Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
25639/18.4T8LSB.L2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL CRIMINAL
AÇÃO PENAL
CRIME SEMIPÚBLICO
CRIME PARTICULAR
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL CÍVEL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I.- O pedido de indemnização civil emergente do crime, enxertado no processo penal, assume a natureza de verdadeira acção civil, e visa a atribuição do direito à indemnização pelos danos causados pela actuação criminosa, vigorando no nosso ordenamento jurídico o sistema da adesão obrigatória (art.71 Código de Processo Penal) só podendo sê-lo em separado em situações excepcionais, como as taxativamente previstas no art.72 nº 1 do Código de Processo Penal.

II.- A alínea c) do nº 1 do art.72 do Código de Processo Penal (“O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, quando o procedimento depender de queixa ou de acusação particular”) deve ser complementada e conjugada com o nº 2 do art.72 CPP (“No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”).

III.- Da conjugação  de ambas as normas, e  em face do elemento histórico, sistemático e teleológico, resulta a interpretação de que nos crimes de natureza semi-pública e particular o  lesado tem duas opções: opta, antes da queixa, pela acção civil em separado e impede o exercício da acção penal através da renúncia; ou opta pela acção penal, e  então a acção civil ( fora dos casos das alíneas a) e b) do nº 1 art. 72 CPP ) terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão obrigatória.

IV. A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência material do tribunal cível.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO


1.1.- A Autora - AA - instaurou (18/11/2018) acção declarativa de condenação, com forma de processo comum, contra o Réu- BB.

Alegou, em resumo:

No dia 16/2/2017, a Autora foi intencionalmente atropelada pelo Réu, que conduzia automóvel de matrícula ...-RV-..., na sequência de um desentendimento de trânsito protagonizado por ambos.

Em consequência, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.

Pediu a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização à Autora na quantia total de € 30.931,90, sendo € 30.000,00 por danos não patrimoniais e € 931,90 por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação para a presente acção até efectivo pagamento.


1.2. O Réu, citado, apresentou contestação fora do prazo, e, por despacho de 14/10/2019, foi determinado o desentranhamento, confirmado por Ac Relação de Lisboa de 4/6/2020.

1.3. A factualidade ocorrida deu igualmente origem a procedimento criminal cujo processo-crime na forma comum e de Juiz Singular correu termos com o nº 2336/17... pelo Juízo Local Criminal..., J ....

Nesse processo por sentença de 31/1/2019, Réu foi condenado pela prática de um crime de ofensas corporais à integridade física da ora Autora p. e p. no artigo 143º, 1 do CP, na pena de 150 dias de multa à razão diária de 10 €, no total de € 1.500,00, susceptíveis de conversão em 100 dias de prisão.

A sentença veio a ser confirmada em recurso, por acórdão de 12/9/2019 da Relação de Lisboa.


1.4.- Atenta a revelia operante, foram dados por confessados os factos articulados pela Autora na petição inicial.


1.5. Por sentença de 29/12/2020, decidiu-se julgar a acção procedente e condenar o Réu no pedido.


1.6. O Réu recorreu de apelação e a Relação de Lisboa, por acórdão de 10/2/2022, decidiu:

“Julga-se a acção parcialmente procedente e, por via disso, condena-se o Réu BB a pagar à Autora, AA, as seguintes quantias:

- € 20.000,00 a título de reparação de danos morais sofridos, a que acrescem juros de mora, à taxa supletiva legal que for vigorando para as operações civis, vencidos com o trânsito em julgado deste acórdão, e vincendos até integral e efectivo pagamento.

- € 931,90 a título de indemnização por danos patrimoniais, a que acrescem juros de mora, à taxa supletiva legal que for vigorando para as operações civis, vencidos desde a citação e os vincendos até integral e efectivo pagamento.

No mais peticionado vai o Réu absolvido.

Julga-se improcedente o pedido de condenação do Réu como litigante de má fé.

Custas nas duas instâncias pelo Réu em 6/8 e pela Autora em 2/8.”


1.7. -O Reu recorreu e revista, com as seguintes conclusões:

1. Relativamente à questão da competência do tribunal e do princípio da adesão, os Exmos. Senhores Juízes Desembargadores declararam aderir expressamente à posição constante do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.06.2020, processo n.º 382/18.8T8STS-A.P1, do qual resulta que: da conjugação do artigo 72.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal com o artigo 72.º n.º 2 do mesmo diploma, é possível concluir que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal; e que ainda que, para a ação em separado, não basta que o procedimento dependa de queixa ou de acusação particular, sendo indispensável que não se exerça o direito de queixa ou de acusação, isto é, que o lesado renuncie ou esteja em situação equivalente a renúncia de tal direito, pois, de outro modo, para além de não se conseguir a melhor interpretação legal, estar-se-ia a comprometer em grande parte o principio da adesão, dada a extensão dos crimes semipúblicos e particulares.

2. Ao decidirem em sentido diametralmente oposto, os Exmos. Senhores Juízes Desembargadores concluíram que a A., recorrida, podia ter instaurado a ação que deu origem aos presentes autos apesar de se encontrar pendente o processo-crime.

3. Os fundamentos da decisão estão em clara oposição com a mesma, na medida em que, aqueles fundamentos conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão recorrida, mas a um resultado oposto, o que, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1 do CPC, aplicável aos acórdãos do Tribunal da Relação por remissão do artigo 666.º do CPC, faz com que o acórdão de que se recorre se encontre ferido de vício de nulidade, a qual, deverá ser declarada por este Supremo Tribunal, e, consequentemente, ser a decisão recorrida substituída por outra em que tal vício seja expurgado.

4. Mesmo que se ficcione que não se verifica qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, isto é, que os Venerandos Desembargadores fundamentaram a sua posição de acordo com a decisão que vieram a proferir e, consequentemente que inexiste qualquer vício de nulidade, ainda assim, não poderíamos deixar de assinalar que ao julgarem improcedente a invocada exceção de incompetência material, o Tribunal recorrido incorreu em erro de interpretação e aplicação da matéria de direito, concretamente, do disposto no artigo 71.º e 72.º do CPP.

5. A A. peticionou que o R. fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 30.931,90, a título de reparação e compensação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do atropelamento de que foi alegadamente vítima em 16 de fevereiro de 2017.

6. Em consequência dos factos em causa nos presentes autos, a A. apresentou uma queixa-crime, que deu origem ao processo que, com o n.º 2336/17..., que correu termos no Juízo Local Criminal... – juiz ....

7. O artigo 71.º do Código de Processo Penal determina que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”

8. Excecionalmente, entre outros, o artigo 72.º n.º 1 alínea c) do mesmo diploma, prevê que é admissível a dedução do pedido de indemnização civil perante os tribunais civis, sempre que esteja em causa um crime semipúblico ou particular, todavia, apesar da referida exceção, tem sido entendido pela doutrina e jurisprudência que tal preceito tem de ser interpretado de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, segundo o qual, no caso de procedimento dependente de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação particular vale como renúncia a esse direito.

9. A intenção do legislador ao prever a hipótese contida na referida alínea c) do n.º 1 do artigo 72.º foi, tão-somente, conceder ao lesado a possibilidade de optar pelo cariz do procedimento legal que pretende lançar mão, e não permitir-lhe fazer uso indiscriminado de dois tipos de processo de forma simultânea, ou seja, a não obrigatoriedade de adesão no caso de crimes semipúblicos ou particulares significa apenas um direito de opção, entre uma ação e outra e não a concomitante existência das duas, isto é, implica apenas que, uma vez deduzida a ação civil antes da apresentação da queixa fica impedido o futuro processo penal, e que tendo havido lugar a queixa o lesado pode posteriormente desistir da mesma e instaurar ação de responsabilidade nos tribunais civis, não podendo, todavia, intentar ação civil quando já se encontra pendente o respetivo processo penal sem dele desistir, o que sucedeu in casu.

10. Contra este entendimento não poderão proceder os argumentos constantes do acórdão recorrido, segundo os quais, os factos constantes da petição inicial são mais abrangentes dos factos que foram apreciados no processo-crime, na medida em que, da análise da queixa-crime e da petição inicial facilmente se constata que a factualidade em causa é precisamente a mesma, sendo absolutamente irrelevante que no julgamento realizado no processo-crime apenas tenham sido apreciados os factos suscetíveis de integrar a prática do crime de ofensas à integridade física, e não do crime de injúria e de omissão de auxílio, pois, esta factualidade foi toda apreciada ao longo do processo, só não tendo sido tida em conta em sede de julgamento porquanto, previamente, havia sido proferida decisão de arquivamento quanto ao crime de injúrias, e não pronuncia quando ao crime de omissão de auxílio, sendo, na verdade, precisamente isso que se pretende evitar através do princípio da adesão, ou seja, a existência de decisões contraditórias, decidindo-se no âmbito de um processo-crime que não se verifica a prática de um crime de omissão de auxilio, e no âmbito de um processo de natureza cível se julgue

11. O pedido de indemnização civil deveria ter sido deduzido no âmbito do processo penal, pelo que, temos de concluir que o Tribunal ad quem era incompetente em razão da matéria para decidir esta ação.

12. Quanto aos efeitos da revelia o Tribunal não teve em consideração que pode ser absoluta ou relativa, sendo certo que, a primeira verifica-se quando o R. não pratica qualquer ato na ação pendente, e a segunda quando o R. não contesta, mas pratica em juízo qualquer outro ato processual, designadamente a constituição de mandatário judicial.

13. Quer seja relativa ou absoluta, a revelia pode ser operante ou inoperante, sendo operante quando produz efeitos quanto à composição da ação, e inoperante quando esses referidos efeitos não se realizam, isto é, quando a falta de contestação nada implica quanto à decisão da causa.

14. Importa, ter presente que a lei processual estabelece uma cominação semiplena e não um efeito cominatório pleno.

15. Considerarem-se os factos alegados pelo A. como confessados não determina que o desfecho da lide seja, necessariamente, aquele que o demandante pretende, nos exatos termos em que alegou, e na medida em que, o juiz deve, depois, julgar a causa aplicando o direito aos factos admitidos.

16. No que respeita aos danos patrimoniais, apesar de a A. ter confessado que conseguiu recuperar o telemóvel que havia ficado perdido no dia da prática dos factos em discussão nos presentes autos, a recorrida peticionou a condenação do recorrente no pagamento de uma indemnização de € 899,90, referente ao valor despendido na aquisição de um telemóvel novo.

17. É consabido que nos termos do disposto no artigo 566.º n.º 1 do Código Civil, a indemnização só é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não é possível. Tendo a A. recuperado o equipamento de forma intacta e sem qualquer dano, não sendo legalmente admissível que se reclame o valor despendido na aquisição de um telemóvel novo, sob pena de estarmos perante um clamoroso enriquecimento sem causa!

18. Mesmo dando os factos invocados na ação como confessados, o certo é que, impunha-se ainda ao tribunal a quo apurar se o montante peticionado pela A. a título de indemnização pelos danos patrimoniais alegadamente sofridos se mostra ajustada ou, por sua vez, se é indevida, não encontrando, por isso, assento nas decisões dos tribunais portugueses.

19. O Acórdão sob censura recorrida violou o disposto no artigo 615.º n.º 1 c), 567.º n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, e artigo 496.º do Código Civil.

20. Quanto aos danos não patrimoniais, o douto acórdão fixou em € 20.000,00 o montante indemnizatório devido a título de danos não patrimoniais, entende o recorrente que o aludido montante indemnizatório fixado a este título peca por ser manifestamente excessivo, distanciando-se não apenas de toda a factualidade dada como demonstrada, mas também do sentido das decisões que vêm sendo proferidas pela nossa jurisprudência em casos análogos.

21. Atentos os danos não patrimoniais alegados na petição inicial, não existem dúvidas de que o Tribunal recorrido andou mal ao decidir que se revelava adequada uma indemnização no montante de € 20.000,00, na medida em que, o referido valor é exagerado, e não encontra assento nem paralelismo nas decisões dos tribunais portugueses!

22. Só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que afetem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objetivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas afastando-se os fatores subjetivos, suscetíveis de sensibilidade exacerbada, particularmente embotada ou especialmente requintada, e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito;

23.. Os danos morais invocados pela A. nos artigos 105.º a 122.º do articulado inicial são totalmente descabidos e injustificados, sendo bem reveladores de que a intenção da A. é apenas a de enriquecer à custa do património do R.

24. De facto, na fixação da indemnização pelo dano não patrimonial resultante de acidente de viação, o indispensável recurso à equidade não impede, mas sim aconselha, que se considere, como termo de comparação, valores pecuniários encontrados noutras decisões judiciais relativas a casos semelhantes.

25. No tocante à determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade (artº 494, ex-vi artº 493, 1ª parte, do Código Civil).

26. Não se afigura justo e conforme aos princípios da equidade, que, nestas circunstâncias, se fixe uma indemnização de valor muito superior àquelas que vêm sendo atribuídas pela nossa jurisprudência em situações em que, por exemplo, os lesados sofram danos mais graves do que aqueles que afetaram a

27. O acórdão de que se recorre violou, assim, o disposto no artigo 71.º e 72.º do Código de Processo Penal, e o 496.º do Código Civil.

Concluiu pedindo que deve:

a) Ser declarada nulo o acórdão, sendo o mesmo substituído por outro que expurgue a decisão de tal vício;

b) Ser revogado o douto acórdão recorrido e, em consequência, ser julgado o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo-se o R. da Instância, ou subsidiariamente;

c) Ser revogada o douto acórdão, reduzindo-se o montante da indemnização por danos não patrimoniais para um montante equitativo e que encontre assento na jurisprudência portuguesa, nunca superior a € 2.500,00.


1.8.- A Autora contra-alegou no sentido da improcedência do recurso, e recorreu subordinadamente, com as seguintes conclusões:

a). Sem prejuízo das contra-alegações que apresentou, a Recorrida vem ainda, nos termos do disposto no artigo 633.º, n.º 1, 2 e 5 do CPC, interpor recurso subordinado do acórdão da Relação de Lisboa, proferido nos autos em 10/02/2022, na parte em que decide pela irrelevância dos pontos 104 a 121 dos factos provados como danos indemnizáveis e na parte em que decide reduzir o montante previamente arbitrado a título de reparação de danos não patrimoniais em € 10.000,00 (dez mil euros).

b). O presente recurso subordinado deve ser conhecido por este Tribunal ad quem, ainda que se venha a concluir pela improcedência do recurso principal interposto pelo Recorrente, porquanto a sua admissibilidade está apenas dependente da subsistência do recurso principal.

c). E de qualquer das formas deve o presente recurso subordinado ser admitido, independentemente do valor da sucumbência da ora Recorrente, ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 633.º do CPC, do que resulta que “se o recurso independente for admissível, o recurso subordinado também o será, ainda que a decisão impugnada seja desfavorável para o respetivo recorrente em valor igual ou inferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre”.

d). No entendimento da Recorrente, o Acórdão recorrido padece de vício de falta de fundamentação, cominado com nulidade, por aplicação artigo 615.º n.º 1, alínea b) ex vi do artigo 666.º do CPC.

e). Em primeiro lugar, a conclusão a que o Tribunal a quo chega quanto à irrelevância dos pontos 104 a 121 dos factos provados, como danos indemnizáveis é desprovida de uma qualquer fundamentação apta a permitir aos seus destinatários a percepção das razões que determinaram o sentido decisório.

f) O Tribunal a quo limita-se a descrever o que vem alegado pelo Recorrente em sede de alegações de apelação, daí extraindo uma conclusão aparentemente descomprometida de qualquer apreciação crítica da factualidade vertida naqueles pontos, de que os danos em causa “não são indemnizáveis, pois, não foram sofridos pela Autora em consequência do derrube de que foi vítima, mas sim por causa do alegado sofrimento do seu pai com o estado de saúde da Autora”.

g) No caso vertente, o Acórdão recorrido inverte em absoluto o sentido decisório das duas decisões que o antecedem (sentença proferida em 29/12/2020 e decisão singular proferida em 08/11/2021 que veio depois a ser substituída pelo Acórdão de que se recorre) sem especificar minimamente os fundamentos de direito que precedem tal entendimento.

h) De notar, de todo o modo, que tais danos sempre deveriam ser atendidos porquanto o que resulta de forma expressa dos factos provados (119 a 120) da Sentença proferida a final é que os referidos danos morais, dizem respeito a danos sofridos pela ora Recorrente, e não pelo seu pai!

i) Em segundo lugar, o Tribunal a quo não fundamentou minimamente a sua decisão no que concerne à redução do montante previamente arbitrado a título de reparação de danos não patrimoniais, em € 10.000,00 (dez mil euros).

j) Com efeito, o Tribunal a quo decide segundo a equidade, e, nesse pressuposto entende por acertado, ponderado e razoável, ressarcir os danos não patrimoniais com o montante de € 20.000,00, ao abrigo do artigo 496.º, n.º 4 do CC.

k) Contudo, em momento algum no Acórdão recorrido se alude aos parâmetros a que o Tribunal a quo se teria necessariamente que ter socorrido para os efeitos do disposto no artigo 494.º do CC.

l) A fundamentação que resulta do Acórdão sub judice é puramente genérica o que torna impercetível em que termos deve a Recorrente apreciar a bondade da sua decisão. M. Por outro lado, nunca a desconsideração do relevo dos pontos 104 a 121 dos factos provados no cômputo dos danos não patrimoniais justificaria uma diminuição em cerca de 1/3 da indemnização originariamente entendida como acertada pelas duas instâncias que se pronunciaram anteriormente sobre a adequação do montante de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais.

n) Salvo o devido respeito, que é muito, o que parece resultar do Acórdão recorrido é um juízo puramente arbitrário, que não pode ser confundido com a aplicação da equidade.

o) Sem prescindir, a ponderação global de todo o circunstancialismo dos autos sempre determinaria a condenação do Réu, aqui Recorrido, numa indemnização no montante fixado originariamente em 1.ª instância, pois só este montante se revela como um justo grau de “compensação” pela gravidade dos danos morais e corporais sofridas pela Recorrida que se encontram extensivamente provados nos autos.

Deve ser julgado procedente o recurso subordinado da Recorrida e, em consequência:

i) ser declarada a nulidade parcial do Acórdão da Relação, com fundamento em falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 666.º do CPC;

ii) ser o mesmo substituído por Acórdão que considere a relevância dos pontos 104 a 121 dos factos provados para o cômputo dos danos não patrimoniais e fixe em 30.000,00 (trinta mil euros) o montante a arbitrar a este título, em consonância com o decidido em 1.ª instância.


II - FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – Delimitação do objecto do recurso


As questões submetidas a revista, delimitadas pelas conclusões, são as seguintes:

As nulidades do acórdão;

A violação do princípio da adesão obrigatória e a incompetência material do tribunal cível;

A quantificação dos danos.


2.2.- Os factos provados (descritos no acórdão)

1 - No dia 16 de Fevereiro de 2017, por volta das 19h30, a A. conduzia a sua viatura, com a matrícula ...-MC-..., na Praça ..., em ....

2 - Naquele local a circulação faz-se em sentido único.

3 - Ao circular naquele local a A. deparou-se com um veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ...-RV-..., estacionado na placa central daquela praça, mais precisamente em frente das instalações das oficinas da cooperativa de táxis “...”.

4 O referido veículo encontrava-se estacionado com as duas rodas traseiras em cima do passeio, e as duas rodas dianteiras na via de trânsito.

5 Dificultando consideravelmente a manobra aos veículos que ali circulavam.

6 - No interior do referido veículo de matrícula ...-RV-..., sentado no lugar do condutor, encontrava-se o R.

7 - A A. abriu o vidro da sua viatura e dirigiu-se ao R. pedindo-lhe que retirasse o veículo do local onde estava estacionado...

8 -De forma que a A. pudesse passar em segurança e sem correr o risco de colisão no veículo do R., ou nos outros veículos que se encontravam correctamente estacionados no lado oposto, ou seja, nos lugares de estacionamento sitos no lado direito daquela artéria.

9 - O R. insultou a A., dirigindo-lhe as palavras “vai à merda”, e não correspondeu à solicitação da mesma, não movimentando a sua viatura do local onde se encontrava estacionada.

10 - Perante a negação do seu pedido, a A. tentou passar com o máximo cuidado entre o veículo mal estacionado onde estava o R. e os outros veículos estacionados nos lugares de estacionamento sitos no lado direito daquela artéria.

11 - Contudo, a A. ficou com a impressão de ter colidido/raspado com o seu veículo numa das viaturas que se encontrava bem estacionada nos lugares de estacionamento sitos no lado direito da via.

12 - Após ter seguido o seu percurso até ao parque de estacionamento sito no ..., na Rua ..., aí chegada a A. verificou que de facto a sua viatura estava riscada na parte dianteira do lado direito, confirmando-se assim a colisão ocorrida momentos antes na Praça ....

13 - Indignada com o comportamento do R. e com as consequências materiais do estacionamento ilegal praticado pelo mesmo, pelas 19h50 a A. regressou, já sem a sua viatura, à Praça ..., tendo em vista identificar o R. e resolver a situação com recurso às autoridades policiais.

14 - Quando chegou à Praça ... a A. constatou que o referido veículo, de matrícula ...-RV-..., mantinha-se estacionado exactamente na mesma posição, com o R. no lugar do condutor.

15 - A A. optou por não confrontar o R. face ao comportamento hostil anteriormente revelado pelo mesmo quando aquela lhe solicitou que retirasse o veículo, pelo que, não lhe dirigiu quaisquer palavras.

16 - Como é do conhecimento público, a Esquadra da Polícia de Segurança Pública (PSP) no ..., em ..., tem o número de telefone fixo ...70.

17 - A A. é titular do número de telemóvel ...44, associado à rede ....

18 - A A. pegou no seu telemóvel, contendo o cartão com o número identificado no artigo antecedente, para tirar uma fotografia à matrícula do veículo onde se encontrava o R..

19 - E de imediato, pelas 19h51, para que os Agentes da autoridade se deslocassem ao local, a A. telefonou para a esquadra ... da PSP, conforme extracto com o histórico de chamadas realizadas pela A. no mês de Fevereiro de 2017 cuja cópia se junta como documento nº1 e se dá por integralmente reproduzido.

20 - De forma a impedir uma eventual fuga do R., a A. decidiu aguardar a chegada da PSP posicionando-se em frente do veículo do R., sem nunca tocar no mesmo.

21 - Concomitantemente, ao ver a A. posicionada junto da parte frontal do veículo, o R. mantinha um comportamento agressivo, e injuriava a A., a qual relatou esse comportamento ao Agente da PSP da esquadra ... com quem conversava telefonicamente, solicitando a presença de um carro patrulha no local para que a PSP identificasse o R.

22 - Findo o telefonema com a PSP, pelas 19h53 a A. telefonou ao seu pai que se encontrava em casa, CC, para o número de telemóvel ...53 pertencente ao mesmo (cfr. Doc.1), tendo informado o seu pai sobre o sucedido e que estava a aguardar a chegada da PSP.

23 - Nesse momento o R. abriu novamente a janela do seu veículo e

“Oh vaca tens de ligar para casa e eu a gramar o cheiro do teu tabaco”

24 - Apercebendo-se das diligências da A. no sentido de recorrer às autoridades para proceder à sua identificação e responsabilização pelas consequências do mau estacionamento, julgando a A. naquela altura terem existido danos no seu veículo e noutro veículo ali estacionado, o R. quis abandonar o local antes da chegada da PSP.

25 - Assim, e no momento descrito em que a A. ainda estava ao telefone com o seu pai, o R. ligou a viatura.

26 - Acto contínuo, o R. iniciou lentamente a marcha, encostando o pára-choques dianteiro às pernas da A...

27 - A A. manteve-se na posição em que estava, ou seja, imóvel à frente do veículo ao volante do qual se encontrava o R..

28 - Acto contínuo, vendo que a A. não saía da frente do veículo, o R. arrancou com o mesmo de forma brusca, inesperada, e a toda a velocidade...

29 - Embatendo na A. e projectando-a para o solo, assim consumando o seu atropelamento.

30 - Com o impacto do veículo a A. embateu primeiramente com a zona da barriga no capôt, e logo de seguida, tendo o veículo feito uma imediata viragem à esquerda de forma a ficar alinhado com a via de trânsito, o seu corpo girou para o chão...

31 - A A. foi projectada para o solo, mais concretamente para a estrada, tendo batido violentamente com cabeça e com o lado esquerdo do corpo, em particular com o braço esquerdo na zona do cotovelo.

32 - O R. não empregou quaisquer outros meios para conseguir que a A. saísse da frente do veículo ao volante do qual aquele se encontrava, não hesitando em utilizar o veículo contra o corpo da A..

33 - O R. prosseguiu a sua marcha sem imobilizar o veículo, e sem sequer reduzir a velocidade do veículo que conduzia.

34 - O R. não saiu do veículo para aferir das consequências do embate e queda no solo/estrada que provocou na A..

35 - O R. não promoveu qualquer socorro para a A., não auxiliando a mesma nas consequências do atropelamento que o próprio executou.

36 - O R. não passou com a viatura por cima da A. porque a posição em que o veículo estava estacionado obrigou o mesmo a fazer uma imediata viragem à esquerda de forma a ficar alinhado com a via de trânsito e assim poder seguir a sua marcha, conforme efectivamente fez.

37 - Com a força do embate o telemóvel da A. caiu para o espaço do capôt do veículo conduzido pelo R. onde se situam os limpa-pára-brisas, tendo sido levado naquele veículo.

38 - A primeira pessoa a chegar perto da A. foi o Sr. DD, que de imediato a amparou, ajudando-a a levantar-se do chão.

39 - A A. estava, naturalmente, muito nervosa, a sangrar da cabeça e do cotovelo, com a garganta seca do pânico que quase não permitia que se conseguisse expressar correctamente.

40 - Ainda no dia 16/02/2017, estando a A. bastante combalida, com dores de cabeça e no lado esquerdo do corpo, decidiu deslocar-se às ... para ser observada, tendo dado entrada no hospital pelas 23h29, dando origem ao processo de urgência nº ...60 (....70), conforme resulta do documento nº2 cuja cópia se junta e se dá por integralmente reproduzido.

41 - Do exposto é absolutamente inequívoco que o R. quis atropelar a A. utilizando o veículo automóvel ao volante do qual se encontrava...

O R. teve muito tempo, entre 20 e 30 minutos, para reflectir sobre a actuação que iria colocar em prática.

42 - O R. quis executar a agressão/atropelamento sabendo que o único resultado possível ao fazer embater o veículo na A. era a violenta queda da mesma no solo/estrada.

43 - Sabendo o R. que com essa actuação iria, necessariamente, ofender o corpo da A., e representando na sua consciência a possibilidade, que quis, de causar à A. os danos que efectivamente causou, os quais adiante se irão enunciar.

44 - A A. desconhecia a identidade do autor do atropelamento, não conhecendo o R., sendo pessoa que não se recorda sequer de ter visto, e por isso com quem nunca tinha trocado quaisquer palavras, em momento anterior aos acontecimentos supra descritos.

45 - E por isso a A. apresentou queixa-crime contra incertos com fundamento nos factos supra descritos ocorridos em 16/02/2017, uma vez que desconhecia a identidade do autor do atropelamento...

46 - A queixa-crime deu origem ao processo nº 2336/17... que correu termos na ... Secção do D.I.A.P. de ..., tendo o R. sido identificado como autor do atropelamento durante o inquérito, e em 19/01/2018 foi proferido o despacho de acusação do R. pela prática de um crime de ofensa à integridade física, conforme cópia que se junta como documento nº 3 e se dá por integralmente reproduzido.

47 - No referido processo, onde a aqui A. é Assistente, em 13/04/2018 realizou-se o debate instrutório na Secção de Instrução Criminal de ... - ..., tendo a defesa requerido a realização de interrogatório judicial do Arguido, aqui R., e, conforme resulta da acta da referida diligência cuja cópia se junta como documento nº 4 e se dá por integralmente reproduzido, “o depoimento prestado sido gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, em CD devidamente identificado e que vai ser junto aos autos em folha de suporte, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11:00:14 horas e o seu termo pelas 11:22:38 horas”... doc. 4.

48 - Das declarações do aqui R., cuja cópia do registo áudio se junta através de CD e a transcrição integral se junta como documento nº 5 e se dá por integralmente reproduzido, (prestadas após a advertência inicial da Sra. Dra. Juiz de Instrução Criminal face à boa disposição/postura patentemente sorridente revelada pelo Arguido), resulta inequivocamente demonstrada a prática do facto ilícito supra descrito – o atropelamento da A. pelo aqui R. com recurso a um veículo automóvel – bem como o seu grau de culpa nos termos supra expostos, concretamente o dolo na sua actuação, aí se podendo ouvir, entre o mais, o que seguidamente se transcreve:

[00:05:30]

Arguido: (...) Finalmente dizer que antes eu estava ali parado há cerca de meia hora a trabalhar no meu carro à espera de ter um lugar correcto para estacionar como fazem todos os moradores… e atrás do carro da Assistente estavam carros muito maiores do que a Assistente… estava um jeep, estava um comboio de carros a perder a paciência porque não conseguiam andar porque a Assistente estava parada [5:30]. E portanto… e no momento… depois de meia hora de todo este episódio que foi aqui relatado… que eu não… que tem algumas inverdades e a mais importante eu diria a conversa, portanto a troca de palavras que eu não me recordo… tenho a certeza que não ocorreu, e a segunda é que a Assistente omite o facto mais importante desta situação… é que eu antes de ligar o carro e de o mover depois… antes de o ligar, foi pela primeira vez… eu tinha aberto a janela durante esta meia hora uma vez para dizer que… enfim… estava de facto muito incomodado com os cigarros, os vários cigarros consecutivos que foram sendo fumados… porque eu tenho um teto de abrir… não é aberto mas… ligeiramente inclinado [incompreensível] começa-me a entrar e de facto começa-me a incomodar bastante até que chegou a um ponto, de facto,… que eu decidi… me deslocar, de facto, a ... portanto, este dado do telefone que está… identifica de facto a verdade… decidi-me deslocar e informei… a Assistente que precisava de sair dali… pronto, que precisava de sair dali, mas ela não, não saía da frente do meu carro… e portanto a… o número de vezes não lhe sei dizer, se foram três, quatro, cinco que eu informei a Assistente que eu ia me deslocar foi por demais… foi por demais, até chegou um ponto… porque as pessoas também… a paciência tem limites … que eu ameacei… ou a senhora sai da frente do meu carro… ou eu vou ter que me começar a mover… portanto, toda este… toda esta sequência de avisos que chegou ao ponto da ameaça… portanto contextualizam a decisão que eu tomei… a decisão que eu tomei e que era… de facto… uma decisão… difícil… de tomar de outra maneira… não, não não estava em condições de… falar com a Assistente e tentar perceber porquê… ela achava que… o meu carro estar ali parado… tinha provocado um acidente… não, não… não estava com… sinceramente com paciência para… para… e eu, desculpe insistir… eu… expliquei-lhe um bocadinho o contexto… porque eu percebi que esta pessoa não é uma pessoa com quem se consiga dialogar… por todas as histórias que me contaram… não senti que havia ali margem de diálogo e portanto isto de facto é uma chatice e eu fiquei muito, muito triste que a pessoa se tenha magoado… que a pessoa se tenha magoado, mas… de facto não estou a ver como é que eu poderia ter-me comportado de forma diferente… e depois finalmente, só um pequeno detalhe… não me lembro da… esta história do telefone foi uma tal surpresa, isto acho que está… está no meu depoimento quando eu fui à polícia dar as minhas declarações… o telefone estava, de facto no meu carro… no meu capôt o que para mim foi uma completa surpresa porque não houve que eu me lembre de ter havido nenhum… [num tom jocoso] digamos nenhuma queda da assistente para cima do meu carro… eu achei que aquilo era… um acto [num tom jocoso] digamos, sobrenatural como é que aquele telefone, passados cinco quilómetros estava em cima do meu capôt…mas enfim… isto no fundo transmitiu-me um bocado a veemência… como … como a Assistente me estava a cercar e a minar a saída do meu carro… portanto eu acho que, com isto…

Juiz: Olhe, quando o senhor diz que os factos que relatou contextualizam a decisão que teve que tomar…

Arguido: Não… não contextualizam a decisão… desculpe Sra. Dra. de eu a interromper… não contextualizam a decisão que eu tomei porque qualquer que fosse um contexto diferente… eles contextualizam o desenrolar, eles contextualizam por que é que eu não abri a janela… eles contextualizam por que é que eu não me mostrei receptivo ao diálogo…

Juiz: Mas o senhor percebe… eu às vezes fico com algumas dúvidas…. Arguido: … e não houve também muita tentativa real

Juiz: Deixe-me perguntar… o senhor percebe o que está aqui em causa… não é… porque não é disso que está acusado… se insultou, se não insultou, se abriu a janela, se não abriu a janela, isso enfim servirá para contextualizar, como está a dizer… a história do telemóvel não é ele que está aqui em causa, está bem?... A questão aqui é… o que o senhor tenta explicar é a razão pela qual tomou a decisão que tomou e o que eu quero é que o senhor me diga que decisão foi essa. Arguido: A decisão de sair dali… a decisão de avisar a Assistente, diversas vezes que eu precisava de sair dali e, portanto, ela tinha que sair da frente do meu carro… enfim… e foi isso… a… quer dizer, o… eu não estou a perceber a sua pergunta, Sra. Dra. Juiz, peço desculpa mas não… não… agora perdi-me… a Sra. Dra. está-me a perguntar… não percebi, Sra. Dra.

Juiz: Que decisão… a que decisão é que o senhor se está a referir? A decisão de avançar estando a senhora á sua frente?

Arguido: Não, Sra. Dra., a decisão de não ter dialogado com a Assistente, que foi extremamente agressiva, que cercou o meu carro… que se fartou de fumar cigarros…

Juiz: Olhe quando o senhor…

Arguido:… que praticamente se sentou no meu capôt…

Juiz:… disse três ou quatro… até foram cinco… saia da frente, saia daí e que às tantas a senhora não saía e que depois… abriu a janela para a ameaçar, palavras suas, e depois tomou a decisão… que decisão é esta?

Arguido: A decisão de sair do lugar de estacionamento e ir embora Juiz: Estando a senhora à sua frente.

Arguido: Sim

Juiz: Pronto… era isso que eu queria perceber. Sr. Procurador… precisa de… Arguido: É uma decisão difícil como deve compreender

Procurador: Entre o momento em que houve essa parte com a senhora e o segundo momento em que a senhora apareceu outra vez, passou-se quanto tempo mais ou menos?

Juiz: Percebeu a pergunta do Sr. Procurador? Pode responder. Arguido: Não… não percebi…pode…

Procurador: [repetição da pergunta] Arguido: Meia hora… meia hora.

Procurador: O senhor estava ali à espera de arranjar lugar, nunca saiu [imperceptível]

Arguido: Não… não.

Procurador: Nunca se quis disponibilizar… os seus dados para evitar algum conflito?

Arguido: Desculpe, eu estava parado com o carro o tempo todo, eu nem sequer o motor liguei… que dados é que eu tenho que dar, peço desculpa.

Procurador: A senhora estava à frente e pedia…

Arguido: Não, não, não, não, não… não, estamos a falar de dar os dados por causa de um acidente que ocorreu enquanto eu estava a trabalhar com o carro, com o carro desligado e passaram dezenas de carros à volta da praça e nunca me chatearam.

Procurador: [imperceptível] o senhor acaba por arrancar com a senhora á frente. Arguido: Desculpe, mas eu não percebi a sua pergunta… desculpe então, mas eu não percebi a sua pergunta.

Procurador: O senhor arrancou e colidiu com a senhora ou não? Embateu com o carro…

Arguido: Não, a senhora estava encostada na frente do meu carro, no para choques… e a prova disso, enfim… não é preciso provar, a própria…. Assistente o diz, portanto ela estava encostada ao meu carro. Como é que era possível que eu saísse dali se uma pessoa está encostada ao meu carro. É impossível se ela continuar encostada ao meu carro, se após incentes (sic) avisos a pessoa não sai. Procurador: Sim, mas o senhor bateu na senhora ou não?

Arguido: Não, ela é que estava encostada ao meu carro. Procurador: Mas não arrancou com o carro?

Arguido: In…, mas o… o… é… ela… a pessoa já está… se uma coisa já está encostada ao carro a única coisa que acontece é que o carro empurra o objecto… não é… portanto se o objecto está…

Procurador: Não aconteceu? Não arrancou?

Arguido: Claro… claro, mas como é que eu ia sair dali, de outra maneira era impossível

Procurador: O senhor tem um carro preso e arranca…

Arguido: [riso] Desculpe, eu vou ficar ali… ficar ali a minha vida toda porque não fiz nada?

Procurador: Mas não se atropela as pessoas… [imperceptível] Arguido: Atropela?

(...) [00:18:20]

Advogado do Arguido: O senhor manteve-se sempre sereno sem sair do veículo…

Arguido: Sempre sereno. Advogado do Arguido: Muito bem.

Juiz: E estava sereno quando tomou a decisão de avançar com o carro estando uma pessoa à sua frente… é isso que pretende dizer…

Arguido: Não, a resposta que eu estava a dar é que durante estes trinta minutos de eu tinha…se eu estava sereno e se eu tinha ficado sempre dentro do carro, ao que eu respondi que sim até ao momento em que eu tive que pedir à Assistente para sair, e que depois de várias vezes de pedir, a Assistente quanto mais eu pedia mais me pedia, … ou sinalizava que não ia sair de jeito nenhum.

Juiz: Não lhe passou pela cabeça…. Arguido: Ó Sr. Dra…

Juiz: Pergunto-lhe na afirmativa, passou-lhe pela cabeça que estando uma pessoa à frente do carro, arrancando o senhor, mesmo que devagarinho como diz… passou-lhe ou não pela cabeça que a pessoa que estava à sua frente podia cair porque o carro…

Arguido: Ó Sr. Dra… não… não… Juiz: … tinha mais força…

Arguido… não me passou pela cabeça que um ser humano racional se cometa a um suicídio desses… se…se… imagine que está… eu não sei… eu…eu… uma pessoa não conhece a outra nunca se… conversou com ela, não conhece… não conhece as suas características, a sua personalidade a… tem uma ameaça à sua frente que se pode mover… que avisa…que avisa… que avisa… claro que eu pensei que era bluff, uma pessoa se vai sujeitar…

Juiz: Portanto estavam os dois basicamente a pensar que era bluff… Arguido: …que direito é que uma pessoa tem de estar em cima da via pública a ameaçar de não me deixar sair dali quando eu não fiz mal a uma mosca

Juiz: Hum…

Arguido: Eu até admitia que, se eu tivesse cometido uma crueldade que a pessoa perdesse completamente o discernimento e achasse que me podia prender ali, não é… agora imagine a Sra. Dra. que eu não faço mal a uma mosca, nessa situação, não vou estar agora a pôr-me aqui a… a… a… caracterizar-me, mas… quer dizer… que direito é que essa pessoa tem de para além de não perceber nada de regras de trânsito e que, quer dizer, quando um carro está parado, já para não falar com o motor parado que nunca pode ser acusado de nada… não é… como é que essa pessoa… quer dizer… não só não sabe isso mas se sujeita a um acto de suicídio…

Juiz. Olhe, mais uma vez…

Arguido: … ou a um acto de injúria pessoal… Juiz: … mais uma vez… sim… mais uma vez… Arguido: … eu era incapaz…

Juiz: … é preciso circunscrever aqui o objecto do processo… é que não estamos aqui para conjecturas… Sr. Dr. ia pedir algum esclarecimento?

(...)

Advogado da Assistente: Eu gostaria de saber…o Arguido afirma nas suas palavras que ficou muito triste por a pessoa se ter magoado e eu gostaria de ficasse ainda mais confirmado aquilo que é evidente, mas gostaria de saber se o Arguido abandonou o local ou se prestou algum auxílio à Assistente… se se preocupou a ir ver a Assistente no estado em que a Assistente…

Juiz: Sr. Dr. sem… sem conjecturar… também já está respondido… o senhor saiu do local e não voltou para traz, não foi ajudar a senhora nem…nem… mas percebeu que ela tinha caído?

Arguido: Sim. 49

...É evidente a frieza e inexistência de qualquer tipo de arrependimento por parte do R..(cfr.CD e Doc.5)

50 - Em 20/04/2018 foi proferido despacho de pronúncia do aqui R. “pelos factos e qualificação jurídica descritos na acusação”, conforme cópia que se junta como documento nº6 e se dá por integralmente reproduzido.

51 - Estando o referido processo criminal a correr os seus termos actualmente no Juízo Local Criminal... - juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca .... Como consequência directa da actuação ilícita supra descrita – o atropelamento da A. pelo R. com recurso a um veículo automóvel – o R. causou à A. diversos danos de natureza patrimonial e não patrimonial, cuja compensação se impõe através da sua condenação no pagamento da justa e adequada indemnização.

53 - Conforme supra se disse, no dia dos factos supra enunciados, 16/02/2017, estando a A. bastante combalida, com dores de cabeça e no lado esquerdo do corpo, decidiu deslocar-se às ... para ser observada, tendo dado entrada no hospital pelas 23h29, dando origem ao processo de urgência nº ...60 (...:70). (cfr.Doc.2)

54 - A A. realizou um Raio-X ao cotovelo esquerdo e um TAC à cabeça, e após analisados os resultados dos exames a equipa médica identificou a existência de um traumatismo craniano.

55 - A A. teve alta hospitalar, não se verificando a necessidade de internamento, mas com a indicação de vigilância por terceiros, cautela nos 3 dias subsequentes e de regresso imediato às urgências caso se verificassem sintomas como paralisias, alteração da visão, alteração da fala, convulsões ou ataques epilépticos, perturbações do equilíbrio ou alterações progressivas de consciência, conforme resulta do documento nº 7 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.

56 - Para além do traumatismo craniano, o R. provocou à A. ferimentos e equimoses nos membros superior e inferior esquerdo, causados pelo embate da A. no chão em virtude do atropelamento.

57 - Esses ferimentos e equimoses foram fotograficamente registados dois dias depois, em 18/02/2017, pela esteticista da A., Sra. EE, conforme fotografias que se juntam como documentos nº 8 a 14 e se dão por integralmente reproduzidos.

58 - Os danos corporais causados pelo R. à A. descritos nos artigos antecedentes resultam também do relatório do exame médico-legal realizado pela A. no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., constante de fls.171 a 174 do processo nº 2336/17..., a correr termos actualmente no Juízo Local Criminal... - juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., conforme certidão que se junta como documento nº 15 e se dá por integralmente reproduzido.

59 - Tais danos corporais conduziram a 10 dias para cura (cfr.Doc.15) ...

60 - E provocaram 3 dias de afectação da capacidade de trabalho profissional da A. (cfr.Doc.15).

61 - Os referidos danos corporais infligidos pelo R. provocaram na A. sofrimento causado pelas dores que sentiu, desde o momento do atropelamento e ao longo do período de 10 dias em que decorreu a sua recuperação.

62 - O que inevitavelmente lhe trouxe mau-estar, incómodo, e limitou a sua normal capacidade física nesse período temporal.

63 - Para além desse sofrimento causado pelas dores afectar a actividade normal da A. durante o dia, não lhe permitiu também ter o normal e adequado descanso durante a noite ao longo do referido período temporal.

64 - Logo na noite de 16 para 17 de Fevereiro de 2017, quando a A. regressou à sua residência para descansar, não conseguiu dormir mais de 4 horas com as dores que sentia.

65 - Estando visivelmente combalida e traumatizada...

66 - A A. teve também pesadelos com o atropelamento durante toda essa noite, nos quais se cruzava com o condutor do veículo e era mortalmente atropelada.

67 - Sendo que, tanto as dores no corpo, como os pesadelos descritos, verificaram-se igualmente nos dias subsequentes ao atropelamento.

68 - Os danos corporais supra descritos causados à A. pelo R. são inequivocamente relevantes, impondo-se que seja compensada pelo R., face a esses danos decorrentes de uma conduta gritantemente ilícita e, extremamente censurável.

69 - Para além do sofrimento com as dores causadas pelos traumatismos no corpo da A., o acto ilícito do R. teve consequências emocionais nefastas para a A., tendo-lhe provocado danos morais/sofrimento psicológico cujo ressarcimento se impõe.

70 - Em primeiro lugar, nos momentos imediatamente subsequentes ao embate do veículo no seu corpo, a A. sofreu com o pânico e pavor que sentiu directamente decorrentes daquela circunstância, e que, como é sabido, são biologicamente incontornáveis para qualquer pessoa que sofre o embate de um veículo e é desamparadamente projectada para o solo.

71 - Sofrendo a A. com a incerteza imediata sobre a extensão dos danos físicos resultantes do atropelamento...

72 - E também com a perspectiva da própria morte que lhe poderia ter sido causada em virtude daquela conduta do R..

73 - Conforme supra se disse, a primeira pessoa a chegar perto da A. foi o Sr. DD, que de imediato a amparou, encontrando-a em pânico, quase não se conseguindo expressar correctamente.

74 - Estamos assim perante um dano moral, na sua vertente psicológica, que é manifestamente relevante, impondo-se que a A. seja compensada pelo R., face ao sofrimento que este lhe causou, decorrente de um sentimento de pânico e pavor que lhe provocou em virtude de uma conduta gritantemente ilícita e, extremamente censurável.

75 - Em segundo lugar, nos dias subsequentes ao atropelamento perpetrado pelo R. e ao diagnóstico de traumatismo craniano, a A. sofreu com a fundada e permanente angústia e preocupação que sentiu relacionadas com as consequências nefastas que poderiam advir para o seu estado de saúde.

76 - Com efeito, em Julho de 2013 a A. sofreu um AVC isquémico, conforme resulta dos resumos clínicos dos internamentos de 9/07/2013 e 30/07/2013 que se juntam como documentos nº16 e 17e se dão por integralmente reproduzidos.

77 - Tendo a A. ficado internada na Unidade Cérebro Vascular do Hospital ..., em ..., de 9/07/2013 a 12/07/2013, e de 30/07/2013 a 03/08/2013 (cfr. Doc.16 e 17).

78 - Na sequência desse AVC, foi diagnosticado à A. presença de um Foramen Ovale Patente (FOP) - canal que permite a comunicação entre as cavidades direitas e esquerdas do coração e que habitualmente se encerra após o nascimento.

79 - Em decorrência desse diagnóstico, em Novembro de 2013 a A. foi sujeita a uma cirurgia endovascular para colocação de um FOP Amplatzer, conforme informação clínica cuja cópia se junta como documento nº18 e se dá por integralmente reproduzido.

80 - E desde essa data a A. está sujeita a medicação diária, designadamente à toma de ácido acetilsalicílico (AAS) - Aspirina 100 mg – bem como a exames doppler cardíacos anuais.

81 Ora, o consumo de ácido acetilsalicílico em baixa dose é aceite como factor de risco maior para hemorragia intracraniana nos pacientes com traumatismo craniano.

82 - Pelo que, face ao historial cardíaco da A. nos termos supra expostos, e tendo de tomar diariamente ácido acetilsalicílico- Aspirina 100 mg, o facto de ter sofrido um traumatismo craniano decorrente do atropelamento perpetrado pelo R. em 16/02/2017 fez com que a A., pelo menos durante os 10 dias subsequentes ao atropelamento, tenha vivido permanentemente sobressaltada, sentindo grande preocupação e angústia com o aumento do risco de poder sofrer uma hemorragia intracraniana.

83 - Sendo esse um dano moral, na sua vertente psicológica, que é manifestamente relevante, impondo-se que a A. seja compensada pelo R. face ao sofrimento que este lhe causou, decorrente de um sentimento de angústia e preocupação que lhe provocou em virtude de uma conduta gritantemente ilícita e, extremamente censurável.

84 - Em terceiro lugar, a A. sofreu com a grande indignação e tristeza que sentiu, e sente, com a conduta do R., face ao desprezo demonstrado pelo R. pela vida humana e integridade física de outrem, e concretamente pela vida e integridade física da A..

85 - Conforme decorre das suas declarações em sede de debate Instrutório (cfr.CD e Doc. 5), o R. teve largos minutos (diz terem sido vinte e cinco minutos em que a A. esteve parada à frente do veículo) para reflectir sobre a actuação que iria colocar em prática.

86 - O R. sabia, como sabe qualquer Ser Humano adulto na posse de todas as suas faculdades mentais, que o único resultado possível ao fazer embater o veículo na A. era a queda da mesma no solo/estrada.

87 - O R. não empregou quaisquer outros meios, que eram possíveis, para conseguir que a A. saísse da frente do veículo ao volante do qual aquele se encontrava.

88 - O R. não hesitou em utilizar o veículo contra o corpo da A., ou seja, um meio absolutamente desproporcional.

89 - Revelando especial censurabilidade ou perversidade ao fazê-lo contra alguém, a A., que estava imóvel à frente de um veículo, completamente indefesa e não constituía qualquer ameaça para o R..

90 - Aliás, as lamentáveis palavras do R. são inequívocas, expressando bem o seu sentimento de desprezo pela A., não se referindo sequer à A. como pessoa, mas como um mero objecto:

"Procurador: Mas não arrancou com o carro?

Arguido: In…, mas o… o… é… ela… a pessoa já está… se uma coisa já está encostada ao carro a única coisa que acontece é que o carro empurra o objecto… não é… portanto se o objecto está…

Procurador: Não aconteceu? Não arrancou?

Arguido: Claro… claro, mas como é que eu ia sair dali, de outra maneira era impossível

Procurador: O senhor tem um carro preso e arranca…

Arguido: [riso] Desculpe, eu vou ficar ali… ficar ali a minha vida toda porque não fiz nada?

Procurador: Mas não se atropela as pessoas… [imperceptível] Arguido: Atropela?"

91 - O R. quis, assim, atropelar a A., e ofender a mesma na sua integridade física...

92 - Com consequências cuja extensão o R. não poderia prever e que poderiam ainda ter sido muito mais graves, porquanto, é um facto notório que o resultado da colisão de um veículo com o corpo de uma pessoa, e a sua projecção e embate no solo, tem sempre consequências completamente imprevisíveis, podendo até, facilmente, conduzir à morte, o que o R. não podia ignorar.

93 - Acresce que, o R. abandonou o local do atropelamento que executou, sem prestar qualquer auxílio à A.:

"Juiz: … disse três ou quatro… até foram cinco… saia da frente, saia daí e que às tantas a senhora não saía e que depois… abriu a janela para a ameaçar, palavras suas, e depois tomou a decisão… que decisão é esta?

Arguido: A decisão de sair do lugar de estacionamento e ir embora Juiz: Estando a senhora à sua frente.

Arguido: Sim (...)

Advogado da Assistente: Eu gostaria de saber…o Arguido afirma nas suas palavras que ficou muito triste por a pessoa se ter magoado e eu gostaria de ficasse ainda mais confirmado aquilo que é evidente, mas gostaria de saber se o Arguido abandonou o local ou se prestou algum auxílio à Assistente… se se preocupou a ir ver a Assistente no estado em que a Assistente…

Juiz: Sr. Dr. sem… sem conjecturar… também já está respondido… o senhor saiu do local e não voltou para traz, não foi ajudar a senhora nem…nem… mas percebeu que ela tinha caído?

Arguido: Sim.”

94 - E sem de alguma forma demonstrar qualquer preocupação que fosse com o estado de saúde da A..

95 - Acrescendo também que, embora não se possa sequer conceber qualquer justificação atendível para um atropelamento intencional como o do caso sub judice, foram absolutamente fúteis e gritantemente censuráveis as motivações do R, para a sua grave conduta...

96 - Na medida em que o R. optou por executar o atropelamento com o fito de abandonar aquele local e dessa forma impedir a sua identificação pelas autoridades que foram chamadas pela A., impedindo assim, no mínimo, que fosse responsabilizado pela infracção de trânsito/estacionamento ilegal que estava a cometer.

97 - Ou seja, o R. quis e infligiu na A. danos corporais cuja extensão não podia calcular, podendo inclusivamente provocar-lhe a morte, movido por um sentimento de ódio decorrente apenas e só do facto da A. ter legitimamente solicitado a presença das autoridades no local tendo em vista a resolução daquela situação de trânsito.

98 Assim, em suma, o facto de ter existido um total desrespeito pela personalidade da A., o facto da A. conhecer os motivos absolutamente fúteis que estiveram na base da conduta ilícita do R., sabendo que lhe foram causados danos corporais com a grave extensão supra demonstrada mas que a conduta do R. era também apta a afectar o seu bem “vida”, e o facto do R. ter abandonado a A. no local sem lhe prestar qualquer auxílio e sem demonstrar qualquer preocupação com o estado de saúde da mesma, causou na A. um sentimento de grande indignação, revolta e tristeza, que mantém na presente data.

99 - No período de tempo subsequente ao dia do atropelamento perpetrado pelo R., 16/02/2017, a A. sentiu-se emocionalmente fragilizada, chorando com frequência, e muitas vezes inesperadamente, ao recordar-se dos acontecimentos. No dia seguinte ao atropelamento, dia 17/02/2017 por volta das 15h30, a A. estava sentada na esplanada do Café ... (na Rua ..., em ...), acompanhada do seu pai e da sua amiga FF, e nesse momento viu passar um veículo da marca ... na esquina da Rua ... a virar para a Rua ... (no sentido do Largo ...), parecido com o que a tinha atropelado...

100 - A A. sentiu-se mal, tendo sido auxiliada pelo seu pai e pela sua amiga, ficando muito abalada, exangue e a tremer devido ao choque e ao pânico que sentiu.

101 - Nesse período temporal subsequente ao dia do atropelamento foram constantes as noites em que a A. teve fortes pesadelos, nos quais se cruzava com o condutor do veículo e era mortalmente atropelada, acordando em pânico, e tendo de ser acalmada para recuperar o seu normal estado emocional.

102 - Sendo que esses pesadelos nocturnos, nos termos descritos, ainda a assolam pontualmente.

103 - Estamos assim perante um dano moral, na sua vertente psicológica, que é manifestamente relevante, impondo-se que a A. seja compensada pelo R. face ao sofrimento que este lhe causou, decorrente de um sentimento de indignação e tristeza que lhe provocou em virtude de uma conduta gritantemente ilícita e, a todos os níveis, extremamente censurável.

104 - Em quarto lugar, nos dias subsequentes ao atropelamento perpetrado pelo R. a A. sofreu psicologicamente com a fundada angústia e preocupação que sentiu relacionadas com as consequências nefastas que poderiam advir para o estado de saúde do seu pai.

105 - A A. partilha residência com o seu pai, Eng. CC, existindo entre ambos uma relação de enorme proximidade e comunhão.

106 - À data dos factos o pai da A. já tinha 72 anos de idade.

107 - Conforme supra se disse ( artigos 22º e 25º da pi ), quando o R. embateu com o veículo contra o corpo da A. esta estava ao telefone com o seu pai.

108 - Assim, logo nesse momento o pai da A. apercebeu-se que algo de muito grave se tinha passado, atendendo aos factos que a A. lhe relatava telefonicamente, e ao facto da chamada telefónica ter sido abruptamente interrompida.

109 - O pai da A. imediatamente insistiu em chamadas telefónicas para a A. que se revelaram infrutíferas, uma vez que, como se disse, com a força do embate o telemóvel da A. caiu para o espaço do capôt do veículo conduzido pelo R. onde se situam os limpa-pára-brisas, tendo sido levado naquele veículo.

110 - Não sabendo em que local a A. se encontrava, o seu pai saiu de casa angustiado à procura da A., dirigindo-se para o parque de estacionamento do ....

111 - Aí chegado, o pai da A., completamente angustiado, solicitou a ajuda do Vigilante de serviço, Sr. GG, com quem percorreu vários andares daquele parque à procura da A..

112 Apesar da A. estar bastante combalida e com inúmeras escoriações, não foi chamado o Instituto Nacional de Emergência Médica, tendo-se deslocado a A. a pé até à sua residência atendendo à grande proximidade do local daquela tão lamentável e abjecta ocorrência.

113 - A A. chegou à sua residência e o seu pai já não se encontrava em casa.

114 - E só mais tarde o pai da A. a conseguiu reencontrar, e inteirar-se sobre o seu estado de saúde.

115 - O pai da A. é viúvo, e a A. é filha única e a pessoa com quem partilha a sua vida...

116 - Ficando o pai da A. sozinho, sem mais ninguém, caso o pior tivesse acontecido à A..

117 - Assim, face a toda a situação supra descrita decorrente da conduta ilícita do R., o pai da A. foi sujeito a momentos de grande tensão, angústia e preocupação com a incerteza sobre o que teria acontecido à A. e com o estado de saúde da mesma.

118 - Para além do exposto, foi o pai da A. quem a auxiliou por diversas vezes, em particular nas noites em que a A. acordava, e acorda, com os pesadelos supra descritos – pontos 101 a 102.

119 – Concorrendo assim todas essas circunstâncias para afectar também emocionalmente o pai da A., que foi sujeito a uma grande angústia no período de tempo imediatamente subsequente ao atropelamento, ficou absolutamente revoltado com a conduta do R., e viveu permanentemente preocupado com o estado de saúde da A. no período temporal subsequente aos acontecimentos de 16/02/2017...

120 - O que, por sua vez, causou na A. um fundado sentimento de angústia e receio pelas possíveis consequências nefastas para a saúde do seu pai advenientes da situação causada pelo R., as quais vivenciaram conjuntamente quer no dia do atropelamento quer no período temporal subsequente.

121 - Assim, estamos perante um dano moral, na sua vertente psicológica, que é manifestamente relevante, impondo-se que a A. seja compensada pelo R., face ao sofrimento que este lhe causou, decorrente de um sentimento de angústia e preocupação que lhe provocou em virtude de uma conduta gritantemente ilícita e, reitere-se, extremamente censurável.

122 - No que concerne aos danos de natureza patrimonial, Momentos após a chegada ao local do Sr. DD, que como supra se disse foi a primeira pessoa a auxiliar a A., chegou a Sra. HH, a quem a A. solicitou que ligasse para o seu número de telemóvel de forma a poderem detectar se o mesmo se encontrava caído em algum lugar no local dos acontecimentos supra descritos.

123 - Esse telefonema foi efectuado e constatou-se que o telemóvel da A. estava ligado, dando sinal de chamada.

124 - Foram realizadas sucessivas chamadas que se revelaram infrutíferas, constatando-se que o telemóvel da A. já não se encontrava no local.

125 - Juntamente com o seu pai, a A. tentou localizar o telemóvel com recurso à aplicação "find my iphone”, tendo o telemóvel sido localizado na zona de ..., em ....

126 - Sendo que a última localização detectada do aparelho foi numa transversal da Rua ..., em ..., conforme decorre do resultado da pesquisa que se junta como documento nº 19 e se dá por integralmente reproduzido.

127 - Assim se concluindo que o equipamento só poderia ter caído para dentro do capôt do veículo do R., provavelmente através do espaço dos limpa-pára-brisas, tendo sido levado naquele veículo após o embate no corpo da A..

128 - O que ficou igualmente confirmado através das declarações do aqui R., na qualidade de Arguido, em sede de Debate Instrutório realizado em 13/04/2018 (cfr.CD e Doc.5), aí dizendo, entre o mais, o seguinte:

“… o telefone estava, de facto no meu carro… no meu capôt o que para mim foi uma completa surpresa porque não houve que eu me lembre de ter havido nenhum… [num tom jocoso] digamos nenhuma queda da assistente para cima do meu carro… eu achei que aquilo era… um acto [num tom jocoso] digamos, sobrenatural como é que aquele telefone, passados cinco quilómetros estava em cima do meu capôt…”

129 - No dia 16/04/2017 a A. foi contactada telefonicamente pelo Sr. Agente II, da PSP, e nessa altura tomou então conhecimento que o responsável pelo atropelamento, o R., tinha sido identificado pelas autoridades, e que teria revelado que cerca de dois dias após o atropelamento deixou o telemóvel da A.ao cuidado do porteiro do prédio correspondente ao nº 8 da Praça ..., em ....

130 - No dia 19/04/2017 a A. deslocou-se ao referido edifício para interpelar o porteiro, que confirmou estar na posse do telemóvel que lhe tinha sido entregue pelo R., e devolveu o aparelho à A..

131 - Em virtude do atropelamento, tendo ficado sem telemóvel no dia 16/02/2018 e desconhecendo o seu paradeiro, no dia seguinte a A. viu-se obrigada a adquirir um novo aparelho, da mesma marca e características, tendo gasto para o efeito o valor de € 899,90 (oitocentos e noventa e nove euros e noventa cêntimos), conforme resulta da factura de 17/02/2017 cuja cópia se junta como documento nº 20 e se dá por integralmente reproduzido.

132 - Constituindo esse um dano patrimonial directamente decorrente da conduta gritantemente ilícita do R., impondo-se assim o ressarcimento da A. desse valor que foi obrigada a despender.

133 - Mais, pela supra referida deslocação às ... no dia 16/02/2017, e exames que aí realizou, a A. pagou a quantia de €32,00 (trinta e dois euros), conforme resulta do recibo nº...85 cuja cópia se junta documento nº21 e se dá por integralmente reproduzido.

134 - Quanto aos danos patrimoniais supra alegados e demonstrados nos artigos 132º e 134º, totalizam o valor de €931,90 (novecentos e trinta e um euros e noventa cêntimos), devendo o R. ser condenado no pagamento à A. da respectiva indemnização.

135 - O R. é titular de carta de condução, conhecendo, ou tendo o dever de conhecer, o Código da Estrada.

136 - O R. não podia ignorar, e não ignorava, que o movimento de um veículo automóvel contra o corpo de uma pessoa, seja em que circunstâncias forem, é um meio apto a causar-lhe graves danos corporais e morais.

137 - Sendo um facto notório que o resultado da colisão de um veículo automóvel contra o corpo de uma pessoa, e a sua projecção e embate no solo, tem sempre consequências corporais e morais muito nefastas e com uma extensão imprevisível, podendo até o mais pequeno embate conduzir à morte, o que o R. não podia ignorar.

138 - O R. não podia ignorar, e não ignorava, que o facto da A. permanecer imóvel à frente do veículo, e do R. querer abandonar o local, em nenhuma circunstância legitimaria o R. a utilizar o veículo contra o corpo da A., até porque a A. estava completamente indefesa e não constituía qualquer ameaça para o R..

139 - O R. não podia ignorar, e não ignorava, que a utilização de um veículo contra o corpo de alguém para remover essa pessoa da trajectória que pretende seguir é sempre uma prática, em qualquer caso, completamente inadmissível, à luz o Direito, do sentimento social, e dos mais basilares bons costumes e princípios éticos e morais.

140 - O R. não podia ignorar, e não ignorava, que embater com o seu veículo na A. para que pudesse abandonar o local constituía o recurso a um meio completamente ilegítimo, inaceitável e desproporcional, não tendo o R. empregado quaisquer outros meios, que evidentemente eram possíveis, para conseguir que a A. saísse da frente do veículo ao volante do qual aquele se encontrava.

141 - O R. não hesitou em utilizar o veículo contra o corpo da A., sendo revelador de especial censurabilidade ou perversidade o facto de o ter feito contra alguém, a A., que estava imóvel à frente de um veículo, completamente indefesa e não constituía qualquer ameaça para o R..

142 - O R. sabia que o único resultado possível ao fazer embater o veículo na A. era a queda da mesma no solo/estrada, com consequentes danos corporais e morais que eram perfeitamente expectáveis.

143 - Acresce que, o R. abandonou o local do atropelamento que executou, sem prestar qualquer auxílio à A., e sem nunca demonstrar qualquer preocupação que fosse com o estado de saúde da mesma, precisamente porque quis causar-lhe os danos aqui em apreço, e outros mais a que a sua conduta poderia efectivamente ter conduzido.

144 - Acrescendo ainda que o R. optou por executar o atropelamento com o fito de abandonar aquele local e dessa forma impedir a sua identificação pelas autoridades que foram chamadas pela A., impedindo assim, no mínimo, que fosse responsabilizado pela infracção de trânsito/estacionamento ilegal que estava a cometer.

145 - Quanto à situação económica da A., é funcionária pública, estando os seus rendimentos reflectidos na sua liquidação de IRS do ano de 2017, cuja cópia se junta como documento nº 22 e se dá por integralmente reproduzido.

146 -Em 20-11-2027 a Clínica Forense e no âmbito do Proc. Comum – tribunal Singular nº 2336/17... apresentou relatório da perícia de avaliação do dano corporal do qual se destacam os seguintes momentos:

-No âmbito do processo-crime n.º 2336/17... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Criminal..., juiz ..., foi proferida decisão final nos termos da qual se decidiu o seguinte:

“Em face do exposto julgo a acusação pública procedente, por provada, e em consequência decido:

a) Condenar o arguido BB, pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples previsto e punido pelo art.º 143º, n.º 1 do Cód. Penal na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 10,00, num total de € 1.500,00, susceptíveis de conversão em 100 dias de prisão subsidiária.

b) Condenar o arguido no pagamento de 3 (três) UC de taxa de justiça, nos termos do art.º 513º, n.º 1 do CPP e art.º 8º, n.º 5 do Regulamento das Custas Judiciais.”


2.3. - As nulidades do acórdão


O Réu arguiu a nulidade do acórdão com base na contradição, alegando que os fundamentos aduzidos no acórdão para postergar a incompetência material do tribunal e estão em contradição com a decisão que julgou o tribunal cível competente.

As nulidades da sentença ou acórdão, taxativamente previstas no art. 615 nº 1 CPC, reconduzem-se a erros de actividade ou de construção e não se confundem com o erro de julgamento (de facto e/ou de direito).

A nulidade cominada no art. 615 nº 1 c) CPC (fundamentos em oposição com a decisão) verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo.

O acórdão recorrido julgou o tribunal materialmente competente com fundamento em que o pedido em separado se justifica ao abrigo do art. 72 nº 1 c) CPP, na medida em que basta a natureza semi-pública do crime, ou seja, o do procedimento depender de queixa, e a interpretação desta norma “tem de se restringir aos termos que dele decorrem, não existindo dúvidas que é formalmente permitido, em sede de tramitação processual, a dedução do pedido de indemnização civil em separado, porquanto tal permissão resulta da letra e do espírito da lei, por não existir qualquer proibição nesse sentido”.

Para justificar a nulidade do acórdão, o Recorrente alega que da conjugação do artigo 72.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal com o artigo 72.º n.º 2 do mesmo diploma, é possível concluir que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal; e que ainda que, para a ação em separado, não basta que o procedimento dependa de queixa ou de acusação particular, sendo indispensável que não se exerça o direito de queixa ou de acusação, isto é, que o lesado renuncie ou esteja em situação.

Resulta, assim, que o Recorrente fundamenta a pretensa nulidade, em alegado erro de julgamento de direito, pelo que não se verifica a contradição.

        

A Autora, no recurso subordinado, arguiu a nulidade do acórdão por falta de fundamentação quanto à quantificação do dano não patrimonial, no valor de € 20.000,00.

Conforme orientação jurisprudencial e doutrinária, para a nulidade do art. 615 nº 1 b) CPC só releva, para o efeito, a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito, e já não a fundamentação deficiente, medíocre ou errada, que apenas afecta o valor doutrinal da sentença ou acórdão E também se entende que configura a nulidade a fundamentação insuficiente que inviabilize a inteligibilidade da própria decisão.

O acórdão recorrido quantificou o valor do dano não patrimonial com base na equidade, concluindo expressamente- “Parece-nos acertado, ponderado e razoável, porém, ressarcir esses danos com recurso á equidade- cf. artigo 496 nº3 CC, - com o montante de € 20.000,00”.

Para tal, o acórdão começa por referir os factos relevantes para a natureza do dano, baseia-se no exame de clínica forense (fls. 45v) quanto às lesões e as consequências, para dizer “ trata-se de um conjunto de danos que perduram no tempo que se dividem entre lesões físicas e correspondentes dores, tratamentos  e cura e angústia, tristezas profundas e prolongadas, de cuja reparação cabe cuidar”.

Portanto, verifica-se existir fundamentação, na acepção definida. Verdadeiramente, com a imputada nulidade, a Recorrente ao fim e ao cabo impugna o valor atribuído, logo invoca erro de julgamento, e não de construção do próprio acórdão.

Improcedem as nulidades do acórdão.


2.4. A violação do princípio da adesão e a incompetência material do tribunal cível

Está provado que:

O Ministério Público, em 19/1/2018, deduziu acusação contra o arguido, aqui Réu, pela prática de um crime de ofensas corporais simples (art. 143 nº 1 CP), e arquivou o processo quanto aos crimes de ofensa à integridade física qualificada (arts.143 nº 1, 145 nº 1 a) e nº 2, art.132 c) CP, e de um crime de omissão de auxílio ( arts. 200 nº 1 e 2 CP).

A aqui Autora, na qualidade de assistente, requereu a abertura de instrução pedindo que fosse proferido despacho de pronúncia pela prática do arguido dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e omissão de auxílio.

O Réu requereu igualmente a abertura de instrução.

Por decisão do Tribunal de Instrução Criminal de 20/4/2018 decidiu-se:

Não pronunciar o BB pela prática dos crimes constantes do requerimento de instrução apresentado pela assistente;

Pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação, pelo crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art. 143 nº 1 CP.

A Autora, em 20/11/2018 instaurou a presente acção cível na Comarca ... (Juízo Local Cível).

Por sentença de 31/1/2019, proferida no processo processo-crime na forma comum e de Juiz Singular o nº 2336/17... no  Juízo Local Criminal..., J ..., e porque a factualidade alegada na petição deu igualmente origem a procedimento criminal o Réu foi condenado pela autoria de um crime de ofensas corporais à integridade física da Autora, previsto e punido pelo art. 143 nº 1 do CP, na pena de 150 dias de multa à razão diária de 10 €, no total de € 1.500,00, susceptíveis de conversão em 100 dias de prisão.. A sentença foi confirmada por acórdão da Relação de Lisboa, de 12/9/2019.


Coloca-se a questão de saber se, não tendo a Autora deduzido pedido cível na acção penal, houve ou não violação do princípio de adesão em processo crime e quais as consequências, nomeadamente se o tribunal cível é materialmente competente para a acção.

O princípio da adesão obrigatória, plasmado no art.71 CPP, destina-se à indemnização civil fundada na prática de um crime e é justificado sobretudo por razões de economia processual.

O pedido de indemnização enxertado no processo penal, emergente do crime, assume a natureza de verdadeira acção civil, e visa a atribuição do direito à indemnização pelos danos causados pela actuação criminosa.

O art.72 nº 1 CPP consagra determinadas excepções (princípio da opção) em que o pedido cível pode ser formulado em separado, ou seja, no tribunal cível, entre as quais a prevista na alínea c) (“O procedimento depender de queixa ou de acusação particular”).

No entanto esta norma da alínea c) é complementada com a do nº 2 do art. 72 CPP (“No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”).


O acórdão recorrido concluiu pela competência material do tribunal cível e a não violação do princípio da adesão com base em dois tópicos

a) A norma da alínea c) do nº 1 do art. 72 do CPP deve ser objecto de interpretação meramente literal, ou seja, desde que o procedimento criminal dependa de queixa ou de acusação funciona a excepção.

b) Alargamento do âmbito factual do ilícito.

Neste contexto, diz o acórdão:

“A factualidade da petição inicial abrange um complexo muito maior, correspondente àquele que a Autora qualificava como crimes de injúrias, omissão de auxílio e ofensa à integridade física qualificada.

Está claro que a ora Autora não pretendeu formular pedido cível de indemnização na acção penal por pretender alargar o âmbito factual do ilícito.

Efectivamente a Autora tem direito a fazer constar da petição inicial um complexo de factos mais amplo do que o constante da acusação-crime, susceptível de integrar, por exemplo, vários pedidos – cfr. artigo 55º 2 e ss do CPC.

A Autora podia fazê-lo.

Pois, apenas a prévia instauração de acção cível determina a extinção do procedimento criminal, mas não o contrário.

O direito à indemnização dos danos invocados pela Autora, nestas circunstâncias, só pode ser exercido em pleno na acção cível em separado.

A Autora deduz pedido cível em separado, nos tribunais cíveis, ao abrigo do artigo 72º, 1, c) do CPP.

O tribunal cível tem competência para instruir, julgar e decidir tal pedido”.


O Recorrente objecta com a violação do princípio da adesão, na medida em que o art.72 nº 1 c) deve ser lido em conjugação com o nº 2 CPP, pelo que estando pendente o processo crime a acção cível teria que ser deduzida no processo.


O Código de Processo Penal de 1939 consagrou o princípio da interdependência ou adesão obrigatória (art. 29) e a acção cível só poderia propor-se em separado na situação excepcional prevista no art. 30.

Descrevendo os vários sistemas (da identidade, o da absoluta independência, o da interdependência ou de adesão), o Prof Figueiredo Dias elucida que a lei processual adoptou o sistema da adesão, porque “A razão e ser de tal sistema estaria na “natureza tendencionalmente absorvente do facto que dá causa às duas acções, em atenção aos “efeitos úteis que, do ponto de vista penal, se ligam á indemnização civil” ( Direito Processual Penal, vol. 1º, pág.541 )

Portanto, o sistema de adesão obrigatória tem sido justificado por razões de economia processual, uma vez que no único e mesmo processo se resolvem todas as questões referentes ao facto criminoso, economia de meios (os interessados não necessitam de dispersar custos) e o interesse em evitar-se contradições de julgados.


O Código de Processo Penal de 1987 (aprovado pelo Dec Lei nº 78/87 de 17/2) manteve o mesmo sistema de adesão ou dependência.

Estatui o art. 71 (“Princípio de adesão”) que – “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos cados previstos na lei”.

Este princípio-regra comporta dois tipos de excepções: a primeira é constituída pelas situações em que o pedido de indemnização cível pode ser inicialmente deduzido em separado, perante o tribunal civil, e são os casos previstos no art.72 do CPP. A segunda pelas situações do art. 82 nº 3 CPP.

O art.72 nº 1 CPP consagra taxativamente determinadas excepções em que o pedido cível pode ser formulado em separado, ou seja, no tribunal cível, entre as quais a prevista na alínea c) - “O procedimento depender de queixa ou de acusação particular”.

Segundo determinada orientação jurisprudencial, o art.72 nº 1 c) CPP deve ser interpretado autónoma e literalmente, desde que o crime tenha a natureza de particular ou semi-público está legitimada a acção cível em separado, por se tratar de uma excepção, tese adoptada no acórdão recorrido.

Argumenta-se com a interpretação literal da alínea c) do nº 2 do art.72 e pelo facto de dela não constar qualquer entrave ou impossibilidade (cf, por ex., Ac RG 17/12/2018 (proc. nº 1286/17), Ac RG 31/1/2019 (proc. nº 5316/17), Ac RP de 5/1/2002 (proc. nº 00221011), disponíveis em www dgsi.pt )


Não parece, com o devido respeito, que seja de acolher esta posição, considerando a interpretação teleológica e sistemática da norma da alínea c) do nº 1 do art.72 CPP.

A alínea c) do nº 1 do art. 72 deve ser complementada com o nº 2 do art. 72 (“No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”).

Isto significa que havendo acção penal, o pedido de indemnização cível dever ser deduzido no processo penal, vigorando consequentemente a regra da adesão obrigatória.

Neste sentido, acentuando a conjugação de ambas as normas, o Ac STJ de 30/4/2019 (proc. nº 1286/18), em www dgsi.pt, justifica - “Deste contexto normativo, resulta que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal. Por isso, para a ação em separado, não basta que o procedimento dependa de queixa ou de acusação particular, é indispensável que não se exerça o direito de queixa ou de acusação, isto é, que o lesado renuncie ou esteja em situação equivalente a renúncia a tal direito. De outro modo, para além de não se seguir a melhor interpretação legal, estar-se-ia a comprometer em grande parte o princípio da adesão”.

Também no Ac RP de 15/6/2020 (proc. nº 382/18), em www dgsi.pt, seguiu a mesma orientação, ao decidir que “ Da conjugação do art.71 e 72 nº 2 do CPP resulta que, havendo acção penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização tem obrigatoriamente de ser deduzido na acção penal”.

Como reforço de argumentação, ainda o Ac STJ de 27/4/2011 (proc. nº 712/00), em www dgsi.pt, que parte da norma do art.72 nº 2 CPP para concluir pela “forma abrangente” do princípio da adesão em processo penal.

Daí que se a acção cível vier a ser proposta após a instauração da acção penal, que dependa de queixa (como na situação dos autos) a norma aplicável é a do art.72 nº 1 a) e b) CPP, como, aliás, já se entendia anteriormente a propósito da aplicação do art.30 do CPP/29. Se acção cível fosse proposta antes da acção penal, tinha aplicação o §1 do art.30, mas se a cção cível viesse a ser deduzida após a instauração da acção penal o preceito aplicável era o do §2 do art.30 (cf. Ac STJ de 14/1/1987, BMJ 363, pág. 395).

A circunstância do art.72 nº 2 do CPC haver sido alterado pela Lei nº 59/98 de 25/8, em que a renúncia ao direito de queixa ou de acusação particular só ocorre quando a instauração da acção cível for prévia ao exercício do direito de queixa, não infirma a interpretação aqui perfilhada.

Na versão originária, o art.72 nº 2 CPP tinha a seguinte redacção: “No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”.

Com a alteração introduzida pela Lei 59/98 de 25/8, passou a introduzir-se o termo “prévia”  - “2 - No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”.

A Lei nº 39/98 teve subjacente a Proposta de Lei 157/VII, publicada no Diário da Assembleia da República de 23/5/98, II – A, mas não contem uma exposição precisa para a alteração de redacção do art.72 nº 2, pois afirma-se genericamente o seguinte:

“Adapta-se o art.72 às alterações do novo Código de Processo Penal no tocante a intervenção de terceiros e ao novo regime dos tribunais militares, bem como às alterações introduzidas na tramitação do pedido de indemnização civil, permitindo-se a dedução do pedido em separado sempre que forem omitidas a informação ao lesado ou a notificação para a dedução do pedido no processo penal”.

Parece que a alteração legislativa foi meramente interpretativa ou clarificadora, já que a anterior redacção estabelecia também como consequência a renúncia ao exercício do direito de queixa, muito embora se prestasse a alguma divergência.

Como resulta do art. 116 nº 1 e 2 Código Penal, a renúncia é uma forma de extinção do direito subjectivo, e no âmbito do processo penal a renúncia consubstancia uma declaração (renunciativa) produzida antes da instauração do procedimento criminal, e, portanto, impeditiva do mesmo, enquanto a desistência pressupõe a instauração prévia da queixa, significando que após o exercício de queixa já não é possível renunciar, mas desistir.

Neste contexto, não parece que a alteração legislativa dada ao nº 2 do art. 72 CPP pela Lei nº 59/98 legitime a interpretação de que depois de formulada a queixa já é permitida a dedução do pedido civil separado para os crimes semi-públicos e particulares. 

O que parece legítimo, em face do elemento histórico e dada a manutenção no actual Código de Processo Penal do regime de adesão, inscrito anteriormente no arts. 29 e 30 CPP/29, é a interpretação de que o lesado tem duas opções: se opta, antes da queixa, pela acção cível em separado, impede o exercício da acção penal através da renúncia; ou se opta pela acção penal, então a acção civil, fora dos casos das alíneas a) e b) do nº 1 art. 72, terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão orbrigatória.

Note-se que a norma da alínea c) do nº 1 do art.72 CPP, reportando-se precisamente aos crimes semi-públicos e particulares, tem como finalidade evitar o exercício obrigatório da acção penal para obter o ressarcimento pelos danos causados pelo crime. Significa que uma vez deduzido o procedimento criminal, ou seja, instaurada a acção penal, a opção pela acção cível em separado implicaria uma duplicação de acções, o que vai contra a razão de ser do regime de adesão obrigatória.

Por isso, impõe-se uma interpretação restritiva da letra da alínea c) do nº 1 do art. 72 CPP, tendo em conta o elemento histórico, teleológico e sistemático, no sentido de que havendo acção penal (logicamente sem renúncia de queixa ou de acusação), o pedido de indemnização deve obrigatoriamente ser deduzido no processo penal, e, por consequência, vigora a regra da adesão obrigatória.


O segundo tópico argumentativo do acórdão para justificar a competência do material do tribunal cível respeita ao alargamento do âmbito factual do ilícito

Muito embora a queixa tenha sido arquivada em relação aos crimes de injúrias e de omissão de auxílio, arquivamento sindicado pelo Tribunal de Instrução Criminal através de despacho de não pronúncia, verifica-se pela leitura da petição inicial que a Autora peticionou danos patrimoniais e não patrimoniais pelos factos concernentes às ofensas corporais (traumatismo craniano) e respectivas consequências.

Por um lado, alegou expressamente que o facto ilícito assenta no atropelamento intencional com o veículo automóvel (“No que concerne ao facto ilícito, no caso dos presentes autos é o atropelamento da A. pelo R. com recurso a veículo automóvel, nos termos supra descritos, em particular nos arts. 24 a 29” – cf. art.140 da petição inicial). Por outro, não concretizou quaisquer danos pelo imputado crime de injúrias, nem alegou quais os danos referentes à omissão de auxílio, nomeadamente em que tal conduta contribuiu para o agravamento dos danos.


Conclui-se, assim, pela incompetência material do tribunal civil, o que implica a absolvição do Réu da instância, ( arts. 99 nº 1, 278 nº 1 a), 577 a) CPC) ficando prejudicadas as demais questões suscitadas nos recursos (independente e subordinado).

Note-se que já no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, o Assento do STJ de 28 de Janeiro de 1976 (publicado no DR 1 S-A de 11/3/1976) decidiu que o vício da violação do princípio da adesão obrigatória se reconduz à incompetência material do tribunal cível, e não à excepção dilatória inominada.


2.5. - Síntese conclusiva

1.- O pedido de indemnização civil emergente do crime, enxertado no processo penal, assume a natureza de verdadeira acção civil, e visa a atribuição do direito à indemnização pelos danos causados pela actuação criminosa, vigorando no nosso ordenamento jurídico o sistema da adesão obrigatória (art. 71 Código de Processo Penal) só podendo sê-lo em separado em situações excepcionais, como as taxativamente previstas no art. 72 nº 1 do Código de Processo Penal.

2.- A alínea c) do nº 1 do art.72 do Código de Processo Penal (“O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, quando o procedimento depender de queixa ou de acusação particular”) deve ser complementada e conjugada com o nº 2 do art. 72 CPP (“No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”).

3.- Da conjugação  de ambas as normas, e  em face do elemento histórico, sistemático e teleológico, resulta a interpretação de que nos crimes de natureza semi-pública e particular o  lesado tem duas opções: opta, antes da queixa, pela acção civil em separado e impede o exercício da acção penal através da renúncia; ou opta pela acção penal, e  então a acção civil ( fora dos casos das alíneas a) e b) do nº 1 art. 72 CPP ) terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão obrigatória.

4. A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência material do tribunal cível.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem


1)


Julgar procedente o recurso do Réu e julgar incompetente em razão da matéria o tribunal civil, absolvendo o Réu da instância.

2)


Condenar a Autora nas custas em todas as instâncias.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Junho de 2022.


Os Juízes Conselheiros


Jorge Arcanjo (Relator)

Isaías Pádua

Freitas Neto