Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
191/07.OTBVRM.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: URBANO DIAS
Descritores: DELIBERAÇÃO SOCIAL
LUCROS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P. 119
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO COMERCIAL - SOCIEDADES COMERCIAIS
Doutrina: - António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades Comerciais, II, Das Sociedades em Especial, 2006, página 582.
- António Pinto Monteiro, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 136º, páginas 96 a 98.
- Evaristo Mendes, Direito ao Lucro de Exercício no CSC – arts. 217/294, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, página 497.
- Filipe Cassiano dos Santos, O Direito aos Lucros no Código das Sociedades Comerciais, Problemas do Direito das Sociedades, páginas 189 e 190, 193, 197, 198.
- J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 97.
- João Labareda, Das Acções das Sociedades Anónimas, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1988, páginas 146 e 147.
- José Nuno Marques Estaca, O Interesse da Sociedade nas Deliberações Sociais, página 40.
- Lucros de Exercício, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXXVIII, 1996, (XI da 2ª Série, páginas 257 e seguintes, nomeadamente 359 a 364.
- Raúl Ventura, Sociedade por Quotas, Vol. I, 2ª edição, página 336.
- Rodrigo Uria, Derecho Mercantil, Duodécima Edición, páginas 282 a 284.
Legislação Nacional: CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 58.º, N.º1 ALÍNEA B), 217.º, N.º 1, 259.º, N.º1, 294.º, N.º1, 295.º, N.º1, 376.º, N.º1 ALÍNEA B).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º.
Sumário : I- A regra geral enunciada no artigo 294º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, e que atribui aos sócios o direito à partilha anual de metade dos lucros distribuíveis, tem natureza supletiva, podendo ser afastada por duas vias: pela existência de uma cláusula contratual em contrário, nada obstando à previsão da possibilidade de não haver qualquer distribuição no final do exercício ou, em caso de omissão no pacto, por deliberação da assembleia geral aprovada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social.
II- Não viola esta regra a cláusula do pacto social de uma sociedade anónima que permite, através dos lucros distribuíveis, a constituição de reserva legal em percentagem superior à definida no artigo 295º, nº1 do Código das Sociedades Comerciais ou de outras reservas, as chamadas “reservas livres”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I.
Relatório
AA intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Vieira do Minho, acção ordinária contra
Empresa Águas do G...,
pedindo:
– A declaração da falsidade da acta da assembleia-geral da R., de 27 de Abril de 2007;
– A declaração de inexistência das deliberações sociais tomadas nessa assembleia-geral, por falsidade da respectiva acta;
– A declaração de nulidade das mesmas deliberações, com todas as consequências; ou, subsidiariamente,
– A anulação das mesmas deliberações.

A R. contestou, pugnando pela improcedência da acção, salientando, na parte em que releva para a decisão do presente recurso, que os seus Estatutos dispõem concretamente sobre a distribuição dos lucros e que a deliberação respeitou o postulado no artigo 294º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais.

Replicou o A., mantendo a posição inicial, pedindo, no entanto, a ampliação do pedido no sentido do subsidiariamente pedido em b) e, para a hipótese de improcedência desse pedido, que seja decretada a ineficácia das deliberações sociais tomadas em assembleia-geral, por falsidade da respectiva acta, bem como a declaração de nulidade ou anulabilidade relativo ao ponto 5 da ordem de trabalhos.

A acção seguiu, depois, a sua tramitação normal até julgamento, não sem que, antes, tivesse sido fixado o seu valor em 54.084,56 €.
Após a realização daquele, foi proferida sentença a julgar totalmente improcedente o peticionado.

Inconformado, o A. apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães. Em vão, porém, na medida em que o julgado foi na íntegra confirmado.

Continuando no mesmo estado de espírito, eis que pede, ora, revista do aresto prolatado, a coberto das seguintes conclusões com que fechou a sua minuta:
– O pacto social não derrogou o limite de 50% de lucro que obrigatoriamente tem de ser distribuído aos sócios, salva deliberação contrária de maioria de 3/4, conforme impõe supletivamente o artigo do 294º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, pelo que o acórdão interpretou erradamente esta norma legal e aquela disposição contratual.
– Face ao estabelecido no parágrafo segundo do artigo 8° dos Estatutos da sociedade, é certo que podem ser constituídas reservas livres, em sacrifício óbvio das gratificações especiais, participações do pessoal, provisões, afectação a resultados transitados ou da distribuição aos accionistas, que constituem os outros destinos possíveis dos resultados de exercício.
– Mas a disposição contratual não implica, só por si, que os resultados possam ou devam ser integralmente afectos, sem qualquer limite, à sua constituição de reservas livres, afectando os lucros a distribuir até os exaurir completamente, por deliberação tomada por maioria absoluta.
– Posto que apenas significa que a afectação a reservas livres da percentagem dos lucros de exercício que medeia entre a percentagem de 20% dos lucros necessariamente afecta a reservas legais e a percentagem de 50% dos lucros necessariamente afecta a dividendos, pode ser deliberada, em primeira convocatória, por 50% mais um do capital social.
– Ao invés de permitir ou autorizar a não distribuição da totalidade do lucro, o que aquela regra impõe é que a constituição de reservas livres a fixar dentro das balizas das reservas legais e dos lucros a distribuir seja aprovada por uma maioria especial em primeira convocatória, diferente da regra geral supletiva.
– Ademais, aquela norma legal tem de ser interpretada por via restritiva, no sentido de que a destinação de 50% do lucro a dividendos, salvo deliberação diferente de uma maioria alargada, constitui uma reserva mínima, que a lei apenas permite ampliar mas nunca restringir, sendo inválidas as cláusulas estatutárias de sentido contrário, conforme, aliás, defendem largos sectores da doutrina.

Em defesa da manutenção do acórdão recorrido, contra-alegou a Recorrida.

II.
As instâncias fixaram a seguinte factualidade:
– A R. Empresa de Águas do G..., S. A. é uma sociedade comercial na forma anónima, com sede na Av. ..., lugar do G..., freguesia de Vilar da Veiga, Terras do Bouro, com o capital social de € 1.100.000,00, correspondente a 220.000 acções ao portador com o valor nominal de € 5,00 cada, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Terras do Bouro, sob o nº ..., e foi constituída por escritura pública, de 19.04.1924, lavrada no Cartório do Notário Dr. Silva Lino, Porto.
– O pacto social está plasmado nos respectivos estatutos, cuja última redacção, actualmente em vigor, foi aprovada em assembleia-geral de 28 de Setembro de 2006, que passaram a ter a redacção constante do documento de fls. 21 a 23.
– Nos termos do artigo 2º dos Estatutos, a R. é uma sociedade de duração indeterminada e o seu principal objectivo é a exploração das nascentes das águas do G... e actividades turísticas.
– Nos termos do § 1 do artigo 6º dos seus Estatutos, a posse de 100 ou mais acções dá um direito de voto e daí para cima a tantos votos quantos grupos de 100, desprezando fracções que não completem grupos de 100 acções.
– O A. é titular de 26.649 acções ao portador da R., representativas de, aproximadamente, 12,11% do respectivo capital social.
– Os accionistas da R. foram convocados para reunirem em assembleia-geral anual, na Delegação do Porto, na Praça da L..., ... – ...º, sala ..., no dia 30 de Março de 2007, pelas 11.00 horas, e, em segunda convocatória, no dia 27 de Abril de 2007, à mesma hora, com a seguinte ordem de trabalhos, transcrita na acta nº 103:
Ponto 1: Deliberar sobre o relatório de gestão, balanço e contas do exercício de dois mil e seis;
Ponto 2: Deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados;
Ponto 3: Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade;
Ponto 4: Deliberar sobre as condições do projecto Sivetur;
Ponto 5: Proceder à eleição dos órgãos sociais para o triénio dois mil e sete, dois mil e nove e fixar as respectivas remunerações fixas e variáveis.
– Na acta nº 103, referente à assembleia-geral ordinária da R., convocada nos termos referidos, menciona-se que:
“No dia 27 de Abril de 2007, pelas 11.00 horas, reuniram, em segunda convocatória, no escritório do Porto, em assembleia-geral anual, accionistas ou representantes de accionistas devidamente credenciados, possuidores da totalidade do capital social em circulação da Empresa Águas do G..., S. A..
– Essa assembleia teve lugar no Hotel I.. P.., sito à Rua de S..., 124, Porto.
– Nessa acta e relativamente aos accionistas e ao capital social presentes escreveu-se que reuniram “ accionistas ou representantes de accionistas devidamente credenciados, possuidores da totalidade do capital social em circulação da Empresa Águas do G..., S. A..
– Nessa mesma acta, no que ao ponto 2 da ordem do dia respeita, escreveu-se que:
“Entrando no segundo ponto da ordem do dia:
Deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados, foi este aprovado por maioria com os votos a favor do grupo V... Z... e os votos contra do grupo P... M..., tendo o accionista AA declarado que este ponto não poderia ser aprovado pois vinte e um por cento desses resultados a administração tem a obrigação de os distribuir, do que o Presidente na Mesa ficou de analisar a questão para ser resolvido nos termos da lei. Pelo que do total de quarenta e dois mil oitocentos e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos, dois mil cento e setenta e seis euros e sessenta e oito cêntimos vão reforçar as reservas legais e o saldo do trinta e nove mil novecentos e sete euros e oitenta e seis cêntimos para reservas livres.
– Relativamente às deliberações tomadas foram feitas as seguintes referências naquela acta:
Ponto 1: foi aprovado por maioria com os votos a favor do grupo V... Z... e os votos contra do grupo P... M...;
Ponto 2: foi aprovado por maioria com os votos a favor do grupo V... Z... e os votos contra do grupo P... M...;
Ponto 3: a votação foi idêntica à anterior;
Ponto 4: considerou-se estar esgotado pelas considerações feitas ao longo da assembleia;
Ponto 5: votada favoravelmente pelo grupo V... Z... e com os votos contra do grupo P... M....
– No âmbito do ponto dois da ordem de trabalhos foi apresentado à assembleia-geral o relatório de gestão, do qual constava uma proposta de afectação dos resultados de exploração de € 42.084,54, dos quais € 2.176,68, a reservas legais, e € 39.907,68, a reservas livres.
– Essa proposta foi aprovada, por 1.368 votos a favor, correspondentes à soma dos votos dos accionistas BB, CC, DD, do dito Grupo V... Z..., correspondentes a 136.947 acções e 824 votos contra, correspondentes à soma dos votos dos accionistas EE, FF, Herdeiros de GG, do dito grupo P... M..., correspondentes a 82.539 acções.
– Os escritórios/delegação do Porto da R. situam-se na Praça da L..., nº ..., sala E, na cidade do Porto, escritórios instalados num edifício que também tem entrada pelo nº .., ...º, sala ..., da Avenida dos A..., na cidade do Porto, escritório esse que é de dimensões reduzidas e reúne poucas condições de conforto para a realização de assembleias.
– Desde há anos que existe entre os accionistas da R. e por conveniência de todos, um acordo tácito, no sentido de as assembleias-gerais se realizarem nos referidos escritórios/delegação do Porto e é nesse local que se costumam realizar as assembleias-gerais da R..
– O A., que esteve presente na reunião, não levantou qualquer objecção formal à realização da reunião nesse local.
– No dia em que se realizou a aludida assembleia-geral ordinária, foi elaborada a lista de presenças de fls. 174, presenças que foram registadas no livro que existe para o efeito, e que o A., que esteve presente, assinou, por si e em representação da herança indivisa aberta pela morte do seu pai, GG e, igualmente, em representação de sua mãe, EE.
– A referência, na acta nº 103, ao grupo P... M... pretende agregar os accionistas: herança indivisa aberta por óbito de GG, EE e FF.
– Na referida acta nº 103 escreve-se que o ponto nº 1 da ordem do dia tem por objecto “ deliberar sobre o relatório de gestão, balanço e contas do exercício de 2006”.
– Da mesma acta consta que o A. pediu esclarecimentos sobre a discrepância de valores indicados entre equipamento básico e edificações relativamente ao orçamento do projecto; a derrapagem entre o orçamento do projecto dado pela Empresa E... e o orçamento do empreiteiro a quem tinha sido adjudicada a obra; o facto dos resultados operacionais terem sido negativos; o montante das garantias bancárias; a aquisição e venda de veículos; o financiamento do BES (Banco Espírito Santo); o aumento dos empréstimos obtidos no balancete de Fevereiro de 2007, comparativamente com o balanço de 31 de Dezembro de 2006.
– HH, filho do A., que, apesar de não ser accionista, nem representante de nenhum accionista, foi admitido pelo Presidente da Mesa da Assembleia a assistir à reunião, pediu, inclusivamente, esclarecimentos sobre os títulos negociáveis existentes.
– Nos termos do artigo 8º dos Estatutos da R.:
“A assembleia-geral poderá funcionar à primeira convocação quando estejam presentes pelo menos cinco accionistas cujas acções correspondam ao mínimo de 25% do capital, excepto no caso previsto no parágrafo imediato.
§ 1 – As Assembleias que tenham por fim a reforma de Estatutos, emissões de obrigações ou reforço e redução de capital devem constituir-se com a maioria absoluta do capital social.
§ 2 – A constituição de provisões ou reservas que excedam os limites estabelecidos na Lei só poderão ser constituídas quando em primeira convocatória obtiver a aprovação da maioria absoluta do Capital Social. Quando a assembleia-geral se realizar em segunda convocatória ou em data desde logo marcada na primeira convocatória, as deliberações sobre esta matéria poderão fazer-se por maioria simples.
– De acordo com o artigo 20º dos Estatutos da R. “além do fundo de reserva legal, a Assembleia poderá criar outros fundos especiais”.
– Na assembleia-geral ordinária realizada em 27 de Abril de 2007 foram apresentadas várias propostas e discutidas as contas da empresa, incluindo o seu relatório de gestão e balanço.
– Após a publicação da convocatória aludida, foi comunicado ao A. que a reunião se realizaria numa sala do Hotel I... P..., sito na Rua de S..., nº ..., Porto.
– O A. aceitou a alteração do local da realização da assembleia-geral de 27.04.2007.
– A proposta de aplicação de resultados constava do relatório de gestão, entregue a todos os accionistas presentes na assembleia juntamente com o balanço e as contas.
– A votação das propostas submetidas à referida assembleia-geral foi aberta.
– O A. foi informado, por simples via telefónica, por um membro do Conselho de Administração, que também possui acções na sociedade, que a reunião não teria lugar no local para onde havia sido regularmente convocada, mas sim no referido hotel.
– No início da assembleia-geral ordinária de 27 de Abril de 2007 os sócios da R. não se pronunciaram sobre a alteração do local da reunião.

III.
Quid iuris?
De todas as questões suscitadas ab initio, o A. apenas manteve discordância, com o decidido pelas instâncias, em relação à deliberação aprovada em assembleia-geral relativa à distribuição dos lucros, continuando a defender que a mesma viola o estatuído no artigo 294º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais.
Esta é, pois, a questão que nos cumpre apreciar e decidir.
O mesmo é dizer que a nossa tarefa está limitada a saber se a deliberação, tomada na assembleia-geral da R., no passado dia 27 de Abril de 2007, que afectou os resultados da exploração a reservas legais e a reservas livres, impedindo a distribuição de lucros pelos sócios, é legal ou, pelo contrário, é ilegal e, como tal, anulável.
Entenderam as instâncias que não houve, por parte da R., qualquer violação daquela disposição legal, sendo, portanto, perfeitamente legal a deliberação tomada, na dita assembleia-geral de 27 de Abril de 2007, no sentido de afectar os resultados da exploração (no valor de 42.084,54 €) a reservas legais (2.176,68 €) e a reservas livres (39.907,68 €), não proporcionando, desta forma, distribuição de lucros pelos seus sócios.
Ora, primo conspectu, parece que, aquele preceito salvaguarda para distribuição pelos accionistas metade do lucro do exercício, o que, a ser assim, terá implicações directas no deliberado, nomeadamente ao nível da sua anulação.
Na verdade, tal normativo legal estabelece que “salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído aos accionistas metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível”.
E o artigo 295º do mesmo corpo de leis fixa as reservas legais em 20% do lucro da sociedade até que seja atingida a quinta parte do capital social.
Entende o Recorrente que, da conjugação destes dois preceitos legais, resulta a ilegalidade da deliberação tomada, na justa medida em que não permite a distribuição de lucros.
As cousas, porém, ao contrário do que entende o Recorrente, não se apresentam com tamanha simplicidade.
Com efeito, como teve o cuidado de sublinhar o juiz da 1ª instância, com o apoio doutrinal de João Labareda, a regra constante do artigo 294º do Código das Sociedades Comerciais pode ser afastada por uma de duas vias, sendo uma delas a verificação de uma cláusula contratual em contrário, caso em que competirá à assembleia-geral deliberar sobre os lucros, nos termos gerais, e a outra por deliberação tomada por maioria de três quatros dos votos correspondentes ao capital social em assembleia-geral convocada para o efeito.

Assume, desta forma, natureza puramente supletiva a norma constante do mencionado artigo 294º (“normas supletivas são aquelas que se destinam a suprir a falta de manifestação da vontade das partes sobre determinados negócios que carecem de regulamentação” – J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 97).

Indo directamente ao caso que nos interessa, cumpre-nos saber se o que consta dos Estatutos da R. constitui, na verdade, uma ressalva à regra supletiva do artigo 294º do Código das Sociedades Comerciais.
Lendo, com a devida atenção, o § 2º do artigo 8º dos aludidos Estatutos, imperioso se torna concluir que o contrato de sociedade da R. prevê, de forma expressa e clara, que a constituição de reservas que excedam os limites estabelecidos na lei podem ser objecto de deliberação, tomada em assembleia-geral, por maioria absoluta, em 1ª convocatória, e por maioria simples, em 2ª convocatória.

Em estrito respeito do aí estabelecido, indo ao encontro das ideias já comentadas, a 1ª instância não teve dúvidas em concluir pela validade das decisões tomadas na dita assembleia-geral da R..
Estamos inteiramente de acordo com a sua argumentação e com a decisão encontrada.
A Relação de Guimarães não teve juízo diferente, confirmando, na íntegra, o julgado, usando precisamente a mesma argumentação.

Não vemos, pois, razão para conceder a pretendida revista.

O que nos afasta da visão do Recorrente, em perfeita consonância com as posições assumidas pelas instâncias, é, no fundo, a verificação da natureza supletiva da norma do citado artigo 294º do Código das Sociedade Comerciais.
Para o Recorrente, o pacto social não derrogou o limite de 50% de lucro do exercício que obrigatoriamente tem de ser distribuído aos sócios (parte final do nº 1 do artigo 259º), salva a deliberação contrária da maioria de ¾, conforme impõe, supletivamente, o artigo 294º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, razão pela qual entende que o acórdão interpretou erradamente esta norma legal e aquela disposição contratual (conclusão 1ª).
Não se opõe o Recorrente à constituição de reservas livres, desde que as mesmas não representem um limite absoluto à distribuição de lucros até os exaurir por completo, por deliberação tomada por maioria.
Procurando cimentar as posições já ilustradas pelas instâncias, no sentido de que a interpretação do Recorrente não é a mais consentânea, antes, pelo contrário, nada há de ilegal na deliberação tomada, iremos dizer algo mais.
O citado artigo 294º do Código das Sociedades Comerciais quando no seu nº 1 consagra a ressalva (“salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído pelos accionistas metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível”), indica, de forma a não deixar dúvidas, a sua natureza supletiva.
Significa isto que, em princípio, a distribuição de lucros, tal como é regulada pelo Código das Sociedades Comerciais, não poderá deixar de ser observada, a menos (salvo, na expressão da própria lei) que haja cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de 3/4 dos votos correspondentes ao capital expresso em assembleia convocada para o efeito (aqui está bem desenhada a tal natureza supletiva assinalada).
Resulta, assim, claro que o postulado do nº 1 do artigo 294º, atenta a natureza já referida, permite a possibilidade de a regra da distribuição dos lucros do exercício poder ser alterada por uma das duas vias nele indicadas.
Este ponto é, aliás, bem salientado por António Menezes Cordeiro quando afirma que “a distribuição de lucros fica dependente da inexistência de «diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos (294º/1, aliás semelhante ao artigo 217º/1). Toda esta matéria é supletiva, embora fique marginada por normas imperativas, com exemplo nas que fixam «lucros não disponíveis». Supletivamente, deve ser distribuído aos accionistas metade do lucro de exercício distribuível. Trata-se de matéria que compete à assembleia geral anual: 376/1,b)” (Direito das Sociedades Comerciais, II, Das Sociedades em Especial, 2006, página 582).
Ponto de vista este que é também acolhido por Filipe Cassiano dos Santos que, referindo-se ao estatuído nos artigos 217º, nº 1 (sociedades por quotas) e 294º (sociedades anónimas), acaba por concluir que “este resultado pode ser paralisado: duradouramente, por cláusula contratual em contrário; pontualmente (para um exercício), por deliberação de aplicação de resultados sujeita a requisitos especiais (e que são a convocação para o efeito de não distribuir metade do lucro e a aprovação de uma maioria qualificada correspondente a ¾ do capital social” (O Direito aos Lucros no Código das Sociedades Comerciais, Problemas do Direito das Sociedades, páginas 189 e 190).
Posição idêntica assume Raúl Ventura que, depois de referir que a norma do artigo 294º é em tudo semelhante à do artigo 217º (esta relativa às sociedades por quotas), ao comentar precisamente este preceito (“salvo diferente cláusula contratual”), acaba por reconhecer que, no plano formal, esta cláusula é diferente da regra supletiva, mas substancialmente respeita a intenção da lei, na justa medida em que assegura aos sócios a distribuição de metade dos lucros, mas não contra a vontade deles. Nesta medida, “se no contrato de sociedade todos permitem a derrogação dessa regra, tanto faz que o façam por estabelecimento de percentagens diferentes, como deixando à assembleia o referido poder” (Sociedade por Quotas, Vol. I, 2ª edição, página 336).
Outrossim, João Labareda, debruçando-se sobre esta candente questão, a de saber se é ou não possível a uma sociedade (seja ela por quotas ou, como no caso, anónima) passar sem distribuir lucros respeitantes a algum ou alguns exercícios, não deixou de, respondendo afirmativamente, fazer a exegese do citado nº 1 do artigo 294º do Código das Sociedades Comerciais, concluindo, num primeiro momento, que “há, portanto, uma regra supletiva segundo a qual o sócio tem direito à partilha anual dos lucros, fixando-se em metade do total distribuível aqueles que obrigatoriamente são divididos”, para, logo de seguida, acrescentar, esclarecendo:
“Mas prevêem-se duas situações alternativas que afastam a regra geral, a primeira é a existência de uma cláusula contratual em contrário, nada obstando à previsão de possibilidade de não haver qualquer distribuição no final do exercício. Neste caso competirá à assembleia geral deliberar, nos termos gerais, sobre o destino dos lucros, salvo se estiver prevista a constituição de certo tipo de reservas e os lucros obtidos não forem de molde a proporcionarem remanescente.
A outra alternativa é a de, na omissão do pacto, a própria assembleia, então por maioria de três quatros dos votos correspondentes ao capital social, deliberar não distribuir lucros ou distribuir menos de metade dos lucros obtidos” (Das Acções das Sociedades Anónimas, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1988, páginas 146 e 147).
Ainda no mesmo sentido, não podemos deixar de citar a posição avalizada de Evaristo Mendes que, em aprofundado estudo, defende a natureza supletiva da norma em causa, criticando asperamente alguma doutrina que, em sentido contrário, pugna pela nulidade das cláusulas que afastam o regime geral consagrado nos 217, nº 1 e 294º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, na justa medida em que tal é “dificilmente aceitável num ordenamento jurídico que, justamente, consagra como regra geral do direito societário – em relação à qual a dos preceitos do CSC é especial – uma norma desse tipo (art. 991 CC)”, para além de que isso “significaria invalidar uma prática estatutária com larga tradição” (Direito ao Lucro de Exercício no CSC – arts. 217/294, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, página 497).
Este mesmo A., em outro escrito sobre esta matéria, repete a mesma ideia, sublinhando que o direito do sócio a que a sociedade lhe atribua um crédito correspondente à sua quota-parte de metade dos lucros de exercício apurados e distribuíveis, sofre os dois tipos de limitações referidos (Lucros de Exercício, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXXVIII, 1996, (XI da 2ª Série, páginas 257 e seguintes, nomeadamente 359 a 364).

No caso concreto, a deliberação foi tomada em respeito pelo estatuído no § 2º do artigo 8º dos Estatutos da R. que determina que “a constituição de provisões ou reservas que excedam os limites estabelecidos na Lei só poderão ser constituídas quando em primeira convocatória obtiver aprovação da maioria do capital social” e, ainda, que “quando a assembleia-geral se realizar em segunda convocatória ou em data desde logo marcada na primeira convocatória, as deliberações sobre esta matéria poderão fazer-se por maioria simples”.
Ou seja, imperioso é concluir, de uma vez por todas, que os próprios estatutos da R. prevêem a possibilidade de constituição de reservas que excedam os limites de distribuição dos lucros de exercício anual pelos sócios, possibilidade essa aceite ab initio por todos eles, ou seja, no momento da constituição da sociedade, o que permite dizer, sem qualquer hesitação, que a deliberação posta em crise é perfeitamente legal.
Um outro ponto a merecer referência tem a ver com a constituição de reservas livres.
Estas reservas são criadas normalmente para acudir mais convenientemente aos interesses sociais e, como refere Rodrigo Uria, nada há a reparar, mesmo implicando subtracção de benefícios à repartição anual de lucros, para decidir de benefícios quando assim se preveja mais conveniente para os interesses sociais (Derecho Mercantil, Duodécima Edición, páginas 282 a 284).
Em relação a este ponto, poder-se-á questionar se o preceituado no artigo 20º dos Estatutos (que prevê a constituição de reservas livres: a assembleia pode criar outros fundos especiais), encaixa ou na com a regra supletiva constante do artigo 294º do Código das Sociedades Comerciais.
A resposta está já, implicitamente, dada e no sentido positivo.
O sentido da referida cláusula – “a constituição de provisões ou reservas que excedam os limites estabelecidos pela lei só poderão ser constituídos quando em primeira convocatória obtiver aprovação da maioria absoluta do capital social. Quando a assembleia-geral se realizar em segunda convocatória, as deliberações sobre esta matéria poderão fazer-se por maioria simples – § segundo do artigo 8º do contrato de sociedade. Além do Fundo de Reserva Legal, a Assembleia poderá criar outros fundos especiais – artigo 20º do contrato de sociedade” – não oferece dúvidas.
À luz da regra interpretativa constante do artigo 236º do Código Civil, aqui aplicável, embora sufragando um critério mais objectivista, na linha preconizada por António Pinto Monteiro (afastando-nos, portanto, da linha daqueles, como Menezes Cordeiro, que defendem que na interpretação do contrato de sociedade devem ser observados os critérios objectivos fixados no artigo 9º do Código Civil) (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 136º, páginas 96 a 98), não podemos deixar de concluir que os sócios, ao subscreverem o contrato de sociedade da R., convencionaram que a constituição de reservas que excedam os limites estabelecidos na lei, só pode significar a criação de reservas para além das que o Código define como legais, pois só estas têm um limite fixado que é de 20% do valor dos lucros (artigo 295º, nº 1), sendo certo que para a aprovação das deliberações que tenham por objecto a matéria de criação de reservas, para além das legais, os Estatutos exigem, em primeira convocatória, que seja obtida a aprovação por maioria absoluta do capital social e, em segunda convocatória, por maioria simples.
Foi, precisamente, isto que se passou com a deliberação tomada na assembleia-geral da R., do passado dia 27 de Abril de 2007.
Ou seja, o teor desta cláusula afasta o regime supletivo constante do artigo 294º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais.

Cremos, assim, ter ficado claro que o julgado pelas instâncias não merece a mínima crítica, permitindo-nos dizer, afoitamente, que a razão não está, segura e definitivamente, do lado do A./Recorrente.

Não resistimos, porém, a dizer algo, em reforço desta nossa posição.
Em primeiro lugar, dever-se-á ter presente que, como nota Filipe Cassiano dos Santos, no contrato de sociedade não relevam intuitos individuais dos sócios, mas sim intuitos que eles colocam no plano da nova estrutura, sendo que o contrato não consagra qualquer regra específica à repartição dos lucros, limitando-se a prescrever mais ou menos implicitamente o escopo de repartição, donde resulta não um direito dos sócios à distribuição dos lucros, mas sim, e apenas uma regra de actuação para a escrituração societária.
Este A. coimbrão mais faz notar que estas conclusões só não são exactas “quando o contrato estabelecer uma relação definida e quantificada entre sócio e lucro, através da identificação do facto e do montante de distribuição que, por isso mesmo, se inscreve como direito ao dividendo na esfera individual do sócio” (obra citada, página 192).
No caso concreto em apreciação, resulta claro que os Estatutos da R. não estabeleceram qualquer relação definida e quantificada entre o sócio e o lucro, o que sedimenta a conclusão de que nada impedia que o órgão deliberativo por excelência, convocado expressamente para o efeito, tivesse tomada a deliberação de não distribuir pelos sócios os lucros do exercício, em resultado da criação de reservas livres, alcançada a maioria legal exigida.
Esta decisão de criar reservas, dela resultando a não distribuição de lucros do exercício pelos sócios tem muitas vezes a ver com a conjuntura económico-financeira da própria sociedade, como, aliás, é bem salientado pela própria Recorrida nas suas mui doutas contra-alegações.
Em boa verdade, a sociedade comercial, constituída embora com fins lucrativos, pode passar por períodos de crise ou de dificuldade, sendo mister, não raras vezes, acautelar o futuro, criando as ditas reservas livres, abdicando, se necessário, da distribuição de lucros pelos sócios.
É que, verdadeiramente, a sociedade comercial não é pertença exclusiva dos seus sócios. A par dos interesses destes na sua constituição e escopo, outros, de terceiros, não menos relevantes, merecem também a devida ponderação na sua sorte ou destino, tanto a montante como a jusante.
Estes terceiros são definidos “como todos aqueles que não fazendo parte da própria sociedade (entre os quais incluímos os sócios, os gestores, os trabalhadores, as sociedades pertencentes ao mesmo grupo) se encontram numa relação directa ou indirecta com aquela, mantendo um determinado interesse na mesma, de tal forma que a actividade desenvolvida por esta repercute-se reflexamente naqueles (José Nuno Marques Estaca, O Interesse da Sociedade nas Deliberações Sociais, página 40).
A deliberação da sociedade comercial, criando reservas livres, nos termos legalmente permitidos, impeditivas até da distribuição de lucros pelos seus sócios representa uma medida cautelar do interesse de todos, incluindo, logicamente, dos próprios sócios.
Deliberação essa que resulta do que estatutariamente os sócios concertaram ab initio.
Estamos (mais uma vez) perfeitamente de acordo com Filipe Cassiano dos Santos quando defende que neste ponto não é invocável a tutela da minoria: “é que, sendo a cláusula estatutária originária, ela é, por definição, unânime, o que significa que todos os sócios aceitaram a remissão para a assembleia e não a formação do direito – não se podendo invocar um seu interesse hipotético contra um assentimento expresso” (obra citada, páginas 197 e 198).

Poder-se-á argumentar que uma deliberação deste teor pode trazer consigo o incorporado propósito de um dos sócios conseguir vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios, ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes.
Estaremos, então, perante uma deliberação abusiva, anulável nos termos previstos no artigo 58º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais.
Note-se, porém, que, tal como enfatiza Filipe Cassiano dos Santos, “é no plano dos limites internos à actuação dos órgãos sociais (e, indirectamente, da maioria) que a questão da distribuição do lucro se deve colocar – e não no plano da posição subjectivas de sócios ou de interesses assumidos no contrato e no plano da relação societária” (obra citada, página 193).
No caso em análise, não alegou o A./Recorrente um único facto que permitisse aos julgadores chegar à conclusão de que a deliberação tomada tinha sido abusiva, no sentido assinalado, e, como tal, anulável, à luz do preceituado no já referido artigo 58º, nº 1, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais.
Arredada esta hipótese de anulação da deliberação por abuso do direito, de pé fica, com toda a legitimidade, a validade das deliberações tomadas.
Não merecendo censura, antes plena confirmação, o Acórdão da Relação de Guimarães, ao coonestar o julgado na 1ª instância, nada mais fez do que aplicar correctamente o Direito aos factos apurados.
Daí que a revista, como dito, não possa ser concedida.
Deste modo, permitimo-nos, até, extrair do exposto a mesma síntese que a Relação de Guimarães tirou do seu acórdão:
“1º- A regra geral enunciada no artigo 294º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, e que atribui aos sócios o direito à partilha anual de metade dos lucros distribuíveis, tem natureza supletiva, podendo ser afastada por duas vias: pela existência de uma cláusula contratual em contrário, nada obstando à previsão da possibilidade de não haver qualquer distribuição no final do exercício ou, em caso de omissão no pacto, por deliberação da assembleia geral aprovada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social.
2º- Não viola esta regra a cláusula do pacto social de uma sociedade anónima que permite, através dos lucros distribuíveis, a constituição de reserva legal em percentagem superior à definida no artigo 295º, nº1 do Código das Sociedades Comerciais ou de outras reservas, as chamadas “reservas livres”.

IV.
Decisão:
Em conformidade com o exposto, decide-se negar a pretendida revista, condenando o Recorrente no pagamento das respectivas custas.


§§§


Supremo Tribunal de Justiça, aos 12 de Outubro de 2010
Urbano Dias (Relator)
Paulo Sá
Mário Cruz