Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P3199
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SORETO DE BARROS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
Nº do Documento: SJ200804230031993
Data do Acordão: 04/23/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - O regime de suspensão da execução da pena previsto no art. 50.º do CP na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, é claramente mais favorável do que o anterior, desde logo porque veio possibilitar a aplicação do instituto em casos em que a lei anterior não permitia (condenações em pena de prisão até 5 anos, quando, na redacção anterior, a suspensão de execução da pena de prisão estava prevista para penas aplicadas em medida não superior a 3 anos), estando sujeito à disciplina do art. 2.º, n.º 4, do CP.
II - Contudo, sendo esta uma questão recente que não teve oportunidade de ser colocada nem pela 1.ª instância nem pela Relação, são escassos os elementos susceptíveis de fundamentarem a decisão, não dispondo este STJ sequer de relatório social actualizado que sirva de ponderação à aplicabilidade de pena de substituição. Assim, devem os autos ser remetidos à 1.ª instância para que tenham lugar as diligências de prova reputadas úteis, com o único propósito de se decidir se deve, ou não, ser aplicada a pena de substituição de execução da pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 172.º, n.º 1, na forma continuada, agravado pelo art. 177.º, n.º 1, ambos do CPP.

Decisão Texto Integral:

1. AA, identificado nos autos, recorre do acórdão de 25.05.05, do Tribunal da Relação de Guimarães, que negou provimento ao recurso interposto (pelo arguido) do acórdão de 09.07.04, do Tribunal da Comarca de Barcelos (proc. n.º 837/03), que, em síntese, tinha decidido :

- Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, na forma continuada, agravado pelo artigo. 177º, nº 1, al. a) todos do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão .

- Absolver o mesmo arguido pelos restantes crimes por que vinha acusado;

- Condenar o demandado civil AA a pagar à requerente BB, legalmente representada pela sua mãe CC, a quantia de 20.094,24 Euros (vinte mil e noventa e quatro euros e vinte e quatro cêntimos), acrescidos de juros, calculados à taxa legal de 4%, até integral pagamento contados desde a citação quanto à quantia de 99,24 Euros e desde a notificação desta decisão quanto ao restante . (fls. 342)

1.1 O recorrente termina a motivação com as seguintes conclusões :
1-) Nos textos das decisões recorridas é assumido e claramente dito que, para além do que se retira e se vê objectivamente das lesões que a ofendida menor BB apresentou no exame genital feito no Instituto de Medicina Legal do Porto, fls. 15 e 16 dos autos, as decisões em causa socorreram-se essencialmente das declarações e explicações da mesma ofendida.
2-) As referências da menor ofendida aos factos e a sua imputação ao pai são mensagens curtas, desprovidas de grandes pormenores e susceptíveis de serem induzidas pela mãe e pelos familiares.
3-) As imputações feitas pela menor ao pai aconteceram apenas vários meses depois do divórcio entre este e a mãe da mesma menor, CC, e quando já era público que o recorrente era acompanhado por outra mulher.
4-) Antes disso, nunca se suscitaram quaisquer notícias de abuso sexual nem sequer a mais pequena das suspeitas .
5-) O exame da BB no Instituto de Medicina Legal revelou uma escoriação na vagina, meramente compatível com abuso sexual feito com dedo.
6-) A menor BB era débiI, usava fraldas, coçava-se frequentemente e era tratada, havia mais de um ano, pelo seu médico de família, Dr. DD, onde apresentava inflamações, comichões e edemas na vagina, que foram sempre considerados e tratados pelo referido médico, e havidos naturais nas crianças como a BB.
7 -) O exame feito pela BB no Instituto de Medicina Legal foi feito a pedido de outro médico, que não o seu médico assistente, concretamente foi pedido tal exame pelo médico, Dr. EE.
8-) Esse exame apenas foi pedido porque a mãe e irmã gémea, FF, e ainda uma vizinha procuraram esse médico, anunciando-lhe que a menor fora abusada sexual peIo pai, o recorrente, pela introdução de dedos na vagina da menor.
9-) O médico assistente, Dr. DD foi preterido para tal fim e não deixou, ele mesmo, de estranhar que tais factos só tenham chegado ao seu conhecimento meses depois de o divórcio acontecer.
10-) A mãe da menor necessitou de acompanhamento de psicóloga, exactamente por ter sofrido tempos de depressão em consequência do divórcio e da instabilidade e impacto que o mesmo gerou, não obstante ter sido ela a pedir o mesmo divórcio.
11-) Considerou a mãe da menor que "não se sentia amada" e que o recorrente "sempre lhe foi infiel" .
12-) A mãe da menor BB, no período pós-divórcio, dificultou sempre os contactos desta com o pai, negando-os, por vezes, mesmo aos sábados, dias destinados à companhia do pai por força do processo de Regulação de Poder Paternal que vigorava entre eles.
13-) É da experiência comum, de todos os dias, vivida nas aldeias e cidades deste país que os processos litigiosos de Regulação de Poder Paternal estão repletos de malévolas alegações de abusos sexuais sobre os filhos, sobretudo das mães contra os pais, e quase sempre com sucesso, estando tais aIegações em verdadeira moda de há 4 ou 5 anos até ao presente.
14-) É da experiência comum, todavia, que mais de 90% de tais acusações são falsas e não passam de tentativas de destruição da pessoa do outro, desviando-o da convivência com os filhos, tudo acontecendo, aliás, sem consequências para os delatores .
15-) O recorrente defende-se neste processo e desde o seu início, negando veemente as imputações e considerando-as malévola trama e invenção da mãe da menor, orquestrada com a família, sobretudo a irmã gémea, tia da BB, de nome FF.
16-) Perante os factos, que assim resultam do texto das decisões recorridas, conjugadas com a referida experiência comum, a matéria provada revela-se claramente insuficiente para a decisão que condenou o recorrente, vício a que se alude no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal.
17-) Nos termos e à luz daquela experiência comum e mesmo por consideração da inegável moda com sucesso garantido das imputações malévolas de abuso sexual de menor que têm "invadido" o país, não pode deixar de relevar a dúvida que, não se revelou nunca ultrapassada, quanto à génese dos factos probatórios e à forma como tais factos foram obtidos.
18-) Essa dúvida terá de beneficiar o recorrente, que terá de presumir-se inocente, beneficiando do principio "in dúbio pro reo".
19-) Embora se aceite que o princípio "in dúbio pro reo" seja um princípio de prova, não é de excluir do poder cognitivo desse Alto Tribunal - por ser matéria de direito - a indagação do modo como se obteve o acervo factológico em que nas instâncias se assentou a condenação do recorrente e, consequentemente, o poder cognitivo sobre a inerente violação que aqui se invoca daquele princípio de que o recorrente não pode deixar de beneficiar.
20-) A apreciação deste principio, com o alcance referido, não contende com os princípios da livre apreciação da prova e da livre convicção do julgador, sendo inconstitucional a interpretação do artigo 127º do Código Penal que veda aquela apreciação do princípio em causa.
21-) Nos termos e pelas razões expostas, deve, pois, ser revogado o acordão proferido e em revista, substituindo-se por outro que absolva o recorrente.
22-) Caso assim não venha a ser entendido por esse Venerando Tribunal, sempre a pena se deverá considerar excessiva, devendo a mesma ser reduzida para tempo de prisão nunca superior a 3 anos, que deverá ser suspensa na sua execução.
23-) De facto, provou-se de forma concludente e com o pleno reconhecimento das instâncias, que o recorrente, sendo ainda um jovem de 33 anos, goza de grande consideração e estima no seu meio, sendo respeitado e conceituado socialmente, considerado trabalhador assíduo e competente, estando bem inserido no meio social em que vive.
24-) Provou-se que o recorrente não tem antecedentes criminais e também não há qualquer notícia da prática de qualquer conduta criminosa depois dos factos por que foi condenado.
25-) Mesmo depois da data de tais factos, continuou o recorrente a gozar do mesmo respeito e consideração pessoal e social no seu meio, sendo que aqueles que com ele convivem, designadamente o próprio Presidente da Junta de Freguesia, continuam a não acreditar na prática pelo recorrente dos factos por que foi condenado.
26-) Não se mostra, pois, quanto ao recorrente, que na sua Freguesia, tenha sido alvo de reprovação que, natural e justamente, aliás, acompanha normalmente estes casos.
27-) Tudo o exposto conduz a que ao arguido deva ser aplicada uma pena não superior a 3 anos de prisão, sendo a sua execução suspensa, nos termos do artigo 50º do Código Penal, esta, porventura condicionada, nos termos dos artigos 51º, 52º e 53º do mesmo Código, por ser de considerar que, no caso, a simples ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
28-) Nos termos expostos, os doutos acórdãos recorridos violaram, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 50º, 51º, 52º, 53º, 71º nº 1, 172º nº 1 e 177º nº 1 alínea a) todos do código Penal e ainda o disposto nos artigos 127º e 140º nº 2 alínea a) do Código [de Processo] Penal e ainda o que se prescreve no artigo 32º nº 2 da C.R.P. .

Termos em que o douto acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que absolva o recorrente.
Caso, porém, assim não venha a ser entendido deverá a pena aplicada ao recorrente ser reduzida para tempo não superior a 3 anos de prisão, devendo a mesma ser suspensa, ainda que de forma condicionada por qualquer dos meios previstos nos artigos 51º, 52º e 53º do Código Penal. (fim de transcrição)

1.2 O recurso foi recebido com subida imediata, nos próprios autos, com efeito suspensivo . (fls. 598)

1.3 O Ministério Público defendeu a improcedência do recurso, fechando com as seguintes conclusões :

1. A factualidade dada como assente deverá manter-se intangível pois que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, não resulta a verificação de um qualquer dos vícios previstos no nº2 do art. 410 do CPPenal, mormente o invocado pelo recorrente, o da insuficiência dos factos para a decisão, pois que aquela resultou de uma indagação aturada e completa e preenche todos elementos típicos do crime imputado ao arguido.
2. Para além de o STJ, conforme dispõe o art. 434 do CPPenal, conhecer apenas e só de direito.
3. Não viola o acórdão criticado o princípio in dubio pro reo pois que em momento algum o julgador aportou a uma situação de incerteza, de oscilação, e diante dela posicionou-se contra o arguido; ao invés logrou alcançar uma certeza jurídica consolidada e justificada racionalmente na prova produzida em audiência, tendo em vista o disposto no art. 127 do CPPenal.
4. A pena encontrada é equilibrada e justa e nada justifica a sua diminuição e decretamento da suspensão da execução da pena de prisão pois que, estando em causa um crime de abuso sexual de criança, agravado, "não pode o sistema jurídico-penal dar outra resposta que não seja um inequívoco sinal de segurança, enfim, proporcionando porto de abrigo a quem dele tão veementemente mostra necessitar: as crianças", não podendo o quantum da pena indispensável pôr irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade daquela norma punitiva.
5. Por não ter violado qualquer normativo legal, nenhuma censura merece o acórdão colocado sub judice. (fls. 603 a 610)

2. Realizada a audiência, cumpre decidir .

2.1 A matéria de facto dada como assente pelas Instâncias é a seguinte :

1. O arguido casou com CC em 23 de Agosto de 1997, havendo desse matrimónio uma filha, BB, nascida em 15.7.1999 na freguesia de Milhazes, concelho de Barcelos.

2. Em 8.7.2002. por sentença já transitada em julgado, o arguido divorciou-se da CC, tendo sido anteriormente, por decisão de 21.12.2001, regulado o exercício do poder paternal relativamente àquela filha.

3. Essa decisão determinou, de entre o mais, a entrega da menor à guarda e cuidados da mãe, podendo o arguido visitá-la durante os dias da semana, entre as 18 e as 20 horas, e tê-la consigo aos Sábados, entre as 10 e as 19 ou 20 horas, consoante fosse Inverno ou Verão.

4. Desde o mês de Janeiro de 2002 que o arguido, à hora sobredita de Sábado e com intervalos, ia buscar a filha a casa da mãe, levando-a consigo em passeio, de carro ou a pé, por locais deste concelho de Barcelos e também para casa de seus pais, sita no lugar da Malhadoura, freguesia de Milhazes, concelho de Barcelos, onde vive.

5. Desde inícios do mês de Abril de 2003 até 21 de Junho de 2003, o arguido foi buscar a filha a casa da mãe aos Sábados pelo menos por quatro vezes e levou-a para casa dos pais.

6. Em, pelo menos, uma dessas ocasiões, em data concreta não apurada mas durante o referenciado período de Abril a 21 de Junho de 2003, que acresce à ocasião que adiante se referirá relativa a 21 de Junho de 2003, o arguido, quando estava a sós com a filha, em local não apurado, mas dentro de uma habitação, num quarto de dormir, mostrou à BB, enquanto ela estava deitada numa cama, o seu pénis, enquanto lhe introduzia, pelo menos, um dos dedos da mão na vagina dela, ao mesmo tempo que friccionava o pénis, tendo depois ejaculado.

7. Durante todo o período referido em 5., depois de lhe ser entregue pelo arguido, a menor apresentava alterações de humor, com a fala entorpecida e com modos agressivos. bem como relutância em acompanhar o arguido, quando este a visitava ou a ia buscar.

8. Algumas vezes durante esse período, por causas não apuradas, também apresentou inflamação na vagina, com rubores de vermelho muito intenso, o que implicou que fosse aplicada uma pomada receitada pelo médico assistente, Dr. DD.

9. No dia 21.6.2003, cerca das 14 horas, o arguido foi buscar a filha a uma casa na praia da Apúlia, concelho de Esposende, que lhe foi entregue por FF, id. a fls. 11.

10. Levou a filha para a mencionada casa dos pais e aí, num dos quartos de dormir, colocou-a em cima da cama e repetiu os actos que lhe tinha feito em pelo menos uma outra ocasião.

11. Despiu-lhe as calças e introduzia pelo menos, o dedo mínimo na vagina dela ao mesmo tempo que estimulava o pénis com a sua mão, acabando por ejacular, praticando ainda outros actos não apurados.

12. No dia 27.6.2003, após conselho de um outro médico de nome EE, que havia sido consultado, designadamente, no dia anterior, a mãe da menor levou esta ao IML do Porto, onde, após exame médico, se verificou que apresentava as seguintes lesões: equimose oval de três centímetros de maior eixo com a parte central mais clara compatível com mordedura, na face anterior do terço médio da coxa esquerda e, ao exame da área vaginal, escoriação da face interna do pequeno lábio esquerdo, bem como um hímen anelar, membranoso sem lesões traumáticas e sem permeabilidade ao dedo mínimo.

13. Concluiu o IML que a menor apresentava sinais compatíveis com abuso sexual feito com o dedo, mostrando, ao exame genital, uma lesão traumática escoriação, compatível com a acção de unhas, que demandava oito dias para curar, e ainda uma lesão na coxa compatível com mordedura sexual, requerendo normalmente para a cura cinco dias sem afectação da capacidade de trabalho.

14. Efectuado exame pedopsiquiátrico à menor, concluiu a Ex.ma Perita Médica do Hospital Central Especializado de Crianças Maria Pia que a menor exprimiu espontaneamente o motivo por que ali se encontrava e relatou com algum pormenor os factos que disse serem perpetrados pelo próprio pai, conforme exame que consta de fls. 97 dos autos.

15. Com a actuação descrita o arguido quis satisfazer as suas paixões libidinosas com a sua filha BB, o que conseguiu, bem sabendo que atentava contra a liberdade e autodeterminação sexuais dela.

16. Para melhor satisfação dos seus intentos, aproveitou a circunstância de ela contar apenas com três anos de idade, bem sabendo que agia contra a vontade dela.

17. Fê-lo de forma deliberada, livre e conscientemente.

18. Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

(Factos provados relativos ao pedido de indemnização civil)

19. A BB sofreu dores devido aos actos praticados pelo arguido, seu pai.

20. A relação afectiva desta com o pai encontra-se, em consequência da conduta do arguido, fortemente afectada.

21. Devido à conduta do pai, a BB sente-se perturbada e com medo do pai, contra quem sentiu no período posterior aos factos repulsa, tendo de ser acompanhada por psicólogos de modo a recuperar na medida do possível a sua auto-estima podendo sofrer o risco de segregação designadamente sexual.

22. A demandante despendeu em medicamentos, tratamentos e consultas em psicólogo a quantia global de 99.24 euros.

(Factos provados relativos à personalidade do arguido)

23. O arguido nunca respondeu criminalmente.

24. Exerce a actividade de funcionário superior numa empresa de calçado onde aufere mensalmente uma quantia não inferior a 570 euros.

25. O arguido é pessoa bem integrada social e profissionalmente, sendo um trabalhador assíduo e competente.

26. É pessoa considerada e respeitada na freguesia onde vive pelo seu comportamento social.

27. Negou os factos, veiculando a versão apresentada na sua contestação.

Não se provou nenhum outro facto constante da acusação, do pedido de indemnização civil, da contestação ou alegado em audiência de julgamento, designadamente:

- que o arguido tivesse praticado noutras ocasiões que não as duas descritas nos factos provados quaisquer actos de natureza sexual com a sua filha;

- que nas duas ocasiões dadas como demonstradas tivessem ocorrido outros actos de natureza sexual, para além dos que foram dados como provados e daqueles cuja natureza concreta não foi possível apurar;

- que a demandante do pedido civil tivesse despendido quantia diversa da dada como provada em 22;

- que os factos descritos na acusação constituam uma história inventada pela mãe da vítima; ­que a BB nunca tivesse manifestado qualquer comportamento estranho relativamente ao seu pai, designadamente medo ou repulsa.

2.2 O Ministério Público tinha deduzido acusação contra o arguido por autoria material de cinco crimes de abuso sexual de crianças (agravado) p. e p. pelas disposições combinadas dos artºs 172º, nº. 1, e 177º., nº. 1, al. a) (descendente), do C.P. (fls. 193), mas, o Tribunal de Barcelos - depois de lembrar a doutrina e jurisprudência alemã e nacional, sobre a questão do crime continuado - considerou que "à míngua de perícias de personalidade e ainda de recolha de outros elementos de índole social sobre o arguido, tido sempre como cidadão respeitado e cumpridor dos seus deveres cívicos, admitiu que foram realmente essas circunstâncias exteriores que o determinaram à reiteração do crime, com a consequente diminuição da culpa", e concluiu que o arguido tinha cometido 'um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo. 172.º, nº 1 do C Penal, agravado pelo circunstância objectiva de ser pai da BB' (fls. 337) (1)

3. O recorrente, a abrir a motivação, adverte que 'vai porfiar na luta pela sua inocência, persistindo em clamar que a sua condenação nas Instâncias recorridas constitui um grave erro judiciário', e que, 'conhecendo as legais limitações que se impõe a este Tribunal no que respeita à apreciação da matéria de facto' (…), 'não pode deixar de continuar a questionar' (…), 'pela via possível e como derradeira tentativa de suscitar a reapreciação (…) 'do relevo atribuído ao acervo factológico na decisão final', [não pode deixar de questionar]

- quer a questão da violação do princípio "in dúbio pro reo",

- quer a suficiência para a mesma decisão da matéria de facto provada, que continua a reputar francamente insuficiente, nos termos e com o relevo do disposto no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal ,

- 'quer, por se entender que pode ser a única forma de mitigar o que continua a considerar-se grave erro de julgamento pelas instâncias quer por se afigurar de elementar justiça face a todas as circunstâncias para o efeito relevantes', [vem] 'sustentar a Redução da Pena para um período de prisão nunca superior a 3 anos e a Suspensão da mesma pena' .

Esclarece o recorrente, na motivação, que 'o que se discute neste recurso é saber se as decisões das Instâncias se pautaram pelas regras da experiência comum, sobretudo no tempo de hoje e dos factos da acusação, de exaustiva mediatização do crime de abuso sexual de filhos menores e da sua utilização como arma de arremesso em casais desavindos e com problemas de Regulação de Poder Paternal', entendendo que, 'face a essa experiência e circunstâncias, entre a tese que vem defendendo desde o início do processo e a que se sustenta no texto da decisão recorrida, são permitidas todas as dúvidas e que a prova produzida não é suficiente para sustentar a sua condenação' .

É que - para encurtar razões - o recorrente vem retomar a sua visão dos acontecimentos, atribuindo a imputação dos factos a 'uma acusação insidiosa perpetrada pela sua ex-mulher e pela irmã gémea desta, FF', 'traumatizada e ressentida com o divórcio' . E assim é que tal acusação, que está na moda, ocorre vários meses após o divórcio, com instrumentalização das débeis declarações da filha de ambos . E que, ao dar guarida a esta versão - tal como se retira do texto das decisões recorridas - 'ao recorrente só restaria um caminho para obter a sua absolvição e esse seria o de lograr provar ele a sua total inocência, numa total inversão, aliás, do ónus da prova e da presunção da inocência de que o arguido não pode deixar de beneficiar, certo, como é, além de tudo, que essa prova sempre seria impossível' .

3.1 I - "O processo de formação da convicção das instâncias não é inteiramente alheio aos poderes de cognição do STJ, justamente porque nem tudo o que diz respeito a tal capítulo da aquisição da matéria de facto constitui 'matéria de facto' . Designadamente pode e deve o STJ avaliar da legalidade do uso dos poderes de livre apreciação da prova e do princípio processual in dubio pro reo até onde lhe for possível, ou seja, ao menos até à exigência de que tal processo de formação da convicção seja devidamente objectivado e motivado e que o resultado final esteja em consonância com essa objectivação suficiente e racionalmente motivada" – cf. Ac. deste Supremo Tribunal de 15-01-04, Proc. n.º 3766/03 - 5.ª.
II - "Neste contexto, o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo (...). A dúvida, que há-de levar o tribunal a decidir pro reo, tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal" – cf. Ac. do STJ de 20-01-05, Proc. n.º 3209/05 - 5.ª.
III –"Neste Supremo Tribunal só pode 'conhecer-se da violação desse princípio quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido; ou então quando, não tendo o tribunal a quo reconhecido esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, nomeadamente por erro notório na apreciação da prova" – assim, Ac. do STJ de 08-07-04, Proc. n.º 1121/04 5.ª.
IV - O vício a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
V - Este vício não deve ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP) – cf. Acs. do STJ de 07-01-04, Proc. n.º 3213/03 - 3.ª, e de 29-04-92, Proc. n.º 42535. (Ac. STJ de 15.02.07, proc. n.º 3174/06)

3.2 Estabelecidos estes princípios, é altura de ver o tratamento que a decisão sob recurso deu à sindicação da matéria de facto estabelecida na 1.ª Instância :

(…) "Começa o recorrente no terreno dos factos, querendo ver modificada a decisão do tribunal a quo pela via dos artigos 412°, nºs 2 e 3, e 431, alínea b), do CPP, uma vez que houve documentação da prova.

Põe em causa os pontos 6, 10, 11, 15, 16, 17 e 18 da matéria provada assim formulados:

6. Em, pelo menos, uma dessas ocasiões, em data concreta não apurada mas durante o referendado período de Abril a 21 de Junho de 2003, que acresce à ocasião que adiante se referirá relativa a 21 de Junho de 2003, o arguido, quando estava a sós com a filha, em local não apurado, mas dentro de uma habitação, num quarto de dormir, mostrou à BB, enquanto ela estava deitada numa cama, o seu pénis, enquanto lhe introduzia, pelo menos, um dos dedos da mão na vagina dela, ao mesmo tempo que friccionava o pénis, tendo depois ejaculado. 10. Levou a filha para a mencionada casa dos pais e aí, num dos quartos de dormir, colocou-a em cima da cama e repetiu os actos que lhe tinha feito em pelo menos uma outra ocasião. 11. Despiu-lhe as calças e introduziu, pelo menos, o dedo mínimo na vagina dela, ao mesmo tempo que estimulava o pénis com a sua mão, acabando por ejacular, praticando ainda outros actos não apurados. 15. Com a actuação descrita, o arguido quis satisfazer as suas paixões libidinosas com a sua filha BB, o que conseguiu, bem sabendo que atentava contra a liberdade e autodeterminação sexuais dela. 16. Para melhor satisfação dos seus intentos, aproveitou a circunstância de ela contar apenas com três anos de idade, bem sabendo que agia contra a vontade dela. 17. Fê-lo de forma deliberada, livre e conscientemente. 18. Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Para o recorrente, nenhum exame médico realizado ao corpo da BB permite concluir que as lesões que a mesma apresentava eram resultantes de abuso sexual. O relatório "apenas constata que as lesões visíveis na vagina eram compatíveis com abuso sexual por acção de dedos e unhas sem excluir que tais lesões pudessem assim ter sido originadas por causas de outra natureza". Muito menos tal relatório "impõe concluir, com o mínimo de segurança, que tais lesões fossem provocadas por outrem": podiam simplesmente resultar do acto de "coçar".

O Tribunal a quo pendeu para a existência de um abuso sexual, mas não se arrimou sem mais, nem exclusiva e imediatamente, no exame médico efectuado que por si só não caracteriza uma típica agressão sexual, circunstância que também foi notada pelo Ex.mo Procurador Geral Adjunto. Disse-se claramente no acórdão: "provou-se objectivamente a existência de lesões decorrentes de abuso sexual". Mas também se acrescenta que essa prova se fez primordialmente (e aqui o itálico é nosso) "através do relatório do IML do Porto, presente a fls.15 e 16, onde se lê que a BB apresentava em 27.06.2003, seis dias após o cometimento do abuso, equimose oval de três centímetros de maior eixo com a parte central mais clara compatível com mordedura, na face anterior do terço médio da coxa esquerda, e, ao exame da área vaginal, escoriação da face interna do pequeno lábio esquerdo, bem como um hímen anelar, membranoso sem lesões traumáticas e sem permeabilidade ao dedo mínimo. Concluiu o IML que a menor apresentava sinais compatíveis com abuso sexual feito com o dedo, mostrando, ao exame genital, uma lesão traumática, escoriação, compatível com a acção de unhas e ainda uma lesão na coxa compatível com mordedura sexual'·.

A mais disso, socorreu-se o Colectivo das explicações da menor "já no IML", ou seja, de ter o pai introduzido ou tentado introduzir o dedo polegar na vagina e "deita leite pela pilinha que é muito grande e depois limpa". No acórdão anota-se o carácter "espontâneo" destas declarações da pequena BB, e a circunstância de as aspas serem do próprio Instituto. O recorrente não contraria propriamente a adopção pelo Tribunal de um tal meio de prova acontecido, é certo, por ocasião de acto processual, mas fora de qualquer tomada de declarações formalizada. Tratando-se de reproduções de outras, nomeadamente das de fls. 159, em diligência "para memória futura", também nos parece que elas podem ser levadas em conta, mas só enquanto "informação" prestada e ouvida da boca da própria examinanda, em momento que precede o exame a que ali foi submetida.

Vendo melhor, no relatório descrevem-se as seguintes lesões: "equimose oval de três centímetros de maior eixo com a parte central mais clara compatível com mordedura na face anterior do terço médio da coxa esquerda, ao exame da área vaginal observa-se uma escoriação da face interna do pequeno lábio esquerdo, e um hímen anelar, membranoso sem lesões traumáticas e sem permeabilidade ao dedo mínimo". E sustenta-se que os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, isto é, que a menor possa estar a ser alvo de abuso sexual, atendendo a que as alterações comportamentais são sugestivas desse tipo de ocorrência, a escoriação na face interna do pequeno lábio esquerdo pode ter resultado da acção de unha e a equimose na coxa esquerda tem o aspecto daquelas que resultam de mordedura de carácter sexual, isto é prolongada e com sucção evidenciada pela parte mais clara no centro da mesma.

O alcance científico da observação do perito cinge-se, naturalmente, à existência de lesões, que descreve, já que quanto ao seu significado ("compatível com mordedura ... "; "permitem admitir o nexo de causalidade ... "; " ... a menor possa estar a ser alvo de abuso ..... : "a escoriação pode ter resultado da acção de unha "; "a equimose tem o aspecto daquelas que resultam de mordedura de carácter sexual ") o perito passou a ser apenas opinativo. Deste modo, se o juiz não pode alhear-se da existência de lesões, que o relatório descreve, já está livre de seguir ou não aqueles outros fragmentos do trabalho pericial para compor a sua própria convicção. Notar-se-á por outro lado, a cautela com que o perito admite [um] nexo de causalidade, chegando a falar de abuso sexual mas só como uma possibilidade. Ao Tribunal caberia portanto, com esse e outros elementos de que relevantemente pudesse dispor, destacar, ou não, essa mesma lesão do simples acto de "coçar" que a menor visivelmente praticava (veja-se, por todos, o depoimento de HH, a fls. 95 da transcrição, a que mais à frente daremos mais amplo destaque). Ora, esses elementos existiram - e o Tribunal refere-­os, procedendo à sua filtragem. Diz o acórdão, com efeito, a dado passo: "a BB contou o que o pai lhe fizera não só à mãe como ainda, estando a mãe ausente, descreveu os actos em apreço e a sua autoria à tia HH e à avó II, tendo a esta descrição assistido a tia FF. Uma vizinha de nome GG pôde igualmente testemunhar como, após conversa mantida com a BB, esta espontaneamente disse-lhe através de gestos e palavras o que o pai, que identificou, lhe fizera. De particular relevo ainda foi a descrição feita pela BB à psicóloga ... ".
Dir-se-á, ainda assim, que o Colectivo, ao trazer à liça estes outros dados probatórios, estava já a tratar da imputação (ao arguido) de um acto de abuso sexual que anteriormente tinha dado como assente. Mas se isso é verdade, e se há na justificação dada um certo ir e vir, um andar em torno do que à partida é essencial que é a definição / concretização de acto sexual - com exclusão, portanto, de consequências ligadas ao simples acto de coçar - também está fora de dúvida que a 1ª instância teve sempre presentes as declarações da própria criança na reconstituição do abuso (rectius: de uma conduta que identificou e veio a dar como abusiva e, por fim, como praticada pelo pai).
E estas mesmas declarações não se limitaram a um mero queixume do género: "o pai fez-me dói-dói", "o pai é mau", mas incluíram a descrição concomitante e fiável- pelo que nos diz o Colectivo, sem que o possamos censurar, como a seguir também melhor se verá - de algo capaz de afastar ambiguidades ou mal-entendidos: o pai metia os dedos, mexia e magoava a pitinha ... a pitinha do pai "puxa água" ...
Uma outra objecção vem na 53 "conclusão" do recurso: a referência a compatibilidade encontrada [leia-se: compatibilidade do relatório com acção de abuso sexual, através da manipulação de dedos e unhas] apresenta-se "manifestamente" como induzida pela informação oriunda da família da BB e que acompanhou e justificou o exame em causa no Instituto (2).
Que essa informação e denúncia de abuso sexual imputado ao recorrente foi veiculada para os exames, incluindo o de pedopsiquiatria, como facto real e verdadeiramente consumado decorre, diz o recorrente, dos depoimentos referidos na 7ª '·conclusão".
Neste ponto de articulação permitimo-nos insistir na circunstância de o Colectivo, nas suas justificações, não ter passado imediatamente à imputação ao arguido do abuso sexual (que reconheceu existir). Notou, isso sim, a existência de registos clínicos de "lesões compatíveis com abuso sexual, ainda que se admita que o não sejam". E teve ademais presente que "em 7.10.2002 o Dr. DD, médico de família, anotava prurido vaginal e queixas da menor de dores na vagina, tendo resultado negativo o teste de despiste de uma eventual infecção urinária e em 4.01.2003 o mesmo médico registava um eritema na vagina com ligeiro edema. O encaminhamento para o IML foi feito por um outro médico, Dr. EE, face às descrições de abuso sexual veiculadas, sendo certo que o dito médico receitou para a vítima medicamentos de tratamento destas lesões conforme decorre da factura da farmácia de Arcozelo. datada de 28 de Junho de 2003 e presente a fls.208".
Por aqui se vê que o Colectivo, se por um lado atendeu ao facto de o encaminhamento para a medicina legal ter tido a precedê-lo as descrições de abuso sexual veiculadas, também por outro só num momento posterior da sua justificação / motivação é que parte para a atribuição de tal abuso à pessoa do recorrente, considerando: "Perante a evidência inultrapassável da existência de, pelo menos, uma situação de abuso sexual, tratava-se depois de determinar, se possível, o seu autor".
Ainda assim, terá havido uma referência induzida pela informação da família?
Como há pouco se alertou, é o próprio Tribunal recorrido que destaca a circunstância de o encaminhamento para o IML ter sido feito pelo Dr. EE, face às descrições de abuso sexual veiculadas. É irrefutável que, ao decidir, o Tribunal teve presente esta mesma realidade: o decisivo encaminhamento para a observação pericial teve lugar "perante o relato que a mãe" tinha feito ao médico.
Só que o recorrente vai mais além, diz mais concretamente que a existência dessa informação e denúncia de abuso sexual [imputado ao recorrente] foi veiculada para aqueles exames [incluindo portanto o de pedopsiquiatria] como facto real e verdadeiramente consumado, em termos de motivar definitivamente a adesão do(s) perito(s) a essa mesma realidade. Na verdade, induzir significa essencialmente motivar, determinar, o mesmo que inspirar, provocar, criar noutra pessoa a decisão de fazer algo ou de pender para algo.
Ora seguindo os depoimentos (3).
- o de CC, a partir de fls. 48, mas especialmente fls. 52 da transcrição: "'a BB começou a dizer que o pai lhe tinha feito dói dói ... "; "quando eu comecei a acreditar foi quando eu fui e a dona GG à clínica… O Dr. EE tentou abrir-lhe as pernas, ela não queria ... que lhe doía, e viu, viu, não me disse nada simplesmente ... o médico não queria que eu ouvisse o que ele dizia, ia dizer à dona GG porque eu estava em estado de choque ... entretanto falou com um ginecologista ... ele não queria que eu fosse, entrei também e o Dr. EE disse que ali que havia abuso, encaminhou-me logo para o Instituto de Medicina Legal... a médica falou com a BB, perguntou-lhe: então BB? O que é que te dói, dói-me a pipi, e quem te fez dói dói?, foi o meu pai; não foi nada, foi, foi o meu pai" (e a descrição do diálogo prossegue); "que era, era uma mordedura";
- o da testemunha GG, a partir de fls. 120 da transcrição: "e mostrou-me a vagina da menina, tinha umas secreções muito fora do normal para uma criança... cheiro; disse: aqui há qualquer coisa, levem a miúda ao médico; via que havia qualquer coisa de anormal com a miúda, ela urinava-se toda, ela não deixava dar banho; eu vou fazer exactamente o que a miúda fez; o pai dá tautau no pipi da menina; eu procurei ajuda médica; e disse que seria o pai que lhe batia ... na pipi, o pai mete o dedo grande e o dedo gordo aqui, dá tautau; estava acompanhada pela mãe e pela criança; conhecia o pai mal; não tinha nada de pessoal contra o moço, nem pensar, nem nunca suspeitei uma coisa dessas; eu achei que aquilo não era normal; vamos ao médico; expliquei-lhe o que se estava a passar; e ele disse-me que não era da competência dele; disse que ia falar com a ginecologista; aconselhou-se e mandou logo a miúda para o Instituto de Medicina Legal, o que deu logo a comprovação; porque só um médico é que pode dar o parecer, nós não; acompanhei-a ao médico sim; [disse ao médico] o que a miúda tinha contado; examinou-a mas disse-me logo que não podia dar o parecer dele; só um especialista ... : ele disse que realmente havia qualquer coisa de anormal; só depois de a miúda falar é que então eu raciocinei;
- o do Dr. EE, desde fls. 168 da transcrição: "eu só estive com a menina uma vez; a mãe procurou-me referindo que a menina seria vítima de agressão sexual; não sou especialista; logo a seguir contactei com uma especialista; aconselhei a mãe a encaminhá-la para o Instituto de Medicina Legal; a ideia que eu tenho é que a mãe referiu que a miúda era vítima de agressão sexual por parte do pai; a miúda depois na linguagem infantil disse; são sinais inespecíficos; [mandou para as entidades competentes] exacto, [uma vez que lhe teriam falado de agressão sexual] sim, exactamente'-,
não vemos como divergir do tribunal a quo - que não encontrou razões para acompanhar o recorrente nos argumentos que este tivera oportunidade de desenvolver na própria audiência. Com efeito, já na contestação se alegara que tudo não passava de uma história inventada, de forma vil e ignóbil pela mãe da menor, ex-mulher do demandado, de modo a afastar a filha do pai. Diz o acórdão (e agora repetimos palavras de algum modo já passadas em revista) que para a concreta imputação do abuso sexual ao arguido "fundou-se o tribunal, primacialmente, no depoimento da própria ofendida BB que relatou os factos dados como provados de forma repetida e insistente junto dos mais diversos interlocutores, incluindo, sobretudo, a Mª Juíza de Instrução aquando das declarações para memória futura presentes a fls.159 onde a mesma afirmou que não gosta do pai porque lhe bate e "fez dói-dói na pitinha", " meteu o dedo dele na pitinha". Mais referiu que viu a "pitinha" do pai a qual "puxa água", tendo ainda dito a cor dos cabelos púbicos do arguido. A BB fez descrições similares a esta no exame pedopsiquiátrico feito no Porto, em Outubro de 2003, descrevendo "com algum pormenor" os actos em apreço e imputando ao pai a sua autoria. A mesma BB contou o que o pai lhe fizera não só à mãe como ainda estando a sua mãe ausente, descreveu os actos em apreço e a sua autoria à sua Tia HH e à sua avó II, tendo a esta descrição assistido a tia FF. Uma vizinha de nome GG pôde igualmente testemunhar como, após conversa mantida com a BB esta espontaneamente disse-lhe através de gestos e palavras o que o pai, que identificou, lhe fizera".
Considerou ainda o Tribunal que "de particular relevo ainda foi a descrição feita pela BB à psicóloga Dra. JJ. Esta profissional da APAV acompanhou de perto a BB desde Setembro de 2003 a Maio de 2004 tendo dito, após repetidas perguntas, que entendia, tanto quanto lhe era possível dizer, serem verdadeiras as descrições feitas pela menor. E justificava explicando que as mesmas sempre foram consistentes, apontando sempre, em todas as ocasiões, o pai como autor dos abusos, dizendo que este "metia os dedos", mexia e magoava a "pitinha". Contava estes factos em ocasiões diversas ao longo do tratamento e fazia-o não apenas verbalmente mas, inconscientemente e de um modo não verbalizado, como quando utilizava bonecos que depois, de moto próprio, identificava como ela mesma e seu pai, colocando o boneco correspondente ao seu pai a praticar os actos em apreço na boneca que correspondia a si. Questionada sobre uma eventual manipulação da criança pela mãe, a testemunha Dra. JJ pronunciou-se negativamente, com a devida explicação que ao tribunal impressionou. Assim, declarou que a menor BB tem vindo a recuperar do forte abalo emocional sofrido muito graças à acção da mãe, conjuntamente com a psicóloga, assentando essa recuperação na reabilitação da figura paternal, procurando eliminar da criança a convicção da maldade do pai. Ora, a Dra. JJ disse que essa reabilitação tinha vindo a ser conseguida e, pelos indicadores provindos da BB a mãe, fora das consultas, contribuiria para esse desiderato".
A intervenção do jus puniendi na esfera de alguém só será legítima e fundamentada se o Estado conseguir uma prova 'certa' e processualmente válida dos factos atribuídos ao arguido. A actividade probatória propicia ao tribunal a informação necessária para formar a sua convicção sobre a existência ou inexistência de factos e situações pertinentes para a decisão final, com vista à obtenção da "verdade histórico-­prática". Na obtenção desta verdade histórica que se analisa enquanto verdade processualmente válida, ganha especial relevo a tarefa de valoração da prova. O artigo 127º do CPP, ao consagrar o princípio da livre apreciação da prova, dispõe que "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente". Quer dizer que a livre convicção na reconstituição da verdade (verdade prático-jurídica) se encontra vinculada às regras da experiência. E que terá por função fundar uma convicção pessoal do juiz objectivável e motivável - capaz, portanto, de se impor ao outros. O regime actual não considera como predominante nenhum elemento de prova para a convicção do juiz. Esta pode basear-se em indícios, nas declarações do próprio arguido ou no depoimento de uma testemunha independentemente dos argumentos ou razões apresentados em sentido contrário. Por ex.: a livre apreciação vale quando se trata de valorar as declarações do arguido, mesmo que estas estejam frontalmente em contradição com as das testemunhas ou com outros elementos probatórios.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. O grau de certeza que condiciona a decisão de culpabilidade é uma das questões mais obscuras do direito penal, afirma com toda a razão, Mireille Delmas-Marty. "No common law, a regra elaborada pelos juízes ingleses dos séculos 17 e 18 para instruir os jurados quanto aos seus deveres, é que a culpa do acusado deve ser estabelecida beyond reasonable doubt, quer dizer: para além de toda a dúvida razoável". E KK explica que tendo os jurados o ónus de determinar a verdade e sendo forçados a levar em conta a credibilidade das evidências e, já nos finais de Seiscentos, o testemunho dos depoentes - foram eles quem ajudou a definir um conjunto de padrões para avaliar a veracidade das afirmações. No Continente europeu, a ideia de certeza exprime-se pelo princípio chamado da "íntima convicção". "Esta noção" - escreve ainda Delmas-Marty -, "que é complementar da liberdade da prova sendo aparentemente diferente daquela outra da dúvida razoável, tem na realidade uma dupla significação que as aproxima: por um lado, ela substitui a liberdade do juiz na apreciação das provas ao sistema da prova legal; por outro, implica a convicção, por oposição à dúvida que, como no sistema inglês, deve aproveitar ao arguido. Mas é também necessário evitar o erro que consiste em tomar a livre convicção como um modo de prova, uma vez que se trata unicamente de um modo de apreciação das provas produzidas perante o juiz, o que significa que o juiz penal jamais poderá condenar sem provas, invocando como único fundamento da sua convicção a culpa do arguido" (4).
Ao julgador impõe-se por outro lado que leve à motivação da decisão a valoração das provas na verificação do facto. A motivação da decisão consiste na forma mais incisiva de verificar o uso da livre apreciação: apreciar livremente implica motivar correctamente. (5). Trata-se de expor para além dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em um determinado sentido ou valorasse de determinada forma, os diversos meios de prova apresentados em audiência a própria aplicação dessas regras, como a razão de ciência da testemunha a coerência do depoimento, a sua confirmação ou corroboração por elementos indiciários. (6).
No actual ordenamento processual, as provas, quer se trate de prova representativa ou indiciária têm em comum os mesmos critérios normativos da reconstrução do facto: em ambos os casos, a imputação deverá ser confirmada ou negada pelas provas, consideradas analiticamente e nas suas possíveis combinações. Ficam, além disso, sujeitas ao controlo ex post relativamente aos critérios de aferição utilizados. Nesse concreto passo, a justificação interna ou externa é dada pela motivação. Na verdade, o iter argumentativo que o juiz deve observar, qualquer que seja o tipo de decisão em que se encontre presente o livre convencimento no momento de valoração da prova, deverá dar conta sempre dos cânones e dos critérios da decisão, expondo-a a ser apreciada através da motivação. O dever de valorar os resultados do confronto entre afirmações probatórias contrastantes exprime afinal o reconhecimento do valor do contraditório na formação das provas.
Ora, para além das razões já referidas, nas "'conclusões" 8ª e seguintes insiste o recorrente em que a consulta do médico Dr. EE apenas surgiu por indicação da testemunha GG porque esta não aceitava (e no recurso reforça­-se o inciso com a adopção do negrito) que as comichões e inflamações que a menor apresentava na vagina pudessem ter origem na estrutura óssea da menor e em problemas higiénicos. A insistência vai aliás acompanhada da circunstância de o Dr. DD, médico de família, que a observou por várias vezes desde data anterior à imputação dos factos ao arguido, não ter tido, até ao conhecimento público das imputações de abuso, qualquer notícia ou suspeita disso mesmo (depoimento de que se faz a transcrição a fls. 152: "sou chefe de serviço de medicina geral e familiar"; "ela foi acompanhada por mim em ... "; "eu tive conhecimento do conflito entre o casal"; aparece-me a situação com um prurido vaginal e um certo corrimento, pedi um exame, uma ecografia estava tudo perfeitamente negativo"; "só em 14 de Julho de 2003 é que eu tenho conhecimento do problema"; "a minha intervenção limita-se a uma consulta, depois teve mais consultas"; "com prurido vaginal, um certo corrimento, e a hipótese de doer o pipi, dizia ela"; "é óbvio que se não me levantarem as suspeitas familiares eu não vou levantar problemas, ou então engendrar situações"; "é interessante, o divórcio ser em 8 de Julho de 2002 e aquilo a que eu tenho acesso é a primeira consulta em 7 de Outubro de 2002, já há comichão, corrimento e infecção, e em 4 de Dezembro de 2002 tenho aqui novamente poliúra portanto urinar muitas vezes, um certo eritema e um certo edema. E portanto na altura vi na altura vi, observei, não vi nada de extraordinário"; "'é normal haver corrimentos na criança, corrimentos fisiológicos"; "'em 23 de Junho de 2003 procuram a clínica e provavelmente aí, quanto eu sei, e falei com o Dr. EE, há a suspeita, e por haver suspeita levaram à clínica"; "no dia 8 de Maio de 2003 se houvesse esse problema de suspeita é óbvio que me tinha sido relatada"; "se o divórcio é a 8 de Julho de 2002 tem pouca relevância ser a consulta em 8 de Maio: Agora se em 8 de Julho de 2002, quero dizer que em 7 de Outubro foi a primeira vez que me apareceram queixas. Quero dizer que em 4 de Dezembro também apareceram-­me queixas e que nada foi efectivamente provado; portanto não posso concluir absolutamente nada)".
O recorrente faz ver ainda que a BB usava fraldas e estava sempre a queixar-­se com dores na vagina, com crises de bexiga e comichões, que a levavam a coçar-se constantemente, com cheiros na vagina, que os familiares consideravam demasiado dilatada e com uma "anormalidade" (que nenhum médico confirmou). Tudo isto, diz o recorrente em abono da sua tese, resulta abundantemente provado dos depoimentos da mãe, da GG, dos médicos e dos depoimentos de
- FF (com início de transcrição a fis. 72: "sou irmã gémea, tia da BB"; "eu já desconfiava, porque a vagina da minha sobrinha era totalmente [diferente?] da vagina da minha afilhada"; [do que a senhora desconfiava era] "da vagina"; "não" [tinha suspeitas); "no dia 21 de Junho ... a reacção da miúda: 'eu não quero ir para o papá, ele faz dói dói; a partir daí desconfiei"; [antes nunca lhe tinha dito isso?] "não"; "quando o pai chegou a miúda não queria ir, começou a chorar que não queria ir"; " ... dei-lhe banho e examinei-a totalmente, quando ela veio da praia antes de ir para o pai"; "depois a miúda regressa, veio num sistema lastimável toda encolhida a chorar, toda revoltada" ... "BB, vamos lavar, que é para descansar, para pôr a fraldinha ... e eu quando vou lavar, "tia tem dói dói"; [que se apercebeu] "foi depois de dar o banho e pôr a fralda, porque ela não me deixava lavar a parte aqui ... ela vinha traumatizada do pai, não me deixou abrir as pernitas ... vi um hematoma de uma ferradela de um adulto, que é um hematoma muito grande, a vagina ... muito vermelha ... larga"; a miúda abriu-se comigo ... chorava ... e ela disse que foi o pai ... ficou comigo e durante a noite tinha pesadelos"; "quem dá banho é a minha irmã CC naquele dia dei eu mesmo ... eu disse ... ó CC é melhor perguntares ao médico de família ... eu vou com ela ao médico ... que era estrutura óssea, foi só uma vez ao médico"; "tanto é que eu só confio no Instituto de Medicina Legal do Porto"; o que é que eu pensei? Foi logo, a miúda foi mexida, pelo pai que a levou"; "lavei-a nesse dia porque eu descon ... a atitude da miúda o pai faz dói dói" [e você não ficou a saber onde?] é evidente que não" ... "porque eu já vinha a desconfiar, isso já há bastante tempo, não lavava a miúda., a miúda usa fraldas, ainda hoje usa, aquilo não era alergia de certeza absoluta" ... "estou de olho nessas coisas, são as partes essenciais"; [mas quando a menina lhe disse na praia você não perguntou assim dói dói aonde?] "não" ... "não vou interrogar uma criança ... lavei-a toda, para ver depois").
- HH (com depoimento transcrito a partir de fls. 93: "sou irmã da CC e da FF"; "e foi quando, para meu espanto, a menina me disse: é o papá [quem é que te mexe na pombinha?] "é o papá ... indicou-me os três dedos, e ela fez o que o papá fazia ... com este dedo, fazia assim, voltei a perguntar, voltou a dizer a mesma coisa ... disse à minha irmã CC para ir a um médico o mais rápido possível, com aquela idade, para dizer aquilo, alguma coisa se passava"; [a partir da conversa que a BB teve consigo é que foi tomada a decisão] "exactamente" ... "Já tinha ido antes [ao médico] tinha sempre a pitinha muito inflamada... o médico disse que era estrutura óssea"; "a mãe não estava lá nessa altura [a BB tem uma relação próxima dessas pessoas todas] "diária sim sim"; "vindo de uma criança da maneira como ela me disse, não podia estar a mentir'" [sendo certo que a senhora começou a perguntar-lhe porque ela tinha aqueles sinais de comichão?] "exacto"; [a vagina[ "estava muito vermelha"; [você perguntou: "alguém te mexe na pombinha?"] "exacto"; [porque é que faz pergunta assim?] "não sei porquê, sinceramente ... aquela pergunta saiu-me, a minha filha também o faz mas não da maneira como a BB estava a fazer [ou partiu já de um pressuposto ... ] "não" [ou de um preconceito ... ] "não, não, nunca" [ou de uma suspeita] "nunca"; "da parte de tarde voltei a fazer a pergunta à menina ... sempre me respondeu a mesma coisa" "quando regressa também tem que se lhe dar um banho ... também se vê como é que a menina está");
- II (com depoimento transcrito a partir de fls. 104: "a avó da menina"; "separaram-se e eu comecei a ver que a menina quando ia lá para cima vinha-me sempre com a vagina muito vermelha ... nunca pensei que fosse o que foi o médico disse que era estrutura óssea ... mais pesado foi no dia 21 de Junho quando à noite veio, vinha muito pasmada ... depois a minha filha foi lavá-la e é então viu que a menina (a .....) ... parecia sangue ... e uma valente mordidela na coxa esquerda... foi o papá, eu perguntei à minha neta e a minha filha também, foi o papá que mexeu na pitinha' (a conversa foi com a HH e a senhora assistiu?] "sim"... "não ligues que são coisas de crianças" ... "não mãe, isto não pode ser coisas de crianças, porque uma criança que está praticamente a começar a falar não diz essas coisas ... a mãe levou a outros lados"; .... que dava sapatadinhas na pitinha ... que deitava leitinho" [vocês começaram a puxar por ela?] "pois começámos ... eu e a minha filha, a HH" [mais até do que a própria mãe] "sim ... puxando pela criança"; "eu até disse: isso é mentira"; tem sido acompanhada "por uma psicóloga"; "... era só mesmo ao sábado que ela vinha assim ... quase sempre, naquele dia ela vinha apática, muito parada ... nesse dia 21 de Junho é que a gente começou a desconfiar mesmo, foi quando a menina se declarou, porque ela era muito atrasada a falar, começámos a perguntar porque a menina estava sempre a mexer"; [antes disso desconfiava também, porque é que não perguntou antes?] "ainda não se explicava bem, agora já fala (antes) falava mal a gente não a percebia [antes disso já tinha dito para levar a menina ao médico?] "sim ... foi ao médico ... disse que era estrutura óssea"; "a tia levou-a a ver se ela se abria com ela ... só segunda-feira é que eu estava em casa e é que ela disse à outra [as primeiras pessoas a quem ela contou] "eu acho que foi à Zira ... diante de mim; [e foram vocês que lhe perguntaram quem é que te mexe?] "pois por ela estar sempre a mexer nela, [até ali nunca tinham perguntado] "não, a gente não desconfiava"; "nesse mês de Junho [foi ao pai] aí uma duas ou três vezes, aos sábados ... quase sempre" [vinha]).
Dos depoimentos referidos extrai o recorrente uma situação preordenada pela tia FF. E acrescenta:
"É ela que declarou não acreditar nos médicos e nos seus pareceres sobre as enfermidades da menor e lavou a menor antes da visita do pai, que teve lugar nesse dia, e voltou a examiná-la quando regressou, sendo aí que ela concluiu que, se a menor estava antes direitinha e regressava com a vagina "vermelha" e "larga", é porque tinha sido "mexida" pelo pai. "O pai é que a levou, não foi mais ninguém" … assim concluiu a tia FF. E resulta manifesto de todo o depoimento desta tia FF que o nome do pai e a "mexida" com os dedos na vagina da menor BB foram totalmente sugeridos a esta. E igual sugestão, em posteriores e repetidos interrogatórios efectuados à menor, foi feita em todas as perguntas feitas a esta pela sua mãe, pela sua avó II, pela tia HH e pela vizinha da tia FF, GG, as quais sempre começaram os seus insistentes instâncias da menor com a pergunta "quem mexeu na tua pitinha", sugerindo-lhe e esperando manifestamente que ela imputasse isso ao pai e com os dedos. O que é manifesto! É neste contexto familiar, com interrogatórios não isentos, emocionados e primariamente caseiros, desprovidos de toda e qualquer ponta de rigor técnico, que a menor BB acaba por expressar uma associação entre as suas enfermidades e dores na vagina com a figura do pai. Associação que, de tanto e tão intensamente repetida nos muitos interrogatórios domésticos de que a menor foi vítima, acabou por traduzir-se - ainda que sempre através de uma mensagem curta e com muito poucos pormenores, como resulta do próprio exame pedo­psiquiátrico e do depoimento da psicóloga, JJ (cassete nº 3 Lado A e fls. 139 da transcrição escrita) - numa ligação das dores e lesões da vagina a uma agressão sexual do pai".
Ora, em que termos encarou o Colectivo tudo isto?
Explicou que "também de muito relevo na formulação da convicção do Tribunal sobre a autoria do abuso sexual foi o "timing" que foi possível reconstituir relativamente aos dias 21 de Junho e seguintes. Assim, à BB no dia em causa de manhã foi dado banho pela tia FF que nada lhe detectou no corpo. Depois, passou a tarde com o pai e, no regresso a casa, logo a FF e a CC, mãe de BB lhe detectam um enorme transtorno da menina, que se revela áspera e agressiva. Apercebe-se a FF logo após das lesões sofridas, com o hematoma e a vermelhidão intensa; dois dias depois, dá-se a primeira consulta médica seguida de uma outra no dia 26 que, perante a evidência dos abusos, determinou a deslocação da vítima ao Porto, com a médica do IML a encaminhar telefonicamente a situação para os serviços do Ministério Público nesta comarca iniciando-se de imediato o respectivo inquérito. Verifica-se, portanto, a possibilidade de uma detalhada reconstituição histórica dos factos ocorridos nestas datas que remetem necessariamente para o período em que a menor esteve com o seu pai. Mais uma vez se constata que ao longo destes poucos dias a BB manteve sempre a versão segundo a qual fora o seu pai o autor destes actos. Por sua vez, a tese da defesa entroncou sempre na hipótese de que se trataria de uma conspiração urdida pela mãe da menor por motivos que foram oscilando entre o ciúme por o ex-marido manter novos relacionamentos amorosos e a vontade de afastar a filha do pai. A bondade desta tese esmoreceria sempre perante a evidência dos danos físicos observados no corpo da menor. Mas, ouvida a psicóloga da CC, mãe da menor, esta mais reiteradamente afastou essa tese conspirativa à luz do conhecimento que hoje tem da personalidade da referida CC. E os argumentos aduzidos pela Dra. LL foram numerosos. Desde logo, porque a mãe da menor sempre manifestou desejar o divórcio do marido mesmo em datas anteriores à sua efectivação, sendo certo que por todos foi referenciado que fora ela a requerê-lo ao Tribunal. Depois, porque a noção da existência do abuso esteve na origem dos sintomas depressivos da CC desejando esta que tudo acabasse depressa; preocupou-se sempre em não traumatizar a filha revelando uma consistente preocupação em proteger a BB o que se compagina mal com uma ideia egoísta de vingança que sobretudo prejudicaria a filha. A Dra. LL referiu ainda que sabe que outras pessoas, que não a CC descreveram os ditos abusos cometidos pelo arguido, sendo certo que detectou, ainda que forma indirecta, na própria criança indícios de um evidente mal-estar, estáveis e consistentes ao longo do tempo, e consentâneos nas suas características com a existência de abusos sexuais que lhes dariam origem. Directamente o mesmo referiu a colega que acompanhou a criança, como acima ficou dito. A fragilidade sentida pela CC por toda esta situação e a sua preocupação em acudir à filha demonstrariam, segundo a sua psicóloga que esta nada urdiu e foi antes vítima não desejada do que aconteceu".
Como se acaba por poder concluir, o Colectivo não encontrou elementos de facto objectivamente ambíguos, implicações improváveis ou incoerências significativas. Não viu no caso uma situação preordenada nem aderiu à tese da indução. Para nos deixar tranquilos, pôs claramente em relevo que "a tese da defesa entroncou sempre na hipótese de que se trataria de uma conspiração urdida". E deu-lhe resposta, destacando - depois de ter considerado fiáveis, como se viu, as descrições da criança - os danos físicos observados no corpo da menor e o depoimento da psicóloga da CC e da colega que acompanhou a criança. O Colectivo, nas suas próprias palavras, teve a possibilidade de uma detalhada reconstituição histórica dos factos ocorridos nestas datas que remetem necessariamente para o período em que a menor esteve com o seu pai. Acentuou, nomeadamente, que "ao longo destes poucos dias a BB manteve sempre a versão segundo a qual fora o seu pai o autor destes actos".
Não vemos pois por onde se possa fazer reparo à 1ª instância.
Note-se especialmente, a este propósito, que o recurso em matéria de facto assenta na obrigatoriedade de o recorrente não só sustentar qual (ou quais) o( s) "ponto( s) de facto" que julga mal decidido(s), como, para além disso, fornecer as bases de facto em que se deverá na sua óptica, basear a solução inversa. Se é certo que o recorrente argumenta largamente em abono, primeiro, da tese da indução, depois da criação de uma situação preordenada, a verdade é que o Colectivo não deixou de ponderar, de forma suficientemente apreensível essa possibilidade, contrariando-a, tendo em conta o estado das coisas a explicar, num texto meticulosamente exposto, ainda que menos cuidado, perdoe-se-nos a observação, na sua sequência expositiva a impor ao leitor um redobro de atenção que esclareça as circularidades com que se vai deparando, mas, insiste-se, sem que se colha qualquer petição de princípio. Ora, "um recurso, fundamentado numa discordância em relação à decisão sobre um ponto de facto, reputado como incorrectamente decidido, traduz imediatamente a ideia de que se não trata de um novo julgamento - pelo contrário, trata-se de um juízo de censura crítico sobre um concreto ponto". (7).
E o que ressalta da motivação de recurso é que ela representa, ao cabo das contas, uma divergência entre aquilo que foi decidido pelo Colectivo e a apreciação do próprio recorrente.
Tenha-se ainda em atenção que o tribunal de recurso não procura uma convicção que se substitua à do tribunal recorrido: não compete ao tribunal de recurso entrar onde se ponha em causa o princípio da livre convicção (a livre apreciação das provas), sob pena de subverter toda a valoração da prova de que se ocupou o tribunal recorrido. Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar "é a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação da prova (que limitam o "arbítrio" na sua apreciação): as regras de experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio de presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto, isenta a qualquer referência a características pessoais do arguido" (Damião da Cunha) .
Neste particular, também não alcançamos como se possa fazer reparo ao Colectivo. Nomeadamente, não encontramos elementos que tornem manifesto, como se pretende na 13ª "conclusão", "de todo o depoimento da tia FF", que o nome do pai e a 'mexida' com os dedos foram totalmente sugeridos. Ou que igual sugestão (que se tem também por manifesta na 14ª "conclusão"), em posteriores e repetidos interrogatórios efectuados à menor, foi dirigida em todas as perguntas feitas a esta pela sua mãe, pela avó, pela HH e pela vizinha da tia FF, GG.
Não se desconhece que nesta matéria, sugestões, interesses e preconceitos incidem frequentemente sobre a credibilidade de quem se apresenta como vítima ou do seu entorno. A denúncia, sobretudo, mas também o seu desenvolvimento imediato, deverão portanto ser voluntários, livres e o mais possível isentos - e não somente não devidos a constrangimentos. Uma queixa pode muito bem vir na sequência de perguntas sugestivas, como quando a mãe pergunta à filha: "ele fez-te coisas feias?", "obrigou-te a fazer isso?", quando o correcto seria que lhe perguntasse: "porque é que estás a chorar?". A prova do facto não prescinde de que, concomitantemente, se proceda a indagações acerca da coerência da conduta da pessoa ofendida ou dos que lhe são mais chegados. Havendo pontos de discordância, deverá a investigação esforçar-se por esclarecê-los. (8)
Ora, o Colectivo teve tudo isso em boa conta. E foi mais longe, chegou a questionar a testemunha Drª JJ, que deu explicações que ao Tribunal impressionaram. Para esta Drª JJ, que acompanhou de perto a criança desde Setembro de 2003 a Maio de 2004, eram verdadeiras as descrições feitas pela criança, e a mesma justificava o seu entendimento, explicando que as mesmas sempre foram consistentes. A própria psicóloga CC, diz também o Tribunal recorrido, reiteradamente afastou a hipótese conspirativa à luz do conhecimento que hoje tem da personalidade da CC, mãe da BB. Mais ainda: o Tribunal, para afastar dúvidas, se é verdade que alicerça a sua convicção quanto à bondade das declarações da BB no relato repetido e insistente "junto dos mais diversos interlocutores (o que significará também que não notou falta de isenção ou rigor nos depoimentos daquelas pessoas) socorre-se expressamente das declarações colhidas para memória futura: "não gosta do pai porque lhe bate e 'faz dói-doi na pitinha', 'meteu o dedo dele na pitinha, 'viu a pitinha do pai a puxar água', tendo ainda dito a cor dos cabelos púbicos do arguido".
Mesmo revendo o depoimento de JJ (com início a fls. 137 do volume de transcrições: "psicóloga clínica"; "iniciei o acompanhamento em Setembro de 2003" [durante 8 meses sensivelmente]; "um estado bastante apático, comportamentos agressivos, enurese, nocturna e diurna, de acordo coma informação dada pela mãe ... e que na base desses comportamentos estaria uma suspeita de uma situação de abuso sexual ... iniciou-se o apoio terapêutico ... fiz-lhe uma avaliação ... estas situações podem ser associadas a episódios de abuso sexual. ... a BB espontaneamente descrevia situações de abuso, em mais de uma ocasião [à doutora] ... o abuso propriamente dito foi avaliado por outra perita, o meu objectivo não passava por verificar a autenticidade ... a associação que ela faz é à figura paterna; [as histórias poderão ser induzidas por terceiros?] aquilo que eu verifico é que existe uma consistência no discurso da BB, quando estes discursos são fantasiados ou resultam de indução por vezes há contradições, atendendo à idade e ao nível de desenvolvimento ... existe sempre um discurso coerente, consistente, faz sempre o mesmo tipo de associações; essa vontade de estar com o pai [ela não manifesta]; [o comportamento da menina pode não ou ser consequência do divórcio?] poderá estar associado, é evidente que nessa situação provavelmente não surgiria a situação que ela descreve de abuso; a agressividade estava direccionada, no momento em que eu comecei a avaliação, para a mãe, para os amigos, para os familiares ... não era só para o pai ... ela revela quer de uma forma verbal quer não verbal esse episódio; [ela só pode ver daquele boneco o pai] é uma hipótese que existe; existe uma figura que ela designa de pai que a maltratou ... é dito consistentemente ao longo do tempo; é vidente que uma criança que nunca vivencia um episódio desse tipo ... tem alguma dificuldade devido à idade em criar uma fantasia desse tipo, em ser capaz de o descrever e de o manter [mas a mãe é capaz de lha induzir] mas a criança não é capaz ... não é capaz de manter um discurso consistente ... mas a BB não vive só, vive com a mãe mas vive com muita gente ... não tenho conhecimento dos exames) - não vemos elementos para acompanhar as "conclusões" 15a e 16a.
Quanto ao que consta da 17ª "conclusão": parece-nos que se trata de inferências que o Tribunal pôde tirar dos diversos relatos ouvidos. Cremos até que é possível sentir a realidade da sua evidência e da sua força intuitiva. E isso mesmo não é afastado pelo facto de a mãe ter referido a revolta da criança, em certa altura, por o pai a não ter vindo buscar, e tem algum eco no depoimento de JJ que associa a agressividade da criança aos familiares, explicando que "não era só para o pai".
E quanto ao que se diz nas "conclusões" 21ª, 22ª, 23ª e seguintes até à 31ª, é matéria que não interfere com o fundo da questão, acontecendo até que já se analisou atrás a posição do Tribunal recorrido quanto à chamada maquinação da família da ex­-mulher do recorrente, nada se adiantando agora de novo, mesmo para quem tenha presentes e considere os depoimentos de MM (iniciado a fls. 243 da transcrição: "acho que a freguesia inteira não acredita numa coisa destas"; "havia algumas vezes que ele chegava lá e não conseguia trazer a BB"; "acho que ele ficava triste) NN (com depoimento a partir de fls. 216 da transcrição) e "entre outras" testemunhas, OO(depoimento a partir de fls. 253 da transcrição), bem como o do presidente da Junta PP (com depoimento iniciado a fls. 174 da transcrição).
A este propósito considera-se no acórdão recorrido que no respeitante "às muitas testemunhas de defesa temos que, no geral, ressaltaram do seu depoimento várias conclusões a levar em conta. Em primeiro lugar, o arguido é, de facto, pessoa considerada no meio social e profissional em que vive, revelando uma evidente integração plena na comunidade em que se insere. Neste sentido, anote-se particularmente o que foi referido por PP presidente da Junta de freguesia onde reside o arguido e por OO, patrão do AA que transmitiram essa noção da respeitabilidade social do arguido. Todas as testemunhas arroladas pela defesa muitas delas familiares próximas do arguido, afirmaram não acreditar que o arguido tivesse cometido os factos, dizendo ser esse o sentir da generalidade das pessoas que habitam Milhazes. Sustentam, porém, essa opinião essencialmente em rumores e convicções subjectivas já que praticamente nenhuma delas descreveu factos concretos que permitam sustentar tais opiniões. Apenas a testemunha QQ disse ter ouvido a CC dizer, ao saber da detenção do ex-marido, que dele se iria "vingar"; contudo, não soube precisar a testemunha se essa alegada vingança teria como causa o fim do casamento, outro qualquer motivo ou se estaríamos perante um desabafo proferido pela mãe de uma vítima de abuso sexual. Uma eventual propagação excessiva dos factos ocorridos pela mãe da vítima a ter ocorrido em nada interfere com a veracidade, ou não, da sua ocorrência, sendo "hoc sensu" inócua a existência dessa propagação. Finalmente, como é consabido, sabe-se que este tipo de crimes conhece como seus autores todo o tipo de pessoas, mesmo aquelas que socialmente se mostram menos suspeitas".
Não vemos pois como se possa chegar a um juízo diferente do formulado pelo Colectivo.
Nomeadamente - e por último - não descortinamos que tenham sido violadas regras da experiência, nem o princípio in dubio pro reo, ou o da presunção de inocência. Tudo converge para que a culpa do recorrente foi tida como certa na mente dos julgadores, que decidiram para lá de qualquer dúvida razoável. Como escrevia Eb. Schmidt, e depois foi inúmeras vezes repetido, só existe convicção do juiz quando ele próprio já não tem dúvidas. Se ao juiz se apresentam várias possibilidades sobre a conformação factual, sem poder fixar-se apenas numa delas, encontra-se ainda na incerteza, isto é, na dúvida, impondo-se-lhe então aplicar o in dubio pro reo. No caso, o Colectivo não exprimiu qualquer dúvida, o que significa que chegou à sua convicção sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Daí a sem razão do recorrente, não havendo em consequência que alterar os indicados pontos de facto." (fim de transcrição)

3.2 A longa transcrição acabada de fazer tem o propósito de deixar claro que a decisão sob recurso demonstra que se teve plena consciência do melindre da situação que tinha sob análise : desde logo, a natureza e circunstâncias dos factos imputados, contrapostas às da versão do arguido - que, quer na contestação, quer na audiência, quer, depois, no recurso sempre defendeu, com veemência, que estava inocente - acompanhada, igualmente, pelo depoimento de 'todas as testemunhas arroladas pela defesa, muitas delas familiares próximas do arguido, que afirmaram não acreditar que o arguido tivesse cometido os factos, dizendo ser esse o sentir da generalidade das pessoas que habitam Milhazes' . E, por isso, [a decisão] teve o cuidado de enunciar, com clareza, cada um dos pontos de facto que o recorrente teve por incorrectamente julgados ; e, num exercício minucioso de análise, abordou escrupulosamente cada uma das razões e fundamentos invocados, recorrendo à documentação da prova produzida em audiência, acompanhando e transcrevendo, passo a passo, os segmentos das declarações, dos depoimentos e os resultados periciais em que se baseara a convicção da 1.ª Instância, confrontando-os entre si e passando-os pelo crivo da versão contraditória do arguido "(9). ; e, tendo aceite a regularidade e validade processual do processo da respectiva aquisição, concluiu, a final, pela credibilidade, sem margem para dúvida razoável, do 'sentido' que deles extraiu a 1.ª Instância, "que não exprimiu qualquer dúvida, o que significa que chegou à sua convicção sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável", 'não descortinando que tenham sido violadas regras da experiência, nem o princípio in dubio pro reo ou o da presunção de inocência' . (10)."

Em suma : a decisão sob recurso analisou e decidiu cada um dos pontos que foram suscitados no recurso, explicitando e esgotando a argumentação aduzida, e, com base nessas premissas, chegou a resultado probatório perceptível e coerente, que, em sede de recurso de revista, se mostra irrepreensível .

Na verdade,

"O vício a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP só ocorre quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. (Ac. STJ de 31.01.08, proc. 31.01.08)
Quanto ao «vício» da insuficiência da prova para a comprovação dos factos incriminatórios, que o recorrente EP implicitamente invoca, esgotada a sua apreciação no recurso de apelação, não o poderá ver reapreciado na revista. O reexame/revista (pelo Supremo) exige/subentende a prévia definição (pelas instâncias) dos factos provados (art. 729.º, n.º 1, do CPC). E, no caso, a Relação – avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos impugnados – manteve-os, em definitivo e com a configuração que lhe dera o tribunal colectivo, no rol dos «factos provados». A revista alargada ínsita no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do CPP de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»). Esta revista alargada (do STJ) deixou, porém, de fazer sentido – em caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (arts. 427.º e 428.º, n.º 1). Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º, al. c)) dirige o recurso directamente ao STJ e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.º, al. b)). Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» das instâncias «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa».
Tendo o recorrente ao seu dispor a Relação para discutir a decisão de facto do tribunal colectivo, vedado lhe ficou pedir depois ao STJ a reapreciação da decisão de facto tomada pela Relação. De qualquer modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu – “à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”. O in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firma certeza do julgador» (cf. Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997). Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, pág. 17): «O juiz lança-se à procura do “realmente acontecido”, conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar”» (idem, pág. 13). E, por isso, é que «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação, não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
A este respeito, convém recordar que «verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório» e que «para levar a cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que apelidaremos de razoável». E isso porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja – seguramente – lugar à intervenção dessa «contraface» (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firma certeza do julgador»).

(Ac. STJ de 21.02.08, proc. n.º 4805/06)

Improcedem, assim, as conclusões 1.ª a 21.ª, do recurso .

3.3 O recorrente, na conclusão 28.ª, defende que os doutos acórdãos recorridos violaram, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 50º, 51º, 52º, 53º, 71º nº 1, 172º nº 1 e 177º nº 1 alínea a) todos do código Penal e ainda o disposto nos artigos 127º e 140º nº 2 alínea a) do Código [de Processo] Penal e ainda o que se prescreve no artigo 32º nº 2 da C.R.P. .

A motivação não dá conta dos pontos da decisão em que se materializaria a violação 'do que se prescreve no artigo 32º nº 2 da C.R.P.' . Mas, nas conclusões 19.ª e 20.ª, o recorrente deixou afirmado que
19-) "Embora se aceite que o princípio 'in dúbio pro reo' seja um princípio de prova, não é de excluir do poder cognitivo desse Alto Tribunal - por ser matéria de direito - a indagação do modo como se obteve o acervo factológico em que nas instâncias se assentou a condenação do recorrente e, consequentemente, o poder cognitivo sobre a inerente violação que aqui se invoca daquele princípio de que o recorrente não pode deixar de beneficiar.
20-) A apreciação deste principio, com o alcance referido, não contende com os princípios da livre apreciação da prova e da livre convicção do julgador, sendo inconstitucional a interpretação do artigo 127º do Código Penal que veda aquela apreciação do princípio em causa."

Admitindo que aqui radica a inquietação do recorrente, apenas haverá que reafirmar os termos de conjugação e compatibilização daqueles princípios nucleares do processo penal, nos termos da jurisprudência citada, aqui aceites e aplicados, não ocorrendo violação de direitos e garantias do arguido, constitucionalmente consagrados .

3.4 Para a hipótese de improcedência daquelas pretensões, o recorrente defende que a pena que lhe foi imposta se mostra excessiva, devendo ser reduzida para tempo de prisão nunca superior a 3 anos, que deverá ser suspensa na sua execução (ao, menos, 'como única forma de mitigar o que continua a considerar um grave erro judiciário').

Alega, em síntese, que tinha 33 anos de idade, sem antecedentes criminais, goza de grande consideração e estima no seu meio, é considerado trabalhador assíduo e competente, estando bem inserido no meio social em que vive, continuando a gozar do mesmo respeito e consideração .

3.4.1 Sobre este ponto, diz a decisão sob recurso :

"Agora quanto à medida da pena, que o recorrente quer ver reduzida. O carácter e a personalidade do recorrente, diz-se na 32ª "conclusão", são de molde a reduzir-se substancialmente a pena que lhe foi aplicada por forma a beneficiar da suspensão, "certo como é, face às circunstâncias, que a simples ameaça de prisão não deixará de prevenir a prática de novos crimes".
No que toca à determinação da pena e sua medida concreta, o Colectivo começou por invocar e analisar o que decorre do artigo 71°. n° 1, do CP: "a medida concreta da pena deverá ser encontrada entre o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos da comunidade e o limiar mínimo em que essa tutela ainda é eficaz ("moldura de prevenção"), através do recurso a considerações de prevenção especial de socialização, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa do arguido; aquela moldura de prevenção é fornecida pela prevenção geral positiva ou de integração que, tal como já foi aflorado, se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade e vigência da norma infringida. O n° 2 do artigo 71º indica, exemplificativamente, as circunstâncias à luz das quais se analisará a factualidade relevante, tendo sempre em mente o enunciado critério geral de forma a chegar à pena concreta a aplicar ... ".
E prossegue: "a ilicitude da conduta do arguido, uma vez que os factos foram praticados por ocasiões várias situa-se num grau elevado, encontrando-se indiciada uma culpa de grau igualmente elevado à luz do preceito e elevadas as exigências de prevenção geral, sobretudo no contexto desta comarca que continua a ser pródiga neste tipo de crimes; por outro lado, do facto resultaram, necessariamente, para a [ofendida] consequências de certa gravidade, designadamente a nível psicológico, detectando-se uma necessidade do seu acompanhamento nessa área que tem sido feito e irá continuar; a isto se alia a intensidade do dolo directo, elevando-se por esta via a culpa do agente; quanto à intenção de satisfazer a sua lascívia, que determinou o arguido ao cometimento do crime em causa, ela faz elevar o grau de culpa e as exigências de prevenção especial; um acto como este. que provoca extrema repulsa. fere seguramente a sensibilidade mais embotada e é gravíssimo à luz do comportamento médio de qualquer cidadão inserido numa família e numa comunidade, sobretudo se pensarmos que a vítima tinha 3 anos de idade; o facto de o arguido ser pai da vítima constitui obviamente uma agravante mas a mesma não deverá ser aqui especificamente valorada pois já o foi na determinação da moldura legal abstracta da pena".
O Colectivo reconhece em seguida que o arguido "não tem antecedentes criminais, o que faz diminuir as exigências de prevenção geral e especial"; notou, além disso, que o arguido é pessoa considerada no meio social, bom profissional e estimado pelos que o rodeiam, o que, escreveu-se ainda no acórdão, deve ser valorado pela positiva, acrescentando-se porém que "neste tipo de criminal idade a circunstância de se estar perante um cidadão integrado profissional e socialmente não significa que se preveja um abandono futuro deste tipo de ilícitos, cometidos no recato e na intimidade da vida privada". Anotou-se ainda a boa recuperação psicológica da criança, com reflexo nas sequelas comportamentais, "o que diminui a gravidade das consequências do crime, embora por motivo que ao arguido não concerne".
Configurado nestes termos, o juízo do Colectivo quedou-se pela pena concreta de três anos e seis meses de prisão.
Cremos que os motivos invocados no recurso não contendem em nada com a posição do Tribunal a quo.
Deixando para trás considerações de ordem moral ou moralizante, ou carregadas de ecos de raiz sociológica, que arrastam consigo alguma pretensão de verdade, e a que, em matérias destas, recorre uma certa jurisprudência, a conclusão é que a pena é sempre reacção à infracção de uma norma. Com a reacção, toma-se óbvio que a norma é para ser observada - e a reacção demonstrativa tem sempre lugar à custa do responsável pela infracção da norma. A finalidade da pena coincide com a reafirmação das normas e do ordenarnento (prevenção geral positiva), o que se inscreve no exercício da confiança da fidelidade ao direito e da aceitação das consequências jurídicas do crime. Partindo destes pressupostos, não podemos deixar de aderir a tudo o mais que no acórdão se desenvolve, pelo que também não vemos que a pena - ainda que se trate de um homem assentado na vida - deva descer para os três anos de prisão, como se pretende no recurso."

3.4.1 A posição que o recorrente assume face ao crime por que foi sancionado condiciona o modo como afronta a questão da medida da pena, focalizando as alegações no ponto em que apela à valorização das circunstâncias pessoais, laborais e sociais do arguido, determinantes de menores exigências de prevenção especial . Trata-se, porém, de circunstâncias que se mostram bem 'situadas' e valoradas na decisão da 1.ª Instância, com acolhimento pelo Tribunal da Relação .

No mais, a decisão sob recurso - e a decisão da 1.ª Instância, na medida do que foi acolhido - enuncia, com suficiência, os bens jurídicos defendidos nela norma violada, indica a moldura legal do crime e as disposições legais que estabelecem as finalidades da aplicação das penas e o limite da respectiva medida ; caracteriza as necessidades de prevenção geral neste tipo de crimes, bem como as concretas exigências de prevenção especial, e indica os factores a ter em conta na determinação da pena . Mostra-se fundamentado, nos termos já transcritos, o juízo sobre o grau de ilicitude e a natureza do dolo, bem como os sentimentos manifestados no cometimento do crime, os fins que o determinaram e a gravidade das suas consequências ; e, como se disse, valoriza-se a ausência de antecedentes criminais e os factores de reintegração do agente na sociedade.

A 1.ª Instância teve como adequada a pena de três anos e seis meses de prisão, com o acordo do Tribunal da Relação .

E há que concluir que - nas circunstâncias do caso e aceitando a fundamentação oferecida pelas Instâncias - a fixação da medida da pena um pouco acima do limite legal mínimo, mas ainda longe do ponto médio da respectiva moldura legal, não traduz qualquer violação do princípio da proporcionalidade nem desrespeita as regras da experiência, mostrando-se necessária à satisfação das exigências de protecção dos bens jurídicos violados, adequada a proporcionar a reintegração do agente na sociedade e, seguramente, sem ultrapassar a medida da culpa, tal como antes caracterizada .

3.5 O recorrente pugnava também pela suspensão de execução da pena de prisão (11).

, mas, como o arguido foi condenado em pena de prisão superior a três anos, essa questão não foi expressamente abordada pelas Instâncias .

Acontece que, no pretérito dia 15 de Setembro, entrou em vigor a Lei n.º 59/07, de 04.09 (art.º 13.º), que veio dar nova redacção ao art.º 50.º, do Código Penal, passando a estabelecer que 'o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição' (quando, na redacção anterior, o instituto de suspensão de execução da pena de prisão estava previsto para penas 'aplicadas em medida não superior a três anos') . Ora, 'quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente (…)' (n.º 4., do art.º 2.º, do C.P.) ; e, como se disse, o arguido foi condenado, na pena de três anos e seis meses de prisão . É patente, assim, que o novo regime se mostra mais favorável ao agente, desde logo porque veio possibilitar a aplicação da suspensão de execução da pena em caso que, segundo a lei anterior, a não permitia .

Haveria, pois, que abordar este aspecto I - (12).

.E convém ter presentes as considerações que, a propósito, este Tribunal deixou expostas no acórdão de 31.05.07, proc. n.º 1893/07 :

I - Como corolário da «preferência» que o art. 70.º do CP manifesta «pela pena não privativa da liberdade sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», o «tribunal, perante a determinação de uma medida de pena de prisão não superior a 3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente (…) a denegação da suspensão, nomeadamente no que toca ao carácter (…) desfavorável da prognose e (eventualmente) às exigências de defesa do ordenamento jurídico» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, § 523).
II - A «conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» assenta, obviamente, no pressuposto de que, por um lado, o que está em causa não é qualquer «certeza», mas, tão-só, a «esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda» (ob. cit., § 521) e de que, por outro, «o tribunal deve encontrar-se a disposto a correr um certo risco – digamos fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade» (ibidem).
III - Porém, «havendo razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não cometer crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada».
IV - É preciso não descaracterizar «o papel da prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição», a funcionar aqui «sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico» e «como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização» (ob. cit., § 501). E daí que a pena de substituição, mesmo que «aconselhada à luz de exigências de socialização», não seja de aplicar se «a execução da pena de prisão se mostra[r] indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias» (idem).

Estamos confrontados, pois, com uma questão nova, resultante da alteração da lei penal, configurando-se a possibilidade de o recorrente beneficiar de uma decisão mais favorável, de acordo com as regras de aplicação de lei penal no tempo. Mas, como se disse, no caso em apreço, nem a 1.ª instância, nem o tribunal recorrido, colocaram a hipótese de suspensão da pena, porque à data tal não era legalmente possível . E, nessa medida, são escassos os elementos susceptíveis de (aqui) fundamentarem tal decisão, não se dispondo, sequer, de relatório social actualizado que sirva de ponderação da aplicabilidade de pena de substituição.

Assim sendo, uma vez que foi confirmada a pena de prisão de 3 anos e 6 meses aplicada ao recorrente, importa proceder à reabertura da audiência em 1.ª instância (13)., para que tenham lugar as diligências reputadas úteis, com o único propósito de se decidir se deve, ou não, ser aplicada a pena de substituição de suspensão de execução da pena de prisão.

4. Nos termos expostos, decide-se :

- negar provimento ao recurso do arguido AA ;

- diferir para o Tribunal de Barcelos a reabertura da audiência, para que tenham lugar as diligências reputadas úteis, com o único propósito de se decidir se deve, ou não, ser aplicada a pena de substituição de suspensão de execução da pena de prisão .

Custas pelo recorrente, com sete UCs. de taxa de justiça .


Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Abril de 2008


Soreto de Barros (relator)
Armindo Monteiro
Santos Cabral
Oliveira Mendes (vencido em parte, por entender que o STJ deveria pronunciar-se, desde já, sobre a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão: «No caso vertente estamos perante arguido que quis satisfazer as suas paixões libidinosas com a filha de três anos de idade, tendo praticado com ela, pelo menos por duas vezes, acto sexual de relevo, com o que causou um sentimento natural de repulsa, de perturbação e de medo. Trata-se de facto delituoso de acentuada ilicitude e de consequências muito graves (…). Por isso, o sentimento jurídico da comunidade (…) impõe que o arguido cumpra em clausura a pena que lhe foi cominada, sendo certo que só assim se cumprem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Deste modo, independentemente de quaisquer considerações de prevenção especial, com eventual juízo de prognose positivo sobre o futuro comportamento do arguido, é de afastar a aplicação da pena de substituição (…)»)
_________________________________________

(1)- V., sobre o assunto, o ac. STJ de 29.03.07, proc. n.º 1031/07 :
I - O recorrente não veio questionar o enquadramento jurídico dos factos, que o tribunal recorrido integrou num crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p.p. pelos artigos 30.º e 172º, n.º 2 do Código Penal. Mas, mais correcto teria sido considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado.
II - No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem.
III - Não podendo este Supremo corrigir “in pejus” a qualificação jurídica do colectivo relativo à existência de um crime continuado, pois o recurso é do arguido e em seu benefício, deve ficar, no entanto, o reparo.
(2)- Logo a seguir diz-se que tal referência acompanhou e condicionou claramente o exame pedopsiquiátrico que se seguiu. Este exame figura a fls. 97, foi pedido pelo Tribunal de Barcelos e consta ter sido realizado por médica pedopsiquiátrica. Foi nele referido que a menor BB "apresenta um déficit de estimulação global, necessitando terapia adequada" e que "'exprime espontaneamente o motivo da sua vinda aqui, relatando com algum pormenor os alegados actos como perpetrados pelo próprio pai".
(3)-O que se segue (e mais adiante se retoma) são apenas os "apontamentos", as notas de quem vai lendo e interiorizando o que de (mais) significativo se colhe do diálogo estabelecido na audiência. Quem toma estas notas (esforçadamente, como quer a .. arte de ler devagar") fica-se pela visitação dos textos: não pode intervir. não dialoga. nem as mesmas substituem a leitura atenta e necessariamente reflexiva da transcrição. Podiam até ser omitidas, mas afiguram-se-nos importantes para melhor compreensão das conclusões a que se chega.
(4)-Mireille Delmas-Marty, "La preuve pénale', in Droits, 23, 1996, e Procédures pénales d'Europe, PUF. 1995. pág. 521. Cf também Barbara 1. Shapiro, Beyond Reasonable Doubt and Probable Cause. Historical Perspective on Anglo American Law of Evidence, Berkeley, 1991: e A Culture of Fact, Cornell University Press, 2000.
(5)- Cf., sobretudo, Alberto Medina de Seiça, O conhecimento probatório do co-arguido, pág. 204.
(6)- Cf. o acórdão do STl de 13 de Fevereiro de 1992 CJ 1992, tomo I, pág. 36: e Germano Marques da Silva, Curso II, pág. 126 e ss.
(7)- José Manuel Damião da Cunha, O caso julgado parcial, 2002, pág. 527 e passim.
(8)- Na doutrina italiana, cf., especialmente, Alessandro Malinverni, Principi del processo penale, G. Giappichelli Editore, Torino, p. 503.
(9)- "Se é certo que o recorrente argumenta largamente em abono, primeiro, da tese da indução, depois da criação de uma situação preordenada, a verdade é que o Colectivo não deixou de ponderar, de forma suficientemente apreensível essa possibilidade, contrariando-a, tendo em conta o estado das coisas a explicar, num texto meticulosamente exposto, ainda que menos cuidado, perdoe-se-nos a observação, na sua sequência expositiva a impor ao leitor um redobro de atenção que esclareça as circularidades com que se vai deparando, mas, insiste-se, sem que se colha qualquer petição de princípio."

(10)- "Para nos deixar tranquilos, [o Colectivo] pôs claramente em relevo que "a tese da defesa entroncou sempre na hipótese de que se trataria de uma conspiração urdida". E deu-lhe resposta, destacando - depois de ter considerado fiáveis, como se viu, as descrições da criança - os danos físicos observados no corpo da menor e o depoimento da psicóloga da CC e da colega que acompanhou a criança. O Colectivo, nas suas próprias palavras, teve a possibilidade de uma detalhada reconstituição histórica dos factos ocorridos nestas datas que remetem necessariamente para o período em que a menor esteve com o seu pai. Acentuou, nomeadamente, que "ao longo destes poucos dias a BB manteve sempre a versão segundo a qual fora o seu pai o autor destes actos".

Não vemos pois por onde se possa fazer reparo à 1ª instância."

(11)- Aparecendo, aliás, o pedido de redução da pena a três anos de prisão como instrumento de tal pretensão, já era esse o primeiro dos pressupostos de aplicação do instituto da suspensão .
(12)- I - Constitui jurisprudência constante do STJ a afirmação do dever de o tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, ter sempre de fundamentar especificamente, quer a concessão, quer a denegação da suspensão da execução da pena, por força dos arts. 50.º, n.º 1, do CP, e 205.º, n.º 1, da CRP, e, designadamente, no segundo caso, no que toca ao carácter desfavorável da prognose (de que a censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição) e às exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (na base de considerações de prevenção geral).
II - Na verdade, com a redacção que introduziu relativamente ao n.º 1 do art. 50.º do CP, o DL 48/95, de 15-03, tornou claro o que já vinha sendo objecto de entendimento anterior: se se verificarem os pressupostos ali exigidos, o tribunal não tem um poder discricionário, mas antes vinculado no sentido da suspensão da execução da pena. Esta imposição determina que o tribunal, perante pena com tal dimensão, não possa deixar de indagar se se verificam os apontados requisitos (imposição corroborada pelo disposto no art. 70.º do CP), incorrendo, se não o fizer, em nulidade por omissão de pronúncia (cf. arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP), de conhecimento oficioso, mesmo em sede de recurso.
III - O TC, no seu Ac. n.º 61/06, de 18-01, já se pronunciou sobre a questão, decidindo julgar inconstitucionais as normas dos arts. 50.º do CP, 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do CPP, quando interpretadas no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.
(Ac. STJ de 29-05-2007, proc. n.º 1598/07)
(13)- Art.ºs 371.º e 371.º, do C.P.P.