ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
I.
O Condomínio do prédio Lote … da Rua …, em Quarteira, representado pelo seu Administrador, intentou, na comarca de Loulé, contra AA e BB, acção na forma ordinária de processe e alegando que as duas arrecadações, sitas no terraço daquele prédio, constituído em propriedade horizontal cujo uso se encontra adstrito em exclusivo às fracções C a N, de acordo com o teor do concernente título constitutivo, têm sido ocupadas de forma abusiva pelos RR. (a do lado direito pela Ré e a do lado esquerdo pelo Réu), pede a sua condenação a desocupá-las e entregá-las para que possam ser usadas por todos os proprietários das fracções que a tal têm direito.
Na contestação, os RR excepcionaram a ilegitimidade do A. e impugnaram o pedido, afirmando que as referidas arrecadações constituem unidades independentes (ou fracções autónomas), as quais até foram construídas a expensas suas por ocasião da edificação do prédio (em 1975), e que sempre estiveram na sua posse e as usaram sem a oposição dos demais condóminos, pelo que invocam a sua aquisição por usucapião ou, se assim não se entender, por acessão industrial imobiliária e formulam pedido reconvencional que declare serem seu donos e legítimos possuidores.
No despacho saneador veio a ser julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade do A e estabelecidos os factos assentes e a base instrutória, foi realizado o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença em que se decidiu julgar procedente a acção e improcedente a reconvenção.
Inconformados com tal decisão, dela apelaram os RR., mas viram sua pretensão recusada pelo Tribunal da Relação de Évora e daí a presente revista cuja alegação concluem do seguinte modo:
a) Estão provados todos os factos de que depende a invocação da usucapião, como se aceita expressamente no douto acórdão recorrido.
b) A questão a resolver é, assim, meramente jurídica, e tem a ver com a possibilidade, ou não, de adquirir por usucapião partes comuns de um edifício constituído em propriedade horizontal.
c) Cabe distinguir entre as partes comuns imperativas, previstas no Art. 1421°, n.° 1 do Cód. Civil, e as que apenas o são por opção, como é o caso das arrecadações dos autos.
d) No caso destas últimas, nada impede que sejam adquiridas por usucapião, do mesmo modo que nada impede que sejam objecto de negócio jurídico pela unanimidade dos condóminos.
e) As arrecadações dos autos obedecem aos condicionalismos do Art.1415º do Cód. Civil e, por isso, podem ser transformadas em fracções autónomas, deixando de ser partes comuns.
f) Por outro lado, a posse que leva à usucapião é oponível à unanimidade dos condóminos, pelo que nenhuma objecção se retira da regra da unanimidade para a alteração do título, prevista no Art. 1419°, n.° 1 do Cód. Civil, para impedir a aquisição das arrecadações pelos Recorrentes, por via da prescrição.
g) O comportamento omissivo da unanimidade dos condóminos, ao longo de mais de trinta anos, que contribuiu para a usucapião, tem tanto valor como manifestação de vontade quanto teria uma expressa declaração sua prestada em negócio que atribuísse aos Recorrentes as arrecadações como coisa própria sua.
h) Independentemente da solução a dar à questão da possibilidade de aquisição das arrecadações por usucapião, é certo que a pretensão do condomínio Recorrente é abusiva.
i) Ela viola os princípios da boa fé, vai contra os bons costumes, e muito para além do que possa ter estado na base da atribuição do direito de propriedade das arrecadações ao condomínio.
j) Ao fim de mais de trinta anos, o condomínio criou uma situação que impede que exija agora a entrega das arrecadações, mesmo que se admita que tem direito a fazê-lo; se tem tal direito, não o pode exercer desta forma, pois isso é indecente.
As regras jurídicas violadas pelo douto acórdão recorrido são as que foram sendo invocadas ao longo do texto, e que agora se resumem:
a) art. 1287° do Cód. Civil, conjugado com os Arts. 217°, 1415°, 1419° e 1421°, n.° 1, na medida em que estes sejam interpretados no sentido de que impedem a aquisição por usucapião de partes comuns não imperativas de edifício em propriedade horizontal, e, bem assim, por se exigir unanimidade dos condóminos na alteração do respectivo título, pois não é esse, no entender dos Recorrentes, o sentido de tais normas.
b) O art. 334° do Cód. Civil, na medida em que deu cobertura a uma pretensão manifestamente abusiva, por violar a boa fé, os bons costumes e os limites económicos e sociais do direito invocado.
Foi mandada desentranhar a alegação oferecida pelo Recorrido Condomínio.
E, ora, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões da alegação do recurso que define o seu objecto e delimita o âmbito de intervenção do tribunal para o qual se recorre (cfr. artos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC), salvaguardando-se, porém, a apreciação das questões de conhecimento oficioso (cfr. artos 660º, nº 2, e 664º, ex vi do artº 713º, nº 2, do CPC). Acrescente-se, também que este Tribunal apenas está obrigado a resolver as questões que sejam submetidas à sua apreciação, e não a apreciar todos os argumentos produzidos nas aludidas alegação e conclusões do recurso, não lhe cabendo pronúncia sobre as questões cuja decisão fique prejudicada (artos 660º, nº 2, e 713º, nº 2, do CPC).
Do teor das conclusões dos Recorrentes resulta que a matéria a decidir se resume, no essencial, à usucapião e ao abuso direito.
II:
Antes de mais vejamos os factos que a Relação de Évora deu como provados:
1º O condomínio do prédio lote A, sito na Rua ..., em Quarteira, representa os proprietários de todas as fracções autónomas constitutivas do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o nº …, a fls. 124 verso, do livro …. (al. A) dos Factos Assentes)
2º A constituição do referido prédio urbano em regime de propriedade horizontal, foi outorgada em escritura pública, lavrada no Cartório Notarial de Loulé, em 21 de Abril de 1975, tendo-se nela consignado, além do mais, que o prédio é constituído pelas fracções autónomas designadas pelas letras “A” a “N” e que: “No terraço de cobertura – parte comum do edifício – existem duas arrecadações, que se destinam a uso comum, em exclusivo, porém, das fracções “C” a “N” (al. B) dos Factos Assentes)
3º A ré AA tem usado a arrecadação sita do lado direito do terraço apenas em seu uso exclusivo. (al. C) dos Factos Assentes)
4º O réu BB tem usado a arrecadação sita no lado esquerdo do terraço em seu uso exclusivo. (al. D) dos Factos Assentes)
5º As ocupações das arrecadações referidas nos factos 3º e 4º são contestadas pelos restantes condóminos, há cerca de 12 anos. (Resposta aos Factos 1º e 5º da Base instrutória)
6º Os Réus negam-se a deixar de utilizar em exclusivo aquelas arrecadações. (Resposta ao Facto 2º da Base instrutória)
7º A Ré AA usa a arrecadação do lado direito, para férias ou arrendamento, a qual é composta por um apartamento. (Resposta ao Facto 3º da Base instrutória)
8º Tal atitude da Ré gera discussões entre esta e os condóminos do edifício e
9º A arrecadação do lado direito, ocupada pela Ré AA, é composta por duas divisões e casa de banho, com a área de 15 m2, sita no 4º andar direito do edifício e tem um valor de, pelo menos, 15.000 €. (Resposta ao Facto 20º da Base instrutória)
10º E dispõe de ligações de águas e esgotos. (Resposta ao Facto 4º da Base instrutória)
11º O Réu BB tem mantido sempre trancada a porta da arrecadação do lado esquerdo do terraço. (Resposta ao Facto 6º da Base instrutória)
12º As arrecadações referidas nos Factos 3º e 4º, considerando-se apenas a realidade física, constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, sendo o acesso às mesmas, efectuado através do terraço comum do edifício. (Resposta ao Facto 9º da Base instrutória)
13º Os Réus AA e BB construíram as arrecadações no ano de 1975 e até ao presente momento nelas têm habitado, guardados os seus haveres, comido, dormido, recebido visitas dos amigos e usufruído de todas as suas utilidades. (Resposta ao Facto 10º da Base instrutória)
14º A utilização das referidas arrecadações pelos Réus foi feita à vista de toda a gente, de forma continuada e sem oposição de quem quer que seja, até há cerca de 12 anos atrás, conscientes de exercerem um direito próprio e de que não lesam direitos ou interesses de outras pessoas. (Resposta ao Facto 11º da Base instrutória)
15º Em 1975, à data da construção das arrecadações, o prédio encontrava-se em fase de acabamento (Resposta ao Facto 12º da Base instrutória)
16º Mediante acordo celebrado com o empreiteiro, os Réus construíram as arrecadações em causa no terraço comum do edifício. (Resposta aos Factos 13º e 14º da Base instrutória)
17º Logo que as respectivas obras se completaram, em 1975, passaram os Réus a utilizar as arrecadações, sendo tal facto do conhecimento de todos os proprietários do edifício, contratando, inclusive, o fornecimento de energia eléctrica e água. (Resposta ao Facto 16º da Base instrutória)
18º A arrecadação do lado esquerdo, ocupada pelo R. BB, tem a área de 12 m2, sita no 4º andar esquerdo do edifício, e tem um valor de, pelo menos, 10.000 €. (Resposta ao Facto 21º da Base instrutória)
19º Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé, sob o nº …, antes sob o nº …, a fls. 124 verso, do livro …, o prédio urbano constituído sob o regime da propriedade horizontal, sito na Rua projectada à Rua …, Bloco …, freguesia de Quarteira, composto por edifício de cave, rés-do-chão, 1 a 3º andar, e constituído pelas fracções autónomas designadas pelas letras A, B, C, H, K, N, D, E, G, J, M, F, I e L, existindo no terraço da cobertura 2 arrecadações destinadas ao uso das fracções C a N. (certidão de fls. 478 e seguintes dos autos)
20º À data da escritura referida no Facto 2º o direito de propriedade sobre o prédio aí mencionado encontrava-se inscrito, em comum, a favor de CC e DD. (certidão de fls. 478 e seguintes dos autos)»
B.
1. Indo ao encontro do que foi perspectivado no acórdão recorrido, o Recorrente, dando por verificados os requisitos da usucapião, refere que a questão a discutir é puramente jurídica e consiste, essencialmente, em saber se as partes comuns não imperativas, na propriedade horizontal, podem ser objecto de usucapião como sendo fracções destinadas à habitação.
Sabe-se que a propriedade horizontal veio contrariar o princípio superfícies solo cedit, ao permitir a repartição do domínio por vários proprietários, nas edificações incorporadas no solo e compostas por fracções. É o que se estabelece no artº1414º do CCivil nos seguintes termos: as fracções de que um edifício
se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem
pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade
horizontal.
E a sua conformação é a que vem assinalada no artº1420º do mesmo diploma:
1-cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e
comproprietário das partes comuns do edifício. 2. O conjunto dos dois
direitos é incidível; nenhum deles pode ser alienado separadamente,
nem é lícito renunciar à parte comum como meio do condómino se
desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição.
Trata-se de uma figura jurídica nova, de um direito real novo que, embora moldado sobre os direitos reais à custa dos quais se formou, é mais do que a sua justaposição, reunindo uma teia de relações num complexo incindível de propriedade singular que recai sobre uma parte determinada de um prédio urbano e de compropriedade sobre outras partes dele, essenciais tanto à sua estrutura como à sua utilização funcional, quer dizer, ao exercício do domínio pleno sobre ele (cfr Oliveira Ascensão, A Tipicidade dos Direitos Reais, 1965, 195, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2009, 335, Manuel H. Mesquita, A Propriedade horizontal…., Separata da RDES, 53.
Como escreveu este último autor: “o que há de específico no direito de propriedade sobre as fracções autónomas é apenas o facto de sobre tal direito impenderem restrições que não derivam do regime normal do domínio mas que a lei estabelece ou permite em virtude de o objecto do direito de cada condómino se integrar num edifício de estrutura unitária, onde existem outras fracções pertencentes a proprietários diversos” (idem, 71).
Restrições de carácter geral e ainda provenientes da lei que rege o instituto ou do título constitutivo do condomínio.
É neste último que por norma se modela o estatuto da propriedade horizontal, sendo o repositório da manifestação de vontade dos condóminos cujas determinações ai adoptadas, relativas às fracções ou às partes comuns, gozam de eficácia real, ou seja, interferem com a fixação do conteúdo dos direitos reais envolvidos.
No caso em apreço, como resulta da factualidade atrás descrita, as arrecadações reclamadas como fracções pelos Recorrentes, existentes “no terraço de cobertura – parte comum do edifício…” são destinadas, no título constitutivo da propriedade horizontal, a uso comum se bem que, em exclusivo, das fracções “C” a “N”.
Erigidas sobre o terraço de cobertura do edifício, tais arrecadações, não podem considerar-se coisas obrigatoriamente comuns, nos termos da al.b) do nº1 do artº1421º do CC porquanto, funcionalmente, não estão afectadas a todos os condóminos, não compõem ou integram a estrutura do edifício nem são indispensáveis à utilização normal de cada fracção.
Não são fracções, no entanto, pois não foram especificadas como tal naquele mesmo título (artº1418º do CC) e, em tal contexto, não gozando, por outro lado, das características das coisas necessariamente comuns e muito embora sejam destinadas apenas ao uso exclusivo de algumas das fracções integrantes, nem por isso deixam de ser partes comuns, conforme advém do disposto no citado artº1421º, 2, al.e) e 1, al b) in fine do CC.
Como já se referiu, é da natureza da propriedade horizontal a convivência no edifício dela objecto, de partes que são pertença exclusiva de cada condómino e de outras que a todos são comuns e que só o são por constarem como tal, do respectivo título constitutivo, salvo quanto às coisas imperativamente comuns que assim são definidas pela lei.
Com as restrições derivadas não do domínio mas do figurino desenhado para este direito novo de propriedade horizontal, as partes que são objecto de direito de propriedade, exclusivo, por banda dos condóminos, são as fracções autónomas, e apenas elas, tal como são especificadas, imperativamente, no título constitutivo (artº1420º,1 e 1418º do citado diploma); o restante edifício porque afectado ao uso comum dos diversos condóminos é objecto da compropriedade de todos, excepto se o título dispuser o contrário, isto é, se atribuir o uso exclusivo de partes comuns a um desses condóminos (mencionado artº1421º,1 ou 2 e al.e) deste último número).
Deste quadro estrutural derivam inferências inevitáveis: quanto à situação jurídica do imóvel que precedeu a propriedade horizontal deixa ela de ser invocável face à transformação operada nos direitos constituintes por este novo instituto e a natureza real de seu título constitutivo; após a constituição da propriedade horizontal, só as fracções individualizadas no título constitutivo é que podem ser reconhecidas como tal e só essas podem ser objecto do direito de propriedade exclusiva dos condóminos.
Apesar destas restrições sobre aqueles direitos constituintes, não se poderá aceitar que os RR adquiriram a propriedade das arrecadações a que os autos se referem através da usucapião?
A Relação nega essa possibilidade, apesar de dar por verificados os requisitos de tal instituto.
Vejamos:
Dispõe o art. 1287º do CC que "a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação".
Afirma este preceito que o possuidor tem a faculdade de adquirir o direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, o que "significa que, havendo na posse uma actuação correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251º), é o direito possuído que pode ser adquirido por usucapião, e não outro – cfr Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. III, 2ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pag. 66.
No caso sub judice, é, exclusivamente, a averiguação da existência ou não dos pressupostos da aquisição, através da usucapião, de um direito de propriedade horizontal, sendo, portanto, a posse em termos desse direito, exercida durante certo período, que difere conforme as respectivas características (arts. 1294º a 1297º do citado Código) que pode conduzir à dita aquisição originária.
Ora, "posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real" (art. 1251º do CCivil).
Como é sabido, e segundo a doutrina tradicional esta disposição, adequadamente conjugada com o art. 1253º, al. a), consagram a concepção subjectiva inicialmente propugnada por Savigny, segundo a qual se configura a existência de uma situação possessória quando simultaneamente confluem dois elementos essenciais: o corpus e o animus. Sem corpus não haverá posse porquanto falta a actuação de facto correspondente ao exercício do direito e sem animus não haverá posse, porque falta a intenção da titularidade do direito.
A pretensão dos Recorrentes de se verem reconhecidos como donos e legítimos possuidores das arrecadações em apreço com fundamento na usucapião supõe que a “correspondente posse há-de traduzir comportamento que seja equivalente ao que assumiria um condómino, em relação a certa unidade de determinado prédio urbano”, valendo também “para a usucapião a exigência dos requisitos legalmente impostos para a constituição da propriedade horizontal” – cfr Carvalho Fernandes, ob cit, 375/6.
Independentemente de saber-se se os actos materiais de posse que a prova denunciou se enquadram ou denunciam aquele comportamento equivalente ao do condómino, certo é que tais actos, reiterados, publicitados, traduzindo, ao longo do tempo, actos materiais de gozo e fruição das referenciadas arrecadações, como sendo a expressão de um direito próprio, configuram, sem sombra de dúvida, uma situação possessória que, todavia, neste domínio da propriedade horizontal, não se constitui como fonte aquisitiva de direitos (usucapião), se não se situar nos estritos limites em que a propriedade horizontal se enquadra, nunca a extravasando (art. 1263.º-a) do CC – cfr no site da DGSI, o acórdão deste Tribunal e secção, de 13.12.2007, proferido no Pº07A3023 (Conselheiro Mário Cruz) -, sob pena de implosão de o seu regime legal.
Na verdade, como se já viu acima, as arrecadações reclamadas como propriedade exclusiva pelos Recorrentes, em conformidade com o título constitutivo da propriedade horizontal, integram as partes comuns do edifício, se bem que o seu uso exclusivo pertença às fracções C a N.
A actuação que sobre elas recaiu bem como a pretensão dos Reconvintes de sobre elas reclamarem a sua propriedade exclusiva deixam claro o seu propósito de alterar aquele título constitutivo que, desse modo, é adulterado quanto à composição das partes comuns e ao numerus clausus das respectivas fracções autónomas.
Sucede que, como já se referenciou acima, na propriedade horizontal o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre fracções autónomas, tal como estão individualizadas no título constitutivo (arts. 1414.º, 1415.º, 1418.º e 1420.º do CC.). E assim será até que tal título seja objecto de modificação (artº1419º,1 do CC).
Ora a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal apenas pode ser efectuada de acordo com o preceituado naquele normativo e nunca através de decisão judicial - cfr in Sumários de 2010, Acórdão deste Tribunal e secção de 29.06.2010, proferido no Agravo nº46/10 (Conselheiro Sebastião Povoas).
Em consequência, e tal como se concluiu no citado Acórdão deste Tribunal de 13.12.2007, não pode operar aqui a usucapião para adquirir a propriedade sobre as mencionadas arrecadações “na medida em que esse objectivo é legalmente impossível sem a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, área em que o Tribunal não pode actuar porque se exige acordo prévio de todos os condóminos”.
2. Mas não só por este acervo de razões claudica a invocada usucapião pois que a falta de verificação de requisitos que autorizassem a pretensa constituição e reconhecimento das fracções autónomas também a inviabilizam.
O Código Civil, no seu artº1415º, dispõe que “só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública”.
Está hoje assente que a estes requisitos civis, digamos assim, acrescem requisitos administrativos, impostos pelo Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, “decorrentes de exigências múltiplas – segurança, salubridade, arquitectónica, estética, urbanística – que têm de ser respeitadas por condicionarem a construção de edifícios e sua utilização” (Carvalho Fernandes, ob cit, 372).
Na verdade, além da certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em propriedade horizontal, estão sujeitas a autorização administrativa a utilização dos edifícios e suas fracções bem como as alterações da utilização dos mesmos (artº4º,4 do RJUE), podendo ela, no caso de constituída a propriedade horizontal, ter por objecto o edifício na sua totalidade ou cada uma das sua fracções autónomas (artº66º,1 desse diploma); destina-se essa autorização “a verificar a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado e com as condições de licenciamento ou da comunicação prévia” e quando não haja lugar a realização de obras “a verificar a conformidade do uso previsto com as normas legais e regulamentares aplicáveis e a idoneidade do edifício ou sua fracção autónoma para o fim pretendido” (artº62º,1 e 2 do mesmo diploma).
A falta destes, como dos primeiros dos requisitos apontados, importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, como parece resultar dos nº1 e 2 do artº1416º do CC. Como, aliás, já resultava da doutrina do assento do STJ de 10.5.89, segundo o qual nos termos do art.º 294º do Código Civil o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal.
Recorde-se que na origem do assento esteve a interpretação a dar à norma do art.º 1416º, nº 1 Código, ou seja, se na expressão "falta de requisitos legalmente exigidos" se incluíam apenas os requisitos civis do art.º 1415º citado ou, além deles, "os concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas".
A opção do assento que o legislador de 1994 (DL 267/94 de 25.10) veio confirmar com a alteração dos nº2 e 3 do artº1418º do CC deixou claro que subjacente à disciplina imposta por aqueles diplomas de natureza administrativa, está em causa o cumprimento de normas de direito público, de interesse e ordem pública (cfr R. Pardal e Dias da Fonseca, in Da Propriedade Horizontal, 101/103, 3ª ed) que fazem do cumprimento de tais requisitos uma condição de procedência da acção cuja falta de demonstração leva à rejeição do pedido (cfr neste sentido os Acórdãos STJ de 5.06.2008, Pº08A1432 (Conselheiro Alves Velho), de 29.11.2006, Pº06A3355 (Conselheiro Nuno Cameira) e de 23.09.2008, Pº08B214 (Conselheira Teresa Beleza).
Remontando ao caso concreto, constata-se que a este propósito os Reconvintes nada disseram ou esclareceram. Ora, se há situação que, de todo, não pode dispensar a aludida intervenção administrativa, será esta em que os Reconvintes almejam converter em fracções autónomas, arrecadações com a área de, respectivamente, 12 e 15 metros quadrados (!) e cuja idoneidade para o fim a que se destinam, por isso mesmo, não poderá deixar de ser questionada.
3. Resta apreciar o abuso de direito que os Recorrentes imputam ao condomínio pois o” comportamento omissivo da unanimidade dos condóminos, ao longo de mais de trinta anos, que contribuiu para a usucapião, tem tanto valor como manifestação de vontade quanto teria uma expressa declaração sua prestada em negócio que atribuísse os Recorrentes as arrecadações como coisa própria sua…e “ao fim de mais de trinta anos, o condomínio criou uma situação que impede que exija agora a entrega das arrecadações, mesmo que se admita que tem direito a fazê-lo…”
Preceitua o artº334º do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Não basta, no entanto que o titular do direito exceda os limites referidos pois é necessário que esse excesso seja manifesto e constitua uma “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”(Vaz Serra, BMJ 85,253).
A modalidade de abuso de direito que parece servir de fundamento aos Recorrentes é a supressio, tida na doutrina como subtipo do “venire” e que se analisa no comportamento contraditório do titular do direito que, após prolongada inacção, o vem exercer. Inacção que, portanto, em determinadas circunstâncias, concorreria para a criação de razoável e legítima expectativa de que aquele titular não venha a exercer seu direito, a ele renunciando, afinal. A situação de confiança criada no beneficiário teria de ser justificada e razoável ou como escreve o Professor Menezes Cordeiro, “teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as proposições seguintes: não exercício prolongado, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não exercente” (Tratado, I, parte Geral, tomo IV, 313 e ss).
Temos que ver que no caso em presença o decurso do tempo, só por si e sem mais, nunca seria adequado a criar a convicção a quem quer que seja de que o titular do direito jamais o exerceria. Na verdade, não é só o procedimento adoptado que é imprescritível, também os Recorrentes nada imputaram ao A que lhes desse garantias nesse sentido. Pelo contrário, e conforme a prova produzida, há mais de doze anos que os RR têm a oposição dos representados do A quanto a sua utilização, em regime de exclusividade, das arrecadações objecto de dissídio.
Depois, sabe-se que a supressio tem por desígnio mais a protecção da confiança do beneficiário do que a penalização da inércia do titular do direito e indagando-se dos pressupostos de tal confiança, não se vê como a justificar através de elementos objectivos que a tornem plausível ou da aposta que nela tenham feito os Recorrentes que, mais uma vez, a este propósito nada adiantaram (cabe-lhes o ónus da prova em sede de excepção peremptória – artº342º,2 do CC, 493º,3 e 516º do CPC).
Por fim, refira-se que, dada a abstracção da entidade que é o A Condomínio, sempre seria difícil conceber que lhe possa ser atribuída a responsabilidade pela situação criada ou seja que possa responder pela imputação da confiança a tutelar.
Em suma, não se verifica qualquer excesso manifesto de limites ao exercício do direito do A e, deste modo, não comprovado o abuso de direito, improcedem, também, neste capítulo as conclusões dos Recorrentes.
III.
Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Lisboa, 20 de Outubro de 2011
Martins de Sousa (Relator)
Gabriel Catarino
Sebastião Póvoas