está em causa a interpretação e conjugação do preceituado nos art.s 10.º-1 da Lei nº 23/96, de 26/7 e 310.º-g) do C. Civ., matéria a que tanto a jurisprudência como a doutrina que se conhece vêm dando respostas diferentes, seja quanto à qualificação prescrição – presuntiva ou extintiva – seja quanto ao campo de incidência da norma daquele n.º 1
O relator desta peça teve já oportunidade de tomar posição sobre a matéria, em caso que versava a prestação de serviços de telefone, tendo então entendido que o prazo prescricional (de extinção do direito ao pagamento) era de seis meses contados da apresentação da factura, facto interruptivo da prescrição, como sugerido pelo n.º 5 do art. 9º do DL n.º 381-A/87, de 30/12 (Serviço de telecomunicações de uso público) – ac. R. P., de 20/6/2002, na apel. n.º 589/02 – posição que, agora, e fora dos específicos contornos do processo em que foi tomada, considera merecer ser revista.

4. 1. 2. - As facturas accionadas foram apresentadas ao Réu para pagamento antes de decorridos seis meses sobre a data da prestação dos serviços nelas discriminados e a citação, como a propositura da acção, tiveram lugar mais de um ano e menos de dois anos após a referida apresentação de cada uma das facturas.

Ninguém duvida de que através da Lei n.º 32/96 se teve em mente a protecção dos consumidores dos serviços neles referidos, como resulta das respectivas epígrafes: «... Mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais» e «Protecção dos utentes», respectivamente.
O fundamento do estabelecimento dum prazo prescricional "muito curto", escreve CALVÃO DA SILVA (RLJ 132.º-154), entronca na «chamada ordem pública de protecção ou ordem pública social, própria da reluzente temática da tutela do consumidor, tirado da necessidade de prevenir a acumulação de dívidas, que o utente pode (deve) pagar periodicamente mas encontrará dificuldades em solver se excessivamente agregadas».

Ponto é saber se o legislador, para satisfazer esse desiderato, para além de ter pretendido ver extinto o direito de exigir o pagamento do serviço mediante a apresentação da respectiva factura para além de seis meses sobre a data da sua prestação, quis ainda que o direito de exigir o preço de serviços titulados por facturas tempestivamente apresentadas se extinguisse também no mesmo prazo semestral, vale dizer, ter o legislador estabelecido um prazo novo e bem mais curto que o que se encontra previsto na al. g) do art. 310.º C. Civil.

Pronunciando-se sobre o tema, MENEZES CORDEIRO, depois de admitir que a lei visou proteger o consumidor, embora optando por fazê-lo “de modo indirecto, tutelando o utente em geral”, faz notar que “a Lei n.º 23/96 será uma boa lei se se aplicar com segurança e previsibilidade, elevando o nível dos serviços e tranquilizando os utentes. A lei que empole a litigiosidade social nunca é uma boa lei”, sendo que não se pode interpretar o art. 10º-1 pensando, apenas, nos serviços de telefones, em que há especiais facilidades de encontrar o preço, mas também nos outros, como a electricidade e água, em que o fornecedor pode precisar de tempo para efectuar as leituras, tendo-se entendido dar-lhes um prazo de seis meses, de modo que, se, então, “não houver factura, há prescrição”. Assim, se enviada a factura no prazo de seis meses, o direito de exigir o pagamento foi atempadamente exercido; depois, cair-se-á na prescrição dos arts. 310º-g ou 317º-b) C. Civil, conforme a qualidade da pessoa do devedor. (“Da Prescrição do Pagamento dos Denominados Serviços Públicos Essenciais”- “O DIREITO”, 133º).

Temos, assim, que o não envio da factura no prazo estabelecido no n.º 1 do art. 10º importa a prescrição do direito de a apresentar, de sorte que, se houver envio posterior, este não produz efeitos, designadamente como exigência de pagamento. Provada a tempestiva apresentação da factura, o direito de exigir o pagamento está eficazmente exercido, seguindo-se a prescrição de curto prazo prevista na lei civil.
A não ser essa a solução, cair-se-ia, pela extrema exiguidade do prazo, na situação de, perante leituras que, por quaisquer razões, não permitissem o envio da factura nos três ou quatro meses subsequentes à prestação do serviço, haver necessidade de instauração da acção em juízo simultânea ou quase simultaneamente com tal envio, a fim de evitar a prescrição, o que implicaria uma carga de litigiosidade com que certamente o legislador não terá querido onerar utentes, fornecedores e serviço.

Como se põe em relevo no douto parecer junto aos autos (da autoria dos Profs. RUI DE ALARCÃO e J. SOUSA RIBEIRO), cujas conclusões se sufragam, desempenhando a factura a função de liquidação do preço, valendo a sua apresentação como interpelação e fixação do prazo de cumprimento, este acto do fornecedor representa “um passo instrumentalmente necessário para a realização do direito ao preço”, donde que «apresentação da factura e exercício do “direito de exigir o pagamento ao preço do serviço prestado” são uma e a mesma coisa (…), devendo a norma ser lida como se dissesse: “direito ao preço prescreve se a respectiva factura não for apresentada dentro de seis meses após a prestação do serviço”.

A corroborar esse entendimento acorre a redacção inserta no n.º 2 do mesmo preceito em que, reportando-se a diferenças entre consumos facturados (com erro do fornecedor) e pagos e consumos realmente efectuados, se alude ao “direito ao recebimento da diferença de preço”, expressão bem diferente de “direito de exigir o pagamento”, e justificada pela diferença de situações contempladas pelas normas em confronto.
No mesmo sentido, embora respeitante ao fornecimento de serviços de telecomunicações, aponta o já aludido n.º 5 do art. 9º do DL n.º 381-A/97, ao estabelecer expressamente que “para efeitos do número anterior [de prescrição do direito de exigir o pagamento], tem-se por exigido o pagamento com a presentação de cada factura”, norma cuja aplicação deve estender-se ao demais serviços abrangidos pelo regime da Lei n.º 23/96, visto não se encontrarem razões justificativas de diferenciação de tratamento.

Resta, finalmente, deixar referido que o regime da perda do direito de exigir o pagamento do preço, se não for apresentada a factura dentro dos seis meses após a sua prestação, deixa, a nosso ver, suficientemente protegida a situação do utente e o seu interesse legalmente tutelado de não ser surpreendido com a exigência do pagamento de dívidas com que já não contaria, assegurados que ficam a relação de proximidade temporal entre a prestação do serviço e o cumprimento do encargo em que ele se traduz, bem sabendo com o que pode e deve contar sempre que o fornecedor o notifique para pagar no prazo de seis meses.

4. 1. 3. - Conclui-se, pois, com os Ilmos. Autores do parecer junto, que quando o n.º 1 do art. 10º da Lei n.º 23/96 alude ao direito de exigir o pagamento, não se refere ao direito de o exigir judicialmente, mas o de interpelar o devedor para pagar através da apresentação da factura prevista no art. 9º-1.
Omitido, em tempo, este acto de interpelação, prescreve, reflexamente, o crédito do preço do serviço.
Porém, apresentada tempestivamente a factura, exigiu-se o pagamento e não ocorreu aquele efeito prescricional, havendo que atender, então, ao prazo de extinção do crédito cominado no C. Civil, no caso, na al. g) do art. 310º – cinco anos -, dado o destino industrial do fornecimento.
No caso, o direito da Autora-recorrente a exigir judicialmente o pagamento do seu crédito, porque tempestivamente exercitado, visto ter apresentado as facturas no mês seguinte ao da prestação dos serviços e ter feito citar a Ré menos de um ano e meio depois, não se encontra extinto pela invocada prescrição.

4. 2. - Perante a posição tomada relativamente à primeira das questões enunciadas, mostra-se prejudicada, por desnecessidade, a apreciação da segunda, razão por que dela não se conhece – art. 660º-2 CPC.

5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, decide-se:
- Conceder a revista;
- Revogar o acórdão impugnado;
- Julgar improcedente a excepção da prescrição; e, na procedência da acção,
- Condenar a Ré no pedido e no pagamento das custas, quer das deste recurso, quer das devidas nas Instâncias.


Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Janeiro de 2007

Alves Velho (relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias