Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98B1043
Nº Convencional: JSTJ00035728
Relator: SOUSA DINIS
Descritores: USUCAPIÃO
REGISTO PREDIAL
COMPRA E VENDA
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO
ACÇÃO REAL
CAUSA DE PEDIR
VENDA EXECUTIVA
INEFICÁCIA
Nº do Documento: SJ199902030010432
Data do Acordão: 02/03/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1549/97
Data: 05/21/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: H. MESQUITA IN DIREITOS REAIS - SUMARIOS - 1967 PAG112.
MENEZES CORDEIRO IN DIREITOS REAIS - 1979 PAG861.
Área Temática: DIR CIV - DIR REAIS.
DIR REGIS NOT.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CRP84 ARTIGO 2 N1 A ARTIGO 5 N2 A.
CCIV66 ARTIGO 303 ARTIGO 342 N2 ARTIGO 1255 ARTIGO 1256 ARTIGO 1292.
CPC67 ARTIGO 498 N3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1984/04/10 IN BMJ N336 PAG433.
Sumário : I - A usucapião considera-se invocada desde que se mostre alegado o complexo fáctico subjacente.
Tal invocação pode pois ser implícita ou tácita, se os factos alegados integrarem, de modo manifesto, os respectivos elementos ou requisitos constitutivos e revelarem a intenção inequívoca de fundar o seu direito na usucapião.
II - A usucapião implica sempre a existência de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo, tendo a posse de ser sempre pública e pacífica; os restantes caracteres (boa ou má-fé, título ou não título e registo ou não registo) apenas influem no prazo necessário para a prescrição aquisitiva.
III - Quando tenha havido transmissão da posse, o sujeito pode juntar à sua a posse do seu antecessor ou antecessores, mesmo para efeitos de usucapião.
IV - A usucapião em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais - conf. a excepção da al. a) do n. 2 do art 5 do CRP84.
V - É assim ineficaz em relação aos respectivos adquirentes não só a venda judicial do prédio adquirido por essa via originária, ainda que essa transmissão por via judicial (aquisição derivada) haja sido objecto de registo anterior, como também as penhoras de tal prédio que hajam sido registadas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, B e C, intentaram na comarca de Santarém acção com processo ordinário contra D, Lda., pedindo:
1º - que seja reconhecido o seu direito de propriedade em comum e sem determinação de parte ou direito sobre os prédios que identificam, pertencentes à herança indivisa de E; 2º - que sejam declarados inexistentes os direitos firmados pela ré, em oposição com o referido direito de propriedade, e se se entender que as AA. não têm a posse ou a detenção dos prédios, mas que tal pertence à ré, que esta seja condenada a restituí-los;
3º - que seja declarada ineficaz a venda judicial que teve lugar em 14-06-93 na 1ª secção do 1º juízo do tribunal de Santarém, nos autos de carta precatória n. 2156/93 do 8º juízo cível de Lisboa, mas apenas no respeitante aos prédios em causa;
4º - que seja ordenado o cancelamento dos registos de penhora F-2 e de aquisição G-4 que incidem sobre os referidos prédios, bem como quaisquer registos subsequentes, caso venham a existir.
A ré contestou, alegando ter adquirido os prédios em causa em hasta pública, livres de direitos reais sem registo anterior ao da penhora e que o direito de propriedade previamente adquirido pelas AA. sobre os prédios pela escritura de compra e venda em que foi vendedor o executado caducou nos termos do art. 824 n. 2 do CPC.
A acção foi julgada improcedente, tendo as AA., inconformadas, apelado dela, embora sem êxito, já que a Relação confirmou a decisão recorrida.
Mais uma vez inconformadas, as AA. pedem revista, tendo produzido alegações que concluem pela forma seguinte:
1 - No nosso direito, o registo predial não é constitutivo de direitos, mas apenas declarativo, limitando-se a estabelecer presunções "juris tantum" acerca da titularidade do direito inscrito, que, no presente caso, foi ilidida pelas recorrentes, pelo que foi violado o art. 7 do CReg. Predial.
2 - Aquando da efectivação da penhora, da arrematação e do registo a favor da arrematante, os prédios, embora ainda não registados a favor do comprador E, já lhe pertenciam, pois a constituição e a transmissão de direitos reais deu-se por mero efeito do contrato de compra e venda. Foi violado o art. 408 do CC.
3 - Foi igualmente violado o art. 5 n. 1 do CReg. Predial, porquanto o mesmo não tem aplicação em virtude de a arrematante não ser terceiro, dado o facto de não ter adquirido do mesmo alienante direitos incompatíveis, mas apenas ter esse alienante como sujeito passivo.
4 - Se assim não se entendesse, sempre haveria que aplicar a excepção prevista no art. 5 n. 2 al. a) do CReg. Predial, dado que as recorrentes adquiriram por usucapião o direito de propriedade, tendo sido violada a citada norma.
5 - Os prédios, ao serem penhorados e vendidos, já não pertenciam ao executado, pelo que a arrematante não pode adquirir mais direitos que aqueles que pertenciam ao executado.
6 - A venda judicial é ineficaz (res inter alios), tanto mais que os prédios foram reivindicados pelas donas, ora recorrentes, através da acção intentada.
7 - O disposto no art. 909 n. 1 d) do CPC foi violado.
8 - Aliás, tal norma é especial ao prever as causas de anulação das vendas feitas judicialmente e, assim, não pode ser derrogada pelas normas gerais, incluindo as registrais.
Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, importando, para já, elencar os seguintes factos que as instâncias deram como provados:
1 - Pela apresentação 02 de 11-06-87 foi registada a favor de F, casado com G, a aquisição, por partilha no divórcio com H, do direito de propriedade do lote de terreno para construção urbana com a aérea de 420 m2, designado por lote n. 92, sito no Casal ou Vinha do Casal ou Padilha,freguesia e concelho de Almeirim, a confrontar do norte com lote n. 91, do sul com lote n. 93, nascente com ....... e do poente com rua C, descrito na matriz e actualmente inscrito sob o art. 5975.
2 - Pela apresentação 02 de 11-06-87, foi registada a favor de F, casado com G, a aquisição, por partilha no divórcio com H, do direito de propriedade do lote de terreno para construção urbana com a área de 420 m2, designado por lote n. 93, sito no Casal ou Vinha do Casal ou Padilha, f e concelho de Almeirim, a confrontar do norte com o lote n. 92, sul com ......, nascente com ........ e poente com rua C, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o n. 1822, então omisso na matriz e actualmente inscrito sob o art. 5974.
3 - Os prédios referidos nos ns. anteriores, foram, durante mais de 40 anos, detidos, fruídos e possuídos, sem oposição de quem quer que fosse, sem lesar alguém, com conhecimento do público em geral e de forma contínua e exclusiva por F e mulher e seus antecessores ........
4 - Por escritura pública lavrada em 17-11-87, no 1º Cartório Notarial de Santarém, F autorizado por sua mulher G vendeu a E, casado com A, os referidos prédios.
5 - Desde essa data os compradores passaram a deter, fruir e possuir, em seu nome, sempre de forma pública, contínua e exclusiva, na continuação dos seus antecessores, os referidos prédios.
6 - Em 04-03-96, E faleceu, tendo deixado como únicas herdeiras a mulher A, e as filhas C e B, casadas, residentes em Almeirim, permanecendo a herança deixada pelo "de cujus" indivisa.
7 - Estas, desde então e até à presente data, têm detido, fruído e possuído, de forma pública, pacífica, contínua e exclusiva, os prédios referidos na continuação dos antecessores.
8 - Pela apresentação n. 1 de 20-03-95, junto da Conservatória do Registo Predial de Almeirim, E requereu o registo da aquisição a seu favor do direito de propriedade dos prédios, tendo este ficado provisório por dúvidas devido ao facto de, nas respectivas fichas, se encontrar exarada uma inscrição de aquisição vigente a favor da Quinta do Foral imobiliária Lda.
9 - Em 28-12-90, nos autos de execução n. 1491-A/90, que correu termos na 2ª secção do 8º juízo cível do tribunal da comarca de Lisboa, movida pelo Banco Borges & Irmão SA contra F, foi efectuada a penhora dos referidos prédios, tendo esta sido registada em 19-12-91.
10 - Em 14-06-93, e no âmbito daquele processo, os referidos prédios foram arrematados em hasta pública por D, L.da..
11 - Pela apresentação n. 14 de 04-12-95, a aquisição do direito de propriedade dos referidos prédios encontra-se registada da D, Lda..
12 - A Autora A, bem como o falecido marido, desconheciam a existência de qualquer acção movida contra o vendedor dos prédios, da penhora que recaiu sobre estes, da respectiva arrematação e subsequente registo a favor da D, Lda. só tendo conhecimento destes factos quando foram notificados pela CRP de Almeirim de que o acto de registo requisitado tinha sido efectuado provisório por dúvidas.
13 - A ré é uma sociedade por quotas que se dedica à compra e venda de imóveis, sendo esta efectivada após um dispendioso processo de promoção dos bens adquiridos, com vista a conseguir o melhor preço possível de venda na tentativa de alcançar lucro e tendo sido esta a linha de princípio que orientou a sua conduta na arrematação em hasta pública dos referidos prédios.
Tal como já acontecera na Relação, são duas as questões colocadas à apreciação deste Supremo: a ineficácia da venda em hasta pública à ré dos prédios, com base na natureza declarativa e não constitutiva, entre nós, do registo predial, e na transmissão de direitos reais por mero efeito do contrato de compra e venda; inserir-se a questão no regime excepcional previsto no art. 5 n. 2 al.a) do CReg. Predial, em face da prescrição aquisitiva do direito de propriedade pelas AA.
Na lógica das normas processuais respectivas, comecemos por apreciar a excepção.
Nas acções reais, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real - art. 498 n. 3 do CPC.
As Autoras invocam, sem margem para dúvidas, como causa de pedir, a aquisição derivada do contrato de compra e venda dos 2 lotes, aliada ao facto de o registo predial ter, entre nós, apenas valor declarativo e não constitutivo.
Para além disto, terão invocado também a prescrição aquisitiva, para poderem beneficiar do regime excepcional previsto no art. 5 n. 2 a) do CReg. Predial?.
Com efeito, o art. 303 do CC (aplicável à usucapião por força do art. 1292), impõe que a prescrição, para ser eficaz, tenha de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita. Por outro lado, a prescrição aquisitiva, como excepção que é, está sujeita às regras prescritas no art. 342 n. 2 do CC. Será sobre o excipiente que recairá o ónus de alegar e provar os factos integradores da excepção.
Quer a sentença de 1ª instância, quer o acórdão recorrido entenderam que as AA. nada alegaram com vista à aplicação do citado regime excepcional.
Parece-nos que não é totalmente correcta esta conclusão, retirada, por certo, do facto de as AA. terem feito incidir o acento tónico na 1ª das apontadas causas de pedir (natureza do registo, transmissão por mero efeito do contrato e a tão debatida questão da noção de "terceiros" para efeitos de registo), passando muito aligeiradamente sobre a 2ª.
Mas o que é certo é que as AA. alegaram factos que não podem ter outro sentido que não seja a invocação da referida excepção.
Temos para nós que a usucapião considera-se invocada, desde que se mostre alegado o complexo fáctico subjacente. Como já decidiu este Supremo, "a invocação da usucapião pode ser implícita ou táctica, sendo certo que, neste caso, deve o autor alegar factos que, clara e manifestamente, integrem os respectivos elementos ou requisitos e revelem inequivocamente a sua intenção de fundamentar na usucapião o seu direito" (Ac. de 10-04-84, BMJ 336, p.433).
A usucapião implica sempre a existência de 2 elementos - posse e decurso de certo período de tempo - tendo a posse de ser, sempre, pública e pacífica; os outros caracteres (boa ou má fé, titulada ou não, registada ou não) apenas influem no prazo necessário à usucapião (Prof. H. Mesquita, Direitos Reais, sumários, 1967, p. 112).
Vejamos se as recorrentes alegaram o referido complexo fáctico.
Quanto à posse das AA. e seu decurso temporal, tanto uma como outro foram alegados e constam dos factos provados, verificando-se o decurso quer por via da sucessão (do pai das AA. para elas, art. 1255 do CC - factos ns. 6 e 7 supra - em novação subjectiva na relação possessória, nas expressivas palavras de H. Mesquita, in obra cit. p. 103), quer por via da acessão (dos antecessores de F para este e sua mulher, seguida da aquisição por ele em partilha por divórcio e venda por ele ao pai das AA. art. 1256 do CC - factos ns. 1 a 4). Trata-se, além do mais, de posses consecutivas, homogéneas e sempre com o consentimento do possuidor anterior. Por outro lado, há nelas um verdadeiro acto translativo da posse e, na venda ao pai das AA, uma relação jurídica formalmente válida.
Ora, para efeitos da posse conducente à usucapião, não se torna necessário que aquela "se mantenha durante os prazos determinados na titularidade do mesmo sujeito; quando tenha havido transmissão da posse, o sujeito pode juntar à sua a posse do seu antecessor ou antecessores" (prof. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, ed. 1979, p. 681; no mesmo sentido, e expressamente para efeitos de invocação da usucapião, Prof. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5ª ed. p. 115 3 384).
Finalmente, os caracteres da publicidade e pacificidade foram alegados e provados - factos supra ns.3, 5 e 7.
Posto isto, é de perguntar: se não foi para invocar, embora implicitamente, a usucapião, para quê, então, os articulados 3, 5 e 7 da p.i.? Para que se deram as AA. ao trabalho de articular factos atinentes à posse, ao decurso do tempo, e à forma pacífica, pública, contínua, exclusiva, sem oposição, como ela foi exercida por si e pelos antepossuidores?
Por seu turno, os pedidos formulados na p.i., e supra-aludidos, no início do relatório, são suficientemente amplos para abrangerem o desiderato das AA. baseado nos dois fundamentos jurídicos.
Por tudo isto entendemos, ao contrário das instâncias, que, apesar de "canonicamente" pouco correcto, foi expressamente invocado pelas AA. o conjunto de factos subjacente à usucapião, e implicitamente manifestada a sua intenção de nela fundamentarem o seu direito. E se dúvidas houvesse, elas, por certo, dissipar-se-iam com as alegações produzidas na Relação e neste Supremo, onde as AA. sempre colocaram a questão.
Ora, o art. 5 do CReg.Pred., no seu n. 1 estabelece a regra da eficácia contra terceiros dos factos sujeitos a registo, depois da data deste mesmo registo. E o n. 2 contempla um regime excepcional, exceptuando da regra anterior a aquisição por usucapião, no que toca aos direitos referidos na al.a) do n. 1 do art. 2, isto é, os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão.
Pelo que se deixou dito acima, entendemos que, no caso sub judicio, tem plena aplicação o regime excepcional previsto na referida norma registral, que foi violada.
Com o Prof. Oliveira Ascensão (obra cit. p. 382), diremos que a usucapião "em nada é prejudicada pelas vicissitudes registais, vale por si, como resulta cabalmente do art. 5 n. 2 a) do CRP. Por isso, o que se fiou no registo (...) nada pode contra a usucapião". O que se compreende, já que é uma forma de aquisição originária.
Procedendo a excepção, torna-se inútil a apreciação da outra questão.
Termos em que se concede a revista, revogando-se o acórdão recorrido, pelo que, consequentemente, se declara:

A) - 1º as AA. donas e legítimas proprietárias dos prédios identificados sob os ns. 1 e 2 supra, que pertencem à herança indivisa de E;
2º inexistentes os direitos afirmados pela ré em oposição com o referido direito de propriedade;
3º ineficaz a venda judicial de 14-06-93 do 1º juízo, 1ª secção do tribunal judicial de Santarém, efectuada nos autos de carta precatória n. 2156/93 extraída dos autos n. 1491-A/90 do 8º juízo cível de Lisboa, mas apenas no que respeita aos prédios supra identificados sob os ns. 1 e 2;
B) - e se ordena o cancelamento dos registos de penhora F-2 e de aquisição G-4 que incidem sobre os referidos prédios supra identificados sob os ns. 1 e 2, bem como de quaisquer outros subsequentes.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 03 de Fevereiro de 1999.
Sousa Dinis,
Miranda Gusmão,
Sousa Inês.