Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A4044
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
CONTESTAÇÃO
ÂMBITO
Nº do Documento: SJ200412140040446
Data do Acordão: 12/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1271/04
Data: 05/11/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1 - Após a reforma do Código de Processo Civil que entrou em vigor em 1.1.97 a impugnação, pelo réu, dos factos articulados na petição inicial não tem que fazer-se, como dantes, facto por facto, individualizadamente, de modo rígido; pode ser genérica.
2 - E tendo sido eliminado, por outro lado, o ónus de impugnação especificada, é de concluir que a contestação por negação deixou em princípio de ser proibida.
3 - Todavia, recaindo agora sobre o réu o ónus de tomar "posição definida" sobre os factos da petição, só caso a caso é possível ajuizar acerca da observância da norma do artº 490º, nº 1, do CPC.
4 - Isto porque a "posição definida", núcleo irredutível do ónus de impugnação legalmente estabelecido, pode ter que assumir em concreto os contornos e a intensidade mais diversos, estando dependente, quer da estruturação da acção em termos de facto, quer da própria estratégia de defesa delineada pelo réu (defesa directa e - ou - defesa indirecta)
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. "A" e mulher B propuseram no Tribunal de Aveiro uma acção especial de prestação de contas contra seu irmão e cunhado C e mulher D.
Tendo em atenção que cabe ao autor, nos termos acordados, 15% sobre o capital social, ou 50% sobre a quota com o valor nominal de 900 contos adquirida em nome do réu, pediram a condenação deste a prestar contas ao autor relativamente à exploração do restaurante "...", pertencente à sociedade E, desde 1990 a 1998, e às cedências de quotas efectuadas em Agosto de 1998 a F; e pediram ainda a condenação de ambos os réus no pagamento do saldo que vier a apurar-se na sequência das contas a apresentar.
Depois da contestação dos réus e da resposta dos autores foi proferido despacho saneador sentença decidindo, no que agora interessa, o seguinte:
- Considerar assentes, por falta de impugnação nos moldes determinados pelo artº 490º, nº 1, do CPC, os factos descritos nos artºs 3º a 8º, 13º a 15º e 26º da petição inicial;
- Julgar o réu C constituído na obrigação de prestar contas, ordenando o cumprimento do artº 1014º, nº 5, do CPC.
Sob apelação dos réus, a Relação de Coimbra confirmou a sentença.
Daí a presente revista em que, imputando ao acórdão recorrido a violação dos artºs 510º e 490º do CPC, os réus pedem a sua revogação e o prosseguimento dos autos mediante a selecção da base instrutória.
Os autores contra alegaram, defendendo a improcedência do recurso.
2. A contestação dos réus é do seguinte teor (os sublinhados são da nossa autoria):
1º Peca por falta de exactidão, é pouco rigoroso ou adultera os factos o conteúdo da douta petição.
2° Por isso, vai a douta petição totalmente impugnada, o que se faz nos termos do artigo 490º do Código de Processo Civil, disposição que substituiu o ónus da impugnação especificada pelo ónus da impugnação expressa e consagra o princípio da admissibilidade da contestação por negação.
3º Impugna-se, igualmente, o documento 3 junto com a douta petição, que, aliás, não passa de um anódino "papelucho", como bem lhe chamam os autores no artigo 23° da douta petição,
4º Na verdade, trata-se de escrito sem data nem assinatura, aparentemente antigo, que não permite que os réus recordem se e quando nele participaram e a que título.
5º Em todo o caso, sempre se dirá que a aquisição ou cessão de quota só é válida se for observado o formalismo legal.
6º Ora, os autores não alegam, sequer, a existência dos contratos, legalmente adequados, através dos quais pudessem ter tomado ou prometido tomar posições em "E.
7º Assim, sempre a suposta qualidade de "sócio" do autor em tal sociedade não passaria de ficção, por falta do formalismo legal.
8° Porque a douta petição aflora factos parcialmente conformes realidade, acrescentar-se-á que o réu marido, por afecto fraternal, muito ajudou e beneficiou o seu irmão A, o ora autor.
9° Na verdade e além do mais, o réu marido adquiriu para o autor três vintavos de uma casa de dois pavimentos, no Cais dos Mercanteis, o que fez através do correspondente formalismo (documento 1, que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, mormente para os de alegar e produzir prova sobre o seu conteúdo),
10° Trata-se de imóvel de valor nada despiciendo - estima-se que valha largos milhares de euros - que apareceu na esfera jurídica do autor "de mão beijada"!
11º Lamenta-se que o autor omita este importante e valioso benefício que o réu lhe concedeu.
12º Improcede, por isso, a pretensão dos autores que, por isso, deve ser desatendida.
Os factos dados por assentes na sentença, por seu turno, foram estes:
1 - O A. e o R., que são irmãos, acordaram, verbalmente, em 1990, em adquirir a quota de 900.000$00 que um tal G tinha na sociedade "E L.da", dona do Restaurante "...", sito no Cais dos Mercantéis na cidade de Aveiro.
2 - Esta quota correspondia a 30% do capital social da dita sociedade.
3 - Ambos assentaram em que a dita quota fosse comprada por ambos, em partes iguais.
4 - No entanto, a escritura de cessão da quota seria celebrada apenas pelo Réu C, que ali figuraria como único adquirente, para assim ter mais "força social" no desenvolvimento da empresa, nomeadamente, nas reuniões de trabalho e assembleias gerais, com a posição de gerente e de trabalho no restaurante.
5- Acordaram, ainda, que todos os anos o C prestaria contas ao irmão.
6 - O R. obteve do G a cessão da quota de 900.000$00 a este pertencente na sociedade "E L.da", e registou-a a seu favor pela inscrição n° 4, Ap. 33/900131 - fls. 12.
7 - Esta quota foi adquirida com capital do A. e do R., na proporção de metade para cada um.
8 - A sociedade antes referida tinha, à data da cessão, o capital social de 3.000.000$00- fls. 12.
9 - O Réu C passou a ter o cargo de gerente, em resultado da "Alteração do Pacto" que foi levada ao registo pela inscrição n° 7, Ap. 37/900131 - fis. 13.
10 - O Réu C cedeu todas as quotas que tinha na sociedade "E L.da", a F, tendo-a este registado a seu favor pela inscrição n° 13, Ap. 02/980616.
11 - E renunciou ao cargo de gerente, a 30/03/98, renúncia que foi registada pela inscrição feita pela Ap. 02/980616.
12 - Em 1991, o R. entregou ao A. a percentagem de lucros, havidos no ano anterior e correspondentes à sua fracção acordada na quota, de 3.000.000$00.
13 - A partir daí não lhe entregou qualquer outra quantia, apesar de para isso solicitado pelo A.
14 - Sob o n° 00837/150591 está descrito na CRP de Aveiro o seguinte: Prédio urbano - casa de dois pavimentos, com a área de 106,50 m2, sita no Cais dos Mercantéis, que confronta, do norte, com H, do sul, com Travessa do Lavadouro, do nascente, com Cais dos Mercantéis e, do poente, com Rua das Marinhas, inscrita na matriz sob o artigo 245- fls 33.
15 - Proprietários inscritos são, pelas inscrições G-3, Ap. 12/101292, e G-4, Ap. 02/040292, C, na proporção de 16/20, A na proporção de 3/20 e I, na proporção de 1/20 - fls 34.
Cotejando este acervo de factos com os articulados produzidos, verifica-se que a 1ª instância não considerou que a matéria alegada nos artºs 3º a 12º da contestação tivesse sido suficiente para dar como satisfeito o ónus de impugnação estabelecido no artº 490º, nº 1, do CPC. Não é, porém, contra este segmento da decisão que os recorrentes se insurgem. Na verdade, não procuram na presente revista demonstrar que visaram concretizar e densificar através da matéria factual constante daqueles artigos a alegação genérica inserida no artº 1º e rematada no 2º com a expressão atrás sublinhada, deste modo inviabilizando, na sua perspectiva, a possibilidade a que a 1ª instância deu corpo de considerar assente por admissão o indicado conjunto de factos. Não. O âmbito da revista é mais preciso e restrito, definindo-se do modo que segue. Na tese dos réus, o artº 490º do CPC, na sua versão actual, consagra o princípio da admissibilidade da contestação por negação, em vez do ónus da impugnação especificada anteriormente vigente; e ao impugnarem "totalmente" a petição nos termos consignados no artº 2º da contestação tomaram a posição mais definida que era possível sobre aquele articulado dos autores; a mais não eram obrigados, pois é aos recorridos, consoante dispõe o artº 342º, nº 1, do CC, que cabe provar os factos constitutivos do direito que invocam; logo, a sentença não podia dar como assente, como deu, uma matéria que foi "totalmente" impugnada.
A única questão a decidir, portanto, é esta:
Os recorrentes observaram, ou não, o ónus de impugnação quanto aos factos respeitantes ao negócio atípico de participação social em que radicou o pedido de prestação de contas?
A resposta que consideramos correcta já está de certo modo contida na pergunta; e pode desde já adiantar-se que os recorrentes não têm razão.
O artº 490º do CPC sofreu alterações significativas com a reforma do código de processo entrada em vigor no dia 1.1.97.
Para o caso presente interessa realçar as seguintes:
- No nº 1, correspondente à 1ª parte do nº 1 originário, a expressão "perante cada um dos factos" foi substituída por "perante os factos";
- No nº 2, correspondente à 2ª parte do nº 1 originário, foram suprimidos o advérbio "especificadamente" (impugnados especificadamente) e o adjectivo "manifesta" (manifesta oposição);
- Desapareceu o nº 3 originário, que dispunha: "Não é admissível a contestação por negação";
- E desapareceu, ainda, o nº 5, introduzido pela reforma intercalar de 1985, que dispunha poder a impugnação ser feita, total ou parcialmente, por simples menção dos números dos artigos da petição inicial em que se narrassem os factos contestados.
O que destas "cirúrgicas" modificações resulta, sem qualquer dúvida, é a maleabilização, ou aligeiramento, ou desformalização do ónus de impugnação, tendo em vista, segundo se refere no preâmbulo do DL 329-A/95, fazer com que a "verdade processual reproduza a verdade material subjacente". Presentemente, a impugnação não tem que fazer-se, como dantes, facto por facto, individualizadamente, de modo rígido; pode ser genérica. E parece, até, que deixou de ser proibida a contestação por negação, pois caiu, como se disse, o anterior nº 3, sendo certo que a proibição ali contida era o lógico corolário do ónus da impugnação especificada. Está assim claro que, desaparecido este ónus, não pode deixar de concluir-se que ao dizer de uma só vez que são falsos todos os factos alegados pelo autor, o réu, em princípio, está a cumprir o ónus de impugnação na sua presente configuração. Por um lado porque, fazendo-o, toma uma posição definida sobre todos os factos invocados pela parte contrária na petição; por outro lado porque tal posição se traduz exactamente na refutação desses factos, na recusa de os admitir como verdadeiros.
Isto, porém, como se disse, só em princípio, só em abstracto é assim.
Sendo inequívoco que a lei continua a estabelecer um ónus de impugnar, socorrendo-se de uma fórmula para o definir que é um verdadeiro conceito indeterminado - "ao contestar, - diz o artº 490º, nº 1 - deve o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição" - só caso a caso, perante as particularidades de cada hipótese concreta, é possível ajuizar acerca da observância desta norma adjectiva. A posição definida a que a lei alude pode assumir os contornos, a intensidade, a "cor" mais diversa, tudo dependendo, desde logo, quer da estruturação da acção em termos de facto, quer da própria estratégia de defesa delineada pelo réu. Tenha-se em atenção que não é exactamente o mesmo, bem pelo contrário, uma defesa directa (em que o réu nega frontalmente, sem mais, a verificação dos factos) e uma defesa indirecta (em que o réu, nomeadamente, confessando ou aceitando uma parte dos factos alegados, aponta outros que são incompatíveis com a existência de factos invocados na petição). E assim, se pode reconhecer-se que em dada situação uma contestação por negação ou de todo em todo genérica não envolve infracção do ónus estabelecido na lei, terá também de admitir-se que noutras situações se imporá uma resposta diametralmente oposta. Ao fim e ao cabo o preenchimento valorativo do conceito indeterminado a que aludimos será sempre o resultado, se assim nos podemos exprimir, de duas variáveis: de um lado, o planeamento da defesa assumida pelo réu e o modo como a põe em prática, tudo em larga medida dependente do valor profissional e da exigência deontológica do respectivo advogado; do outro, o justo sentido da medida e da proporção das coisas por parte do juiz, que deve, em matéria como a presente, levá-lo a agir com toda a prudência, estudando cuidadosamente, quer todos os factos que fundamentam o pedido e a causa de pedir, quer o posicionamento assumido pelo réu em face deles. Resta sempre, de qualquer modo, a total pertinência do comentário de um reputado Autor à alteração legislativa em análise: estamos convencidos, porém - escreve António Montalvão Machado em O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à Luz do Novo Código de Processo Civil, pág. 200 - é de que ela (a novidade legislativa) não terá um grande alcance prático. O ónus de impugnação manteve-se (e bem) e, por isso, os advogados portugueses sentirão uma natural necessidade de refutação de todos os factos que sejam prejudiciais aos interesses processuais dos seus constituintes. E para bem refutá-los, e para que não fiquem dúvidas ao juiz acerca de tal posição impugnante da parte, aqueles profissionais forenses sentirão a mesma necessidade de se pronunciarem sobre eles individualmente. É que o aligeiramento da tarefa de impugnação pode ser perigoso".
No caso ajuizado, os réus começaram por dizer - artº 1º da contestação - que a versão dos factos apresentada na petição era falha de exactidão e pouco rigorosa, adulterando a realidade. Só que, logo de seguida, quando seria de esperar - e de exigir - que apontassem as inexactidões e as faltas de rigor, "repondo" a verdade, isto é, descrevendo a sua versão das coisas, limitaram-se, comodamente, a afirmar que daquele modo ficava a petição integralmente impugnada, como a lei determina. Ora parece evidente que, tendo em conta a natureza dos factos invocados na petição, por um lado, e da própria impugnação anunciada no referido artº 1º da contestação, por outro, - uma impugnação em parte directa, em parte indirecta - a posição definida perante os factos invocados pelo autor que integra o núcleo irredutível do ónus de impugnação reclamava uma explanação minimamente detalhada da versão tida por verdadeira por parte dos réus; uma explanação que não só pusesse a nu as alegadas inexactidões e faltas de rigor relatadas na petição inicial, mas também descrevesse os factos concretos que, contrapondo-se àqueles, pudessem levar o juiz à conclusão, ou de que não há contas a prestar, ou de que tal obrigação existe, mas com conteúdo diverso do desenhado na petição. Tal seria, de resto, a conduta processual que melhor se ajustaria aos princípios da igualdade e da cooperação que dominam o processo civil (cooperação das partes entre si e com o tribunal para se chegar à justa composição do litígio, difícil, se não mesmo impossível de obter quando logo no apuramento da base de facto claudica o esforço que todos sem excepção, a começar pelas partes, devem fazer nesse sentido). Importa dizer, para concluir, que a atitude dos réus - de puro e simples refúgio na negação total dos factos da petição, sem mais - suscita mesmo dúvidas acerca da boa fé com que litigam, sabido que alguns dos factos dados como assentes estão plenamente provados por documentos autênticos, como é o caso da cessão de quotas e das alterações do pacto social da sociedade referenciada nos autos. O decurso do processo por certo que permitirá dissipar as dúvidas a este respeito.
Respondida negativamente a pergunta formulada, e não estando posto em causa o acerto da decisão impugnada quando se mantenha inalterado o elenco dos factos assentes, como é o caso, torna-se claro que o recurso deve improceder.
3. Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2004
Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira