Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P792
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
FINS DAS PENAS
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
JUÍZO DE PROGNOSE
CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INDEMNIZAÇÃO
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Nº do Documento: SJ20080925007925
Data do Acordão: 09/25/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - Na moldura de 3 a 10 anos de prisão [aplicável ao crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 172.º, n.º 2, do CP], resultando provado que:
- entre as 8h00 e as 9h45 do dia 14-11-1999, em T.., numa ocasião em que a ofendida, à data com 12 anos, se encontrava afastada da povoação cerca de 100 m – havia saído da casa de familiares, onde pernoitara, e caminhado a pé em direcção ao moinho da aldeia, percorrendo o respectivo caminho, a fim de escolher imagens para fotografar, uma vez que frequentava um curso de fotografia na escola secundária onde estudava –, o arguido, à data com 58 anos, tio do pai da menor, surgiu por trás da ofendida, surpreendendo-a, agarrou-a por trás, dominou-a, empurrou-a e tirou-lhe a camisola, tendo as calças caído e a menor tropeçado nelas e caído no chão;
- quando a ofendida se encontrava no chão, o arguido arrancou-lhe as cuecas, afastou-lhe as pernas e introduziu o pénis na vagina da menor, que reagiu gritando, não tendo sido ouvida por ninguém;
- a ofendida, que até então era virgem, ficou assustada de tal modo que nem sabia como reagir, sendo que tudo ocorreu e terminou rapidamente, sem que o arguido lhe dirigisse qualquer palavra;
- ao agir do modo descrito, o arguido, que sabia a idade da ofendida, pretendia satisfazer os seus instintos sexuais, tudo fazendo com vontade livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
- com a sua descrita conduta, o arguido provocou o desfloramento da ofendida e causou-lhe danos psicológicos que motivam sentimentos depressivos, acompanhados de angústia e dificuldade em manter relações afectivas com o grupo de pares;
- em consequência da descrita conduta, a ofendida esteve sujeita a tratamento psicológico até cerca de um ano antes da audiência [de 17-03-2006], mantendo presentemente uma relação afectiva com o namorado;
- o arguido não assumiu qualquer atitude demonstrativa de arrependimento;
- o arguido tem como habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade; vive com a mulher, auxiliar da acção educativa, com quem é casado há aproximadamente 30 anos; tem 3 filhos maiores, com quem mantém bom relacionamento; exerceu o cargo de Sargento-Mor do Serviço da Polícia Militar, encontrando-se presentemente na reserva, recebendo o montante mensal de cerca de € 2000;
- o arguido é tido por pessoa considerada social e profissionalmente, integra, recta, honesta, com uma personalidade bem formada e bom pai de família;
- não tem antecedentes criminais;
mostra-se adequada a pena de 5 anos de prisão aplicada.

II - No n.º 1 do art. 50.º do CP, na redacção da Lei 59/2007, de 04-09, subiu-se o limiar da pena compatível com a suspensão, pelo que deverá acolher-se esta nova redacção, já que mais favorável; desde logo, porque no caso destes autos fica autorizada a suspensão, enquanto que, a ter em conta a redacção vigente à data dos factos praticados, o recorrente teria sempre de cumprir a pena de prisão aplicada.

III - O primeiro ponto a ponderar sobre a suspensão da pena aplicada tem a ver com as finalidades da punição e estas reportam-se à defesa dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, cabendo à culpa o papel de pressuposto e limite inultrapassável da medida da pena.

IV - A defesa de bens jurídicos é um propósito geral que informa todo o sistema penal, não privativo das penas, pelo que se tem que ligar tal propósito, em matéria de fins das penas, à prevenção geral dita positiva. Importa pois saber, antes de mais nada, se nessa tarefa que compete ao Estado de gerir a indignação social, provocada junto de quem teve conhecimento do cometimento do crime, importa saber se a aludida suspensão se justifica no presente caso.

V - Depois, e já em matéria de prevenção especial, só se deverá optar pela suspensão da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime. Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso.

VI - No caso em apreciação:
- não se colocam preocupações de monta ao nível da reinserção social do arguido; nada se pode apontar quanto ao seu comportamento anterior ao crime, ou posterior ao mesmo; isto, obviamente, na medida em que continua com o registo criminal limpo, mais de 8 anos volvidos sobre os factos destes autos, factos esses que integram um tipo de crime que pode revelar uma parafilia, a qual por sua vez pode manter-se ou não;
- assume especial relevo o tempo decorrido desde que o recorrente praticou os factos;
- no entanto, mostra-se importante fazer sentir ao agora condenado os efeitos da condenação; o seu comportamento foi altamente censurável e o recorrente não pode deixar de o interiorizar;
- em termos de prevenção geral, a reacção penal aos factos em apreço poderá mostrar-se suficiente, optando-se pela suspensão da pena, desde que condicionada ao pagamento de uma quantia à ofendida e à prestação de trabalho a favor da comunidade; só desse modo se evitará uma perda da confiança posta no sistema repressivo penal pela sociedade, designadamente pela população local.

VII - O art. 51.º do CP autoriza, no seu n.º 1, a subordinação da suspensão da execução da pena ao cumprimento de deveres impostos ao condenado, e destinados a reparar o mal do crime. A título de exemplo, menciona-se na al. a) desse n.º 1, o pagamento em certo prazo de indemnização devida ao lesado, no todo ou em parte. De notar que se não está, neste domínio de deveres condicionantes da suspensão da pena, perante uma indemnização cível por perdas e danos, calculada e orientada pelos mesmos exactos propósitos desta. Está-se, pelo contrário, só perante uma “função adjuvante das finalidades da punição”.

VIII - A reparação do mal do crime passa também, no caso presente (em que não há notícia de propositura de acção cível em separado, nem foi formulado nestes autos qualquer pedido cível), pela entrega de uma quantia monetária à ofendida. A menor sofreu, em termos de causalidade adequada, importante traumatismo psicológico (dano) derivado da conduta criminosa do recorrente (facto voluntário, ilícito e doloso). Em virtude do mesmo esteve em tratamento até cerca de um ano antes da audiência de 17-03-2006. Mostra-se adequado o pagamento pelo recorrente, a título de indemnização à ofendida, da quantia de € 10 000, no prazo de 3 meses. Esse pagamento será por conta da quantia que venha a ser arbitrada, em acção que vier a ser interposta, se o for, visando a condenação do recorrente em indemnização por perdas e danos, e tendo como causa de pedir o crime destes autos.

IX - O art. 52.º do CP prevê, no seu n.º 1, a imposição do “cumprimento pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade”. A título exemplificativo enumera a seguir o que possam ser tais regras de conduta, mencionando na al. c) desse n.º 1 “cumprir determinadas obrigações”.

X - Mostra-se adequada ao caso a imposição da obrigação de prestação de trabalho a favor da comunidade, a qual não assume aqui, obviamente, a condição de pena, e sim a de modalidade que no caso deve revestir a suspensão da pena, trabalho que se deve considerar integrado nessa pena de substituição. Fica assim o recorrente obrigado a prestar trabalho a favor da comunidade num total de duzentas horas, em termos a estabelecer pela 1.ª instância, e em consonância com os serviços de reinserção social, sob a cominação da revogação da suspensão, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 56.º do CP.


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* Sumário elaborado pelo relator
** Sumário revisto pelo relator
Decisão Texto Integral:



AA, nascido a 1/09/1941, na freguesia de Espinhosela, concelho de Bragança, casado, Sargento-Mor do Serviço da Polícia Militar, na reserva, residente na Rua da Infesta, n.º ..., Brasfemes, Coimbra, foi condenado a 17/3/2006, em processo comum e tribunal colectivo (Pº 395 / 01.9, do 2.º Juízo da Comarca de Bragança), pela prática de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172º, n.º 2 do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 65/98 de 2 de Setembro, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
Recorreu para o Tribunal da relação do Porto que, por acórdão de 29/11/2006, rejeitou o recurso, por manifestamente improcedente – art.º 420.º, n.º1 do CPP.
É deste último acórdão que agora recorre para o Supremo Tribunal de Justiça.

A- DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

Da decisão de primeira instância colhe-se a seguinte factualidade dada por provada (transcrição):

“1) No dia 14 de Novembro de 1999, por volta das 8:00 horas, em Terroso, Bragança, a ofendida BB, nascida a 22/02/1987, saiu da casa de familiares, onde havia pernoitado, e caminhou a pé em direcção ao moinho da aldeia, percorrendo o respectivo caminho, a fim de escolher imagens para fotografar, uma vez que na ocasião frequentava um curso de fotografia na escola secundária onde estudava.
2) Quando se encontrava afastada da povoação cerca de 100 metros, em momento que se situou entre as 8:00 e as 9:45 horas, o arguido, que é tio do pai da BB e que também se encontrava de férias na aldeia, surgiu por trás da ofendida BB, surpreendendo-a.
3) De seguida, o arguido agarrou a ofendida BB por trás, dominou-a, empurrou-a, tirou-lhe a camisola, as calças caíram e ela tropeçou nelas e caiu ao chão.
4) Após a ofendida BB se encontrar caída no chão, o arguido arrancou-lhe as cuecas, afastou-lhe as pernas e introduziu-lhe o pénis na vagina.
5) A ofendida BB ainda reagiu gritando, mas ninguém a ouviu.
6) A ofendida, que até então era virgem, ficou assustada de tal modo que nem sabia como reagir, sendo que tudo ocorreu e terminou rapidamente, sem que o arguido lhe dirigisse qualquer palavra.
7) Ao agir do modo descrito, o arguido, que sabia a idade da ofendida, pretendia satisfazer os seus instintos sexuais, tudo fazendo com vontade livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
8) Com a sua descrita conduta, o arguido provocou o desfloramento da ofendida e causou-lhe danos psicológicos que motivam sentimentos depressivos, acompanhados de angústia e dificuldade em manter relações afectivas com o grupo de pares.
9) Em consequência da descrita conduta do arguido, a ofendida BB esteve sujeita a tratamento psicológico até há cerca de um ano, mantendo presentemente e desde há cerca de dois anos uma relação afectiva com o seu namorado.
10) O arguido não assumiu qualquer atitude demonstrativa de arrependimento.
11) O arguido tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade; vive com a mulher, auxiliar da acção educativa, com quem é casado há aproximadamente trinta anos; tem três filhos maiores, com quem mantém bom relacionamento; exerceu o cargo de Sargento-Mor do Serviço da Polícia Militar, encontrando-se presentemente na reserva, recebendo o montante mensal de cerca de € 2.000,00.
12) O arguido é tido por pessoa considerada social e profissionalmente, integra, recta, honesta, com uma personalidade bem formada e bom pai de família.
13) O arguido não tem antecedentes criminais.”

E não se considerou provado o seguinte (transcrição):

“a) Na manhã do dia 14/11/1999, desde que acordou e se levantou e até cerca das 12:30 horas, o arguido nunca saiu das imediações da sua casa, não tendo seguramente saído da povoação propriamente dita;
b) Na manhã do dia 14/11/1999, a ofendida BB esteve na companhia de dois rapazes nas imediações da aldeia.”

B – DECISÃO RECORRIDA

Da decisão recorrida retiram-se as seguintes passagens com interesse para a apreciação que nos é solicitada (transcrição parcial):

Recorreu o arguido , suscitando as seguintes questões:
- os factos dados como provados de 1. a 9. deveriam ter sido julgados não provados, e provados os descritos nas alíneas a) e b) dos não provados;
- foi violado o princípio in dubio pro reo;
- deveria a pena concreta ter sido fixada em 3 anos de prisão e suspensa na sua execução.
- foram violados os arts. 127.º do CPP e 71.º, 50.º do CP. (…)”

Não se detectou a existência de qualquer um dos vícios relativos a tal julgamento dos que se encontram previstos no art.º 410.º, n.º2 do CPP, que necessariamente têm que decorrer do texto da decisão recorrida, só por si ou juntamente com as regras da experiência comum, e que são de conhecimento oficioso. Aliás, o recorrente tão pouco os invoca.
Dois aspectos importa liminarmente tratar, no âmbito já deste tema, mas que se afiguram totalmente inócuos na forma como foram tratados na motivação.
O primeiro (fls. 794) é a referência a declarações prestadas nos autos, a incidências processuais já ultrapassadas, como anteriores audiências de julgamento e recurso. Nenhuma conclusão é legítimo retirar desses elementos acerca da credibilidade e idoneidade do depoimento da ofendida. Como determina o art.º 355.º do CPP, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Não sendo o caso da excepção prevista no n.º 2 deste preceito, a matéria em questão evidencia-se como impertinente para a discussão do mérito do recurso.
O segundo ( fls. 794 v. ) é o teor bizantino e totalmente inconclusivo que o recorrente dá ao aspecto da hora em que os factos ocorreram. Percebe-se que, num meio rural em que a experiência nos diz que as pessoas não terão o hábito de olhar para o relógio constantemente, contrariamente aos habitantes das grandes cidades, o tribunal se tenha prudentemente cingido à expressão por volta das 8.00 horas. Assim evitaria a total invalidade do raciocínio exposto pelo recorrente sobre o assunto no lugar mencionado, que só podia ter como conclusão a contrária àquela que o recorrente chegou, ou seja, que a ofendida saiu por volta das 8h00 da casa dos seus familiares. Se, como referenciando declarações da ofendida, esta se levantou pouco antes das 8h, e só gastou 15 minutos a arranjar-se e a sair da casa, facilmente se percebe que melhor teria sido o recorrente não se aventurar neste domínio de forma tão desastrosa.
Alega também o recorrente que a descrição de factos essenciais pela ofendida é feita de forma rápida e o mais sucinta possível, sem a riqueza de pormenores que acompanham tipicamente este género de situações.
Exemplifica o recorrente, que não explicitou se o recorrente ejaculou, se ele despiu ou não as «calças vincadas» que trazia, se abriu e fechou a braguilha, se ela própria ficou com algum ferimento, etc.
Tal reflexão pressupõe que a ofendida deveria, numa ordem normal do acontecer, estar atenta a tais circunstâncias. Isto, é a sua consciência deveria estar concentrada nelas, retratando por inteiro todos os actos praticados pelo arguido.
Todavia, essa pressuposição não é aceitável, pois que as regras da experiência nos indicam que precisamente nestas situações é que a pessoa apanhada de surpresa passa a estar em sobressalto, em estado de emoção violenta, que naturalmente inibe a sua capacidade normal de vontade e de percepção de toda a realidade circundante.
O recorrente chama depois a atenção para o comportamento da vítima, posterior ao do momento em que os factos ocorreram, que na sua óptica seria incompatível com o ter sido sujeito passivo do crime em apreço.
Mais que quaisquer considerações que possamos fazer sobre esta matéria, foi devidamente valorado na decisão recorrida o conhecimento pericial sobre tal tipo de comportamento.
Trata-se do relatório de perícia psiquiátrica ( fls. 120-122 ), no qual se considerou que “a BB usa a anulação como mecanismo de defesa contra a agressão (...) está dominada por um medo, que tende a ser mascarado com mecanismos de defesa que lhe dão uma passividade face aos estímulos, com angústia recalcada. A anulação dos impulsos deve-se á boa capacidade intelectual que apresenta”. (…)”

Quanto à violação do princípio in dubio pro reo , não se afigura que tenha ocorrido dúvida alguma no espírito do julgador ao considerar os factos como provados ou não provados, e essa dúvida transpareça do próprio texto da decisão recorrida (…)”.

“O recorrente foi condenado na pena de cinco anos de prisão, ou seja, metade do limite máximo abstractamente previsto, mas no primeiro terço da moldura em questão.
A sua conduta foi muito grave, reclamando rigorosa punição; não assumiu a mesma, fazendo salientar necessidades de prevenção especial; a comunidade veria como um escândalo, dada a frequência destas escabrosas atitudes que tem como alvo as crianças, a imposição injustificada de uma pena mínima – tudo apontaria para que a pena concreta se aproximasse do limite máximo, já que o arguido apenas tem a seu favor o seu enquadramento pessoal e familiar.
Pretende o arguido que a pena de prisão deveria antes ter sido fixada em 3 anos de prisão.
Alega, portanto, que o montante da pena de prisão se deveria fixar no limite mínimo. Todavia, isso apenas seria viável, - embora de justificação difícil face à gravidade da conduta em questão, se o recorrente se tivesse distanciado da mesma, quer pela confissão e arrependimento, quer pela reparação do prejuízo infligido à vítima. Ora o que aconteceu foi precisamente o contrário; o arguido «colou-se» ao crime, identificando-se com os seus actos e não zelando de demonstrar que os mesmos foram uma ocorrência muito acidental nas suas vida e personalidade.
Sendo assim, é óbvio que o tribunal tem que empregar um grau de censura maior – não se podendo utilizar a condição económico-social e familiar do arguido, a sua idade, como factores de desculpabilização para uma conduta que do ponto de vista legal é fortemente punida; e, se cada um de nós tentar a aflição da vítima e reflectir nas consequências traumáticas que não deixarão de se repercurtir na sua vida inteira, do ponto de vista humano se pode facilmente qualificar tal conduta como execrável. (…)”

C – RECURSO

O recurso do arguido termina com as seguintes conclusões (transcrição):

“1ª) - O douto Acórdão recorrido limitou-se a analisar alguns dos fundamentos do recurso, designadamente, as incidências processuais (que considerou irrelevantes!), o depoimento da própria ofendida quanto à hora a que os factos ocorreram, o modo como a ofendida descreveu os factos essenciais e o comportamento da ofendida posterior aos factos.
2ª) - Porém, mesmo a análise do depoimento da ofendida foi efectuada com consideração singular de tal depoimento, sem qualquer sindicância e valoração do mesmo quando confrontado com depoimentos testemunhais que põem em crise e contrariam frontalmente particulares aspectos factuais relatados pela ofendida e indevidamente considerados dignos de crédito.
3ª) - Escudando-se no principio da oralidade e da imediação, o Tribunal recorrido considera inatingível o julgamento efectuado pela 1ª instância, concluindo que "tendo o Tribunal recorrido considerado não dignos de credibilidade os depoimentos das testemunhas mencionadas na motivação do recorrente" [e reitera-se que alguns depoimentos não foram sequer sujeitos a qualquer crítica valorativa] "é claro que não está este Tribunal de recurso em posição de substituir o juízo de credibilidade efectuado pelo tribunal recorrido, pela versão do recorrente".
4ª) - Ao assim considerar, a decisão recorrida esvazia por completo, a garantia efectiva de um duplo grau de jurisdição, designadamente, em matéria de recursos versando a impugnação da matéria de facto, e pelo contrário, acentua a tendência para fazer do julgamento do recurso "um labor meramente rotineiro executado sobre papéis", e não "num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção motivada de pessoas".
5ª) - Acresce que a discussão de alguns dos fundamentos do recurso apresentado pelo arguido contradiz a consideração do recurso como manifestamente improcedente; ao considerar o recurso manifestamente improcedente, a Relação violou não apenas disposição processual, mas o próprio princípio do duplo grau de jurisdição, porquanto vedou ao arguido a possibilidade de sequer ser apreciada a sua motivação recursiva em julgamento no Tribunal de recurso.
6ª) - Sem prejuízo, aditar-se-á que no julgamento da matéria de facto nos presentes autos ocorreu violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio "in dubio pro reo", uma vez que resultam sérias dúvidas na credibilidade, na plausibilidade e na idoneidade do depoimento da própria ofendida, as quais, só por si, deveriam ser suficientes e decisivas para, na livre apreciação da prova, considerar não provada a factualidade vertida nos números 1) a 9) da matéria de facto que o Tribunal Colectivo julgou provada, como por outro lado, a credibilidade, idoneidade e veracidade resultantes dos depoimentos testemunhais supra reproduzidos deveriam ser suficientes e decisivas para, na livre apreciação da prova, considerar provada a factualidade vertida nas alíneas a) e b) da factualidade considerada não provada.
7ª) - A ser condenado pela prática de crime de abuso sexual na pessoa da ofendida, devidamente ponderadas as circunstâncias concretas da actuação imputada ao arguido, designadamente, em termos de culpa, de ilicitude e de consequências da conduta, a sua condição social, familiar e económica, a sua integração na sociedade, revelada pela ausência de antecedentes criminais, a sua idade e bom comportamento anterior e posterior aos factos, em circunstância alguma deve ser aplicada ao recorrente pena de prisão superior a 3 anos.
8ª) - Em tal caso, deverá suspender-se a execução da pena, uma vez que, atendendo à personalidade do arguido, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, se deve concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
9ª - Foram violados ou incorrectamente interpretados os artigos 127° e 420°, n° 1, do C.P.P. e os artigos 71° e 50°, do Cód. Penal.
NESTES TERMOS e nos mais de direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, revogado o douto Acórdão recorrido, ordenando-se a sua substituição por decisão que ordene a prossecução dos autos para julgamento do recurso no Tribunal da Relação, e designadamente, para julgamento da matéria de facto impugnada pelo arguido, ou caso assim se não entenda, deve ser revogado o douto Acórdão recorrido e ordenada a modificação da matéria de facto, considerando-se como não provados os factos vertidos nos números 1) a 9) da matéria de facto que o Tribunal Colectivo julgou provados e considerando-se ainda, como provada, a factualidade constante das alíneas a) e b) da matéria de facto que o Tribunal Colectivo julgou como não provada, em consequência, do que deve o arguido ser ABSOLVIDO, ou ainda, quando assim se não entenda, condenando-se o arguido como autor de um crime de abuso sexual na pena de prisão nunca superior a 3 anos, suspensa na respectiva execução,
ASSIM fazendo, Vs. Exas., Meritíssimos Senhores Juízes Conselheiros, inteira e merecida
JUSTIÇA.

A seu turno, o Mº Pº respondeu, concluindo assim (transcrição):

“1- Os Ex.mos Desembargadores, no acórdão recorrido analisaram a prova produzida em função dos argumentos utilizados pelo arguido no seu recurso, formulando o próprio juízo da correcção do julgamento feito em primeira instância, não se mostrando, assim, violado o princípio do duplo grau de jurisdição.
2- Face ao dolo directo e à falta de arrependimento, circunstâncias que exigem rigor punitivo, mostra-se adequada a medida da pena que ao arguido foi aplicada.”

Colhidos os vistos, procedeu-se a audiência de julgamento.

C – APRECIAÇÃO

Apreciando os fundamentos e conclusões do recurso interposto, somos levados a seleccionar três questões:
a) A pretendida violação do princípio do duplo grau de jurisdição (conclusões 1 a 6);
b) A violação dos princípios da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo” (conclusão 6);
c) A medida da pena e a suspensão da sua execução (conclusões 7 e 8).

a) Quanto à violação do princípio do duplo grau de jurisdição.

Sob o chapéu da pretensa violação deste princípio, o recorrente pretende mais uma vez impugnar a matéria de facto dada por provada. E, desta feita, considera que o Tribunal da Relação não reapreciou a matéria de facto como lhe cumpria, o que envolveria a nulidade doa artº 379º, nº 1 al. c), ex vi do artº 425º nº 4 , ambos do C.P.P.. Isto, muito embora o recorrente omita toda a referência a tal eventual nulidade.
Não tem porém razão.
Cumpre começar por dizer que este S.T.J. conhece de direito, cumprindo-lhe, em matéria de facto, simplesmente sindicar a ocorrência de vícios do artº 410º nº 2 do C.P.P.. Importa então, antes de mais nada, ter em conta que os vícios assinalados no nº 2 do artº 410º do C.P.P. são de conhecimento oficioso, não podendo fundamentar o recurso do arguido. O qual, e mais uma vez, também aos mesmos se não refere. Tais vícios têm de resultar patentemente do texto da decisão recorrida, encarada em si mesma ou com o simples recurso às regras gerais da experiência comum. Ora, da dita análise da decisão recorrida não ressalta nenhum vício, que nos cumpra oficiosamente assinalar.
Mas o recorrente, embora sem arguir qualquer nulidade, pretende atacar a matéria de facto, através da invocação da violação do princípio do duplo grau de jurisdição. Vejamos então.
De acordo com o artº 97º nº 4 do C.P.P., os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. A seu turno, o artº 374º nº 2 do mesmo Código pronuncia-se sobre a fundamentação que deve constar da sentença, exigindo, sob pena de nulidade (artº 379º nº 1 al. a) do C.P.P.), a enumeração de factos provados e não provados, a exposição o mais completa possível, se bem que concisa, dos motivos de facto e de direito que levaram à decisão, com indicação e exame crítico das provas que estiveram por detrás da convicção do tribunal. Tudo aplicável aos acórdãos proferidos em recurso por força do nº 4 do artº 425º do C.P:P..
O arguido começou por invocar, no recurso que interpôs da 1ª instância para o Tribunal da Relação, aquilo que, sem o dizer, poderia configurar a nulidade em apreço, apelando no fundo para a falta de exame crítico das provas. Ora, o acórdão ora recorrido debruçou-se sobre o tema e concluiu pela credibilidade da versão acolhida pelo tribunal de primeira instância.
Pretende o arguido, mais uma vez, que a sua versão dos factos vingue, mas sem qualquer razão. Na verdade, a Relação debruçou-se sobre o acórdão do do 2.º Juízo da Comarca de Bragança, nas passagens pertinentes, e explicou de forma clara e suficiente, o porquê da sua anuência.
O recorrente pode não concordar com a convicção que o tribunal formou, mas não pode é alegar que ficou por revelar o percurso lógico percorrido que levou a tal convicção. Uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova, e outra é detectarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
É deslocado falar-se aqui de “violação do princípio do duplo grau de jurisdição”, improcedendo nesta parte o recurso do arguido.

b) A violação dos princípios da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo” .

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artº 127º do C.P.P., ou seja, fora das excepções relativas a prova legal, que não interessam ao caso, assenta numa convicção que se quis livre, bem como nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se tudo aquilo que a imediação em primeira instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar no que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir.
Serve para dizer que o trabalho que coube à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em primeira instância, e da fundamentação feita da decisão por via deles, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado (cfr. por todos o Ac. relatado pelo Cons. Simas Santos, de 15/2/2005, Pº 4324/04, desta Secção).
Foi isso o que foi feito, e sem que se justifiquem reparos.
Quanto à pretensa violação do princípio “in dubio pro reo”, importava, para que ela pudesse ter lugar, que da decisão da Relação, e, antes dela, da da primeira instância, pudesse transparecer um estado de dúvida do julgador, e, não obstante, se tivesse optado pela condenação. Como não foi o caso, também aqui improcede o recurso do arguido.

c) A medida da pena e a suspensão da sua execução

O recorrente contesta a pena de prisão aplicada, na sua medida de cinco anos, por entender dever ser reduzida a três, um “quantum” compatível com a suspensão da sua execução.
Aquando da prolação do acórdão de 1ª instância (5/5/04), não se punha a questão da suspensão da execução de uma pena de prisão de cinco anos. Segundo a actual redacção do nº 1 do artº 50º do C.P. (D.L. 59/2007 de 4 de Setembro), tal já é possível. Começaremos por ver se a pena aplicada se mostra graduada em medida justa, e depois se deve ser suspensa na sua execução.
O colectivo de Bragança valorou positivamente a ausência de antecedentes criminais e a boa integração familiar e social da recorrente, considerando que procediam contra o mesmo o dolo directo e intenso, a elevada ilicitude, e o facto de ter negado em julgamento a imputação que lhe era feita, não mostrando qualquer arrependimento. A Relação nenhum reparo fez à medida da pena encontrada.
Contra o recorrente sublinharemos o grau elevado da ilicitude da conduta, tendo em conta uma importante desproporção etária entre o arguido, à data com cinquenta e oito anos, e a vítima, com doze, tendo em conta o desfloramento da mesma, já que era virgem, dada também a ocorrência de laços de família entre ambos. O recorrente não reconheceu a sua culpa e portanto nunca se mostrou arrependido.
A seu favor procede o facto de não ter antecedentes criminais, estar inserido familiarmente, ser socialmente bem considerado. Tem hoje sessenta e sete anos, decorreram quase nove anos depois da prática dos factos.
As necessidades de prevenção especial não se mostram, muito fortes, no caso. Daí que serão sobretudo propósitos de prevenção geral positiva que deverão ditar a pena a aplicar, dentro do limite consentido pela culpa. Numa moldura que vai de três anos de prisão a dez anos de prisão, foi aplicada a pena de cinco anos, bem abaixo da zona média dessa moldura (seis anos e seis meses). Tudo ponderado, nada temos a objectar a essa pena.
Vejamos agora a questão da suspensão da execução da mesma.
O artº 70º do C. P. refere que,

“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

O nº 1 do artº 50º do C. P.(redacção da Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro) estipula, a seu turno,

“ O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Segundo o nº 2 do preceito,

“O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada do regime de prova.”

Porque no preceito em questão se subiu o limiar da pena compatível com a suspensão, depois da redacção da Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro, deverá acolher-se esta nova redacção, já que mais favorável. Mais favorável, desde logo, porque no caso destes autos fica autorizada a suspensão, enquanto que, a ter em conta a redacção vigente à data dos factos praticados, a recorrente teria sempre de cumprir a pena de prisão aplicada. Decidido que a pena pode ser suspensa, e, em tal hipótese, terá que o ser por cinco anos, de acordo com o nº 5 do artº 50º do C.P.P., vejamos se no caso em apreço deve efectivamente ser suspensa.

O primeiro ponto a ponderar sobre a suspensão da pena aplicada tem a ver com as finalidades da punição e estas reportam-se à defesa dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, cabendo à culpa o papel de pressuposto e limite inultrapassável da medida da pena.

A defesa de bens jurídicos é um propósito geral que informa todo o sistema penal, não privativo das penas, pelo que se tem que ligar tal propósito, em matéria de fins das penas, à prevenção geral dita positiva. Importa pois saber, antes de mais nada, se nessa tarefa que compete ao Estado de gerir a indignação social, provocada junto de quem teve conhecimento do cometimento do crime, importa saber se a aludida suspensão se justifica no presente caso.

Depois, e já em matéria de prevenção especial, só se deverá optar pela suspensão da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido AA e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime. Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”. pag. 344).

No caso em apreciação, como já referimos, e tanto quanto os autos revelam, não se colocam preocupações de monta ao nível da reinserção social do arguido. Nada se pode apontar quanto ao seu comportamento anterior ao crime, ou posterior ao mesmo. Isto, obviamente, na medida em que continua com o registo criminal limpo, mais de oito anos volvidos sobre os factos destes autos, factos esses que, convém lembrar, integram um tipo de crime que pode revelar uma parafilia, a qual por sua vez pode manter-se ou não.
Assume especial relevo o tempo decorrido desde que o recorrente praticou os factos.
No entanto, mostra-se importante fazer sentir ao agora condenado os efeitos da condenação. O seu comportamento foi altamente censurável, e o recorrente não pode deixar de o interiorizar.
Tanto mais que, em termos de prevenção geral, a reacção penal aos factos em apreço poderá, a nosso ver, mostrar-se suficiente, optando-se pela suspensão da pena, mas desde que condicionada ao pagamento de uma quantia à ofendida, e à prestação de trabalho a favor da comunidade.
Só desse modo se evitará uma perda da confiança posta no sistema repressivo penal pela sociedade, designadamente pela população local.

Sabe-se que o artº 51º do C.P. autoriza, no seu nº 1, a subordinação da suspensão da execução da pena ao cumprimento de deveres impostos ao condenado, e destinados a reparar o mal do crime. A título de exemplo, menciona-se na al. a) desse nº 1º, o pagamento em certo prazo de indemnização devida ao lesado, no todo ou em parte.
De notar que se não está, neste domínio de deveres condicionantes da suspensão da pena, perante uma indemnização cível por perdas e danos, calculada e orientada pelos mesmos exactos propósitos desta. Está-se, pelo contrário, só perante uma “função adjuvante de realização das finalidades da punição”. Muito menos se estará perante a reedição da “tese do carácter penal da indemnização civil proveniente de um crime, que o artº 128º [hoje artº 129º do C.P.] quis postergar” (cfr. Figueiredo Dias in ob. cit. pag. 353).
Pois bem, a reparação do mal do crime passa também, no caso presente, (em que não há notícia de propositura de acção cível em separado, nem foi formulado nestes autos qualquer pedido cível), pela entrega de uma quantia monetária à ofendida.
A menor BB sofreu, em termos de causalidade adequada, importante traumatismo psicológico (dano) derivado da conduta criminosa da recorrente (facto voluntário, ilícito e doloso). Em virtude do mesmo esteve em tratamento até cerca de um ano antes da audiência de 17/3/2006 (fls.762).
Assim sendo, deverá o recorrente pagar a título de indemnização, à ofendida BB, a quantia de dez mil euros (10 000 €), no prazo de três (3) meses. Esse pagamento será já por conta da quantia que venha a ser arbitrada, em acção que vier a ser interposta, se o for, visando a condenação do recorrente em indemnização por perdas e danos, e tendo como causa de pedir o crime destes autos.

Por outro lado, o artº 52º prevê no seu nº 1 a imposição do “cumprimento pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade”. A título exemplificativo enumera a seguir o que possam ser tais regras de conduta, mencionando na al. c) desse nº 1 “Cumprir determinadas obrigações”. Ora, adequado ao caso nos parece ser a imposição da obrigação de prestação de trabalho a favor da comunidade, a qual não assume aqui, obviamente, a condição de pena, e sim a de modalidade que no caso deve revestir a suspensão da pena, trabalho que se deve considerar integrado nessa pena de substituição. Fica assim o recorrente obrigado a prestar trabalho a favor da comunidade num total de duzentas horas, em termos a estabelecer pela primeira instância, e em consonância com os serviços de reinserção social, sob a cominação de revogação da suspensão, de acordo com o disposto no nº 1 do artº 56º do C.P..

E – DECISÃO

Tudo visto e ponderado, se acorda neste Supremo Tribunal de Justiça e 5ª Secção, em:

Conceder parcial provimento ao recurso do arguido, mantendo a condenação na pena de cinco (5) anos de prisão que lhe foi aplicada, mas suspendendo-a na sua execução por igual período de tempo, ficando a suspensão subordinada ao pagamento à ofendida, BB, da quantia de dez mil euros (10 000 €), no prazo máximo de três meses, a título de reparação do mal do crime, e ainda subordinada à obrigarão de prestação de trabalho a favor da comunidade num total de duzentas horas, em termos a estabelecer pelo tribunal de primeira instância, tudo de acordo com os artº 50º, 51º nº 1 al. a) e 52º nº 1 al. c) do Código Penal.

Taxa de Justiça: 6 U.C.

Lisboa, 25 de Setembro de 2008


Souto Moura (relator) **
António Colaço
Soares Ramos (vencido conforme declaração anexa)
Santos Carvalho


Manteria a pena aplicada, ou reduzi-la-ia para 4 anos, não suspendendo, porém, em qualquer das hipóteses, a sua execução, apesar do tempo já decorrido e da provecta idade, hoje, do "sem ventura" (nada de arrependimento; ao contrário, apelo a versão factual fantasiosa, exploratória da honestidade sexual da sobrinha-neta, o que se me afigura reclamar uma encorpada representação, no caso, também, das necessidades de prevenção especial). Sendo que a simples eventualidade de realização de prognóstico favorável da vida futura do arguido, em liberdade, se debateria, sempre, no meu ponto de vista, com o sentimento de natural e viva reprovação do crime, por parte da generalidade da população (nacional, transmontana e local).
Levo em conta, ainda, que no crime em apreço o bem jurídico protegido (liberdade ou autodeterminação sexual da vítima menor), flagrado aqui, para mais, no domínio da protecção da virgindade (até sob razões de carácter social), é extraordinariamente sensível desde logo pelo trauma psico-somático necessariamente decorrente da agressão sexual, bem assim pelo intolerável aproveitamento, da parte do lascivo e egoísta agente, da natural diminuição de capacidade de resistência da vítima.
Acontece, ainda, que, no caso, mesmo considerando que a culpa, depois da revisão de 1995, passou a assumir um papel meramente limitador da pena (no sentido de que em nenhuma situação, poderá ultrapassar “... a medida da culpa ..."), não se me afigura razoável que uma qualquer sadia comunidade deixe de reprovar uma tão esquiva conduta, em termos de exigência reparatória mínima, defensiva do ordenamento jurídico e das próprias bases do ente societário, com uma pena de prisão efectiva, situada, no mínimo em torno de 1/3 do limite máximo sancionatório.
Soares Ramos