Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1198/16.1T8SXL-A.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA
CESSÃO DE CRÉDITOS
CESSIONÁRIO
IMOVEL
DIREITO DE RETENÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PROCESSO ORDINÁRIO / CONCURSO DE CREDORES.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 12.ª edição, p.183;
- Júlio Gomes, Do direito de retenção, Cadernos de Direito Privado, n.º 11, julho-setembro 2005, p. 3 e ss.;
- Romano Martinez, Garantias de Cumprimento, 5.ª edição, p.227.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4, 671.º, N.º 1 E 791.º, N.º 4.
Sumário :

I. O cessionário do promitente-comprador, que adquire os créditos emergentes do incumprimento do contrato-promessa, não beneficia do direito de retenção, na ação de graduação de créditos apensa a ação de divisão de coisa comum, se não alegar que é detentor do imóvel.

II. Um contrato de cessão de créditos e inerentes garantias não é, por si só, suficiente para demonstrar que o adquirente dos direitos de crédito do promitente comprador também é titular do direito de retenção, porque esta garantia é inerente à detenção fáctica do imóvel.

III. Do disposto no art.791º, n.4 do CPC não pode concluir-se que o reclamante de um crédito tem o direito de retenção, quando não alegou quaisquer factos reveladores da qualidade de detentor do imóvel.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Os presentes autos de reclamação de créditos correm por apenso à ação de divisão de coisa comum, que tem como Autora “CC, Ldª” e como Ré DD.

2. Nestes autos vieram reclamar créditos (entre outros credores, que agora não releva considerar):

- «AA, SA», que reclamou a quantia de €550.721,21 referente a mútuos bancários e juros, com hipotecas que incidem sobre o imóvel objeto da ação de divisão de coisa comum nos autos principais;

- «BB – ..., Lda.», que reclamou a quantia de €783.260,00, englobando o valor de €550.000 a título de capital e o valor de € 233.260,00 a título de juros de juros de mora, referente a crédito resultante do incumprimento de contrato promessa de compra e venda do imóvel em causa nos autos principais, alegando ter direito de retenção.

Esta reclamante juntou aos autos certidão da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena, de 01.02.2006, com nota de trânsito em julgado em 23.02.2006 (a fls. 246-256 dos autos), proposta por “EE, Inc.”, que passou posteriormente a denominar-se “FF INC.”, contra GG e a Ré nos autos principais, bem como cópia de um «Contrato de Cessão de créditos e de Transmissão de Garantias e de Direitos», celebrado entre aquela «FF INC.» e a reclamante «BB, ..., Lda.», datado de 22.12.2009, (a fls.185-193 dos autos).

3. A primeira instância (por sentença de fls 379 e seguintes dos presentes autos) graduou o crédito da “AA” em segundo lugar [após os créditos de IMI reclamados pelo Ministério Público em representação do Estado – Fazenda Nacional], mas não reconheceu o crédito reclamado pela “BB”.

4. Inconformada, a credora “BB” interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa decidido nos termos que se transcrevem:

«Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, alterando a sentença recorrida, pelo que julgando também reconhecidos os créditos reclamados por “BB, ... Lda.”, são os mesmos graduados em 2º lugar – após os créditos de IMI reclamados pelo Ministério Público em representação do Estado – Fazenda Nacional, e anteriormente aos créditos reclamados por “AA”, que passam a ser graduados em 3º lugar, passando os créditos reclamados pelo “Instituto da Segurança Social, IP” a ser graduados em 4º lugar

5. A credora “AA”, inconformado com a decisão da segunda instância, que reconheceu o crédito da credora “BB” e o graduou antes do seu, interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«1. Decidiu, em suma, o tribunal de cujo Acórdão se recorre que o tribunal de primeira instância devia ter reconhecido o direito de crédito e garantia à reclamante, BB — Imp. e … Lda., ora recorrida, uma vez que não estava em questão nenhuma exceção dilatória de conhecimento oficioso, que aquele tribunal pudesse conhecer.

2. Reconhecendo, por conseguinte, o crédito reclamado pela BB — … Lda. e bem como o respetivo direito de retenção.

3. Na reclamação de créditos apresentada pela recorrida falhou, de forma evidente, a exposição dos factos que permitiram concluir pela traditio do imóvel, bem como o pedido de reconhecimento do direito.

4. Dispõe a alínea d) do n.1 do art. 552º do C.P.C. que: "Na petição, com que propõe a ação, deve o autor: expor os factos essências que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamentação à ação”.

5. Por sua vez, decorre do n. 2 do art. 604º do C.C que, para que exista um direito de retenção, é necessário que o respetivo titular detenha licitamente uma coisa que deva entregar a outrem e que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deva a restituição, bem como que entre os dois créditos haja uma relação de conexão nas condições nele definidas "resultar o credito de quem esteja obrigado a entregar a coisa de despesa com ela feitas ou de danos por ela causados" (in Código Civil anotado por Antunes Varela e Pires de Lima Vol. l, 4.º ed., pág. 773).

6. Acresce ainda, nos termos do disposto no n. 1 e alínea a) do n. 2 do art. 186º do C.P.C., que: "É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial" e "Diz-se inepta a petição: quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.

7. Tendo faltado, por parte da recorrida BB — … Lda., a exposição dos factos que consubstanciariam uma eventual traditio do imóvel, bem como a formulação do pedido de verificação do direito de retenção, não só faltou a invocação da causa de pedir, como também a indicação do pedido.

8. Pelo que, o tribunal de primeira instância, ao abrigo do disposto nos artigos, 552º, 186º n. 1 e 2 alínea a), 576º n. 2 e alínea b) do art. 577º do C.P.C. podia e devia ter conhecido oficiosamente a exceção dilatória não suprível, com o consequente não reconhecimento do direito de crédito e de retenção em questão na reclamação de créditos apresentada pela recorrida.

9. Ainda que assim não se entendesse, o que se equaciona como mera hipótese, sempre seria de trazer à colação o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 19 de Maio de 2014, no âmbito do qual foi fixada a seguinte jurisprudência: "No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente -comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador de insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º n. 1 alínea f) do Código Civil.".

10. Pretendeu o aresto em questão, com a jurisprudência fixada, proteger o promissário da transmissão de imóvel, para habitação, que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor, ou seja, teve em atenção a protecção da parte contratual muitas vezes considerada de "mais fraca", em detrimento de credores hipotecários

11. A recorrida é pessoa colectiva, pelo que, se pode concluir, com evidência, que não é, à luz da Lei, consumidora para efeitos da aplicação da jurisprudência fixada no aresto acima citado.

12. Logo, em sede de graduação de créditos, não podia o tribunal do qual se recorre ter decidido graduar o crédito da recorrida à frente do crédito hipotecário da recorrente.

13. Pelo que, resultaram violados os artigos 552º, 186º, n.s 1 e 2 alínea a), 576º n. 2 e alína b) do art. 577º do C.P.C. e alínea f) do n. 1 do art. 755º do C.C., pela prolação do Acórdão recorrido

Nestes termos e nos melhores de direito,
requer a V. Exa. se digne revogar o Acórdão recorrido e substituí-lo por outro que dê como não reconhecido o crédito e garantia da recorrida BB — ...Lda. ou, em alternativa, graduá-lo a seguir ao crédito hipotecário da ora recorrente
»

6. A recorrida apresentou contra-alegações, nas quais defendeu, em síntese, a total improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida nos exatos termos em que foi proferida. 


*

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Admissibilidade e Objeto do recurso:

O presente recurso é admissível, por se verificarem os requisitos de admissibilidade previstos no art.671º, n.1 do CPC.

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (art.635º, n.4), tendo por referente o âmbito decisório do acórdão recorrido, importa saber se a decisão em revista fez a correta aplicação do direito quando:

Reconheceu o direito de retenção da recorrida e, consequentemente, admitiu a graduação do seu direito de crédito; e determinou a respetiva graduação antes do crédito da recorrente.

2. A factualidade provada:

«1) Nos autos principais, por sentença proferida em 13.10.2016, foi declarada a indivisibilidade do prédio urbano sito em ..., lote …, Rua ..., freguesia de ... - ..., com o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., com valor patrimonial de €141.831,00, que pertence, em comum e na proporção de metade a “CC, Lda.”, e na proporção de metade, a DD – (sentença proferida nos autos principais de fls. 37 a 45).

2) Por escritura pública realizada no dia 07.12.1999, o Banco HH, S.A. outorgou documento intitulado de “contrato de mútuo com hipoteca”, nos termos do qual declarou que nessa data concedia a DD e a GG a quantia de quarenta milhões de escudos, quantia correspondente a € 199.519,16, com vista à construção do imóvel referido em 1), a ser reembolsada no prazo de 18 anos, acrescida de juros à taxa anual efectiva de 4,33% – (escritura pública de mútuo com hipoteca de fls. 54 a 67).

3) E declarou ainda que para garantia de pagamento da referida quantia, bem como do pagamento das despesas judiciais e extrajudiciais, constitui hipoteca a seu favor, sobre o prédio urbano referido em 1), que se encontra registada sob a apresentação 63 de 1999/10/28 e apresentação 129 de 2000/01/14 – (certidão do registo predial de fls. 27).

4) A quantia referida em 2) foi entregue à Requerida e a GG, através de depósito em conta por estes titulada - (cfr. doc. de fls. 56).

5) Por escritura pública realizada no dia 13.03.2001, o Banco II, S.A., outorgou documento intitulado um “contrato de mútuo com hipoteca”, nos termos do qual declarou que nessa data concedia a DD e a GG a quantia de quinze milhões de escudos, correspondente a €74.819,68, com vista à construção do imóvel referido em 1) para habitação própria e permanente, a ser reembolsada no prazo de duzentos meses, acrescida de juros à taxa anual efectiva de 4,33% – (escritura pública de mútuo com hipoteca de fls. 36 a 47).

6) E declarou ainda que para garantia de pagamento da referida quantia, bem como do pagamento das despesas judiciais e extrajudiciais, constitui hipoteca a seu favor, sobre o prédio urbano referido em 1), que se encontra registada sob a apresentação 47 de 2001/06/01 – (certidão do registo predial de fls. 27).

7) A quantia referida em 5) foi entregue à Requerida e a GG, através de depósito em conta por estes titulada - (cfr. doc. de fls. 38).

8) Por escritura pública realizada no dia 03.05.2002, o Banco de II, S.A., outorgou documento intitulado de “contrato de mútuo com hipoteca”, nos termos do qual declarou que nessa data concedia a DD e a GG a quantia de €174.579,26, a ser reembolsada no prazo de duzentos meses, acrescida do juros à taxa anual efectiva de 4,33% – (escritura pública de mútuo com hipoteca de fls. 15 a 25).

9) E declarou ainda que para garantia de pagamento da referida quantia, bem como do pagamento das despesas judiciais e extrajudiciais, constitui hipoteca a seu favor, sobre o prédio urbano referido em 1), que se encontra registada sob a apresentação 9 de 2003/01/31.

10) A quantia referida em 8) foi entregue à Requerida e a GG, através de depósito em conta por estes titulada - (cfr. doc. de fls. 17).

11) As obrigações assumidas e decorrentes dos acordos referidos em 2), 5) e 8), deixaram de ser cumpridas a 15.08.2004.

12) A 25 de Novembro de 2016, o capital decorrente do aludido em 2), 5) e 8), ascendia, respectivamente, a € 163.808,13, € 63.820,41 e € 113.486,64

13) Os créditos resultantes dos contratos referidos em 2) a 8) foram cedidos, a 10.12.2007, em conjunto, à “JJ.”, com sede em ..., em Londres.

14) A 12.03.2008 a “JJ” cedeu a sua posição contractual à ora credora reclamante AA, S.A.

15) A 01.04.2008 as entidades bancárias referidas em 2) a 7), cederam a AA, S.A., as hipotecas que garantem os créditos cedidos referidos em 13) e que recaem sobre o bem identificado em 1), que se encontra registada, respectivamente, sob a apresentação 10 de 2008/05/23, 4324 de 2010/03/18 e 4325 de 2010/03/18 - (cfr. certidão do registo predial de fls. 29).

16) Por sentença proferida no âmbito do processo n. 304/04.3TBACN, que correu termos no então Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena, em que figuravam como Autor “EE INC.” e como Réus a DD e GG, foram estes condenados a restituir à Autora a quantia recebida a título de sinal, em dobro, no montante de € 550.000,00, acrescido de juros, à taxa anual de 4%, contados desde a data da citação naqueles autos até efectivo e integral pagamento, referente ao incumprido acordo celebrado entre ambos intitulado de “contrato–promessa de compra e venda” que tinha por objecto o imóvel referido em 1).

17) No âmbito do processo referido em 16), foram ainda condenados os aí Réus a “reconhecer-lhe o direito de retenção sobre o prédio identificado” em 1.

18) A 22.12.2009 a “EE INC.” cedeu o crédito referido em 16), garantias, direitos e demais acessórios, a “BB, ... Lda.”

19) DD encontra-se inscrita como trabalhadora independente, no Centro Distrital de Setúbal, sob o n.º ....

20) E como tal, constitui obrigação da mesma, o pagamento da contribuição correspondente à sua remuneração.

21) KK não entregou àquele organismo a contribuição, no montante mensal de €124,09, referente aos meses de Abril de 2013 a Dezembro de 2013, no montante total de €1.116,81.

22) O Montante referido em 21) venceu juros, no montante total de €212,69, vencidos até 17.02.2017.

23) DD não liquidou Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) relativo ao prédio aludido em 1), referente aos seguintes anos:

a). ano de 2013 (prestação de Abril, Agosto e Novembro), inscrito para cobrança no ano de 2014, no montante de €363,58 e acrescida de juros de mora desde 01/05/2014, contados até Fevereiro de 2017, no montante de € 49,07;

b). ano de 2014 (prestação de Abril, Julho e Novembro), inscrito para cobrança no ano de 2015, no montante de €374,94 e acrescida de juros de mora desde 01/05/2015, contados até Fevereiro de 2017, no montante de € 30,18;

c). ano de 2015 (prestação de Abril, Julho e Novembro), inscrito para cobrança no ano de 2016, no montante de €475,85 e acrescida de juros de mora desde 01/05/2016, contados até Fevereiro de 2017, no montante de € 9,7.»

   

3. O direito aplicável:

3.1. Sendo a ação principal um processo especial para divisão de coisa comum (previsto no art.925º e seguintes), o art.549º, n.2 do CPC manda aplicar as regras previstas no art.788º e seguintes, no que respeita à reclamação e graduação de créditos, quando os bens tenham de ser vendidos.

3.2. O acórdão em revista, revogando a decisão da primeira instância, baseou-se, essencialmente, no art.791º, n.4 do CPC para reconhecer à agora recorrida [“BB”] o direito de retenção e, consequentemente, graduar o seu crédito antes do crédito da agora recorrente [“AA”].

Afirma-se nesse acórdão:

 «Recordemos que o crédito reclamado e a respectiva garantia constavam de sentença transitada em julgado que os reconhecera, como salienta a apelante. Termos em que, face ao disposto na primeira parte do n. 4 do art. 791º do CPC (porque não se verifica qualquer das circunstâncias referidas na 2ª parte do aludido n. 4), atento o efeito cominatório pleno estabelecido na lei, haverá que ter como reconhecido o crédito reclamado por “BB, ... Lda.” e a respectiva garantia.»

E acrescenta-se:

«Consequente ao que supra expendemos, resta-nos a questão referente à graduação dos reconhecidos créditos.

O art. 759º do CC equipara o titular do direito de retenção de coisas imóveis ao credor hipotecário e dá-lhe a faculdade de executar a coisa para pagamento do seu crédito e o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores do devedor, concedendo prioridade ao seu titular sobre o credor hipotecário, ainda que a hipoteca tenha sido registada anteriormente.

Deste modo, sendo a apelante “BB, ... Ldª” titular de um crédito garantido com o direito de retenção, o crédito reclamado pela apelante deverá ser graduado após os créditos dotados de privilégio imobiliário especial, por força do n.1-b) do art. 748º e do art. 751º do mesmo Código, e anteriormente aos créditos hipotecários da reclamante “AA, SA”

Vejamos se a decisão em revista fez a correta aplicação do direito.

3.3. Estabelece o art.788º, n.1 do CPC que: “Só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respetivos créditos”. E o n.2 acrescenta que a reclamação tem por base um título exequível.

Deste modo, só o credor que preencha estes dois requisitos cumulativos pode ver os seus créditos reconhecidos e graduados numa execução.

3.4.  Atendendo ao que se deu como provado nos pontos 16 e 18 da matéria de facto, não há dúvida de que a recorrida “BB” é titular de um crédito, que adquiriu à “EE”, que posteriormente passou a designar-se “FF Inc”, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas (como consta da sentença do tribunal de Alcanena, a fls. 248 dos autos), em 22.12.2009, através de contrato celebrado por notário público em Gibraltar (a fls. 373 e seguintes dos autos).

Crédito este que havia sido reconhecido à transmitente por decisão judicial (do Tribunal de Alcanena), de 01.02.2006, em consequência da resolução de um contrato-promessa de compra e venda [no qual a “EE” era promitente-compradora] respeitante ao imóvel que agora é alvo de divisão de coisa comum nos autos principais.

Todavia, como decorre do art.788º do CPC, para que os créditos possam ser reconhecidos e graduados neste tipo de ação (destinando-se o imóvel a ser vendido), não basta ter um crédito corporizado num título executivo. É ainda necessário que, cumulativamente, o credor reclamante tenha uma garantia real sobre o imóvel.

O acórdão em revista entendeu que a “BB” era titular do direito de retenção sobre o imóvel (alvo da ação de divisão de coisa comum), com base no art.791º, n.4 do CPC, porque a “AA” não tinha impugnado o crédito reclamado e a garantia invocada por aquela credora (nos termos do 789º, n.3 do CPC).

3.5. O problema crucial a solucionar é, assim, o de saber se foi feita a correta interpretação e aplicação do art.791º, n.4 do CPC quando, com base nesta norma, foi reconhecido o direito de retenção à recorrida.

Nas suas alegações de recurso, a recorrente afirma que a “BB”, na reclamação de créditos, não invocou quaisquer factos que demonstrassem a traditio e detenção do imóvel por essa credora.

Do disposto nos pontos 17 e 18 da matéria de facto provada consta que o direito de retenção foi judicialmente reconhecido à promitente compradora do imóvel (“EE”), em 2006, e que esta transmitiu o direito de crédito e suas garantias, incluindo o direito de retenção, em 2009, à “BB”.

O ponto 18 da matéria de facto provada reproduz, assim, o que consta do ponto n.3 do contrato de cessão de créditos que se encontra a fls. 376 dos autos, no qual figura como cedente a “FF, Inc.”, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, a qual é a atual denominação da anterior “EE, …, Inc”, também com sede nas Ilhas Virgens Britânicas.

A conclusão de que houve transmissão do direito de retenção parece ter-se baseado apenas no referido contrato de cedência de créditos e garantias, quando, em rigor, sendo uma conclusão essencialmente de direito, importaria a demonstração autónoma da cedência efetiva do imóvel a reter.

Também no requerimento de reclamação de créditos (a fls.371-372 dos autos), apresentado em 2016, a reclamante (agora recorrida) não alega qualquer facto que demonstre ter a detenção do imóvel.

Limita-se a afirmar (pontos 5º e 6º desse requerimento) que tem a posse legítima do imóvel porque o crédito e a inerente garantia – direito de retenção – lhe foi transmitido pelo (supra referido) contrato de cedência de créditos e garantias (lavrado em Gibraltar).

De todo o modo, a circunstância de constar da matéria de facto provada que o direito de retenção foi transmitido à “BB”, em 2009, não permite concluir, por si só, que quando esta reclama o crédito, em 2016, ainda se encontre, efetivamente, na posse (em sentido amplo) do imóvel. 

Na realidade, da factualidade provada não consta qualquer informação respeitante ao eventual uso que o recorrida faça do imóvel em causa. Nada se encontra provado que revele a efetiva detenção desse bem pela recorrida – reclamante do crédito – à data em que o crédito é reclamado.

Se só existe direito de retenção sobre coisas, e não sobre direitos[1], não basta que o credor reclamante alegue que, através daquele contrato, lhe foi transmitido o direito de retenção e que, por essa razão, é possuidor do imóvel. Tem de alegar que, à data em que reclama o crédito, é efetivamente detentor do imóvel sobre o qual pretende invocar o direito de retenção.

Na reclamação de créditos, não existe a mínima referência à prática de qualquer ato material ou modo de uso, entre o momento da celebração do contrato, através do qual se declara que lhe é transmitido o direito de retenção (2009), e o momento da sua invocação para efeitos de reconhecimento e graduação de créditos (em 2016), que revele a manutenção da detenção do imóvel.

3.6. Nos termos do art.754º e seguintes do CC, o direito de retenção, enquanto direito real de garantia não sujeito a registo, assenta na verificação dos seguintes requisitos: a detenção licita de um bem, por quem invoca esse direito[2]; a titularidade de um crédito respeitante ao bem retido (fundado nas razões especiais previstas nas alíneas do n.1 do art.755º ou nas circunstâncias previstas na última parte do art.754º); e a obrigação de restituir a coisa detida ao credor desta prestação de facto, que é, por sua vez, o devedor da obrigação pecuniária correspondente àquele crédito.

A transmissão da posse do imóvel a terceiro, se desacompanhada da transmissão do direito de crédito garantido, não constitui transmissão do direito de retenção (como estabelece o art.760º). Do mesmo modo, é lógico concluir-se que a transmissão do crédito garantido sem a efetiva transmissão da posse do bem também não consubstancia uma hipótese de transmissão do direito de retenção. Por outro lado, o credor que é possuidor do bem (que deve devolver) não é necessariamente titular do direito de retenção: assim acontecerá caso o devedor da obrigação pecuniária preste caução suficiente para garantir esse crédito, como estabelece o art.756º, al. d). Deve ainda notar-se que, apesar de se manter o direito de crédito, o direito de retenção desaparece caso o credor (da obrigação pecuniária) entregue a coisa retida, como estabelece o art.761º do CC.

No que respeita especificamente à transmissão desta garantia, deve notar-se que, em termos gerais, a declaração de vontade pela qual alguém afirma transmitir um direito de retenção a outrem, sendo necessária, não é, todavia, suficiente para se concluir que o retentor passou a ser outra pessoa. É necessário que tal declaração seja acompanhada de atos de efetiva entrega do bem retido (para além, obviamente, da transmissão do crédito garantido), pois, pela sua própria natureza, trata-se de um direito que só existe porque se detém licitamente um bem alheio[3].

Estas notas de regime permitem concluir que a presença de um direito de retenção só se revela, em concreto, pela específica invocação dos seus elementos constitutivos. 

Se o direito de retenção fosse sujeito a registo, as vicissitudes de tal direito seriam, naturalmente, conhecidas por qualquer interessado através do acesso ao registo. 

Não se tratando de um direito registável, mas sim de um direito legalmente reconhecido ao credor que, simultaneamente, tem a qualidade de detentor, a presença deste elemento material, constitutivo do direito, não pode deixar de ser invocada por quem pretende fazer valer o direito com efeitos também em relação a terceiros, onde relevam particularmente os credores hipotecários, dado o facto de o art.759º, n.2 fazer prevalecer o direito de retenção sobre a hipoteca ainda que anterior.

3.7. No caso concreto, sendo o direito de retenção do promitente-comprador uma garantia real que emerge da detenção do imóvel (traditio), nos termos do art.755º, al. f) do CC, a invocação da titularidade dessa garantia não pode desligar-se da alegação desse elemento constitutivo.  

Para o efeito, deve ter-se presente que da matéria de facto provada (ponto 18) resulta apenas que, em 2009, a “BB” adquiriu, por contrato, o crédito e inerentes garantias.

Não sendo o direito de retenção sujeito a registo, a dimensão de “publicidade” desta garantia real emerge do controlo fáctico que o retentor exerce sobre a coisa retida. O retentor da coisa é, assim, por definição, o seu detentor, pois é necessário deter para reter[4]; e é aquele que está obrigado a restituir essa coisa quando lhe for pago o crédito emergente do incumprimento do contrato-promessa[5].

Contrariamente ao que a recorrida sugere nas suas contra-alegações, não pode existir desfasamento entre a qualidade de detentor e a qualidade de retentor, nem entre a qualidade de retentor e a de credor. Se a coisa prometida vender se encontrar licitamente na posse de terceiro, o credor reclamante não poderá invocar o direito de retenção, porque, não sendo detentor, não terá a qualidade de retentor.

Concluindo-se que a recorrida, na sua reclamação de créditos, não alegou quaisquer factos materiais corporizadores de uma efetiva detenção do imóvel prometido comprar e relativamente ao qual invoca o direito de retenção, cabe averiguar se, por força do art.791º, n.4, esse direito lhe devia ser reconhecido.

A nosso ver, o sentido do art.791º, n.4 não é o de reconhecer direitos cujos elementos constitutivos não foram alegados.

Se a agora recorrida, ao reclamar o seu crédito, tivesse alegado que praticava algum tipo de atos no imóvel, por exemplo, destinando-o a alguma atividade económica, que revelassem a existência da detenção desse bem (ou seja, a condicionante material do direito de retenção), ainda que não fizesse a prova dos factos constitutivos do direito alegado (como estabelece o art.342º, n.1 do CC), esses factos (alegados) resultariam provados por aplicação do art.791º, n.4, dada a falta de impugnação do crédito e da garantia pelos outros credores. Todavia, no caso concreto, como já se afirmava na decisão da primeira instância, o reclamante do crédito (o agora recorrido) não alegou factos que permitissem concluir que tinha a detenção do imóvel, à data da reclamação do crédito.

Assim, concluiu-se que a decisão recorrida fez errada aplicação do art. 791º, n.4 do CPC.

3.8. Concluindo-se que a recorrida não tinha direito de retenção quando reclamou o seu crédito, falha a verificação de um dos pressupostos cumulativos exigidos pelo art.788º do CPC para que o crédito possa ser graduado. Deste modo, fica prejudicada a questão de saber se o crédito da recorrida devia ser graduado antes ou depois do crédito da recorrente, porquanto tal crédito não reúne os requisitos para poder ser graduado para os efeitos dos presentes autos.

 

DECISÃO: Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, ficando a prevalecer o decidido em primeira instância.

Custas: pela recorrida.

Lisboa, 10 de setembro de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] Romano Martinez, Garantias de Cumprimento, 5ª ed., pág.227.
[2] Se a detenção for ilícita não há direito de retenção, como decorre do art.756º, al. a) do CC.
[3] Num prisma de análise teórica e genérica, poderá afirmar-se que a não exigência de alegação da concreta factualidade demonstradora da detenção do imóvel pelo credor que pretende invocar o direito de retenção poderia contribuir para facilitar a existência de conluios entre promitente vendedor e promitente comprador no sentido de impedir ou dificultar o recebimento do crédito mutuado (ao primeiro) por um credor hipotecário, dada a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, estabelecido pelo art.759º, n.2.

[4] Júlio Gomes, “Do direito de retenção (arcaico, mas eficaz …)”, in Cadernos de Direito Privado, n.11 (julho-setembro 2005), pág.3 e segs.

[5] Como afirma Calvão da Silva: “a coisa retida tem de estar na posse do retentor”, Sinal e Contrato Promessa (12º ed.), pág.183.