Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2832
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRAZO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ARTº. 31 DO DL Nº 15/93
DE 22-01
Nº do Documento: SJ200810220028323
Data do Acordão: 10/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - O momento oportuno, e conforme à lei, para junção de documentos está previsto no art. 165.º do CPP, ou seja, o decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo possível, até ao encerramento da audiência na 1.ª instância, ficando, no entanto, assegurada a sua junção oficiosa. Não contempla a lei a junção de documentos em audiência oral em julgamento no STJ, já que este conhece da matéria de facto em termos muito restritos e sempre que necessários à decisão de direito, como é o caso dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, sendo vedada e à revelia do formalismo legal a apresentação daqueles com a motivação ou depois dela – cf., neste sentido, os Acs. do STJ de 30-11-2004, CJSTJ, Ano II, tomo 3, pág. 262, e de 06-02-2008, Proc. n.º 08P101.
II - Com efeito, destinando-se os documentos a provar factos, não valendo para fins de formação da convicção probatória aqueles elementos probatórios que não sejam produzidos ou examinados em audiência, nos termos do art. 355.º, n.º 1, do CPP, salvo se constarem dos autos, a junção em plena fase de recurso de documento em que o arguido intenta demonstrar que teve uma colaboração essencial no combate ao tráfico, no âmbito de outro processo, além de introduzir alguma perturbação na matéria de facto, já sedimentada, em termos de pertinência, é ali, naquele outro processo, que releva e aproveita ao apresentante, não podendo aqui ser considerada a respectiva apresentação.
III - O art. 31.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, é uma norma premial, ditada por especiais razões para um contexto particular, em que abunda o risco reduzido de reincidência ou a cooperação na luta contra o crime por banda do agente.
IV - O auxílio a que se reporta o preceito tanto pode ter em vista a captura ou identificação de pessoas singulares como as pertinentes a grupos, associações ou organizações.
V - Está longe de preencher os pressupostos materiais de que depende a aplicação do art. 31.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, o arguido que mantém o consumo regular de haxixe e não presta qualquer auxílio decisivo na recolha de provas no âmbito do processo em causa – embora tenha “fornecido às autoridades, relativamente a um outro inquérito que versa sobre tráfico de estupefacientes, informações importantes referentes a um indivíduo”, sendo certo que informações importantes não são decisivas, na exigência da lei, no sentido de sem elas a perseguição penal ficar comprometida ou fortemente dificultada.
VI - Por isso, é de excluir qualquer atenuação especial da pena, sua isenção ou mesmo a sua dispensa.
VII - Resultando provado que:
- no dia 03-09-1997, o arguido tinha na sua posse 1,728 g de haxixe, e mais 10 sabonetes, com o peso total de 2,4417 kg, em veículo de que era dono e conduzia de Espanha, destinando os referidos sabonetes à venda, o que fazia desde início de Junho de 2007 [apesar de constar ainda da matéria de facto assente que anteriormente, desde 2005, havia já vendido pequenas quantidades de haxixe a € 5 e € 20, desconhecendo-se o número de vezes e o total vendido, tal factualidade, pela indefinição por que peca, não pode ser valorada para efeitos de condenação do arguido, em nome do princípio da culpa, que há-de repousar em factos concretos, como é próprio de um direito penal do facto, e não de suspeita, e pela natural dúvida subsistente sobre a dimensão da sua actividade de traficante antes da sua detenção, que leva a fazer funcionar o princípio in dubio pro reo];
é de concluir pelo enquadramento da conduta do arguido na previsão do art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em P.º comum com intervenção do tribunal colectivo , sob o n.º 443/07 .9TAPTM, do 2.º Juízo Criminal de Portimão , foram submetidos a julgamento:
AA e BB , vindo a final a ser condenados :
-O AA , como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes , p . e p . pelo art.º 21.º n.º 1 , do Dec.º -Lei n.º 15/93 , de 22/1 , em 6 anos e 10 meses de prisão e ;
-O BB , como autor do crime de tráfico de estupefacientes , p . e p . pelo art.º 21.º n.º 1 , do Dc.º-Lei nº.15/93 , de 22/1 , em 5 anos de prisão .

O arguido Pedro interpôs recurso para este STJ , apresentando na motivação as seguintes conclusões , que se resumem , ao essencial:

Provando-se que o arguido cedeu pequenas quantidades de haxixe , droga leve que merece atenuado tratamento , é delinquente primário , está bem inserido profissional e familiarmente , com projecto de vida futura justificava-se a especial atenuação da pena .

Tendo o Colectivo provado que prestou importantes informações às autoridades , a não se entender que deve ser isento de pena , igualmente se impõe a livre atenuação da pena –art.º 31.º n.º 2 , da Lei da Droga .
Sendo toxicodependente mas que apesar disso tem projecto de vida e se tenta libertar da doença igual atenuação merece .
A factualidade dada como provada mostra-se incompatível com a fundamentação , devendo ter lugar novo julgamento ou reenvio .
A circunstância de ao arguido ter sido apreendida a quantidade de droga referida nos autos , deve-se ao facto de , sendo em maior quantidade , com dinheiro entregue por terceiros , para além de ser mais barata , teria possibilidade de retirar uma parte maior para si , visando exclusivamente obter droga para si , para seu consumo e num restrito grupo de terceiros , de jovens de um “ bairro problemático “ .

O arguido confessou a factualidade , denotou arrependimento e colaborou nos termos do art.º 31.º n.º 2 , da Lei da Droga .

Estamos em presença de um crime de tráfico –consumo de estupefacientes, atenuado pela confissão e arrependimento , atenuado por se tratar de “ droga leve “ e por ter colaborado, mostrando-se ajustada a pena de um ano de prisão a ser especialmente atenuada e suspensa por igual tempo , com o que se mostram violados os art.ºs 21.º e 31.º n.º 1 do Dec.º_Lei n.º 15/93 , de 22/1 , 410.º e 426.º , do CPP , 70.º , 71.º , 72.º e 73 .º , do CP .

Em contramotivação o Exm.º Magistrado do M.º P.º defendeu o acerto da decisão recorrida .

Colhidos os legais vistos , cumpre decidir , tendo por assente o seguinte factualismo :

1. Em 3.9.2007 , pelas 19.30 horas , o arguido CC , na zona da Guia , na A22 e quando conduzia o veículo de matrícula ...-...-... , tinha consigo 1,728 gramas de haxixe , para além dos dez sabonetes da mesma substância que , com o peso total de 2.441,7 gramas , trazia escondidos no interior do mesmo veículo , desde Espanha onde os tinha ido adquirir ;
2. O arguido destinava o haxixe à venda , nomeadamente em sabonetes ( cerca de 250 gramas ) meios ou quartos de sabonete , o que vinha fazendo desde o início de Junho de 2007 ;
3. Anteriormente , o arguido CC chegou a vender pequenas quantidades de haxixe , entre 5 e 20 euros cada , para o que era contactado para o seu telemóvel , o que de resto também continuou a fazer até ser detido em 3.9.2007 ;
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4. O arguido BB era uma das pessoas a quem , desde o início de Junho de 2007 , o arguido CC vendia sabonetes , meios ou quartos de sabonete de haxixe , várias vezes por semana , dedicando-se por seu turno à venda do mesmo produto ;
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5. Os arguidos sabiam que a compra e venda de haxixe é proibida , contudo agiram sempre de forma livre , deliberada e consciente ;
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6. O arguido CC não tem antecedentes criminais registados . Em audiência negou que procedesse à venda de haxixe , dizendo que o que trazia era encomenda de amigos e para seu próprio consumo . Forneceu às autoridades e num âmbito de um inquérito que versa tráfico de estupefacientes , informações importantes relativamente a um indivíduo ;
7. O arguido AA é o mais velho de dois irmãos . A família de origem viveu inicialmente numa casa no centro de Lagoa e desde há 20 anos residem na morada actual . O bairro onde residem é conotado por problemas sociais associados ao tráfico e consumo de drogas ;
8. Ambos os progenitores são referenciados pela constância e idoneidade profissional : o pai tem trabalhado por conta própria em pintara de construção civil e a mãe como empregada de comércio em Portimão . Aos rendimentos salariais da família acresciam montantes pecuniários variáveis provenientes do arrendamento de um imóvel situado em Ferragudo . Globalmente a situação económica apresenta indicadores de estabilidade , sendo valorizado o empenho do casal na melhoria das condições de vida familiares ;
7. O arguido CC frequentou o ensino regular em Lagoa até ao 10º ano de escolaridade , tendo registado uma situação de retenção . Com cerca de 17 anos matriculou-se no ensino recorrente mas não concluiu os estudos . Enquanto estudante desenvolveu actividade desportiva federado em atletismo e destacou-se como velocista . A sua participação em campeonatos internacionais constituiu um motivo de orgulho para a família , elevando as suas expectativas ;
8. O desinvestimento na formação escolar foi coincidente com as experiências e intensificação do consumo de substâncias estupefacientes e com o desenvolvimento de interesses pela frequência de locais de diversão nocturna , partilhando vivências com pares com motivações semelhantes . Ao atingir a maioridade a família proporcionou-lhe também o acesso a mais dinheiro além do que o arguido dispunha por entretanto ter iniciado actividade laboral em períodos de férias escolares ;
9. Profissionalmente entre outras tarefas destacou o exercício de trabalhos em pintura com o pai , em serralharia e montagem de alumínios com um tio , ajudante na montagem de “ pladur ” e mais recentemente na Câmara Municipal de Lagoa , corno lubrificador , no sector de transportes ;
10. A maior disponibilidade económica permitiu-lhe aceder a bens , nomeadamente mota e automóvel e desenvolver um estilo de vida conecto com os interesses imediatistas , centrados no culto de uma determinada imagem de moda . Entre outros , destacou o gosto pelo corpo tatuado , o que exigia recursos financeiros consideráveis ;
11. Registou um período de aumento do uso de droga , centrando o seu quotidiano na obtenção de recursos para consumir . A instabilidade profissional directamente relacionada com o modo de vida centrado nos consumos e condicionando a capacidade laboral . O suporte da família foi importante para assegurar a sua manutenção , permitindo-lhe ter efectuado diversas tentativas de tratamento para a toxicodependência , nem sempre bem sucedidas . Destacou o tratamento na clínica de recuperação alcoólicos e narcóticos , em Trás-os-Montes , como mais o eficaz , teria na altura cerca de 24 anos . Assume desde então ter deixado de usar cocaína , mantendo um uso regular de haxixe . Desde há vários anos recorreu também a apoio psiquiátrico com terapêutica medicamentosa ;
12. Na esfera pessoal destaca-se um relacionamento afectivo com uma jovem residente no mesmo concelho , com uma vida profissional organizada , existindo projectos de vida conjunta , contemplando a constituição de agregado familiar próprio ;
13. À data dos factos residia com a família de origem em Lagoa , encontrava-se profissionalmente activo , laborando como funcionário municipal e dispunha de um contrato laboral até 2010 , tendo sido despedido em virtude da sua actual situação ;
14. Possuindo interesses centrados numa forte valorização de componentes exteriores associadas à aparência como forma de reforçar a auto-estima e manter uma identidade ligada a um conceito de moda , a importância de cultivar o corpo tatuado e apresentar-se com roupas e acessórios de marcas são aspectos que caracterizam o arguido CC.
15. A sua capacidade de comunicação e o recurso a um discurso auto valorativo com análises críticas por vezes distorcidas , indiciam alguma imaturidade associada a preocupações imediatistas ;
16. Transversal ao estilo de vida é o contacto do arguido com pares conotados com uso de estupefacientes , sendo o próprio um utilizador regular de haxixe ;
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17. O arguido BB foi condenado , em 10.11.2006 , na pena única de 15 meses de prisão , suspensa na sua execução por 3 anos acompanhada de regime de prova , pela prática de dois crimes de furto , cometidos em 3.3.2006 . Em audiência negou vender haxixe , admitindo apenas comprar para o seu consumo e o de amigos ;
18. Tem 19 anos e é o 3º elemento de um grupo de quatro irmãos ( dois rapazes e duas raparigas ) sendo junto destes e dos progenitores que tem vivido ao longo do seu processo de desenvolvimento . Tem mais irmãos provenientes de outros relacionamentos do pai , com os quais não tem contacto muito próximo ;
19. A família vivência uma situação económica pouco desafogada mas suficiente ao nível das necessidades básicas , cujos rendimentos provém das actividades dos progenitores no ramo empresarial/comercial ( lojas de artesanato ) e trabalhos executados pelo pai na área de artes plásticas e colocação de reclames luminosos ;
20. Em termos relacionais cresceu num contexto familiar , protector , coeso mas com indicadores de lacunas ao nível do controlo e da autoridade parental ;
21. Com o início da adolescência associou-se a elementos de idades semelhante conotados na comunidade a comportamentos delinquentes , com os quais revelou sentido de pertença . Neste contexto iniciou consumos de haxixe ;
22. Integrou o sistema de ensino regular , tendo registado as primeiras retenções no 2º ciclo . Em 2007 concluiu o 9º ano de escolaridade do curso de empregado/assistente comercial . Em meio escolar , pese embora lhe tenha sido atribuída desconcentração , não revelou problemas de aprendizagem ou integração ;
23. No Verão de 2007 esteve a trabalhar por pouco tempo como empregado de mesa em restaurantes situados em Carvoeiro . Revelou algumas dificuldades de relacionamento com a entidade patronal . Após esse período manteve-se a maior parte do tempo desocupado , acompanhando o pai por vezes em trabalhos de colocação de reclames luminosos ;
24. Há cerca de dois anos e meio mantém um relacionamento de namoro com uma jovem que conheceu na escola ;
25. Integra um agregado constituído pelos pais , um irmão mais velho , uma irmã mais nova e uma sobrinha . A família recentemente mudou de residência , encontrando-se a residir num apartamento situado em Lagoa . A anterior habitação funciona como oficina . O arguido BB permanece em contacto diário com os progenitores , mas nem sempre pernoita em casa dos mesmos . Por vezes fica na antiga residência e outras vezes em casa da namorada , em Portimão ;
26. Na sequência de ter sabido do conhecimento das autoridades acerca do seu envolvimento neste caso , inscreveu-se em formação pós laboral ( à 6ª feira ) na Associação de Bombeiros Voluntários de Lagoa , onde tem um irmão a trabalhar ;
27. Ocupa o tempo com a namorada . Paralelamente gosta de jogar “ playstation ” , ouvir e compor músicas ;
28. Integra grupo de pares com um padrão comportamental de risco , onde se inclui nomeadamente o irmão . Mantém consumos de haxixe , não sendo estes entendidos pelo arguido como problemáticos ;
29. Em meio familiar são manifestadas preocupação e simultaneamente tendência para o desculpabilizar .
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Prova-se ainda que :
30 . O arguido CC , desde 2005 , vendeu , por preços entre 5 a 15 euros , pequenas quantidades de haxixe , nomeadamente a B... D... , T... M... , M... L... , M... S... , P... B... , J... M... e D... F... .


I . A justificar tratamento jurídico prioritário mostra-se a junção aos autos , em plena fase de recurso , em 21.7.2008 , já depois de apresentadas alegações , em 18.4.2008 ,pelo recorrente de um documento em que intenta demonstrar que prestou uma colaboração essencial, decisiva ao combate ao tráfico , documento esse extraído de uma certidão emanada dos presentes autos , dando origem a outro inquérito ( sob o n.º 898/04 .ATAPTA ) e processo , certificando expressa e pessoalmente o seu autor , in casu a Exm.ª Magistrada do M.º P.º , que o arguido , em declarações ante si prestadas , em 19.5.2008 , acrescentou factos importantes sobre o modo de actuação de um indivíduo com ligação “ a grupos da máfia espanhola “ e que sem as informações prestadas não seria possível detectar a actuação do indivíduo referido nem fundamentar o requerimento de meios de prova , “ mais evasivos “ .

O momento oportuno , e conforme à lei , de junção de documentos está previsto no art.º 165.º , do CPP , ou seja no decurso do inquérito ou da instrução e , não sendo possível , até ao encerramento da audiência na primeira instância , nos termos do art.º 165.º n.º 1 , do CPP , ficando , no entanto , assegurada a sua junção oficiosa , não se contemplando a audiência oral em julgamento no STJ , já que este conhece da matéria de facto em termos muito restritos e sempre que necessários à decisão de direito , como é o caso dos vícios previstos no art.º 410.º n.º 2 , do CPP , sendo vedada e à revelia do formalismo legal juntarem –se com a motivação ou depois dela – cfr., neste sentido , os Acs. deste STJ , de 30.11.2004 , CJ , Acs. do STJ , Ano II , Tomo III , 262 e de 6.2.2008 , P.º n.º 08P101.

E isto porque destinando-se os documentos a provar factos , não valendo para fins de formação da convicção probatória aqueles elementos probatórios que não sejam produzidos ou examinados em audiência , nos termos do art.º 355 .º n.º 1 , do CPP , salvo se constarem dos autos , além de introduzir alguma perturbação na matéria de facto , já sedimentada , de cariz essencialmente opinativo , mais que narrativo , ao referir a postura do arguido noutro processo , em termos de pertinência , é ali que releva e aproveita ao apresentante , não podendo ser considerada a sua junção .

Sublinhe-se que nenhuma contradição é visível entre os factos e a fundamentação nem o recorrente no-la indica .


II . Sobre a qualificação jurídico-penal dos factos : provou –se que o arguido comprou haxixe , em Espanha , destinado à venda , o que vinha fazendo desde início de Junho de 2007 , como , também , vendeu , por preços entre 5 e 15 € , desde 2005 , pequenas quantidades de haxixe nomeadamente a B... D... , T... M... , M... L..., M... S... , P... B... , J... M... e D... F..., excluindo tal matéria de facto assente o crime de tráfico para consumo , que tem como pressuposto o tráfico para exclusiva finalidade de consumo , como resulta do art.º 26.º , do Dec.º -Lei n.º 15/93 , de 22/1 .
Sem razão , demasiadamente evidente, o seu propósito de ver requalificado “ in mellius “ o crime por que foi condenado .

III . Sobre a projectada aplicação ao caso do art.º 31.º n.º 1 , do Dec.º -Lei n.º 15/93 , de 22/1 :
Dispõe o art.º précitado que se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir por forma considerável o perigo produzido pela conduta , impedir ou se esforçar seriamente por impedir que o resultado que a lei quer evitar se verifique , ou auxiliar concretamente as autoridades na recolha de provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis , particularmente tratando-se de grupos , organizações ou associações , pode a pena ser-lhe especialmente atenuada , dela isento ou ter lugar a sua dispensa , quando pelo concurso de qualquer das circunstâncias nela previstas a imagem global do facto se mostre especialmente favorecente do arguido .

Trata-se de uma norma premial, ditada por especiais razões para um especial contexto , em que abunda o risco reduzido de reincidência ou a cooperação na luta contra o crime por banda do agente, estando o arguido longe de preencher os pressupostos materiais de que depende a sua aplicação , pois que mantém o consumo regular de haxixe , não prestou qualquer auxílio decisivo às autoridades na recolha de provas neste processo , e só neste relevava , embora tenha “ fornecido às autoridades e num âmbito de um inquérito que versa sobre tráfico de estupefacientes , informações importantes referentemente a um indivíduo “, auxílio que tanto pode ter em vista a captura ou identificação de pessoas singulares como as pertinentes a grupos , associações ou organizações .
Informações importantes referentes a um indivíduo não são decisivas , na exigência da lei , no sentido de sem elas a perseguição penal ficar comprometida ou fortemente dificultada .
Por isso é de excluir qualquer atenuação especial da pena , sua isenção ou mesmo dispensa .

IV. Como pano de fundo onde se desenha o quadro factual que rege a responsabilidade criminal do arguido temos a posse no dia 3.9.97 , de 1, 728 grs. de haxixe , acrescendo mais dez sabonetes com o peso total de 2, 4417 Kgs. no veículo de matrícula 31-87- NG , de que era dono e conduzia de Espanha , sabonetes esse destinados à venda o que fazia desde início de Junho de 2007 .
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Antes, porém , havia vendido já pequenas quantidades de haxixe a 5 e 20 € , desde 2005, por preços entre 5 a 15 € , às 7 pessoas identificadas no ponto 30 da matéria de facto , factualismo que , pela indefinição que peca , desconhecendo-se o número de vezes e o total vendido, em nome do princípio da culpa , que há-de repousar em factos concretos , como é próprio de um direito penal do facto , e não de suspeita , e à natural dúvida subsistente sobre a dimensão da sua actividade de traficante antes da sua detenção , fazendo –se funcionar o princípio in dubio pro reo por essa actividade não pode ser condenado .

O arguido invoca em seu favor a confissão dos factos que , levando à detenção em flagrante delito , é a do óbvio , sem alternativas , de reduzido relevo ; lembra-se-lhe que não denotou arrependimento , “ tentando em audiência ver diminuída a sua responsabilidade “ , produzindo relato de conveniência , alegando que a considerável quantidade de haxixe detida lhe havia sido encomendada para , depois de adquirida com dinheiro de terceiros , lhas entregar , o que lhe permitia comprar mais barato e reter maior quantidade para si para o seu consumo exclusivo consumo , alegação vertida , de resto , na 6 .ª conclusão do recurso , mas sem o mais leve apoio factual .

De todo o modo consumir não deixa de ser um sistemático afrontamento legal , pelo que a ausência de antecedentes criminais nem sequer credencia bom comportamento anterior .

Não obstante o haxixe ser reputado de droga leve , sem a perniciosidade da heroína , o Dec.º Lei n.º 15/93 , de 22/1 , não consente a distinção , assistindo-se a um aumento em crescendo, entre nós , particularmente entre as camadas juvenis e escolares , contudo os seus efeitos não deixam de ser muito nocivos , ao nível do sistema nervoso central , além de ser ponto de partida para consume das ditas drogas duras e de que a quantidade traficada , excedente a 2 Kgs . , não deixa de reputar-se considerável , criando perigo a centenas de viciados ou a iniciar no consumo ( o consumo médio diário individual de haxixe é de 1 a 4 grs .- BMJ 399 , 427) .


V. Os bens jurídicos a acautelar com a incriminação pelo tráfico de estupefacientes são a protecção da saúde individual , da liberdade individual do consumidor , da economia do Estado , porque o tráfico propicia economias paralelas , subterrâneas , de complexa sindicância , fazendo do tráfico um negócio temível e comunitariamente repugnante , fundamentalmente pela devastação física e psíquica do consumidor , geralmente as camadas mais jovens do tecido social , instabilidade e , na maior parte dos casos , destruição do seu agregado familiar , censurável em alto grau no plano ético-jurídico , até pelos custos sociais a que conduz , relacionados com o absentismo laboral , a contracção de doenças transmissíveis , isto sem esquecer o carácter fortemente criminógeno do tráfico .

Não admira que se tenha escrito , e com acerto , que o tráfico de droga é mesmo objecto de forte reprovação ético –social , apenas comparável ao que se dirige aos crimes mais graves contra as pessoas , contribuindo para a formação material do conceito ; as drogas são uma grave ameaça para a saúde e o bem estar de toda a humanidade , para a independência dos Estados , para a democracia , estabilidade dos países , estrutura de todas sociedades e para a esperança de milhões de pessoas e suas famílias , é assim que se lhes referiu a 20.ª Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas –cfr. Rui Pereira e Luís Bonina , in Problemas Jurídicos da Droga e da Toxicodependência ,RFDUL , págs.154 e 191 .
Traficar , é fazer conscientemente mal a outrém , acto dotado de ressonância ética, punível dentro de uma moldura penal de 4 a 12 anos de prisão , por aplicação do art.º 21.º n.º 1 , do Dec.º-Lei n.º 15/93 , de 22/1.

Em todo processo o arguido moveu-se por intensa vontade criminosa , dolo intenso , e a par desse intenso dolo intervêm na fixação da concreta medida da pena , necessidades de , por ela , se actuar sobre o comum dos cidadãos , dissuadindo-os do cometimento de futuros crimes , que , pela sua reiteração , criam alarme , insegurança e descrença nos órgãos aplicadores da lei caso estes não atinjam um ponto óptimo capaz de assegurar uma tutela efectiva e consistente dos bens jurídicos , não descendo abaixo de um limiar mínimo abaixo do qual , comunitariamente , a punição – cfr. Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , § 306 –deixa de corresponder ao sentimento de justiça.

De ponderar o interesse particular subjacente à pena , de por ela se lograr a emenda cívica , de retorno ao tecido social sem risco de futura lesão , a prevenção de reincidência , em favor da qual não acorrem sólidos elementos , não bastando aquele projecto , adiantando-se que perdeu o emprego na CMLagoa , por envolvimento nos factos , tornando-o mais vulnerável ao tráfico e consumo .

Ele denota , revela-o o relatório social , alguma imaturidade associada a preocupações imediatistas , com análises críticas autovalorativas e distorcidas , perfilhando um estilo de vida em contacto com pares conectados com o uso de estupefacientes , “ sendo o próprio um utilizador regular de haxixe “ –fls 1275 -, não interiorizando , pois , ainda , os malefícios consabidos do seu procedimento .

Isto não obstante se considerar que tem estabilidade familiar e um projecto futuro de vida , que não obstaram aos graves factos do tráfico e consumo em que se envolveu , o que vale dizer que não são desprezíveis fortes necessidades de prevenção especial , como geral .

VI. A tudo atendendo , sem descurar o complexo atenuativo , incluindo o ser primário , a confissão parcial dos factos , a colaboração que prestou e a ambiência familiar , tudo de curto alcance , tem-se , ainda assim , por mais justa , considerando que se desresponsabilizou de um segmento delitivo por força do princípio “ in dubio pro reo , a pena de 5 ( cinco ) anos e 6 ( seis ) meses de prisão no que vai condenado , nos termos do art.º 21.º n.º 1 , do Dec.º-Lei n.º 15/93 , de 22/1 .

Revoga-se o decidido parcialmente , com o que parcialmente se provê ao recurso .

Condena-se ao pagamento de 8 Uc,s de taxa de justiça . Procuradoria: ½ .

Bols. , oportunamente .


Lisboa, 22 de Outubro de 2008

Armindo Monteiro (Relator)
Santos Cabral