Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2998
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: CASO JULGADO
CASO JULGADO PENAL
IDENTIDADE DE ACÇÃO
Nº do Documento: SJ200311130029987
Data do Acordão: 11/13/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 4090/02
Data: 03/11/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I- Designadamente não podendo, no processo penal, falar-se, em bom rigor, de partes, de pedido, e de causa de pedir, elementos em função dos quais no processo civil se desenha o instituto do caso julgado, não deve, em vista da sua distinta natureza, reduzir-se a eficácia do caso julgado penal nas acções civis conexas a parâmetros próprios do instituto processual civil correspondente.
II- Fixada em processo-crime, de natureza publicística, a verdade dos factos, a eficácia dessa averiguação em relação a qualquer outro procedimento em que esses factos se controvertam não depende da identidade das partes, mas sim, e apenas, da identidade dos factos.
III- Como expressamente notado no preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12, a reforma do processo civil operada em 1995/96 retomou o regime constante do CPP 29: mas, por exigências decorrentes do princípio do contraditório, corolário lógico da proibição da indefesa ínsita nos artºs. 2º e 20º da Constituição, retirou à decisão penal condenatória a eficácia erga omnes que o artº. 153º CPP 29 lhe atribuía.
IV- A definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado é actualmente feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido.
V- Essa presunção é invocável em relação a terceiros, isto é, em relação aos sujeitos de acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes da ou relacionadas com a prática da infracção que não tenham intervindo no processo penal.
VI- Assim, quando a absolvição em processo penal se não tiver fundado no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos, nomeadamente, os integrantes de contravenção causal, que lhe eram imputados, fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido actuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que o arguido absolvido actuou por forma culposa.
VII- Uma vez, porém, que abrange, expressis verbis, apenas, os factos imputados ao arguido, a presunção estabelecida no artº. 674-B, nº. 1, CPC não serve para firmar, em acção cível, a culpa de outra pessoa, valendo, nessa parte, inteiramente as regras gerais sobre o ónus da prova na acção em causa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Em 27/4/98, "Transportes A, Lda." moveu à "B - Companhia de Seguros S.A.", acção declarativa com processo comum na forma sumária destinada a exigir a responsabilidade civil emergente de acidente de viação ocorrido em 11/5/95, cerca das 4,20 horas, na EN 1, ao km 247,400, em Albergaria-A-Velha.
Pediu, com indicados fundamentos, a condenação da demandada a pagar-lhe indemnização no montante de 5.520.383$00, acrescida de juros vencidos e vincendos, aqueles ascendendo já a 1.409.588$00.
Contestando, a seguradora demandada atribuiu, nos termos referidos nesse articulado, a culpa exclusiva desse acidente ao condutor do veículo da A., deduzindo, quanto aos danos, defesa por impugnação.
Lavrado saneador tabelar, indicados os factos assentes e fixada a base instrutória, veio, instruída a causa, e após julgamento, a ser proferida, em 15/7/2000, sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.
A Relação de Coimbra anulou essa sentença e ordenou a repetição do julgamento, nos termos do artº. 712º, nº. 4, CPC.
A acção foi, depois, de novo, julgada improcedente, por não provada, por sentença de 28/5/2002.
Essencialmente fundado esse recurso no determinado no artº. 674º-B, CPC, aquela Relação negou provimento a essa segunda apelação.
A assim vencida pede, agora, revista dessa decisão.

2- Em remate da alegação respectiva, formula estas conclusões, reprodução das deduzidas na apelação:
1ª- A presunção estabelecida no artº. 674º-B, CPC, aplica-se ao caso dos autos.
2ª- Essa presunção permite estabelecer dois factos impeditivos da prática dos factos imputados ao condutor do veículo da recorrente (cfr. al. I) dos factos assentes):
- um é o de esse veículo ter sido embatido na frente do lado direito pelo que seguia em sentido contrário;
- outro é o de a colisão frontal se ter dado em local não apurado, mas seguramente na hemifaixa de rodagem por onde seguia o condutor do veículo da recorrente.
3ª- Face à presunção desses factos, o tribunal de 1ª instância deu como provados os factos constantes dos nºs. 1º, 4º e 5º da base instrutória, limitando, contudo, essa resposta aos precisos termos da delimitação desses factos pela presunção.
4ª- Aquele tribunal deu como não provados, entre outros, os factos constantes dos nºs. 10º, 11º e 14º da base instrutória, os quais teriam de obter resposta positiva para poderem afastar os factos presumidos, levando à resposta negativa dos quesitos 4º e 5º e dando outra versão da dinâmica do acidente que afastasse a responsabilidade do condutor do ligeiro.
5ª- Face aos factos que se têm de dar como provados, é óbvia a conclusão acerca da dinâmica do acidente e da culpa objectiva do condutor do ligeiro de mercadorias, que embateu frontalmente contra o veículo pesado na hemifaixa em que este seguia.
6ª- Nestes termos, devem ser anuladas as sentenças recorridas e substituídas por outra emanada deste Tribunal Superior (sic) (1), a qual, face à existência nos autos de todos os elementos para o efeito, deve condenar a Ré, aqui recorrida, nos pedidos formulados pela A., ora recorrente.
Não houve, também desta vez, contra-alegação.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

3- Convenientemente ordenados (2), com, entre parênteses, indicação das correspondentes alíneas e quesitos, e nossos os destaques, os factos estabelecidos pelas instâncias são os seguintes:
(a) - Em 11/5/95, cerca das 4,20 horas, na EN 1, ao km 247,400, em Albergaria-A-Velha, ocorreu um embate frontal entre o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula RH conduzido no sentido Porto-Coimbra por C - que, nessa data, tinha, através da apólice 00925064, transferida para a Ré a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação -, e o veículo pesado de mercadorias de matrícula QS, com semi-reboque C-, conduzido no sentido Coimbra-Porto por D, motorista da A., a uma velocidade de cerca 60 km/hora (A, G, H, e 2º).
(b) - A estrada tem 10,50 m de largura (D).
(c) - O local do embate é uma recta dividida em três partes, uma no sentido Coimbra-Porto (em que seguia o veículo da A.) e duas no sentido Porto-Coimbra (em que seguia o outro interveniente neste acidente) (B; v. também G e H).
(d) - Chovia e o piso encontrava-se molhado e escorregadio (C).
(e) - Do embate resultou a morte do referido C (E).
(f) - Em 31/5/95, a Ré computou os prejuízos sofridos pelo veículo da A. em 3.643.000$00 (F).
(g) - No âmbito do processo comum singular com o nº. 200/97 que foi movido contra o referido motorista da A. foi (em 26/3/98) proferida sentença, com trânsito em julgado, que absolveu aquele arguido da prática de crime de homicídio por negligência (I).
(h) - Nessa sentença considerou-se, nomeadamente, provado que o veículo da A. "foi embatido na frente do lado direito" pelo que seguia em sentido contrário e que o embate se deu "em local não apurado, mas seguramente na hemifaixa de rodagem por onde seguia o arguido" (idem).
(i) - Em consequência do acidente, a A. teve de proceder a reparações na cisterna e no semi-reboque no valor de 4.725.283$00 (6º).
(j) - O reboque e imobilização da viatura durou 25 dias, período durante o qual a A. ficou privada da sua utilização (7º).

4- Com referência à conclusão 3ª da alegação da recorrente, cabe notar que a resposta ao quesito 1º foi negativa, como se vê de fls. 237 (despacho devidamente notificado, conforme cota a fls. 238). Todavia convém referir que, conforme jurisprudência corrente dessa resposta resulta apenas que tudo se passe como se tal facto não tivesse sequer sido articulado (3).
Menciona ainda a Relação que, no processo-crime referido, os familiares da vítima deduziram contra a seguradora da aqui A. pedido cível no montante de 45.475.459$00, tendo, na audiência de julgamento, sido feita transacção pelo montante de 12.000.000$00, após o que esse processo prosseguiu para apuramento apenas da responsabilidade criminal do motorista da A. .
Invocado na parte decisória do acórdão recorrido o artº. 713º, nº. 5, CPC, quer isso dizer que fez seus os fundamentos da sentença apelada, acolhendo a fundamentação da mesma. No entanto:
Instituída nessa previsão legal uma forma sumária de julgamento, só, se bem se crê, será de invocar se o caso for, efectivamente, de confirmação, sem mais, do julgado na instância inferior, quer quanto à decisão, quer quanto aos fundamentos.
A aplicação desse regime pressupõe que todas as questões suscitadas pelo recorrente encontraram já resposta cabal na decisão recorrida (4): sendo, pois, desnecessária qualquer correcção e supérfluo qualquer aditamento.
A ser assim, como parece ser, menos bem se tem vindo, na prática, a invocar, como no acórdão sob recurso se fez, aquela disposição legal quando, afinal, sentida, ainda, a necessidade de melhor desenvolvimento, isto é, de considerandos adicionais.

5- Uma vez transitada em julgado, a decisão penal absolutória fundada em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados constitui, consoante nº. 1 do artº. 674º-B, CPC, presunção iuris tantum de inexistência desses factos (5).
Conforme nº. 2 desse mesmo artigo (6), essa presunção prevalece sobre quaisquer presunções estabelecidas na lei civil - de que, no caso, colhe a constante do nº. 3 do artº. 503º, C.Civ..
A fls. 6 da sentença proferida no processo-crime, que se encontra a fls. 260 desse processo, ora apenso a estes autos, lê-se, no penúltimo parágrafo, ter, nesse processo, resultado "provado que o arguido seguia a uma velocidade de cerca de 60 km horários, na sua hemifaixa de rodagem, quando foi embatido frontalmente pelo veículo ligeiro de mercadorias, na sua hemifaixa de rodagem".
Fez a Relação, desta segunda vez, notar que nenhum dos sujeitos nesta acção teve intervenção na acção penal e que nenhum dos intervenientes na acção penal é parte nesta; e interrogou-se, por isso: porque razão haverá a A. de beneficiar de uma decisão em que não foi parte e a Ré de suportar as consequências de uma decisão em que não teve, nem pode ter, qualquer intervenção?
Desvaloriza-se assim, parece, a oficiosa, exaustiva, indagação da matéria de facto relevante que caracteriza - ou deve caracterizar - o processo penal (7).
Convergem, de todo o modo, naquela base, as instâncias no entendimento de que a eficácia atribuída ao caso julgado penal absolutório no predito artº. 674º-B, não pode ser considerada extra partes - isto é, em relação a quem não teve intervenção naquele processo, não podendo as partes em acção cível valer-se de, nem ser prejudicadas por decisão proferida em processo em que não foram partes. E louvam-se em Ac. STJ de 29/6/2000, publicado no BMJ 498/195, que salientam versar sobre caso, no essencial, idêntico ao destes autos, e de que a Relação destaca o ponto IV do sumário.

6- Ao decidido nessa conformidade, opõe a recorrente "as exigências do seu juízo crítico e analítico", repudiando, com alusão aos elementos literal, histórico e teleológico da interpretação, conclusão que afoitamente apoda de peregrina (8). Ora:
Do argumento literal invocado - de que o nº. 1 do artº. 674º-B, CPC, se refere, sem restrições, a "quaisquer acções de natureza civil" - decorre, realmente, que, regulada nos artºs. 674º-A e 674º-B, CPC, a eficácia, ou como se diz na epígrafe do primeiro, a oponibilidade das decisões penais (em relação) a terceiros, "ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus".
E também, de facto, o elemento histórico e sistemático da interpretação não abonam a predita tese das instâncias. Com efeito:
Não podendo, no processo penal, falar-se, em bom rigor, de partes, de pedido, e de causa de pedir - elementos em função dos quais no processo civil se desenha o instituto do caso julgado (cfr. artº. 498º, CPC), o caso julgado penal foi objecto no CPP 29 de regulamentação distinta da do instituto processual civil correspondente, com a definição de parâmetros próprios de configuração determinados pela natureza do direito aplicado e pelo modo do seu exercício processual - de que, nomeadamente, releva a já mencionada natureza oficiosa, exaustiva, da indagação da matéria de facto relevante que caracteriza (ou deve caracterizar) o processo penal.
Não deve, em suma, em vista da sua distinta natureza, reduzir-se a eficácia do caso julgado penal nas acções civis conexas a parâmetros próprios do instituto processual civil correspondente (9).
Por igual recordado, numa primeira abordagem, que "o caso julgado é um instituto destinado à resolução de situações de incerteza, mediante a colocação de uma das afirmações envolvidas numa situação de especial indiscutibilidade", essa indiscutibilidade era, consoante artº. 153º, CPP29, absoluta, ou quase, no tocante ao caso julgado penal condenatório, a que esse preceito atribuía eficácia erga omnes (10).
Regulado o efeito do caso julgado penal nas acções civis conexas nos artºs. 153º e 154º, CPP29, o CPP 87 era omisso a esse respeito.
Essa lacuna de regulamentação devia, segundo alguns, ser suprida recorrendo à lei anterior (11).

7- Antes da reforma do processo civil operada em 1995/96, entendia-se, assim, que, fixada em processo-crime a verdade dos factos, a eficácia dessa averiguação em relação a qualquer outro procedimento em que esses factos se controvertessem não dependia da identidade das partes, mas sim, e apenas, da identidade dos factos (12).
Dotado o caso julgado penal, de natureza publicística, de eficácia erga omnes, essa eficácia era mitigada, no caso de absolvição, pela consideração de que esta poderia, inclusivamente, dever-se a considerações de natureza humanitária, a que não podia atribuir-se igual relevância quando em causa interesses de outra natureza (13).
Com a reforma do processo civil operada em 1995/96, a sobredita lacuna de regulamentação foi preenchida pelo modo que, "na ausência intercalar de preceito substitutivo", já, como dito, se vinha entendendo dever sê-lo, isto é, retomando, como expressamente notado no preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12, o regime constante do CPP29.
Designadamente, o artº. 674º-B, nº. 1, CPC, repristina o disposto no artº. 154º, CPP29, relativamente ao qual se salientava que o âmbito da responsabilidade criminal e da responsabilidade civil não coincidem (14); e daí que, hoje como antes, a absolvição no processo penal não baste para resolver interesses de outra natureza e que obedeçam a outras determinantes.

8- Em sede, agora, da teleologia - de finalidade e razão de ser - dos supracitados normativos da lei processual civil vigente, o relatório do DL 329-A/95, de 12/12, desvenda que foi por exigências decorrentes do princípio do contraditório - corolário lógico da proibição da indefesa ínsita nos artºs. 2º e 20º da Constituição - que a decisão penal condenatória deixou de ter eficácia erga omnes, tendo a absoluta e total indiscutibilidade da decisão relativa à culpa então apurada sido transformada em mera presunção iuris tantum, ilidível por terceiro, da existência do facto e da sua autoria.
Em relação à decisão penal absolutória tudo, essencialmente, ficou como já era na vigência do CPP29 (e, nunca, afinal, terá deixado de ser): essa decisão constitui, consoante nº. 1 do artº. 674-B, CPC, e, pelas já adiantadas razões, mesmo em relação a terceiros, simples presunção legal da inexistência dos factos imputados ao arguido, ilidível mediante prova em contrário - cfr. artº. 350º, nº. 2, C.Civ..
É à luz do que vem de deixar-se referido que, por último, se tem feito notar que o que está em causa nos artºs. 674º-A e 674º-B, CPC, não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado (15).
Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido, invocável em relação a terceiros - isto é, em relação aos sujeitos no processo civil que não tenham intervindo no processo penal - em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção.

9- Como, conquanto em contradição com o seu restante discurso, acertadamente se conclui na sentença apelada (a fls. 244 dos autos), tendo o legislador processual de 1995 querido colmatar o vazio gerado em 1987 com a entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, não o fez de forma diversa da estabelecida pelo legislador processual penal de 1929.
Deste modo, e em vista do mais já adiantado a esse respeito, a presunção firmada na sentença penal em referência:
a)- arreda, consoante nº. 2 do artº. 674-B, CPC, a presunção de culpa estabelecida na lei civil consoante artº. 503º, nº. 3, C.Civ.;
b)- determina a dispensa da prova da falta de culpa do nele arguido (nº. 1 do artº. 350º, C.Civ.).
Quando não fundada a absolvição em processo penal no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos - nomeadamente, os integrantes de contravenção causal - que lhe eram imputados, fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido actuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que aquele actuou por forma culposa (16).
Como exarado no primeiro dos acórdãos da Relação de Coimbra proferidos nestes autos - expressamente referido, nessa parte, na decisão sobre a matéria de facto a fls. 232 -, por referência ao disposto no artº. 674º-B, CPC, impendia sobre a seguradora Ré, ora recorrida, o ónus de demonstrar que o embate em discussão ocorreu na hemifaixa de rodagem destinada ao veículo seguro e tal assim porque o veículo da A., ora recorrente, passou a circular fora de mão - factos constitutivos da excepção oposta ao direito que esta, nesta acção, se arroga.
Não lograda pelo tribunal, como naquela decisão se diz (fls. 233 dos autos), convicção segura sobre as circunstâncias em que o embate ocorreu, designada e principalmente sobre qual dos veículos abandonou a hemifaixa de rodagem destinada ao seu sentido de circulação e passou a circular na hemifaixa contrária, vale de pleno o determinado no artº. 674º-B, CPC.

10- Também mencionada na sentença apelada a lição de Lebre de Freitas e outros, "CPC Anotado", 2º, 693, aí, de facto, se lê que "a prova, no processo penal, de que o arguido actuou com a diligência devida onera o autor com a prova de que assim não foi e a actuação foi culposa".
O artº. 674º-B, nº. 1, CPC, assegura não poder, na falta de prova em contrário, imputar-se ao arguido culpa na verificação dos factos em discussão.
Afasta a culpa do arguido e a sua responsabilização a esse título; mas não serve para firmar, em acção cível, a culpa de outra pessoa.
A presunção estabelecida nesse preceito abrange, expressis verbis, apenas, os factos imputados ao arguido.
Como assim, estabelecido que o choque dos veículos se deu na hemifaixa destinada a quem circulasse no sentido em que o arguido seguia, da sentença proferida no processo-crime e da falada presunção resulta tão somente não poder atribuir-se ao arguido neste processo qualquer culpa na eclosão do sinistro: não também que ela deva atribuir-se a outrem. Nessa parte, valem inteiramente as regras gerais sobre o ónus da prova na acção em causa, continuando o autor onerado com a prova dos factos constitutivos do seu direito. Ora, como designadamente revela a dúvida expressa na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a dinâmica deste acidente ficou por esclarecer.

11- Há, na conformidade do exposto, que, em parte, ao menos, reconhecer razão à recorrente, e que decidir a questão sub judicio com aplicação do disposto no artº. 674º-B, CPC. Deste modo:
Afastada por força do nº. 2 daquele artigo a presunção do nº. 3 do artº. 503º, e inconclusiva que, quanto à culpa, se manifesta a decisão sobre a matéria de facto, vale no caso a previsão do nº. 1 desse mesmo artº. 503º, em vista da qual a ora recorrente deverá obter ganho de causa, mas na medida, antes de mais, dos prejuízos que consoante 3., (i) e (j), supra, logrou provar, e, depois, do disposto no nº. 1 dos artºs. 506º e 508º, todos do C.Civ.. Na verdade:
Inaplicável a exclusão determinada pelo artº. 505º, dada, nomeadamente, a presunção, emergente da sentença penal transitada, de irresponsabilidade do motorista da ora recorrente na eclosão do sinistro em causa, subsiste a responsabilidade do segurado da ora recorrida prevista no artº. 503º, nº. 1.
Por essa responsabilidade, em virtude da transferência operada pelo contrato de seguro, se medindo a da seguradora demandada, deverá atender-se ao preceituado nos artºs. 483º, nºs. 1 e 2, 503º, nº. 1, 506º, nº. 1, 508º, nº. 1, 562º a 564º, 566º, e 805º, nº. 3, C.Civ.. Com efeito:
Visto que se trata de choque entre um veículo ligeiro de mercadorias e um veículo pesado de mercadorias com semi-reboque, essa responsabilidade deve ser determinada nos termos do nº. 1 do artº. 506º, sendo de fixar a proporção em que o risco de cada um contribuiu para os danos em, respectivamente, 1/3 e 2/3.
Desta sorte, a seguradora demandada deverá ser, desde já, responsabilizada pelo pagamento de 1/3 dos 4.725.283$00 referidos em 3., (i), supra, ou seja, de 1.575.094$30.
Deverá satisfazer, ainda, 1/3 do valor, a liquidar, conforme artº. 661º, nº. 2, CPC, em execução de sentença, correspondente aos prejuízos referidos em 3., (j), supra.
A soma dessas importâncias não poderá, no entanto, ultrapassar o limite estabelecido no artº. 508º, nº. 1. C.Civ.: este último com referência ao disposto na 1ª parte dos nºs. 1 e 2 do artº. 12º, C.Civ., e no artº. 20º, nº. 1, LOTJ (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - Lei nº. 38/87, de 23/12).

12- Decorre de quanto se leva dito, a seguinte decisão:
Concede-se, em parte, a revista, e revoga-se, pois, em parte, a conforme decisão das instâncias.
Julga-se, nos termos indicados, só parcialmente procedente e provada a acção.
Em consequência, condena-se a ora recorrida, que permanece absolvida do mais pedido, a pagar, desde já, à ora recorrente a quantia de 1.575.094$30, e, ainda, 1/3 da correspondente aos prejuízos decorrentes do reboque e imobilização da viatura da ora recorrente durante 25 dias, período durante o qual ficou privada da sua utilização - quantia, esta última, a liquidar em execução de sentença; tudo, no entanto, com o referido limite de 2.000.000$00; e com juros, ambas essas importâncias (17), desde a citação, até efectivo e integral pagamento.
Custas, tanto deste recurso, como nas instâncias, na proporção de 2/3 para a A. e 1/3 para a Ré.

Lisboa, 13 de Novembro de 2003
Oliveira Barros
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
_______________
(1) No que se refere à decisão ora impugnada e à deste Tribunal, convirá atentar no nº. 3 do artº. 156º, CPC. E nenhuma nulidade apontada àquela decisão, nunca caso seria de anulá-la, antes, e apenas, quando tal efectivamente se justifique, de a revogar. O Direito, dizia Husserl, é uma "ciência de rigor". Bom seria que na prática efectivamente de tal se aproximasse.
(2) V. Antunes Varela, RLJ, 129º/51.
(3) V., por todos, os citados em ARP de 16/6/94, CJ, XIX, 3º, 235º, 2ª col., 2).
(4) Como faz notar Lopes do Rego, "Comentários ao CPC" (1999), 487-II.
(5) Embora inserida no CPC, uma vez que institui uma presunção legal a que se aplica o artº. 350º, C.Civ., constitui norma de direito probatório material, e, assim, de carácter substantivo. Por isso se não alterou a espécie deste recurso - cfr. nº. 2 do artº. 721º, CPC.
(6) Que traduz a conclusão já aceite pela jurisprudência, como se vê da citada em ARC de 7/5/96, CJ, XXI, 3º, 7, 2ª col.,-b).
(7) E a que alude Lopes do Rego, ob. cit., 448-II, bem que em nota ao artº. 674º-A, CPC.
(8) Deixou de fora o elemento sistemático, a que, em todo o caso, se não deixará de aludir adiante.
(9) Como outrossim se faz na sentença apelada ao salientar que, estabelecido no artº. 674º-A, que a sentença penal condenatória é oponível a terceiros, no artº. 674º-B, se diz que a sentença penal absolutória constitui presunção legal em quaisquer acções de natureza cível, e que, deste modo, o primeiro delimita o âmbito de abrangência subjectiva do caso julgado - terceiros, ou oponibilidade erga omnes -, e o segundo delimita o âmbito de abrangência objectiva do caso julgado - quaisquer acções de natureza cível, mas já não a subjectiva. Esta não é, de facto, objecto de restrição expressa, e, como adiantado no texto, não parece que deva fazer-se em termos próprios do processo civil.
(10) Como tudo feito notar em Ac. STJ de 6/1/2000, no Proc. nº. 1065/99 desta Secção com sumário na pág. 28 da Edição Anual de 2000 dos Sumários de Acórdãos Cíveis deste Tribunal organizada pelo Gabinete dos Juízes Acessores do mesmo.
(11) V., neste sentido, Ac. STJ de 31/10/91, CJ, XVI, 4º, 51 (-I) ss. Sustenta-se entendimento contrário em ARC de 7/5/96, CJ, XXI, 3º, 6-II e 7-b), e em ARL de 24/10/96, CJ, XXI, 4º, 141-II.
(12) Como mencionado em Ac. STJ de 19/9/2002, CJSTJ, X, 3º, 47, 2ª col., -4.2.
(13) V. Beleza dos Santos, RLJ, 63º/6.
(14) V. Maia Gonçalves, "CPP Anotado", 5ª ed. (1982), 239. Na realidade, a acção penal e a acção civil são reconhecida e decisivamente distintas nos seus pressupostos fundamentais. Não há coincidência entre os pressupostos da culpa criminal e os pressupostos da indemnização civil. Nomeadamente: nem o ilícito criminal se confunde com o ilícito civil, nem a culpa criminal se pode confundir com a culpa civil, sempre, aliás, subsistindo a possibilidade de haver lugar a responsabilidade civil onde esteja de todo ausente a responsabilidade criminal, como será o caso da responsabilidade objectiva, pelo simples risco - v. Castanheira Neves, "Sumários de Processo Criminal" (1968), 186, 195 e 196.
(15) Lebre de Freitas e outros, "CPC Anotado", 2º (2001), 692, e Ac. STJ de 14/2/2002, no Proc. nº. 3849/01 desta Secção com sumário na pág. 66, 2ª col.-I, da Edição Anual de 2002 dos Sumários de Acórdãos Cíveis deste Tribunal organizada pelo Gabinete dos Juízes Acessores do mesmo. Bem, assim, se compreende o estabelecido no artº. 25º, nº. 2, do DL 329-A/95, de 12/12, para que se chama a atenção no primeiro acórdão da Relação proferido nestes autos, com referência ao esclarecido por Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", 2ª ed. (Lex), 20.
(16) Lebre de Freitas e outros, ob. cit., 693 - aliás citado na sentença apelada.
(17) Cfr. ARC de 14/11/95, CJ, XX, 5º, 35.