Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2604/13.2TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: SEGURO FACULTATIVO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
FURTO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
DEPOIMENTO DE PARTE
QUEIXA
ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
INDEMNIZAÇÃO
MORA
CONTRATO DE SEGURO
CONFISSÃO JUDICIAL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 12/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA DO AUTOR. NEGADA A REVISTA DA RÉ
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESPONSABILIDADE CIVIL / INDEMNIZAÇÃO DO DANO DA PRIVAÇÃO DO USO - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / SEGURO AUTOMÓVEL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVAS / CONFISSÃO DAS PARTES / DECLARAÇÕES DE PARTE - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 352.º, 356.º, N.º 2, 358.º, 1305.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 452.º, 466.º, N.º 3, 615.º, N.º 1, ALÍNEA C), 666.º, 674.º, N.ºS 1, ALÍNEA C), E 3, 682.º N.º3, 685.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 5 DE JULHO DE 2007 (PROC. N.º 07B1849), DE 12 DE JANEIRO DE 2010 (PROC. N.º 314/06.6TBCSC.S1), DE 16 DE MARÇO DE 2011 (PROC. N.º 3922/07.2TBVCT.G1.S1) E DE 10 DE JANEIRO DE 2012 (PROC. N.º 189/04.0TBMAI.P1.S1), DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT
-DE 9 DE JULHO DE 2015 (PROC. N.º 13804/12.2T2SNT.L1.S1),
-DE 22 DE FEVEREIRO DE 2011 E DE 24 DE ABRIL DE 2012, PROFERIDOS, RESPECTIVAMENTE, NOS PROCESSOS N.ºS 667/06.8TBOHP.C2.S1 E Nº 32/10.0T2AVR.C1.S1, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - A nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da sentença ou acórdão que radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão, pressupondo um vício real e efectivo no raciocínio do julgador, de tal forma que a motivação aponta num determinado sentido decisório, mas a decisão vai ser tomada em sentido oposto àquele que, num processo lógico, seria a consequência da fundamentação em que assenta.

II - A circunstância de as instâncias terem interpretado e valorizado a mesma facticidade de modo diverso ao proceder à sua subsunção jurídica dentro do mesmo quadro normativo não integra o aludido vício por, nesse caso, não existir qualquer desconformidade lógica entre a fundamentação do acórdão sob recurso e a decisão nele tomada.

III - A confissão consiste no reconhecimento pela parte de realidade factual que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, podendo a confissão judicial provocada ser alcançada através de depoimento de parte.

IV - O facto de o depoimento de parte não conduzir à almejada confissão de factos não implica que o juiz desconsidere as eventuais declarações ou informações que a parte preste no decurso do seu depoimento e que, submetidas à sua análise crítica, possam interessar à discussão da causa, estando, nessa parte, sujeitas à sua livre apreciação (arts. 352.º, e 356.º, n.º 2, do CC, e 452.º, e 466.º, n.º 3, do CPC).

V - No âmbito de um contrato de seguro de responsabilidade civil facultativo (danos próprios), se a seguradora se demora injustificadamente na resolução do caso, resultando dessa mora danos para o segurado, responde por esse inadimplemento.

VI - O STJ vem decidindo, maioritariamente, no domínio da responsabilidade extracontratual emergente de acidente de viação que a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o art. 1305.º do CC lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando, para o efeito, que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.

VII - Tendo a ré (seguradora) apresentado queixa-crime contra o autor (segurado) por suspeitas de eventual actuação fraudulenta daquele no que concerne ao furto do veículo que era objecto do contrato de seguro e tendo, com base nisso, recusado o pagamento da indemnização, sem que, porém, tenha logrado provar que tais suspeitas eram fundadas (como decorre do despacho de arquivamento proferido no inquérito desencadeado pela sua queixa), o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação.

VIII - Face ao referido nos pontos antecedentes, é de concluir pelo reconhecimento do direito do autor à indemnização pela privação do uso do seu veículo, uma vez que ficou provado que a ré não lhe entregou, até sessenta dias após a participação do sinistro, a indemnização garantida pela cobertura do risco, situação que ainda hoje o leva a ter de se socorrer de veículos de familiares e amigos para as suas deslocações de trabalho e lazer, para além de estar impedido de adquirir outro veículo para poder circular, por não ter dinheiro para tal.

IX - Tal atribuição não viola o designado princípio indemnizatório posto que este apenas procura impedir a existência de sobreposição de indemnizações, não obstando a que se cumulem indemnizações que se complementam por forma a abranger um leque mais vasto de danos do que aqueles que seriam ressarcidos unicamente com base na participação de um sinistro no âmbito de um contrato de seguro facultativo (no caso, de danos próprios).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:

AA, intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra BB - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a condenação desta ré no pagamento da quantia global de € 54.320,00, sendo € 23.000,00 a título de indemnização pela perda da viatura furtada, € 25.800,00 pela privação de uso da mesma viatura e € 5.520,00 a título de juros pelo não pagamento atempado da indemnização devida, tudo acrescido dos respectivos juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em resumo, que celebrou com a ré um contrato de seguro, que cobria, além do mais, danos próprios, nomeadamente, o furto ou roubo do veículo automóvel da marca BMW, modelo série 5, com a matrícula ...-...-SE, de que era proprietário, não o tendo a ré indemnizado dos prejuízos que lhe advieram, após a participação do seu furto/roubo na noite do dia 9 de Agosto de 2010, concretamente, os correspondentes ao valor da viatura e os decorrentes da privação do seu uso.

Contestou a ré, impugnando a facticidade alegada e arguindo a nulidade do contrato de seguro por inexistência do objecto e do risco, dizendo que o veículo segurado sofreu anteriormente vários acidentes, com perda total, sendo um mero salvado.

Mais alegou que o contrato sempre seria anulável por violação do dever de declaração inicial do risco, uma vez que o autor, conhecedor daqueles factos, omitiu-os dolosamente à ré, levando-a a aceitar a cobertura do risco de danos próprios, que não aceitaria se dos mesmos tivesse conhecimento.

Invocou ainda a existência de uma situação de sobresseguro, porquanto o veículo seguro teria valor venal não superior a € 11.906,00 se não tivesse sofrido acidentes e, caso tivesse sido reparado, esse valor não seria superior a € 6.000,00. O valor venal dos seus salvados não é superior a € 2.700,00, pelo que o autor apenas poderá receber o valor do bem seguro à data do sinistro, a saber, o de € 6.000 (veículo reparado) ou o de € 2.700 (salvado), devendo o capital ser reduzido em conformidade com a tabela de desvalorização mensal acordada.

Finalizou pedindo a improcedência da acção.


Tramitados os autos, foi proferida decisão a «Julgar a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, a condenar a Ré BB – Companhia de Seguros, SA, a pagar ao Autor a quantia de € 46.480,00 (…), acrescida de juros moratórios à taxa legal vencidos e vincendos desde 9 de Outubro de 2010 e até efectivo e integral pagamento».


Inconformada, apelou a ré.

O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 28.1.2016, julgou a apelação parcialmente procedente e alterou a decisão recorrida, condenando «a ré a pagar ao A., pela perda da viatura segurada, a quantia de € 20.680,00 acrescida de juros de mora à taxa legal desde 9 de Outubro de 2010 até efectivo pagamento».


Desta decisão veio o autor recorrer de revista.

Na alegação oportunamente apresentada formulou a seguinte síntese conclusiva:

«1. O Recorrente fundamenta o seu recurso alegando que o douto Acórdão agora recorrido, está ferido de uma nulidade, prevista na alínea c), do n.° 1, do art. 674°, do Código de Processo Civil, que remete para o 615° n°. 1 alínea c), em virtude do Tribunal se ter pronunciado sobre fundamentos que estejam em oposição clara com a decisão, não se trata pois de erro na apreciação das provas, mas sim da utilização dos fundamentos dados como provados em contradição com a decisão ocorrida, originando erro na interpretação e aplicação da norma aplicável.

2. Nos pontos 8°, 9°, 10°, 11°, 12° e 13°, dos fatos provados em primeira instância e constantes da página 8° e 9° do douto acórdão, e que o Tribunal da Relação de Guimarães manteve, aceitando pois que a seguradora pouco tempo depois do sinistro apresentou uma queixa contra o aqui agora Recorrente, queixa essa que só foi arquivada em Dezembro de 2012, e que após esse arquivamento e após a entrega da documentação do veículo à seguradora esta informou o aqui Recorrente que não assumia a responsabilidade pelo sinistro em 08/05/2013.

3. Como se retira dos factos dados como assentes, nunca o agora Recorrente poderia intentar a presente acção antes do processo penal estar resolvido e antes de a seguradora ter comunicado que não assumia qualquer responsabilidade pelo referido sinistro, até porque se o Recorrente intentasse uma acção antes do arquivamento do processo-crime essa acção ficaria suspensa até decisão desse processo.

4. Por outro lado, se a seguradora assumisse a responsabilidade, também o aqui Recorrente não tinha necessidade de recorrer a uma acção judicial.

5. Assim e em face dos factos dados como assentes em primeira instância e em segunda instância, entende-se, salvo melhor opinião, que o decidido no ponto VI do sumário do douto acórdão está em oposição com as normas aplicáveis e com a decisão em si, tornando aos olhos de um cidadão normal uma decisão ambígua e obscura, caindo assim na nulidade do artigo 674° do C.P.C.

6. Em face dos fundamentos invocados a decisão salvo melhor opinião, sobre o atraso no pagamento da indeminização, não poderia ser imputado ao aqui Recorrente (Segurado), mas sim à seguradora, em virtude do Recorrente, atenta a actuação desta, não poder providenciar pela cobrança da indeminização em tempo anterior pelo menos ao arquivamento do processo crime intentado pela seguradora.

7. Repare-se que o aqui Recorrente intentou a acção no decurso dos 3 anos conforme a Lei substantiva aplicável ao caso.

8. A seguradora é que incumpriu o contrato celebrado entre as partes nomeadamente quanto á boa-fé e à pontualidade do seu cumprimento nos termos dos artigos 406° e 762° do C.C., para além da violação da Lei do contrato de seguro. Sendo que, o atraso no pagamento da indeminização não é imputável ao aqui Recorrente mas sim à Recorrida seguradora destes autos.

9. Caso não seja esse o entendimento de Vªs Exas sempre se dirá que o douto acórdão agora em crise está em contradição com dois outros acórdãos que desde já se invocam, ambos do Tribunal da Relação de Guimarães, o primeiro proferido em 03/05/2011, em que foi Relatora a Dra. Juíza Desembargadora CC e o segundo Acórdão proferido em 23/10/2014, em que foi Relator o Dr. Juiz Desembargador DD, ambos os acórdãos já transitaram em julgado, foram proferidos no domínio da mesma legislação e versam sobre a mesma questão fundamental de direito.

10. O Recorrente salvo melhor opinião entende que a questão em apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, sendo certo que é necessário haver uma uniformização nas decisões dos Tribunais relativamente aos deveres de indemnização nos casos de privação do uso de veículo atento o facto das seguradoras ultimamente se recusarem a cumprir os contratos de seguros celebrados, fugindo às responsabilidades contratuais assumidas, prossupondo sempre que o segurado é o elo mais fraco, e tudo fazendo para pagarem as indemnizações cada vez o mais tarde possível e obrigados por uma decisão judicial.

11. Dando cumprimento ao artigo 672°, n° 2 alínea c) do C.P.C., a contradição alegada prende-se com o facto de neste autos se entender que intentar a acção por parte do Recorrente nos três anos é da responsabilidade dele, no não cumprimento atempado da indemnização e nos dois acórdãos ora juntos entre o acidente e a prolação do acórdão também haviam decorrido três anos e os aí autores não foram vitimas de queixas crimes por parte das seguradoras em causa, como no caso dos presente autos.

12. Junta assim o Recorrente os dois acórdãos fazendo a ressalva de que ambos foram retirados do site www.dgsi.pt, sendo certo que não junta certidão dos mesmos, no entanto o Tribunal recorrido é o mesmo onde estes foram proferidos, tendo pois conhecimento oficioso dos mesmos e dos seus trânsitos.

13. Nesse sentido temos a declaração de inconstitucionalidade dada pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente nos acórdãos, 620/2013 e 582/2014, por a norma do artigo 721°-A, n°2 alínea c) do actual 672° do C.P.C., violar a Constituição da República Portuguesa».

Finalizou, pedindo a alteração do acórdão recorrido com a imputação do atraso no pagamento da indemnização à ré seguradora, com as demais consequências legais.


Igualmente irresignada recorreu a ré, deduzindo na sua alegação as seguintes conclusões:

«I. Por não constituírem prova, não bastam os depoimentos/declarações /informações/esclarecimentos da própria parte ao tribunal e a terceiros, para permitir a prova dos factos que àquela são favoráveis.

II. Ao permiti-lo o tribunal da 1ª instância e agora o aqui recorrido, ao não o reconhecer, fizeram uma errada aplicação do previsto nos supra citados art°s 452°, 454° e 466° do CPC e ainda nos art°s 352° e ss do CC, o que, só por si, deverá levar à revogação do decidido, com a subsequente absolvição da ré, aqui recorrente, do pedido».

Terminou pedindo a alteração do acórdão recorrido por forma a revogar a sentença da 1ª instância.


Autor e ré ofereceram as respectivas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

As Instâncias julgaram provados os seguintes factos:

1. O Autor, na qualidade de tomador e segurado, celebrou com a ré, na qualidade de seguradora, o contrato de seguro do ramo responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n° 0084…, tendo por objecto seguro o veículo automóvel de matrícula ...-...-SE, marca BMW 525 d Executive 4p, com 197CV, e por coberturas adicionais os danos próprios, contra, além do mais, furto ou roubo até ao capital de € 23.000,00.

2. O contrato iniciou os seus efeitos em 04.05.2010 e estava em vigor em 09.08.2010.

3. Sendo o seu prémio anual de € 1.016,64.

4. Na noite do dia 09 de Agosto de 2010, entre as 00:30 horas e as 02:00 horas, o veículo do Autor encontrava-se estacionado na via pública, na Avenida …., na cidade da Póvoa de Varzim, quando foi alvo de um furto/roubo.

5. De tal facto o Autor deu conhecimento às autoridades, mais concretamente, à PSP, da Divisão Policial de Vila do Conde, esquadra da Póvoa de Varzim.

6. Tendo posteriormente sido remetido aos competentes Serviços do Mº Pº (Secção Única) junto do Tribunal da comarca da Póvoa de Varzim, dando origem ao processo de Inquérito NUIPC: 826/10.7PAPVZ.

7. Este processo, instaurado contra desconhecidos, veio a ser arquivado por insuficiência de prova para identificação dos autores do ilícito.

8. A Ré apresentou uma queixa contra o aqui Autor onde punha em causa o furto ocorrido e a denúncia apresentada pelo Autor, dando origem ao processo 627/11.5TDLSB, que correu termos no DIAP, 3ª Secção em Lisboa, e que mais tarde acabou por ser remetido para os Serviços do Mº Pº de Vila Nova de Famalicão.

9. Em Dezembro de 2012 foi proferido despacho de arquivamento no inquérito 627/11.5TDLSB por insuficiência de prova face às suspeitas avançadas pela Ré.

10. Todos estes documentos foram em tempo remetidos para a Ré por forma ter conhecimento do normal desenrolar dos processos e resolver o assunto extrajudicialmente.

11. A Ré informou o Autor de que não assumia a responsabilidade pelo sinistro, datando a última comunicação de 08/05/2013.

12. Por informação prestada pelo Comando Distrital da PSP, ainda hoje o veículo continua por apreender e continuam a desconhecer a identidade dos autores do referido ilícito (furto/roubo).

13. O Autor entregou à Ré, por exigência desta, para instruir o processo de sinistro toda a documentação referente à propriedade do veículo matrícula ...-...-SE, nomeadamente, declaração de compra/venda preenchida e legalizada pelo Autor, originais do documento único automóvel, as chaves do referido veículo, bem como, fotocópias do BI. e do cartão de contribuinte do Autor.

14. O valor comercial do veículo à data da ocorrência do sinistro era de 22.000,00 €.

15. Aquando da celebração do contrato de seguro, o respectivo mediador de seguros atribuiu ao veículo o valor de 22.000,00€, o que obteve o acordo do Autor.

16. A Ré deu a entender ao Autor que deveria proceder à entrega da documentação para que esta procedesse ao pagamento da indemnização.

17. Ainda hoje o Autor tem de se socorrer de veículos de familiares e amigos, para as suas deslocações de trabalho e lazer, para além de estar impedido de adquirir outro veículo para poder circular, uma vez que não tem dinheiro para tal.

18. O custo diário do aluguer de um veículo com características idênticas às do veículo do Autor é de € 25,00.

19. O autor nasceu em 18.08.1980.

20. Quando celebrou o seguro com a Ré o autor trabalhava como vendedor numa firma de venda de pneus, onde auferia um salário mensal de cerca de € 1.000.

21. O Autor aplicou no veículo, como extras, umas jantes no valor de € 2.000.

22. O veículo seguro tinha sido matriculado em 14.08.2001, estando a sua propriedade, de início, em nome de EE.

23. Depois, em nome de FF, que tinha celebrado com a seguradora Império Bonança um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n° AU22…, tendo por objecto aquele veículo.

24. Contrato esse com a cobertura de danos próprios.

25. Em 18.09.2006, aquele veículo sofreu um acidente, tendo o segurado recebido indemnização no valor de € 15.221,00.

26. Em 20.08.2009 o mesmo veículo era propriedade de GG, que o tinha seguro na seguradora HH, também com a cobertura de danos próprios.

27. Em 20.08.2009 o veículo sofreu um acidente.

28. A reparação dos danos foi orçamentada em € 24.178,42, pelo que foi considerada a sua perta total.


De direito:

Determinado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação dos recorrentes, sem prejuízo da apreciação de questão de conhecimento oficioso, colocam-se como questões a apreciar:

- recurso do autor: saber se o acórdão recorrido é nulo por nele existir contradição entre os fundamentos e a decisão e, bem assim, se lhe assiste o direito à indemnização pela privação do uso do seu veículo.

- recurso da ré: saber se a facticidade provada sob o nºs 4, 13 a 16 e 18 se fundou em errada aplicação do disposto nos artigos 452º, 454º e 446º do Código de Processo Civil e do artigo 352º do Código Civil no que concerne ao depoimento de parte do autor.

Por uma questão puramente metodológica estas questões serão apreciadas de acordo com a sua sequência lógica, independentemente do recurso em que foram suscitadas.

Por essa razão, a questão objecto do recurso da ré será apreciada antes da questão de mérito suscitada no recurso do autor, dado o primeiro versar sobre alegada violação das regras processuais na obtenção de provas na fase da instrução, questão processual que antecede, logicamente, a de mérito.


1. Assaca o autor ao acórdão recorrido a nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil, ex vi dos artigos 666º e 685 do mesmo código. Esse vício derivaria, segundo o mesmo, da circunstância de nele se ter assumido como provada a facticidade constante dos pontos 8º a 13º da sentença da 1ª instância, dos quais resulta que, só após o arquivamento, em Dezembro de 2012, da queixa-crime apresentada pela ré contra o autor e a entrega por este àquela da documentação do veículo, a ré o veio informar, em 8 de Maio de 2013, de que não aceitara a responsabilidade e, apesar disso, ter concluído que o atraso no pagamento da indemnização não lhe é imputável, mas antes atribuível ao autor, o qual poderia ter demandado civilmente a ré antes do arquivamento do processo de inquérito.

A invocada causa de nulidade reside na oposição entre os fundamentos e a decisão e a sua apreciação cabe no âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, como decorre do estatuído no artigo 674º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil.

Tal nulidade constitui um vício da estrutura da sentença ou acórdão, que radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão. Pressupõe a existência de um vício real e efectivo no raciocínio do julgador de tal forma que a motivação aponta num determinado sentido decisório, mas a decisão tomada vai em sentido oposto ou diverso àquele e que, num processo lógico, seria a consequência da fundamentação em que assenta.

No caso em análise, não se perfila qualquer desconformidade lógica entre a fundamentação fáctica do acórdão sob recurso e a decisão nele tomada, apenas se verifica que, colocadas perante a mesma facticidade, as instâncias a interpretaram e valorizaram de modo diverso ao proceder à sua subsunção jurídica dentro do mesmo quadro normativo.

Com efeito, estando as instâncias de acordo quanto à ressarcibilidade do dano resultante da privação do uso do veículo, a 1ª instância considerou a facticidade provada bastante para configurar a culpa da ré seguradora no atraso do pagamento da indemnização devida ao autor, sendo-lhe, consequentemente, imputável a responsabilidade pela privação do uso do veículo de que o autor se viu desapossado em resultado do seu furto por terceiro. Por sua vez, o acórdão da Relação confrontado com os mesmos factos, que se mantiveram inalterados, concluiu serem insuficientes para neles basear a culpa da ré no pagamento dilatado da indemnização ao autor, atribuindo significado e valor jurídico diversos à pendência do processo de inquérito desencadeado pela ré contra o autor na sequência da participação do sinistro – furto do veículo –.

Não se configura, por conseguinte a invocada causa de nulidade, reconduzindo-se o que o autor apelida de oposição entre os fundamentos e a decisão a eventual erro de julgamento, que não cabe no elenco dos vícios da sentença ou do acórdão previstos no citado artigo 615º e que será objecto de ulterior apreciação.


2. Defende a ré que, tendo requerido o depoimento de parte do autor à matéria por si alegada nos artigos 1º a 101º da contestação, este não podia incidir sobre os factos dados como provados sob os nºs 4, 13 a 16 e 18, nem incidiu, por sobre eles não poder produzir-se tal meio de prova visto tratar-se de facticidade favorável ao autor.

É sabido que a confissão consiste no reconhecimento pela parte de realidade factual que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, podendo a confissão judicial provocada alcançar-se através de depoimento de parte, o qual incidirá sobre os factos que o requerente indicar e recairá apenas sobre factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento (artigos 352º e 356º nº 2 do Código Civil e artigo 452º do Código de Processo Civil).

O depoimento de parte é, por regra, prestado na audiência final, revestindo a confissão força probatória plena contra o confitente se for inequívoca e tiver sido reduzida a escrito (artigo 358º do Código Civil).

Nem sempre o depoimento de parte conduz à almejada confissão de factos favoráveis à parte contrária, o que não significa que o juiz deva desconsiderar eventuais declarações ou informações prestadas pela parte no decurso do seu depoimento e que, submetidas à necessária análise crítica do julgador, possam interessar à discussão da causa.

Na verdade, a previsão do nº 1 do artigo 452º do Código de Processo Civil contempla a possibilidade de o juiz, oficiosamente, determinar a comparência pessoal das partes para prestarem depoimento, informações ou esclarecimentos com relevância para a decisão do litígio.

A prova assim produzida, no âmbito dos poderes que o princípio do inquisitório confere ao juiz com vista ao apuramento, tão próximo quanto possível, da verdade material, será objecto da livre apreciação do julgador, o qual com base na globalidade dos meios de prova formará a sua prudente convicção.

No caso vertente, o depoimento prestado pelo autor não conduziu à confissão fáctica. No entanto, a Exma. Juíza valorou o seu depoimento, apreciando-o livremente, em conjunto com as demais provas produzidas, e também com base nele firmou a sua convicção quanto à realidade dos factos provados, concretamente, os indicados pela ré, deixando plasmadas na respectiva motivação as razões para tal.

Tal está bem evidenciado na passagem daquela motivação inserta na sentença da 1ª instância, que passa a transcrever-se: «Não olvidamos que as declarações de parte devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas são declarações interessadas, em que quem as produz tem manifesto interesse na acção. Concordamos que seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, o auxílio de outros meios probatórios, se dessem por demonstrados factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.

Todavia, no caso concreto, a forma sincera e coerente como o Autor depôs, auxiliou na convicção do Tribunal, sendo por isso reduzidas as possibilidades de produção de outra prova em virtude de terem ocorrido na presença circunscrita deste (…).

Acresce que, tais declarações, livremente apreciadas pelo tribunal (conforme resulta do nº 3 do artigo 466º do NCPC), importaram sobretudo como elemento de clarificação do resultado do conjunto das provas produzidas e como prova subsidiárias para os factos circunscritos pelo Autor».

A valorização do meio probatório em causa com a dimensão referida – prova sujeita à livre apreciação do tribunal – não consubstancia violação ou errada aplicação da lei de processo, pelo que o acórdão da Relação, ao sufragar a actuação da Exma. Juíza, não é, nesse particular, passível de censura.

Como é sabido, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista.

Improcedem, pois, as conclusões do recurso da ré.


3. Voltando ao recurso do autor, cumpre averiguar se lhe assiste o proclamado direito à indemnização pelo dano da privação do uso do veículo.

Importa, desde logo, assinalar que nos encontramos no campo da responsabilidade civil contratual, estando em causa o cumprimento por banda da ré de todas as obrigações emergentes do contrato de seguro de responsabilidade civil facultativo (danos próprios) que aceitou celebrar com o autor, titulado pela apólice n° 0084…, tendo por objecto o veículo automóvel de matrícula ...-...-SE, marca BMW 525 d Executive 4p, com 197CV, que incluía a cobertura, além do mais, de furto ou roubo até ao capital de € 23.000,00.

Por força deste contrato, cuja qualificação jurídica não foi posta em crise, contrato sinalagmático do qual emanam obrigações para ambos os contraentes, a ré assumiu os riscos decorrentes dos danos próprios do autor em virtude, nomeadamente, de furto ou roubo da sua viatura e o autor a obrigação do pagamento do prémio acordado, no valor de anual de € 1.016,64, na data do respectivo vencimento.

Provou-se nos autos que na noite do dia 09 de Agosto de 2010, entre as 00:30 horas e as 02:00 horas, o veículo do autor encontrava-se estacionado na via pública, na Avenida …, na cidade da Póvoa de Varzim, quando foi alvo de um furto/roubo, tendo o mesmo dado conhecimento do facto às autoridades, mais concretamente, à PSP, da Divisão Policial de Vila do Conde, esquadra da Póvoa de Varzim, participação que deu origem ao processo de Inquérito NUIPC: 826/10.7PAPVZ, o qual veio a ser arquivado por insuficiência de prova.

A ré apresentou, por sua vez, uma queixa contra o autor, pondo em causa o furto ocorrido e a denúncia apresentada por este, dando origem ao processo 627/11.5TDLSB, que correu termos no DIAP, 3ª Secção, em Lisboa, posteriormente remetido para os Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Famalicão, no qual foi proferido, em Dezembro de 2012, despacho de arquivamento por insuficiência de prova face às suspeitas avançadas pela ré.

Na 1ª instância a acção foi julgada parcialmente procedente e a ré BB – Companhia de Seguros, SA, foi condenada a pagar ao autor a quantia de € 46.480,00, acrescida de juros moratórios à taxa legal, vencidos e vincendos, desde 9 de Outubro de 2010 até efectivo pagamento, decisão que englobou o pagamento da indemnização relativa aos danos emergentes da privação do uso da viatura invocados pelo autor.

O Tribunal da Relação de Guimarães concedeu parcial provimento à apelação da ré, limitando a sua condenação ao pagamento da quantia de € 20.680,00, pela perda da viatura segurada, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 9 de Outubro de 2010 até efectivo pagamento.

Sem colocar em crise a ressarcibilidade dos referidos danos alicerçada no incumprimento do contrato de seguro por parte da ré e afirmando concordar com “a posição sufragada na sentença recorrida sobre o dever de indemnização a cargo das seguradoras, que, não obstante cobertas pela previsão legal do artº 130º da LCS – que exclui o seu dever de indemnizar o dano da privação do uso da viatura, caso esse dano não tenha sido contratado – podem vir a ser responsabilizadas por tal dano, caso se prove que incumpriram o seu dever de indemnizar, na parte contratada – pagando ao segurado o valor da viatura sinistrada, em tempo oportuno, de molde a não lhe causar outros danos, nomeadamente os danos decorrentes da privação do uso de uma viatura idêntica à sinistrada”, o acórdão recorrido negou ao autor a pretendida indemnização pela privação do uso do seu veículo.

Fundou-se para tanto no entendimento de que, no caso concreto, a denúncia apresentada pela ré contra o autor e a prova que aquela carreou para os autos, evidenciada pelo teor do despacho de arquivamento proferido no inquérito, demonstram que não negligenciou o dever de indemnizar o autor, estando a recusa do pagamento assente em motivo fundamentado, ou seja, nas suspeitas que tinha sobre a alegada fraude de que estaria a ser vítima por parte do autor.

Afastou, por conseguinte, qualquer situação configuradora de atraso inexplicável no pagamento da indemnização ou de atitude infundadamente persecutória e intransigente por parte da ré seguradora.

O acórdão recorrido merece a nossa concordância quando defende a ressarcibilidade dos danos em causa, na linha do entendimento da sentença da 1ª instância que, distinguindo entre a responsabilidade obrigacional, que lida com a fonte original da obrigação e os deveres secundários de prestação, considerou que “No seio da relação obrigacional, ao lado do estrito dever de prestar convergem uma série de outros deveres que embora secundários são essenciais ao seu correto processamento. Exprimem estes deveres a necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adoptar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal (…).

Em suma, a seguradora, para além da obrigação de pagamento da indemnização dos danos provocados pelo sinistro coberto pelo seguro, nas condições contratadas, se demora injustificadamente na resolução do caso, resultando dessa mora danos para o segurado, responde por esse inadimplemento. Esta solução não conflitua com as disposições consagradas no regime do contrato de seguro, porque não impõe à seguradora a cobertura de riscos além do que foi segurado, antes a responsabiliza pela reparação de um dano que decorre não do sinistro mas da inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente…”.


O acórdão recorrido reforçou esse entendimento com oportuna citação de Moitinho de Almeida, a qual pela sua pertinência passamos a transcrever:

"Assiste-se, com frequência, a atrasos na regulação de sinistros por parte das seguradoras, com vista a beneficiar dos rendimentos do dinheiro que para o efeito deveria ser despendido ou mesmo para levar os interessados a desistir das suas reclamações. Várias leis europeias contêm hoje disposições destinadas a fazer face a este problema, (…). Por imposição comunitária, o Decreto-Lei nº 291/2007 (seguro obrigatório automóvel) insere disposições neste sentido, mas o novo regime legal do contrato de seguro limita-se a estabelecer que a obrigação da seguradora se vence decorridos trinta dias sobre o apuramento dos factos (artigo 104.°)”.

Este Supremo Tribunal vem decidindo, maioritariamente, no domínio da responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação que a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o artigo 1305º do Código Civil lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2007 (proc. nº 07B1849), de 12 de Janeiro de 2010 (proc. nº 314/06.6TBCSC.S1), de 16 de Março de 2011 (proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1) e de 10 de Janeiro de 2012 (proc. nº 189/04.0TBMAI.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

Doutrina que já foi sufragada também no Acórdão de 9 de Julho de 2015 (proc. 13804/12.2T2SNT.L1.S1), cujo relato coube à ora relatora, por ser esta posição a que melhor tutela a lesão dos interesses do proprietário de um bem, que se vê privado de extrair dele todas as vantagens e utilidades que o seu uso lhe proporciona, devido à actuação culposa de outrem.

E não se vê razão para também no campo da responsabilidade contratual ser acolhida desde que demonstrados o incumprimento culposo do outro contraente e o dano.

Ora, no caso que nos ocupa, não podemos já concordar com o acórdão recorrido no segmento em que considerou ser de recusar o pagamento da indemnização em questão ao autor.

Efectivamente, a ré não logrou provar que as suas suspeitas relativamente a uma eventual actuação fraudulenta do autor eram fundadas, como decorre do despacho de arquivamento exarado no processo de inquérito desencadeado pela sua queixa-crime.

A apresentação de queixa-crime que venha a revelar-se, posteriormente, inconsequente no desenrolar do processo de inquérito não é susceptível de libertar a ré seguradora do cumprimento da sua obrigação contratual em tempo. Com efeito, o arquivamento com base na falta de prova sobre a actuação ilícita imputada pela ré ao autor retira fundamento ao incumprimento da sua prestação no prazo contratual ou legalmente fixado para o efeito.

Quando a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.

O autor formulou um pedido indemnizatório autónomo do emergente do accionamento do contrato de seguro para recebimento da indemnização devida pelo furto do veículo. Aliado a este, pediu a indemnização pela privação do uso do seu veículo porque a ré não lhe entregou, até sessenta dias após a participação do sinistro, a indemnização garantida pela cobertura do risco, situação que ainda hoje o leva a ter se socorrer de veículos de familiares e amigos para as suas deslocações de trabalho e lazer, para além de estar impedido de adquirir outro veículo para poder circular, uma vez que, não tem dinheiro para tal.

Esta indemnização tem por fonte a violação culposa de deveres laterais e secundários do contrato de seguro, os quais, uma vez demonstrados, merecem tutela jurídica e vão além do estrito cumprimento da obrigação de pagamento da indemnização pelos danos resultantes do sinistro coberto pelo seguro nas condições contratadas.

E a sua atribuição não implica violação do designado princípio indemnizatório, de acordo com o qual a obrigação de indemnizar tem por finalidade reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso e não proporcionar um enriquecimento injustificado do lesado (cfr. Acórdãos deste Supremo Tribunal de 22 de Fevereiro de 2011 e de 24 de Abril de 2012, proferidos, respectivamente, nos processos nº 667/06.8TBOHP.C2.S1 e nº 32/10.0T2AVR.C1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj, e, bem assim, o já citado de 9 de Julho de 2015).

Com efeito, o princípio indemnizatório procura impedir que exista sobreposição de indemnizações, mas não obsta a que se cumulem indemnizações que se complementem por forma a abranger um leque mais vasto de danos do que aqueles que seriam ressarcidos unicamente com base na participação de um sinistro no âmbito de um contrato de seguro, no caso, facultativo (danos próprios).

Termos em que se conclui pelo reconhecimento do direito do autor à pretendida indemnização pela privação do uso do seu veículo, sendo o montante indemnizatório arbitrado na sentença proferida na 1ª instância consentâneo com a facticidade provada.


III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em:

a) conceder a revista ao autor AA e condenar a ré BB - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., no pagamento ao mesmo de indemnização pela privação do uso do veículo no montante arbitrado na sentença proferida na 1ª instância, que neste particular se repõe, revogando-se nessa parte o acórdão recorrido, o qual se mantém no mais decidido;

b) negar a revista à ré BB - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A;

c) condenar a ré, recorrida, nas custas de ambos os recursos.


Lisboa, 14 de Dezembro de 2014


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Nunes Ribeiro