Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1189/15.0T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: ABUSO DO DIREITO
TU QUOQUE
PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
DESPESAS DE CONSERVAÇÃO DAS PARTES COMUNS
CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
CONDENAÇÃO EM OBJETO DIVERSO DO PEDIDO
OBRAS
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1997 (reimpressão), p. 719-860;
- Gunther Teubner, anotação ao § 242, Rudolf Wasserman (coord.), (Alternativ-)Kommentar zum Bürgerliches Gesetzbuch, vol. II — Allgemeines Schuldrecht, Luchterhand, Neuwied, 1980, p. 32-91 (56);
- Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Livraria Almedina, Coimbra, 1989, p. 478-508;
- Manuel Carneiro da Frada, A responsabilidade pela confiança nos 35 anos do Código Civil. Balanço e perspectivas, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III – Direito das obrigações, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 285 a 307, 330 a 343;
- Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, p. 345 ss.;
- Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil, Boletim da Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra] – Volume comemorativo do 75.º tomo, Coimbra, 2003, p. 269-322.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 1 E 663.º, N.º 2.
Sumário :
I - O alcance do princípio do abuso do direito excede o conjunto dos grupos ou tipos de casos considerados na doutrina e na jurisprudência – como a exceptio doli, o venire contra factum proprium, o tu quoque ou o desequilíbrio no exercício jurídico – e, por consequência, não é absolutamente necessário coordenar a situação sub judice a algum dos tipos enunciados.

II - O conteúdo do princípio da proibição do tu quoque é o de que quem actua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma actuação ilícita da contraparte.

III - O autor, ao actuar ilicitamente, designadamente deixando de pagar as quotas ao condomínio, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma actuação ilícita do condomínio, concretizada na não realização de obras para as quais as quotas, que o autor deixou de pagar, seriam necessárias.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

          

 1. AA propôs a presente acção em processo comum de declaração contra Condomínio BB, pedindo a condenação deste:

a) A pagar-lhe a quantia de €20.011,38, decorrente dos danos causados no imóvel de que o autor é proprietário;

b) Ou, em alternativa, ser o réu condenado na eliminação de todos os danos descritos com as melhores técnicas de construção, no interior e exterior; 

c) Ser o réu, igualmente, condenado a efetuar o pagamento de €14.080,00, decorrente da realização de obras de reparação de danos causados.

d) Ser o réu condenado a pagar ao autor uma indemnização no valor de €5.000,00 pelos danos não patrimoniais causados;

e) Ser o réu condenado a pagar ao autor a quantia de €15.300,00 a título de lucros cessantes (rendas que deixou de auferir);

f) Ser o réu condenado no pagamento da quantia de €850,00/mês, a contar da data da citação dos presentes autos até à reparação efetiva e integral dos danos ou até ao integral e efetivo pagamento da indemnização devida pela reparação dos citados danos.

g) Todos os montantes acrescidos dos devidos juros de mora até efetivo e integral pagamento.

           O réu contestou, impugnando a matéria alegada pelo autor, e invocando a actuação deste em abuso de direito.

            2. Antes da audiência prévia, veio o Réu apresentar articulado superveniente.

            Realizada audiência prévia, foi admitido liminarmente o articulado superveniente apresentado pelo Réu, proferido despacho saneador, e fixados o objeto do litígio e os temas da prova.

            3. Procedeu-se a julgamento e, a final, foi proferida sentença, na qual a acção foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, o Réu condenado a pagar ao Autor a quantia de €20.272,00, acrescida de juros de mora, desde a data da citação até integral pagamento.

           4. O Réu recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, formulando as seguintes conclusões:

1. A sentença de que agora se recorre julgou a ação interposta pelo apelado contra a apelante parcialmente procedente e, consequentemente condenou o réu, aqui apelante, a pagar ao autor a quantia de €20.272,00, acrescida de juros de mora, desde a data da citação até integral pagamento.

2. Acontece que, com o devido respeito, a decisão recorrida não deu como provado um facto que o deveria ter sido, e que se mostra, com o devido respeito, absolutamente determinantes para a boa decisão da causa.

3. Nos termos do disposto no artigo 5º, nº 2, a) e b), do C.P.C., além dos factos articulados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre estes últimos as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar.

4. Ora, na contestação apresentada, mormente no artigo 24º deste articulado, o aqui apelante alega a existência de graves problemas estruturais do prédio, consequência da construção do mesmo.

5. Sendo que da inquirição das testemunhas CC, DD, EE e FF resulta claramente que os problemas de que padece a fração propriedade do autor são comuns à generalidade das frações do edifício.

6. Estes testemunhos são prestados por proprietários de frações do edifício, ou seja, vizinhos do autor que são confrontados, como todos os proprietários na generalidade, com vários problemas no interior das suas frações, que, por sua vez, derivam dos problemas estruturais de que padece o prédio.

7. Assim, não podia o tribunal a quo deixar de ter considerado este facto no proferimento da decisão, pelo que deve ser aditado aos factos provados o seguinte: «A generalidade das fracções autónomas que constituem o prédio padecem de problemas semelhantes aos verificados na fração do autor, que derivam dos graves problemas estruturais já herdados pela construção do mesmo».

8. Nos termos do vertido no artigo 5º, nº 3, do C.P.C., o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

9. Ora, verte o artigo 334º do C.C. que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

10. Assim, se conjugarmos o facto que o tribunal a quo não deu como provado e que não poderia ter deixado de ter em conta para o proferimento da decisão com os pontos 64 e 65 dos factos provados, temos que:

— A generalidade das fracções autónomas que constituem o prédio padecem de problemas semelhantes aos verificados na fração do autor, que derivam dos graves problemas estruturais já herdados pela construção do mesmo;

— As obras, que são necessárias, ainda não foram realizadas, por falta de deliberação da assembleia nesse sentido e falta de liquidez financeira do edifício, motivada pelo não pagamento das quotas de condomínio de alguns condóminos;

— O autor contribuiu para esta falta de liquidez financeira, uma vez que é, a esta data, devedor de quantia superior a €4.000,00, já reclamados em instância executiva, sendo que tais dívidas provêm já do ano de 2013.

11. Simplificando, o autor vem reclamar o ressarcimento de danos que são comuns à generalidade das frações, sendo que as necessárias obras não se realizaram porque não existe dinheiro no condomínio que permita o pagamento das mesmas, sendo que o autor é devedor de quotas ao condomínio, contribuindo em larga medida para tal impossibilidade.

12. Ora, não podem pois restar dúvidas que o exercício do direito pelo autor em vir reclamar o ressarcimento dos danos na sua fração, quando ele próprio impede, com uma conduta livre, voluntária e consciente, que a causa de tais danos possa ser extinta (com a realização das necessárias obras) excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes.

13. Fica assim absolutamente claro que o autor não atuou com a diligência, zelo e lealdade necessárias para que o ora apelante pudesse realizar as obras necessárias à resolução dos problemas de que padece a fração do autor, como a generalidade das frações do prédio.

14. Mais, não foi honesto nem consciencioso, uma vez que tinha a clara consciência que, com o reiterado incumprimento da obrigação de pagamento de quotas, impedia a possibilidade de realização das obras necessárias por parte do aqui apelante.

15. Não foi correcto nem atuou com probidade, pois, ao atuar como atuou, teve como único escopo prejudicar o aqui apelante, impossibilitando-o de conseguir obter os meios necessários à necessária concretização das obras.

16. O ora apelado está a ser beneficiado relativamente a todos os outros condóminos que, tal como ele, têm problemas no interior das suas frações, tendo contribuído em larga escala para a impossibilidade de resolução dos problemas que afectam a generalidade dos condóminos.

17. Não restam pois dúvidas que o exercício do direito por parte do apelado, tendo em conta toda a sua anterior conduta, excede manifestamente os limites da boa-fé e dos bons costumes, pois este excesso é claro, patente e indiscutível, não relevando se o ora apelado teve ou não consciência que excedeu tais limites.

18. Não estando o juíz “agarrado” às alegações das partes no que à matéria de direito concerne, o tribunal a quo deveria ter declarado o abuso de direito pelo seu exercício exceder manifestamente os limites da boa-fé e dos bons costumes, desde logo, porque foram alegados todos os pressupostos do mesmo.

19. Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 334º do C.C.

20. Na sua petição inicial, e no que concerne ao pedido que foi procedente, vem o ora apelado pedir a condenação do aqui apelante a pagar-lhe a quantia de vinte mil duzentos e setenta e dois euros, decorrente dos danos causados no imóvel de que é proprietário.

21. Já a sentença proferida condena efetivamente o aqui apelante ao pagamento da referida quantia de vinte mil duzentos e setenta e dois euros, acrescentando, na motivação da decisão que «Contrariamente ao alegado e peticionado pelo autor, de que sofreu danos na sua fração (ainda não reparados) no montante de €20.727,00; e que já reparou danos existentes, pagando o montante de €14.080,00; do julgamento, temos que se provou que as obras necessárias para consertar a fonte de onde provém as infiltrações/inundações e reparar os danos já verificados no interior da fração do autor (incluindo as que o autor já realizou) estão orçamentadas pelo valor de €20.272,00» - cf. primeiro parágrafo da antepenúltima página da sentença.

22. Atentando no ponto 15 dos factos provados, chegamos à conclusão que «a fonte de onde provém as infiltrações/inundações» é nada mais nada menos que o telhado, a fachada e a varanda do prédio, todas elas zonas comuns, ou seja, que não pertencem à fração do aqui apelado.

23. Nos termos do disposto no artigo 609º do C.P.C., «A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir».

24. A nossa lei processual civil postula, no artigo 260º do C.P.C., o princípio da estabilidade da instância, segundo o qual, citado o réu, a instância se deve manter a mesma quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, ressalvadas as possibilidades de modificação consignadas na lei.

25. A questão aqui em causa está em saber se a condenação do ora apelante no pagamento de valores destinados ao pagamento das obras necessárias nas partes comuns do edifício – como é o caso – consubstancia uma condenação para além do objecto – o que estamos em crer que sim.

26. O autor tem, obrigatoriamente, de formular e definir a sua pretensão, sendo este um direito que lhe assiste e ao mesmo tempo um ónus que se lhe impõe e cuja insatisfação – total ou parcial – contra si reverte; o pedido formulado pelo autor corresponde à enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar.

27. A questão que aqui importa tem, pois, uma natureza essencialmente adjetiva, estando intimamente ligada com o princípio do dispositivo e, mais concretamente, com uma das suas principais manifestações: o princípio do pedido.

28. Ora, o autor, quando iniciou a presente lide pretendeu, com o pedido formulado, a condenação do aqui apelante a pagar-lhe os danos causados no imóvel de que é proprietário, não pedindo a condenação no pagamento do valor de quaisquer obras que tenha realizado nas partes comuns, pelo que não poderá deixar de se considerar que a sentença condenou o aqui apelante em objeto diverso do que foi pedido, quando a condenou no pagamento de valores despendidos com obras realizadas pelo autor nas partes comuns.

29. Tal determina a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alíneas d) e e), do C.P.C., nulidade essa que é aqui arguida, para todos os efeitos legais.

30. A sentença proferida condena efetivamente o aqui apelante ao pagamento da referida quantia de vinte mil duzentos e setenta e dois euros, acrescentando, na motivação da decisão que «Contrariamente ao alegado e peticionado pelo autor, de que sofreu danos na sua fração (ainda não reparados) no montante de €20.727,00; e que já reparou danos existentes, pagando o montante de €14.080,00; do julgamento, temos que se provou que as obras necessárias para consertar a fonte de onde provém as infiltrações/inundações e reparar os danos já verificados no interior da fração do autor (incluindo as que o autor já realizou) estão orçamentadas pelo valor de €20.272,00» - cf. primeiro parágrafo da antepenúltima página da sentença.

31. Relembrando que, se atentarmos no ponto 15 dos factos provados, chegamos à conclusão que «a fonte de onde provém as infiltrações/inundações» é nada mais nada menos que o telhado, a fachada e a varanda do prédio, todas elas zonas comuns, ou seja, que não pertencem à fração do aqui apelado.

32. Acontece que, em assembleia de condóminos realizada no dia 12 de outubro de 2017, ou seja, posteriormente à audiência de julgamento realizada no tribunal ad hoc, foi deliberada a realização de obras de reabilitação parcial na cobertura e terraços do edifício, sendo que conforme resulta do orçamento anexo à respetiva ata, uma boa parte desses trabalhos diz respeito aos dois terraços da fração do aqui apelado, que se situa no 2.º andar direito (cf. fls. 3, 4 e 5 do doc. nº 1, cuja junção se requer, por a mesma não ter sido possível na audiência de primeira instância).

33. A realização de tais trabalhos, que já se iniciou, terá um custo de €9.532,49 (nove mil quinhentos e trinta e dois euros e quarenta e nove cêntimos), tendo sido aprovada uma quota extraordinária, imputada a todas as frações em função da respetiva permilagem, paga em doze prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira no dia 08 de novembro de 2017 e as restantes no mesmo dia dos meses imediatamente subsequentes (doc. n.º 1).

34. O que equivale a dizer que já se venceram três prestações que, diga-se, foram pagas pela generalidade dos condóminos.

35. Tendo em conta que uma parte da quantia em que o aqui apelante foi condenado se destina a consertar o telhado, a fachada e a varanda do prédio – «a fonte de onde provêm as infiltrações/inundações» - dúvidas não restarão que, mantendo-se a decisão de que se recorre, o aqui apelante pagará duas vezes a quantia referente aos trabalhos a executar nas zonas comuns adjacentes à fração do ora apelado.

36. O que equivale a dizer que uma parte da condenação de que o ora apelante foi alvo se encontra já voluntariamente satisfeita (sendo que não o foi antes por inexistência de meios para tal).

37. Recebendo o aqui apelado uma quantia para executar obras que o apelante já mandou executar – e estão a ser executadas.

38. O que nos leva a concluir pelo enriquecimento sem causa do aqui apelado, uma vez que necessariamente embolsará tal montante, sem necessitar de realizar as obras a que o mesmo montante se destina.

39. Se a sentença proferida se mantiver, o aqui apelante ver-se-á obrigada a pagar tal quantia ao autor, sem qualquer contrapartida.

40. Enriquecendo o património do apelado à custa do correlativo empobrecimento do aqui apelante, sem qualquer causa justificativa, uma vez que a mesma foi – e está a ser – satisfeita pelo apelante.

41. Acresce que a sentença proferida pelo tribunal a quo não quantifica os valores que se destinam às obras necessárias no interior da fração do apelado e os que devem ser aplicados nas obras necessárias nas partes comuns, ou seja, as obras que o apelante mandou realizar, e estão a ser realizadas.

42. Sendo, pois, impossível, quantificar os valores a que o apelado terá eventualmente direito (se os primeiros fundamentos do presente recurso forem improcedentes).

43. Nessa impossibilidade, não restará alternativa que não a repetição do julgamento, de forma a evitar-se o ilícito enriquecimento sem causa do apelado.

44. A manter-se a decisão recorrida, tal incorrerá na violação do disposto no artigo 473º do C.C.

            O Autor não contra-alegou. 

            3. O Tribunal da Relação do Porto julgou procedente a apelação e, em consequência, revogou a sentença recorrida, absolvendo o Réu Condomínio BB do pedido.

            4. O Autor interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões:

i) A decisão proferida em l.a instância julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou o réu a pagar ao autor, aqui recorrente, a quantia de € 20.272,00 (vinte mil, duzentos e setenta e dois euros), acrescida de juros de mora, devidos desde a data da citação até integral pagamento.

ii) Para a fixação dos factos provados indicados supra, o Tribunal atendeu, para além do acordo das partes nos articulados, à conjugação de toda a prova produzida em julgamento, nomeadamente o depoimento de parte do aqui recorrente, prova testemunhal, documental e pericial.

iii) Ora, dos documentos juntos aos autos relevamos o relatório pericial, junto com a referência n.° 370227194, com data de 30/06/2016, e o documento n.° 66 junto pelo recorrente no libelo inicial.

iv) O relatório pericial confirmou a origem dos danos existentes na fracção do recorrente e o documento n.° 66 junto com o libelo inicial, e não impugnado pela recorrida, traduz o orçamento datado de 26 de Novembro de 2014 que descreve as obras necessárias na fracção do recorrente, em virtude das infiltrações/inundações, no valor de € 20.272,00.

v) Sucede  que,  não  se  conformando  com  tal  decisão,  a  recorrida interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto suscitando a questão da nulidade da sentença nos termos do artigo 615.°, n.° 1, alínea d) do Código de Processo Civil e a questão da existência da abuso   de   direito  por  parte   do   aqui  recorrente   em  reclamar  o ressarcimento dos danos da sua fracção.

vi) O acórdão proferido pela Relação do Porto decidiu pela nulidade parcial da sentença, tendo concluído que a mesma condenou a recorrida no pagamento de obras nas partes comuns.

vii) Ora, conforme alegado no artigo 77.° do libelo inicial, o recorrente "para além de suportar os custos de remodelação do seu apartamento, no valor de € 14.080,00, com as obras realizadas, actualmente, conta gastar mais € 20.072,00 pelo facto de a ausência de reparação do telhado e fachadas estar a provocar novos danos na sua fracção.”.

viii)  Ou seja, a recorrida foi condenada no pagamento dos danos ocorridos na fracção do recorrente e não nas partes comuns pelo que, s.m.o., inexiste qualquer nulidade parcial da sentença.

ix)  Acresce que, o Tribunal da Relação do Porto decidiu pela procedência do recurso quanto à alegada existência de abuso de direito.

x)  Tal questão já havia sido suscitada em l.a instância, tendo sido decidido pela inexistência de abuso de direito uma vez que "pese embora desta factualidade resulte que o autor teve condutas contraditórias, não resulta da mesma que a conduta anterior do autor tenha criado no réu uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança o réu tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que surgirão danos irreversíveis, isto é, que tenha investido nessa confiança”.

xi) Da matéria de facto provada sob os n.os 4,15, 20, 24, 33, 51, 52, 53 e 54 entende o recorrente que não se pode concluir pela existência de abuso de direito.

xii)  E ponto assente que os danos ocorridos na fracção do recorrente são imputáveis à recorrida.

xiii)  Não podendo colher o argumento de que as obras não são realizadas pelo facto de o recorrente, no ano de 2013, ter deixado de pagar quotas.

xiv) Isto  porque,  o  valor  em  dívida   que   resultou  provado   data   de 11/02/2016,  ou   seja,   sensivelmente   três   anos   depois   de   se   ter erificado a inundação.

xv)   Sensivelmente três anos depois de a recorrida ter violado o seu dever de administração, zelo e cuidado pelas partes comuns do edifício.

xvi)  Mais, o valor em dívida encontra-se reclamado em sede executiva.

xvii)  Permitindo-nos a expressão, o argumento do não pagamento de quotas pelo aqui recorrente é apenas uma causa virtual para a não realização das obras nas zonas comuns.

xviii)  Em 2013, ano em que o recorrente deixou de pagar condomínio, a fracção do recorrente sofreu inundações.

xix)   Inundações essas provocadas pelos graves problemas estruturais já herdados pela construção do edifício.

xx)  Ou seja, a violação dos deveres a que está a recorrida adstrita advêm de data muito anterior ao não pagamento de quotas por parte do recorrente.

xxi)  Mais, conforme resulta da sentença proferida pela l.a instância, o recorrente  recomeçou a pagar as suas  quotas: "Mais  foram consideradas as declarações de parte do legal representante réu, GG, na medida em que confirmou que há cerca de 2 ou 3 meses o autor tem pago as quotas de condomínio.".

xxii)  A questão que  se coloca é:  não tivesse  o recorrente dívidas  ao condomínio e as inundações não teriam ocorrido?

xxiii)   Importa ainda não olvidar que o direito dos condóminos à reparação dos danos, é um direito com tutela constitucional (artigo 60.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa).

xxiv)  Concluímos assim pela verificação da violação da lei substantiva, designadamente do disposto no artigo 334.° do Código Civil, o que acarreta a alteração da decisão proferida pelo Tribunal da Relação, mantendo-se a condenação conforme decisão de l.a instância, o que desde já se requer a V.as Ex.as.

xxv) Nestes termos e nos melhores de Direito que os Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça doutamente suprirão, deverá o acórdão proferido pela Relação do Porto ser revogado, confirmando-se a sentença proferida pelo Tribunal de l.a instância uma vez que não se verifica a nulidade parcial nos termos do artigo 615.°, n.° 1, alínea d) do Código de Processo Civil nem o instituto do abuso de direito.

xxvi)  Assim se fazendo JUSTIÇA!”

            O Réu contra-alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

            5. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

            6. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de processo Civil), as questões a decidir, in casu, são:

            1.º — deveria a sentença da 1.ª instância ter sido declarada nula, na parte em que condenou o Réu a pagar as obras nas partes comuns do edifício?;

            2.º — houve abuso do direito por parte do Autor?;

            3.º — caso afirmativo, o abuso do direito impedirá o Autor de exigir o reembolso das obras feitas na sua fracção?

II. — FUNDAMENTAÇÃO

            OS FACTOS

           1. Foram os seguintes os factos dados como provados no acórdão recorrido:

1. Em 30 de Outubro de 2006, AA adquiriu a fracção “I” sita na Rua ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... – I, através da celebração de um contrato de compra e venda, e cuja aquisição se mostra inscrita a seu favor.

2. À sociedade comercial ...– Condomínio e Propriedades, Lda., cabe o exercício das funções de administração, do Condomínio BB, aqui réu, funções essas que vem exercendo há cerca de há pelo menos 3 anos.

3. O autor, enquanto legítimo proprietário passou a utilizar, a fruir e a dispor de forma plena e exclusiva do referido imóvel.

4. Em outubro de 2013, a habitação familiar e permanente do autor ficou, inesperadamente, inundada.

5. O autor depara-se com infiltrações e elevados níveis de humidade na sua residência. 

6. As mencionadas infiltrações causaram danos na habitação do aqui autor.

7. Desde logo, o teto falso do quarto de banho apodreceu,

8. Bem como os armários dos quartos, o soalho, os rodapés e as portas.

9. Nas paredes apareceu bolor.

10. A estrutura da lareira apodreceu.

11. E nas janelas, de vidro duplo, apareceu humidade entre ambos os vidros apodrecendo a caixilharia dos mesmos.

12. A residência do autor e, na altura, da sua ex-companheira e dos seus três filhos menores tornou-se inabitável.

13. Representando um verdadeiro perigo para os menores, mormente, pelo facto de o soalho se encontrar desnivelado e de o bolor ser prejudicial para a sua saúde, uma vez que poderia causar-lhes infecções fúngicas e respiratórias.

14. Perante o descrito, o autor requereu a uma empresa especializada de construção civil e a uma arquiteta que detetassem quais as causas daqueles danos,

15. Tendo sido alertado que as infiltrações/inundações eram consequência de problemas detectados no telhado, fachada e varanda do prédio, ou seja, na parte exterior e comum do prédio.

16. Procurando alcançar uma rápida solução para os problemas ora descritos, o autor entrou em contacto pelo menos por email, em fevereiro de 2014, com a ré e a administração do condomínio que, num primeiro momento, mostrou interesse em resolver os problemas detetados pelo condómino, aqui autor, assumindo a responsabilidade pelos danos verificados no seu bem imóvel.

17. Tendo, igualmente, feito várias visitas à residência do autor.

18. Todavia, as reuniões, telefonemas e troca de emails foram-se protelando no tempo, sem uma verdadeira resolução.

19. No primeiro semestre de 2014, perante a falta de condições para continuar a residir na sua propriedade, o autor saiu da sua fração.

20. Perante a inércia da ré, com a chegada do bom tempo e tendo em vista a possibilidade de tornar habitável o imóvel, o autor procedeu, por conta própria, dada a premência, à realização de obras as quais se revestiam de caráter urgente.

21. Tendo substituído o rodapé, o soalho, os roupeiros, a lareira, pintado as paredes interiores e exteriores, procedido às reparações elétricas necessárias e realizado todas as obras de pichelaria e de vidraceira.

22. Obras de valor não concretamente apurado, e de que o autor pagou também, valor não concretamente apurado.

23. Todos os factos ocorridos, bem como as decisões do autor, foram antecipada e devidamente comunicados pelo autor à ré/Administração Condomínio.

24. Apesar de já ter procedido uma primeira vez à restauração do seu apartamento, o facto de a ré/Administração de Condomínio não ter efetuado as reparações devidas tanto na fachada como no telhado, fez com que com a chegada do outono/inverno pretérito ano, e da chuva caraterística destas épocas, se verifiquem, atualmente, novas infiltrações que estão a criar novos danos na fração do aqui autor.

25. Os novos e atuais danos consubstanciam-se no seguinte:

26. Novas infiltrações nas paredes e tecto da sala, originando o aparecimento de bolor e o apodrecimento dos rodapés nesta divisão da casa.

27. Humidade no piso.

28. O mármore da lareira caiu.

29. O pladur do teto do quarto de banho encontra-se manchado e com água a pingar.

30. No quarto as paredes têm vestígios de humidade e é notória a existência de humidade nas madeiras dos armários, tal como em todos os elementos de madeira dos compartimentos junto à parede de empena e em todas as áreas de frente da casa para o exterior.

31. E existe, mais uma vez, humidade nas janelas de vidro duplo, isto é, entre ambos os vidros, sendo que os vedantes estão com bolor.

32. Sendo estes os defeitos/danos atuais, e que se agravam dia após dia, pois no interior da fração verificam-se diversas anomalias, causadas pela presença de água e humidades oriundas de infiltrações.

33. E que foram devidamente confirmados quer os danos quer as suas causas pela Empresa Municipal ... aquando de uma realização de uma vistoria em Fevereiro de 2015. 

34. Vistoria que recomenda que a ré inicie a realização de obras num prazo urgente.

5. A presença de humidade no interior provoca a deterioração dos materiais de construção existentes alterando as suas propriedades, a durabilidade natural, a degradação do aspeto, propicia condições insalubres e indesejadas para quem usufrui do espaço.

36. Nomeadamente, as infiltrações verificadas danificam todo o pavimento interior em madeira, rodapés, calcinação de acessórios e juntas de um radiador lacado, armários de parede, aros e portas interiores, pintura e reboco das paredes e tectos, e o descolamento do revestimento em pedra da lareira.

37. As infiltrações do caso em análise têm claramente origem no exterior, derivadas das fachadas, da cobertura do edifício e da zona dos terraços.

38. São notórias as eflorescências na pintura dos panos interiores das paredes de fachada derivada da humidade ascendente, (humidade ascendente que advém da água estancada na caixa de ar ao longo da parede exterior), a presença de humidade nas madeiras dos aros dos vãos e armários, a fendilhação do revestimento da fachada, fendas nos remates da cobertura, descolamentos de telas betuminosas e rufos degradados.

39. Este tipo contínuo e profundo de infiltrações atinge o betão armado, ocorrendo a carbonatação do betão, este processo de deterioração do betão dá-se na zona das armaduras, onde o ferro fica em risco imediato de corrosão, acelerando a degradação e reduzindo a durabilidade do betão armado. 

40. As anomalias exteriores existentes na cobertura e nas fachadas são graves e apelam a uma intervenção urgente, nomeadamente uma reparação do pavimento e remates do terraço, uma aplicação de um sistema de impermeabilização eficaz e a reparação adequada das fissuras presentes na fachada, aplicando um novo revestimento exterior tendo em conta os agentes de erosão naturais ao qual está totalmente exposta.

41. Em palavras simples, põe em causa as condições de salubridade e de segurança da estrutura do prédio (esta, a médio/longo prazo).

42. Estes danos são progressivos e de urgente intervenção,

43. Pois que, enquanto persistirem as causas, as anomalias continuarão a ocorrer e a agravar-se.

44. A intervenção a ocorrer deverá contemplar a resolução de todas as anomalias exteriores que se refletem no interior da fração e no exterior do edifício, bem como a obras gerais de manutenção e conservação, por forma a prolongar a vida útil e racionalizar os encargos envolvidos.

45. As obras necessárias para consertar a fonte de onde provém as infiltrações/inundações e reparar os danos já verificados no interior da fração do autor (incluindo as que o autor já realizou) estão orçamentadas pelo valor de €20.272,00.

46. O autor e o seu agregado familiar viram-se impedidos de utilizar, fruir e dispor de forma plena o seu bem imóvel.

47. A situação descrita impediu que a fração fosse utilizada como centro da vida familiar do autor. 

48. No decorrer do mês de outubro de 2013, houve uma inundação na fração do autor, que teve origem no interior da sua fração, mormente na canalização de um dos quartos de banho.

49. O autor foi ressarcido deste sinistro, bem como a administração do condomínio

50. Tendo sido destinado para reparação dos danos na fração do autor a quantia de €3.420,00 (três mil quatrocentos e vinte euros).

51. O prédio padece de graves problemas estruturais já herdados pela construção do mesmo.

52. Tendo o dono da obra – JJ – Construção e Promoção Imobiliária. Lda., – proposto uma ação contra o empreiteiro da mesma – LL – Projetos de Engenharia e Construção Civil, Lda., – onde se deu como provado que: «Posteriormente a 29/12/06 e até à data de entrada da presente acção (…) e na Fração “I” – 2º Andar Direito – era necessário resolver as infiltrações e pinturas na sala e cozinha, humidade nos quartos, cerâmica na cozinha, deficiências na lareira e arranjo no chão».

53. Nessa ação, que correu os seus termos no extinto 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de ... sob o nº 5084/11.3TBMTS foi, a aí ré condenada a pagar à aí autora a quantia correspondente aos valores a despender nas obras de reparação dos defeitos e anomalias identificados supra sob os nºs 2.21 a 2.23, onde se incluem os defeitos e anomalias referentes à fração do aqui autor.

54. Decisão essa que transitou já em julgado.

55. A aqui representante do réu tem vindo a levar a todas as Assembleias de Condomínio, pelo menos desde Janeiro de 2014, a questão da necessidade de reparação da fachada exterior.

56. Na assembleia ordinária de 2014, iniciada em 13 de Janeiro e retomada em 04 de Fevereiro, assembleia em que o ora autor se encontrava presente, a aqui ré apresentou dois orçamentos para as obras de conservação, tendo os condóminos ficado de ponderar sobre o assunto e solicitar outros orçamentos para análise, comparação e tomada de decisão.

57. Foi convocada, para 16 de Junho de 2014, uma assembleia-geral extraordinária para análise, discussão e aprovação de obras a efetuar no condomínio.

58. Na referida assembleia, verificou-se que existiam, à data, dívidas de quotas de condomínio no valor de €7.146,12, o que não permitia proceder às necessárias reparações.

59. Tendo sido deliberado, por unanimidade, que a administração assumisse a responsabilidade de mandar executar a reparação da origem dos danos que afetavam a fração “L”, até ao limite máximo de €2.226,00, acrescido de IVA.

60. Na assembleia realizada no dia 14 de janeiro de 2015, foi deliberado, por unanimidade dos condóminos presentes na mesma, «que fosse solicitado a um gabinete de engenharia civil um levantamento das patologias reais do edifício e a realização de um caderno de encargos, por forma a que todos conheçam os reais valores de que poderemos estar a falar ao nível das obras necessárias e que, nessa mesma assembleia, tal relatório seria igualmente levado ao conhecimento dos condóminos».

61. Tendo os condóminos acordado aguardar pela assembleia de setembro desse ano de 2015, para que fosse tomada uma decisão relativamente a este assunto.

62. Sendo que, na assembleia realizada em 8 de outubro de 2015, foi aprovado o conteúdo do estudo prévio realizado e bem assim das obras a efetuar, tendo apenas ficado para análise o plano de pagamentos das referidas obras e escolha da empresa executante.

63. E, nesse sentido, volvidos três meses, na assembleia realizada em 11 de janeiro de 2016, foram apreciados e votados pelos condóminos presentes (nos quais, uma vez mais, não se incluía o autor) os orçamentos e empresas para a realização das obras.

64. As obras que são necessárias ainda não foram realizadas, por falta de deliberação da assembleia nesse sentido e falta de liquidez financeira do edifício, motivada pelo não pagamento das quotas de condomínio de alguns condóminos.

65. O autor contribui para esta falta de liquidez financeira, uma vez que é, a esta data, devedor de quantia superior a €4.000,00, já reclamados em instância executiva, sendo que tais dívidas provêm já do ano de 2013.

66. O autor realizou obras, por sua conta e risco, no revestimento da fachada, como aliás se refere no auto de vistoria, mormente no Quadro II, que, entre outras realizações, consistiu na retirada das lajes de piso do terraço, colocando uma tela impermeabilizante sobre as mesmas, colocando novamente as lajes no sítio. 

 67. O autor, depois de sair da mesma, teve a sua fração arrendada.

68. Com exceção da assembleia de condóminos referida em 56. o autor nunca esteve presente nas assembleias em que se discutiu a questão das obras nas partes comuns do edifício nunca tendo impugnado as deliberações que foram sendo sucessivamente tomadas no que a este aspeto concerne.

69. Por carta datada de 29 de Fevereiro de 2016, o autor, juntamente com outros três condóminos do edifício, convocou uma assembleia geral extraordinária de condóminos, a realizar no dia 09 de Março de 2016 com a seguinte Ordem de Trabalhos:

               «1. Decidir da possibilidade de promover uma acção à firma “LL” para cumprir a sentença em que foi condenada a suportar as rectificações no Edifício BB quer em zonas comuns, quer nas frações especificadas na sentença acima referida.

                2. Votação no sentido de anular o que foi aceite pela maioria de condóminos nos pontos 7. (sete) e 8. (oito) da ordem de trabalhos da Assembleia de Condóminos efectuada em 11 de janeiro de 2016 e transcritos na Ata nº 14.

                Tudo conforme solicitação enviada pelos condóminos a 19 de Janeiro de 2016 à firma que administra o condomínio.

  3. Apresentação de vários factos que demonstram a forma pouco clara na atuação da “HH” no exercício das suas funções neste condomínio.

               4. Votação para exoneração da firma HH” actual administradora do condomínio.

                5. Nomeação de 3 (três) condóminos pelo prazo máximo de sessenta dias, até à eleição de nova administração.

    6. Análise de outros assuntos de interesse para o condomínio.» (doc. nº 1).

70. Os pontos 7. (sete) e 8. (oito) da ordem de trabalhos da Assembleia de Condóminos efectuada em 11 de Janeiro de 2016 e transcritos na Ata nº 14 a que se refere o ponto 2 da Ordem de Trabalhos da Convocatória elaborada pelo aqui autor e os outros três condóminos são a apresentação e discussão de orçamentos e votação do orçamento e da empresa escolhida para a realização das obras aprovadas na acta nº 13 e discussão e aprovação de quota extraordinária para pagamento das obras aprovadas na acta 13, bem como dos prazos de cumprimento por parte dos condóminos.

71. Significa tal que o autor, juntamente com outros três condóminos, convocou uma assembleia extraordinária onde pretendiam anular as deliberações que, ao fim de tanto tempo foram alcançadas, e que respeitam à necessária realização das obras no exterior do edifício, com vista a, posteriormente, se proceder às obras no interior das frações que delas necessitam.

72. Em Março último, foi chamada, por uma vizinha do prédio contíguo, à fração propriedade do autor, que este diz estar inabitável e inabitada, a Guarda Nacional Republicana, por barulhos e cheiros produzidos no interior de tal fracção, supostamente por um cão, verificando-se que a mesma estava habitada.

2. Em contrapartida, foram, designadamente, os seguintes os factos dados como não provados no acórdão recorrido:

— O autor ficou privado da sua habitação desde Janeiro de 2014 até ao presente.

— Todos os restantes danos na fração invocados pelo autor na sua petição inicial e que não constem entre os provados.

— Que o autor perante a ausência de respostas por parte da ré/administração do condomínio e já divorciado [se tenha visto] coagido a ir viver para casa de familiares.

— Que o autor tenha pago €14.080,00 pelas obras que fez.

— A inércia da ré/Administração de Condomínio e a sucessiva quebra de promessas por parte da mesma, criou elevados níveis de stress no seio familiar do autor, sendo a causa de muitas discussões e de um sentimento de desgaste emocional e psíquico que levou à segregação da sua família.

— A par disto, o autor, com o objetivo de obter um rendimento capaz de o ajudar a suportar a obrigação assumida perante o Banco, uma vez que adquiriu o bem imóvel em causa com recurso a empréstimo bancário, por duas vezes arranjou interessados em celebrar um contrato de arrendamento – um no primeiro semestre de 2014 e outro no segundo semestre de 2014 – sendo que ambos os negócios não foram formalizados por se verificarem que na fração do autor ocorriam infiltrações.

— Infiltrações que não eram resolvidas atempadamente, perdendo esses o interesse, com o passar do tempo, em celebrar o respetivo contrato de arrendamento. 

— A frustração de ambos os negócios levou a que, de Janeiro de 2014 até à presente data, o autor não auferisse o rendimento mensal de €850,00, a título de rendas.

— Porque o autor não estava em casa, a água proveniente do referido sinistro inundou a sua fração, atingindo até partes comuns do edifício, que também sofreram danos, bem como uma outra fração, concretamente a fração que fica por baixo da fração do ora autor.

— Foi a administração do condomínio, aqui réu, que alertou o autor para esta situação, tendo a sua empregada de limpeza franqueado a entrada na habitação para que o problema fosse resolvido, mormente pelo imediato desligamento da água.

— Que as intervenções que o autor fez potenciaram os danos que o autor vem agora reclamar.

            O DIREITO

   1. Quanto à primeira questão, ou seja, quanto à nulidade da sentença de 1.ª instância, o caso está em averiguar se a condenação do Réu Condomínio BB a a indemnizar o Autor do custo das obras realizadas nas partes comuns do prédio é uma condenação em objecto diverso dos pedidos de condenação do Réu a indemnizar o Autor dos “danos causados no imóvel de que o autor é proprietário”, ou da “realização de obras de reparação de danos causados”.

   O Tribunal da Relação do Porto concluiu que sim; declarou parcialmente nula a sentença da 1.ª instância, por ter “[condenado] a ré ao pagamento do custo de obras em partes comuns, não peticionado nem legalmente devido”.

            O Autor impugnou o acórdão recorrido, alegando o seguinte:

vi) O acórdão proferido pela Relação do Porto decidiu pela nulidade parcial da sentença, tendo concluído que a mesma condenou a recorrida no pagamento de obras nas partes comuns.

vii) Ora, conforme alegado no artigo 77.° do libelo inicial, o recorrente "para além de suportar os custos de remodelação do seu apartamento, no valor de € 14.080,00, com as obras realizadas, actualmente, conta gastar mais € 20.072,00 pelo facto de a ausência de reparação do telhado e fachadas estar a provocar novos danos na sua fracção.”.

viii) Ou seja, a recorrida foi condenada no pagamento dos danos ocorridos na fracção do recorrente e não nas partes comuns pelo que, s.m.o., inexiste qualquer nulidade parcial da sentença.

  O problema está no sentido que deva imputar-se ao pedido formulado — e os termos em que está formulado, como pedido de indemnização dos “danos causados no imóvel de que o autor é proprietário”, são suficientemente amplos para sustentar que deve imputar-se-lhe o sentido abranger as despesas necessárias à prevenção de danos na fracção de que o Autor é proprietário.

            Face às circunstâncias do caso, as obras nas partes comuns do prédio explicavam-se e justificavam-se pela circunstância de as obras nas partes comuns serem necessárias à prevenção de danos na fracção de que o Autor é proprietário, e a circunstância de as obras nas partes comuns serem necessárias à prevenção de danos na fracção faz com que a condenação do Réu a indemnizar o Autor do custo das obras realizadas nas partes comuns deva considerar-se compreendida no pedido de indemnização dos danos causados no imóvel de que o autor é proprietário”.

           2. Quanto à segunda e quanto à terceira questões, o caso está em averiguar se a circunstância de o Autor ter  deixado de pagar quotas a partir de data não específicada de 2013 (n.º 65 dos factos provados); de ter agido contra o acordo dos condóminos no sentido de “aguardar pela assembleia de Setembro [de] 2015, para que fosse tomada uma decisão” (n.ºs 60 e 61 dos factos provados); e de ter convocado uma assembleia de conóminos para “anular as deliberações […] que respeitam à necessária realização das obras no exterior do edifício” (n.ºs 69, 70 e 71 dos factos provados) configuram um abuso do direito, relevante para efeitos do art. 334.º do Código Civil.

            O facto de o Autor ter deixado de pagar quotas a partir de data não especificada de 2013, em conjugação com a circunstância de se ter antecipado aos demais condóminos e de, depois de se ter antecipado, ter tentado impedir que as obras se realizassem, só pode significar que terá pretendido conseguir uma vantagem para si à custa de uma desvantagem para os demais, para todos os demais, condóminos: terá pretendido conseguir uma vantagem para si, fazendo com que o condomínio pagasse as obras necessárias à prevenção e à reparação de danos na sua fracção, e terá pretendido consegui-la à custa de uma desvantagem para os demais, de uma desvantagem para todos os demais condóminos, fazendo com que o condomínio não pagasse as obras necessárias à prevenção e à reparação de danos nas demais, em todas as demais fracções.

            Ora, a pretensão de conseguir uma vantagem para si à custa de uma desvantagem para os demais, para todos os demais, condóminos é uma pretensão abusiva — o Autor, ao pedir a condenação do Réu no contexto descrito nos n.ºs 60 e 61, 65 e 69 a 71 dos factos provados, excede, e excede manifestamente, os limites impostos pela boa fé (cf. art. 334.º do Código Civil).

            O alcance do princípio da proibição do abuso do direito excede o conjunto dos grupos ou tipos de casos considerados na doutrina e na jurisprudência — como a exceptio doli, o venire contra factum proprium, o tu quoque ou o desequilíbrio no exercício jurídico [1] — e, por consequência, não é absolutamente necessário coordenar a situação sub judice a algum dos tipos enunciados.

           As instâncias concentraram-se na proibição do venire contra factum proprium, divergindo na questão de saber se havia uma situação (objectiva) de confiança; se a situação (objectiva) de confiança seja justificada; ou se a situação (objectiva) de confiança justificada seja imputável àquele em que se confia [2]. Em todo o caso, ainda que não estivessem preenchidos os pressupostos do venire contra factum proprium, sempre estariam preenchidos os pressupostos do abuso do direito e, em rigor, os pressupostos de um caso típico de abuso — o tu quoque [3].

            O conteúdo do princípio da proibição do tu quoque é o de que quem actua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma actuação ilícita da contraparte [4]; logo, o Autor, ao actuar ilicitamente, designadamente deixando de pagar as quotas ao condomínio, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma actuação ilícita do condomínio, concretizada na não realização de obras para as quais as quotas, que o Autor deixou de pagar, seriam necessárias.

           Entre os corolários do abuso do direito, na modalidade de tu quoque, está a improcedência dos pedidos abusivamente deduzidos de indemnização dos “danos causados no imóvel de que o autor é proprietário”, ou de “realização de obras de reparação de danos causados”.

III. — DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente AA.

Lisboa, 14 de Março de 2019

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Maria dos Prazeres Beleza

Olindo Geraldes

----------------------------

[1] Sobre os casos típicos de abuso do direito, vide desenvolvidamente António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1997 (reimpressão), págs. 719-860

[2] Sobre a proibição do venire contra factum proprium, vide designadamente António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., págs. 742-770; Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Livraria Almedina, Coimbra, 1989, págs. 478-508; Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil”, in: Boletim da Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra] – Volume comemorativo do 75.º tomo, Coimbra, 2003, págs. 269-322; Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, págs. 345 ss.; Manuel Carneiro da Frada, “A responsabilidade pela confiança nos 35 anos do Código Civil. Balanço e perspectivas”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III – Direito das obrigações, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 285-307, esp. nas 330-343.

[3] Sobre a proibição do tu quoque, vide desenvolvidamente António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., págs. 837-852.

[4] Cf. Gunther Teubner, anotação ao § 242, in: Rudolf Wasserman (coord.), (Alternativ-)Kommentar zum Bürgerliches Gesetzbuch, vol. II — Allgemeines Schuldrecht, Luchterhand, Neuwied, 1980, págs. 32-91 (56) ou, em termos mais restritos, António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., pág. 837 — dizendo, tão-só, que “a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído”.