Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96A373
Nº Convencional: JSTJ00031074
Relator: CARDONA FERREIRA
Descritores: AUTO-ESTRADA
DANO CAUSADO POR ANIMAL
PROVA DA CULPA
ÓNUS DA PROVA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: SJ199611120003731
Data do Acordão: 11/12/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N461 ANO1996 PAG411
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 842/94
Data: 11/10/1994
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
Doutrina: Anot. de Sinde Monteiro. - RLJ A. 131, nº 3887/3888 (Jun./Jul.1998)
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 342 ARTIGO 487 ARTIGO 493 N1.
CPC67 ARTIGO 516.
DL 315/91 DE 1991/08/20 BLIII N1.
Sumário : I - Não evidenciada qualquer situação de responsabilidade objectiva ou de inversão de ónus da prova, cumpre ao lesado provar factos que permitam imputar o evento, a título de culpa, ao pretenso lesante.
II - O evento não é confundível com a imputação do mesmo.
III - O aparecimento de um cão numa auto-estrada não permite assacar responsabilidade à concessionária daquela via se não se demonstrar falta de cumprimento pela mesma concessionária das suas obrigações quanto a vedações e vigilância da mesma via.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. A, B, C, D,E e F propuseram esta acção, emergente de acidente de viação, pela comarca de Santarém, contra "Companhia de Seguros ..., S.A.,".
Basicamente, os autores invocaram um acidente de viação ocorrido em auto-estrada, por força do aparecimento de um cão; atribuindo a responsabilidade
à concessionária das auto-estradas e, daí, à ré seguradora, pediram a condenação desta a pagar, "pelo menos": aos quatro primeiros autores, 28452050 escudos; aos dois últimos autores, 13124044 escudos; e juros legais a partir de 4 de Novembro de 1991 até à data do pagamento (fls. 2 e seguintes).
A ré contestou (fls. 103 e seguintes).
A folhas 249 e seguintes, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente.
B "e outros, demandantes" apelaram (fls. 256).
Mas a Relação de Évora, através do Acórdão de fls. 254 e seguintes, confirmou a sentença.
Novamente inconformados, os apelantes recorreram, da revista, para este Supremo (fls. 262). E alegando, concluíram (fls. 277 e seguintes):
1) Em 26 de Novembro de 1991 (aliás, não foi Novembro mas, sim, Outubro) cerca das 16h00, ocorreu um acidente de viação ao Km. 72,9 da AE1, em Póvoa de Santarém, no concelho e comarca de Santarém;
2) Ao Km. 72,9 da AE1, surgiu um animal de raça canina a atravessar a faixa de rodagem quando o veículo EX por aí circulava;
3) O cão foi embater no rodado direito do veículo EX, enrolando-se sob o mesmo, estraçalhado pelo seu enrolamento entre o rodado direito da frente e o respectivo guarda-lamas do mesmo lado, o que lhe causou a morte;
4) Devido à situação atrás descrita, o condutor acabou por perder o domínio do EX;
5) Acabando por embater nos railes centrais da AE1;
6) E capotou de seguida;
7) Com esta factualidade provada na 1. instância, o Mmo. Juiz julgou a acção improcedente, com a "alegação" de que os autores não lograram provar que, à "Brisa", seja imputável, a título de omissão de obrigação, por inexistência ou insuficiência de provas, tenha tido culpa relativamente à produção do acidente;
8) E ainda, "pasme-se", por não se ter provado que o animal de raça canina que causou o acidente tivesse aparecido na faixa de rodagem devido a qualquer falta por parte da concessionária "Brisa", nomeadamente no bom estado de conservação das vedações;
9) Da hipotética não prova de um facto positivo não pode concluir-se a prova do facto contrário, isto é, da não prova de que as vedações não estavam em bom estado de conservação não pode concluir-se a prova de que a "Brisa" não violou o enquadramento legal existente para o efeito, ou seja, o n. 1 da base XXXV, n. 2 da base XXXIX, que o Decreto-Lei 315/91 "aprova o normativo legal" do contrato de concessão da construção, conservação e exploração outorgada à "Brisa", onde estão, inequivocamente, tipificadas as obrigações da concessionária, nomeadamente a escolha, da sua responsabilidade, da tomada de todas as medidas, em devido tempo, para impedir o tipo de acesso à AE, como o do caso em apreço;
10) Trata-se de uma doutrina aceite sem qualquer discussão, quer na doutrina portuguesa, quer na dos Países da "Comunidade Europeia";
11) Aliás, seria deveras estranho que, não provando os autores, um facto que lhes era favorável, como o Mmo. Juiz fundamentou na sua decisão, este pudesse concluir a prova do facto contrário, que a ré não só não provou, como nem sequer alegou, e que lhe interessava fazê-lo;
12) O douto Acórdão recorrido, em princípio, concorda "timidamente" com a fundamentação da sentença recorrida;
13) Pretendendo vencer essa "timidez" (insegurança)", ao reforçá-la, ou melhor, até sobrepô-la com a argumentação da falta de política legislativa para este tipo de situação, remetendo a questão para fora do âmbito dos Tribunais;
14) Valha-nos os Tribunais "superiores";
15) Pois o douto Acórdão da Relação de Évora, também ele, não poderia ter concluído como concluiu, pois isso significa alterar não só as respostas obtidas em sede de 1. instância, como dar como provado aquilo que o Tribunal de 1. Instância não ousou considerar provado;
16) Como já se disse, o douto Acórdão recorrido pretendeu encontrar-lhe outra justificação que é a fundamentação da ausência de política legislativa;
17) Salvo o devido respeito, este entendimento também não tem cabimento, porquanto a lei, à luz dos preceitos já invocados, define, inequivocamente, as obrigações contratuais cometidas à concessionária "Brisa";
18) É, pois, absolutamente claro que, à "Brisa", está cometida a responsabilidade de tomar, em devido tempo, todas as medidas necessárias para impedir o tipo de acesso à via da AE, como o em questão, já que a escolha dessas medidas é da sua inteira responsabilidade, uma vez que o contrato, em relação a esta matéria, ou seja, obrigações de resultado (bases XXXV e XXXIX) assim o prevêem e presumem;
19) Relativamente aos danos sofridos pelos recorrentes, a douta decisão da Relação de Évora reconhece-lhes toda a sua gravidade e de todos os seus elevados danos patrimoniais e não patrimoniais;
20) Danos, estes, que são da responsabilidade da recorrida "..., S.A", que é responsável pelas consequências do acidente por via do contrato de seguro titulado pela apólice emitida para o efeito, pelo qual assumiu a responsabilidade civil emergente de todos os danos causados a terceiros que circulam naquela via-AE1, resultantes do acidente ocorrido nas circunstâncias de modo e de lugar como o em apreço;
21) Isto porque é inequívoco que a presença de um cão na faixa de rodagem de uma AE supõe um risco imprevisível para o utente da AE que, ao pagar a portagem, torna a concessionária obrigada, pelo normativo invocado, entre outras a garantir a ausência de circulação de animais naquela via;
22) Não provou, nem alegou, a recorridas razões diferentes às obrigações impostas à concessionária que tivesse por objecto, precisamente, evitar aqueles riscos;
23) E vamos mais longe; nem o eventual argumento de caso fortuito ou força maior pode ser, aqui, invocado como argumento exculpatório, já que a concessionária não cumpriu aquilo a que está obrigada: impedir, através das condições adequadas, a incursão da circulação de pessoas e animais nas AE;
24) E, como se referiu, quer a sentença quer o Acórdão aqui recorrido deram como provada a ocorrência de danos graves - patrimoniais e não patrimoniais, nos recorrentes - emergentes do acidente de viação, na AE aqui em questão, resultantes da travessia imprevista de um cão naquela via, que foi embater, da forma já descrita, no veículo EX;
25) Por tudo o que se referiu, o douto Acórdão da Relação de Évora não poderia ter concluído, como concluiu, ao pretender dar como provado aquilo que a 1. instância considerou provado por exculpabilidade da concessionária "Brisa" mas, antes, argumentando a sua fundamentação na falta de política legislativa para esta questão;
26) Porém, mesmo admitindo que a Relação possa alterar a matéria em apreço, através da inoperância a partir de outra fundamentação, a verdade é que o douto Acórdão recorrido continua a carecer da razão;
27) A exculpabilidade da concessionária não pode, pois, fundar-se na ausência de política legislativa, padecendo o seu entendimento de falta de adequação de todo o enquadramento jurídico-normativo para a matéria em apreço, já citado;
28) Em síntese de tudo o que se vem referindo, não pode, seguramente, julgar-se pela exculpabilidade da concessionária "Brisa" e, como tal, de responsabilidade civil, por todos os danos ocorridos, da recorrida seguradora;
29) De qualquer forma, seria de todo insustentável a conclusão a que chegou o douto Acórdão da Relação de Évora;
30) Relativamente aos danos emergentes, por provados e reconhecidos de elevada gravidade, é adequada a apreciação daquele mesmo Acórdão, já que aceita isto expressamente.
Finalizando, repetindo, mais uma vez, as linhas básicas da sua argumentação e acrecentando referência ao artigo 26 do Código da Estrada de 1954 e ao artigo 483 do Código Civil, as recorrentes pedem revogação do Acórdão recorrido.
Houve breve, mas directa, contra-alegação, no sentido de improcedência do recurso (fls. 293).
Foram colhidos os vistos legais (fls. 295/295 v.).
II. O Acórdão recorrido assentou no seguinte circunstancialismo (fls. 255):
1) Cerca das 16h00 de 26 de Outubro de 1991, na Auto-Estrada do Norte, AE1, ao Km. 72,9 em Póvoa de Santarém, o veículo automóvel ligeiro misto EX, propriedade de B, conduzido por E circulava pela mencionada via;
2) Seguia no sentido Porto-Lisboa, pela metade direita da auto-estrada, na sua faixa de rodagem mais à direita, consoante o seu sentido de marcha e, ao chegar àquele local, procedente de local ignorado, surgiu um animal de raça canina a atravessar a faixa de rodagem quando o veículo, por aí, circulava;
3) Sendo o cão embatido pelo automóvel, enrolando-se sob o mesmo, de que resultou ter ficado totalmente estraçalhado, acabando por ter morte imediata;
4) Devido ao embate e enrolamento do animal sob o veículo, o condutor acabou por perder o domínio do mesmo, o qual foi embater nos railes centrais da AE1, acabando por capotar;
5) Uma das menores que circulavam no veículo foi cuspida do mesmo, ficando prostrada na berma;
6) Antes de embater no separador central da AE1, o veículo EX deixou no pavimento um rasto de travagem de 20m. em diagonal para a esquerda;
7) Depois de colidir no separador central, o mesmo veículo percorreu uma distância de 40m. em diagonal
à protecção metálica do lado direito da via atento o seu sentido de marcha e, depois de colidir com essa protecção metálica, ainda percorreu 31m.;
8) O veículo EX era ligeiro misto, todo o terreno, marca Range Rover ;
9) A autora B tinha, à data do acidente,
29 anos, a autora D 3 anos e o autor E 31 anos;
10) Os autores A e B são pais da autora C, nascida em 4 de Novembro de 1985, e da D nascida em 9 Fevereiro 1988;
11) A ré "..." é seguradora da responsabilidade civil da "Brisa-Auto Estradas de Portugal, S.A.", pelas indemnizações que, de conformidade com a lei, lhe possam ser exigidas como civilmente responsável pelos prejuízos e/ou danos causados a terceiros, na sua qualidade de concessionária da exploração, conservação e manutenção da "AE - Norte", troço Aveiras de Cima - Santarém - Torres Novas, nos termos da apólice 28096, até ao montante de 150000000 escudos por sinistro e por ano;
12) Em consequência do acidente, o veículo EX ficou, praticamente, destruído, de tal modo que a sua reparação não é, economicamente aconselhavél; estava, completamente, novo, havia sido adquirido em 30 de Outubro de 1990 por 5621599 escudos e apenas tinha percorrido cerca de 5500 Kms;
13) Na altura do acidente, o seu valor comercial era de 5000000 escudos;
14) A sua reparação, por desmontar, foi orçada em 3500000 escudos; aos salvados, foi atribuído o montante de 500000 escudos (por ostensivo lapso, no Acórdão recorrido parece ler-se 5000000 escudos - fls. 256);
15) O autor A é administrador de empresa;
16) A proprietária do veículo EX, desde 20 de Outubro de 1991 e, pelo menos, até 26 de Novembro de 1992, esteve privada da sua utilização;
17) A autora B despendeu 11935 escudos no transporte em ambulância do local do acidente para o Hospital de Santarém e, deste, para o Inglês, em Lisboa;
18) A autora B, proprietária do veículo EX, seguia no mesmo como passageira, à retaguarda, conduzido por E e, em resultado do acidente e dos ferimentos que apresentava, foi transportada ao Hospital de Santarém, de onde foi transportada e na mesma data, para o Hospital Inglês, em Lisboa;
19) Em consequência do acidente, sofreu uma ferida incisiva no lábio superior na região naso-labial direita, com 3 cm. de comprimento e com secção total do músculo orbicular dos lábios, ferida incisa do mento vertical, com 2 cm. de comprimento, múltiplas abrasões da face, nariz e testa, abrasão e perda de substância de tecidos moles na região dorsal da mão direita, múltiplas abrasões nas regiões articulares dos membros inferiores, traumatismo da coluna cervical e fractura dos arcos costais 9, 10 e 11, em razão das quais foi submetida a intervenção cirúrgica sob anestesia geral com duração aproximada de 02h30, só vindo a ter alta hospitalar em 30 de Novembro de 1991, mas prosseguindo em regime de convalescença pós - operatória, apoiada por fisioterapia das lesões cicatriciais;
20) Mas, apesar de todos os tratamentos a que se submeteu, são de prever cicatrizes do lábio e mento;
21) Apresenta cicatrizes definitivas com dano estético muito ligeiro;
22) A B, em consequência dos ferimentos e tratamentos a que foi submetida, sofreu dores;
23) A autora C também era transportada como passageira no veículo e, em consequência do acidente, sofreu abrasão extensa da região nadegueira direita e coxa direita, que lhe causaram dores;
24) A autora D também sofreu "as lesões descritas no documento de fls. 7" (deve-se ter querido dizer documento n. 7), sendo transportada, igualmente, como passageira, no veículo, sendo aquelas uma abrasão muito profunda da hemiface esquerda com perda de substância, abrasões superficiais da testa, nariz e lábio, múltiplas feridas incisas da coxa direita com perda de substância, ferida incisa e abrasão do joelho esquerdo e múltiplas escoriações nas regiões articulares dos membros superiores e inferiores e, em razão delas, em 26 de Outubro de 1991, foi submetida a uma cirurgia que demorou cerca de 4 horas, sob anestesia geral, em que foram efectuadas suturas e pensos nas feridas e aborções cutâneas;
25) O autor E, condutor do veículo, também sofreu danos patrimoniais, em consequência do acidente e despendeu, em tratamento,
502944 escudos;
26) O autor E, em consequência do acidente, sofreu lacerações e perda de substância do 4. e 5. dedos da mão esquerda, feridas incisas e perda de substância do 4. e 5. dedos da mão direita e escoriações várias nos membros superiores e, em consequência destas lesões, foi submetido a uma intervenção cirúrgica, em 26 de Outubro de 1991, sob anestesia geral, em que foram suturadas as feridas das mãos e efectuados retalhos de deslizamento para cobertura das áreas com perda de substância localizadas nos 4. e 5. dedos de ambas as mãos e, ainda, inserido um fio de Kirsner no 5. dedo da mão esquerda, acabando por ter alta hospitalar em 27 de Outubro de 1991, prosseguindo em tratamento pós- -operatório em regime ambulatório;
27) Apresenta limitação dos movimentos de extensão da 2. articulação inter-falângica do 5. dedo da mão direita (articulação em flexão permanente) e ligeiro desvio, para dentro, do eixo da última falange do
5. dedo da mão esquerda, a que corresponde uma desvalorização de 2%;
28) Apresenta, ainda, amputação da falange digital do 4. dedo da mão esquerda, cicatrizes hipertróficas do 4. dedo da mão direita e do 4. e 5. dedo da mão esquerda;
29) As sequelas anátomo-funcionais conferem-lhe uma incapacidade geral permanente parcial de 5%;
30) O autor E, em consequência das lesões que sofreu e dos tratamentos que lhe foram ministrados, teve dores;
31) A autora F também seguia como passageira no veículo acidentado conduzido pelo E;
32) A autora F gastou, em tratamentos,
5100 escudos;
33) A autora F, em consequência do acidente, sofreu um traumatismo da coluna cervical, tendo sido submetida a tratamento clínico adequado, prosseguindo o mesmo em regime de tratamento ambulatório;
34) A autora F, em consequência das lesões e do tratamento, sofreu dores;
35) O autor A e a autora B, pelos tratamentos desta e das suas filhas C e D, pagaram 1369115 escudos;
36) O autor A, à data do acidente, encontrava-se em Itália;
37) G esteve alojado no Hotel Tivoli, em Lisboa, desde 28 de Outubro de 1991 a 5 de Novembro de 1991 e, com a estadia, despendeu 390265 escudos;
38) E, com a estadia em Lisboa, no Hotel Tivoli, desde 28 de Outubro de 1991 a 5 de Novembro de 1991, despendeu 393100 escudos.
III. Da perspectiva genérica:
Quantas vezes temos dito que, frequentemente, as seguradoras não agem de acordo com a sua função e protelam injustificadamente as causas, prejudicando a oportuna realização dos direitos das pessoas lesadas.
Mas tudo tem limites.
O caso vertente é um daqueles em que é patente a razão da seguradora (recorrida), espelhada na singela, mas adequada, contra-alegação; enquanto que a autores, aliás no uso de direitos processuais e, sem dúvida, vítimas de um acontecimento malfadado, acrescentam aos seus incontroversos padecimentos, mais um recurso que, tendo de ser julgado conforme a lei, mormente substantiva, aplicável e os factos disponíveis, não permite atribuir-lhes indemnização.
Porventura o permitiria outro tipo de seguro, de cariz pessoal, mas não é isso que está em causa.
Há casos em que cidadãos objectivamente prejudicados por certos acontecimentos têm dificuldade em compreender as decisões judiciais, quer por força dos seus compreensíveis traumatismos, quer porque o conhecimento geral das leis cada vez mais é uma ficção - mas os Tribunais estão, por elas, limitados (artigo 206 da Constituição) - quer porque desvalorizam algo que é determinante: os Tribunais não são adivinhos ou arbitrários: só podem julgar conforme os factos provados no respectivo processo.
Não podem pôr-se a inventar como teriam sido os factos; estão limitados pelos que as partes logram provar, quantas vezes menos do que acontecem. Mas pôr-se a adivinhar não devem, nem podem, sob pena de tudo se transformar numa completa insegurança do comum das pessoas. Isso é ainda mais patente num Tribunal, como este, que, por princípio, não julga de facto.
Expliquemo-nos mais concretamente, ainda que procurando dizer, apenas, o necessário e suficiente.
IV. Do enquadramento jurídico básico:
Nada é possível decidir, se nos perdermos em conjecturas ou perturbações, aliás compreensíveis, perante respeitáveis estados dolorosos.
Mas, assim como o médico, antes de optar por uma terapêutica, tem de fazer um diagnóstico e, tanto quanto for adequado ao casuismo da situação, comunicá-lo-à ao doente, também os Tribunais se perderão em circunlóquios inoperantes se não começarem por definir o que tem de ser o enquadramento do problema a resolver.
Ora, aqui, estamos no campo da responsabilidade civil extra-contratual (que seria relativa à "Brisa") a qual, a confirmar-se, se teria transferido, contratualmente, para a respectiva seguradora.
Isto implica que se tenha presente algo que é tão simples quanto importante e de pacífico entendimento: no estádio actual legislativo português, em princípio, só há responsabilidade civil se se verificarem, simultaneamente, estes elementos: facto; ilicitude; dolo ou culpa; dano; nexo de causalidade. Também como é, comummente, sabido, só é possível exigir responsabilidade sem prova de culpa nos casos excepcionais previstos nas leis (o que não é o caso vertente): artigo 483 do C. Civil; v.g. Prof. A. Varela, "Das Obrigações em geral", I - 2. edição, 403 e seguintes).
Porventura se deveria caminhar mais afoitamente para a protecção do lesado e, portanto, para a responsabilidade objectiva ou, pelo menos, para mais situações de presunção de culpa (que também não é o caso "sub judice"). Mas as leis são como são e todos as devemos observar e cumprir.
V. O que há neste caso:
Manifestamente, o doloroso caso vertente evidencia, seguramente, elementos significativos do instituto da responsabilidade civil.
Aliás, nem se discutem vários factores a que, genericamente, já aludimos: quer o facto, ou seja, o acidente, motivado pelo aparecimento de um cão; quer a contrariedade à lei consistente neste aparecimento (artigo 26 n. 2 do C. Est. de 1954); quer os danos, muito significativos; quer o nexo de causalidade entre o evento e os danos.
Relembremos, então que os pressupostos da responsabilidade civil são exigíveis cumulativamente.
E que, não se discutindo dolo, nem sendo caso (excepcional) de responsabilidade objectiva, resta saber se o facto é imputável, à "Brisa", a título de culpa.
VI. Terá havido culpa da "Brisa"?
VI.1- Claro que a "Brisa" é uma pessoa colectiva ou, seja, juridicamente, um ente autónomo, que não é pessoa humana. Mas, por isso mesmo, quando se pergunta se houve culpa da "Brisa", questionamo-nos sobre se as pessoas humanas que agem, ou devem agir, em seu nome, procederam culposamente.
Tudo está, a este respeito, no aparecimento do canídeo na auto-estrada aludida. Isso é imputável, a título de culpa, à "Brisa"?
Ao insistirem nesta hipótese, junto do S.T.J., as recorrentes incorrem em uma perspectiva inadequada porque, pensando na linha do que já referimos, se afastam do enquadramento básico, desde logo dos limitados factos que ficaram provados acerca do evento, sabido como é que o S.T.J., por princípio, não é, tecnicamente, uma 3. instância, não lhe competindo julgar de facto, salvo situação excepcional que a lei prevê e não vem ao caso (artigo 729 do C.P.C.).
Por outro lado, e como não é demais frisar, mesmo os termos das bases aprovadas pelo Decreto-Lei 315/91, de 20 de Agosto, não prescrevem responsabilidade objectiva, nem sequer inversão do ónus da prova, como pareceria ser a tese das doutas alegações dos recorrentes.
Nem sequer podemos fazer como os romanos, optando pelo diferimento do "non liquet". Temos de decidir na base das regras sobre ónus da prova, designadamente estas:
Artigo 342 do C. Civil:
"1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. ...
3. ..."
Artigo 487 do C. Civil:
"1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
2. ..."
Artigo 516 do C.P.C.:
" A dúvida sobre a realidade dum facto e sobre a repartição do ónus da prova revolve-se contra a parte a quem o facto aproveita".
Rios de tinta têm corrido para se dissertar sobre o que é e como apurar culpa.
De todo o modo, a culpa reflecte, sempre, um juízo de reprovação de alguém, que fez o que não devia ou não fez o que devia, tudo, naturalmente, conjugado com os demais pressupostos da responsabilidade civil (entre outros, v.g., Prof. A. Varela, obra citada, 442 e seguintes).
Daqui decorre, em linha recta que, só poderia imputar-se o aparecimento do canídeo à "Brisa" se se devesse a acção ou omissão desta o aparecimento daquele cão exactamente conforme o alcance das normas especiais que as recorrentes citam: as bases XXXV n. 1 e XXXIX n. 2 do texto aprovado pelo Decreto-Lei 315/91, de 20 de Agosto.
É que nós não estamos a tratar de abstracções ou de estudos académicos.
Temos de solucionar um caso concreto.
VI. Repete-se, estamos no campo da culpa.
Logo e embora, decerto, na base das obrigações da concessionária a que se reportam aquelas bases legais, os autores, ora recorrentes, tinham ónus de prova dos actos ou omissões da "Brisa" contrários àquelas obrigações, conectados com o aparecimento do canídeo.
Não se confunda o aparecimento do canídeo com acto ou omissão da "Brisa". Claro que o canídeo não surgiu do céu ou do inferno! O problema é saber se dispomos de elementos que permitam atribuir à "Brisa" aquela situação. Por exemplo: Está provado que alguém da "Brisa" viu o cão e o deixou na auto-estrada.
Está provado que a "Brisa" não efectuou vigilância da auto estrada? Está, ao menos provada falta ou inadequada vedação? E tenha-se o realismo para reconhecer que fazer vigilância não é - porque nada o impõe - ter, permanentemente, vigilantes, à vista uns dos outros, em todas as auto-estradas.
Ora, nada, no elenco factual disponível, permite imputar à "Brisa" o aparecimento do canídeo. Até poderia ter sido escorraçado pelo seu dono como, malfadadamente, acontece. Poderia ter surgido dos mais diferentes sítios. Como? Não sabemos.
A "Brisa" não fez vigilância? Não se sabe.
Repete-se: não se confunda o evento com a sua causa.
Mesmo quanto a vedação, nada indica que não estivesse em termos adequados ou que algo que assim não fosse podia ter sido verificado oportunamente.
VI. 3. Tudo vem, afinal, a radicar na base LIII n. 1 aprovada pelo Decreto-Lei 315/91 que, aliás, os próprios recorrentes citam: este normativo remete a problemática da responsabilidade civil, no âmbito da concessão à "Brisa", para os "termos da lei", o que vale dizer para as regras gerais, donde não haver responsabilidade objectiva, nem sequer inversão do ónus de prova decorrente daquelas bases, no caso em apreço.
A norma através da qual haveria inversão do ónus de prova seria uma outra que os recorrentes nem citam: o artigo 493 n. 1 do C. Civil: quem tiver a detenção de animal é responsável pelo danos que este provoque, salvo se provar que não teve culpa ou que os danos teriam ocorrido mesmo que não houvesse culpa sua. É uma responsabilidade "ex re", contrária ao que resultava do C. Civil de 1867 (Conselheiro Abel Delgado, "Da responsabilidade Civil por danos causados por coisas ou animais", 16; Profs. A. Lima e a A. Varela, "Anotado", I - 4. edição, 495).
Independentemente destas considerações, dizer que o cão veio de uma vedação é algo que não tem qualquer base nos factos provados de que dispomos; como é certo que a base XXIII n. 11 alínea a) das regras a que nos temos referido fala de vedação em extensão e não em altura ou material e, portanto, só isso exigiria uma concretização que não foi feita para algo se poder inferir. Aliás, nessa base, estar-se-ia perante juízo de facto e, como tal, da competência das instâncias (cfr. Prof. A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, "Manual de Processo Civil", 2. edição, 408).
De todo o modo, repete-se, nada, no elenco factual disponível, indica qualquer tipo de deficiência na vedação (ou onde).
Aliás, para além de considerações genéricas quanto a obrigações da concessionária, nem a petição dos autores indicava já qualquer omissão ou acção concreta, parecendo que entendiam que, à luz da legislação aplicável, o evento consistente no aparecimento do animal se confundia com outro pressuposto da responsabilidade civil, a imputação à concessionária.
E tal não é confundível.
Outrossim, não se trata, nem poderia tratar-se, de se considerar assente que não houve falha da "Brisa"; trata-se, sim, de que não ficou, facticamente, assente que tivesse havido. É um problema jurídico de ónus da prova, conforme já frisado, posto que, para além do n. 1 do artigo 493 do C. Civil, neste campo, não temos possibilidade, "lege constituta", de nos basearmos em inversão de ónus da prova, tanto quanto resulta da lei que nos compete observar.
Respeitando embora qualquer outro entendimento, à luz da lei portuguesa, a procedência desta acção exigia factualidade demonstrativa de imputação concreta do evento à "Brisa", ao menos através de algo genérico, mas real, em que pudesse radicar a ocorrência. Ou seja, por exemplo, se tivesse ficado provada deficiência de vedação ou não vigilância, porventura poderia ter sido extractado um juízo de facto. Mas não é o caso.
VII. Resumindo, para concluir:
1. Não evidenciada situação de responsabilidade objectiva ou de inversão de ónus da prova, o lesado tem ónus de prova de factos que permitam imputar o evento, a título de culpa, ao alegado lesante.
2. Não se pode confundir o evento com a imputação do mesmo.
3. O aparecimento de um cão numa auto-estrada, à luz da lei portuguesa, só por si, sem o mínimo indício fáctico da razão desse aparecimento, não permite assacar responsabilidade à "Brisa", mormente quando nada nos diz que a "Brisa" não cumpriu o que lhe competia, designadamente quanto a vedações e vigilância exigíveis.
VIII. Donde, concluindo:
Acorda-se em negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 12 de Novembro de 1996.
Cardona Ferreira.
Herculano Lima.
Aragão Seia.