Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | FARIA ANTUNES | ||
| Descritores: | EXECUÇÃO FUNDADA EM LETRA DE CÂMBIO LETRA DE FAVOR EMBARGOS DE EXECUTADO | ||
| Nº do Documento: | SJ200701310044951 | ||
| Data do Acordão: | 01/31/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Sumário : | I- A pretensão executiva cambiária não se reconduz a uma obrigação causal, mas a uma relação abstracta visto o título incorporar e definir o próprio direito formal, que é independente e se destaca da causa debendi, fornecendo a abstracção, a autonomia e a literalidade, características do título executivo cambiário, potencialidade suficiente para fundar a execução. II- Alegando o embargante que a letra é de favor, terá a seu cargo, nas relações imediatas, o ónus da prova da completa ausência de um negócio subjacente à letra exequenda, ou seja que apenas existiu uma concreta e pormenorizada convenção de favor anteriormente à emissão desse título. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA e mulher BB deduziram embargos à execução para pagamento de quantia certa movida por CC, na qual este pretende o pagamento da quantia de € 35.093,73, acrescida de juros de mora vencidos no montante de € 1.122,98, e dos vincendos, montante aquele titulado pela letra de câmbio dada à execução, do aceite do embargante, avalizada por ambos os embargantes e do saque do embargado. Alegaram que a subscrição daquele título executivo, quer quanto ao aval, quer quanto ao aceite, não corresponde a qualquer dívida assumida perante o embargado, representando tão-só a colaboração que deram a este para obtenção de um financiamento junto de terceiro, dado o embargado atravessar dificuldades financeiras, tratando-se no fundo de uma subscrição de favor, não lhe subjazendo qualquer relação jurídica fundamental, a não ser a mencionada convenção de favor, tratando-se por isso de uma letra de favor, o que justifica não lhes seja exigível pelo embargado o montante titulado em tal letra. Por despacho transitado, foi considerada intempestiva a oposição deduzida pela embargante mulher, ordenando-se o prosseguimento dos embargos apenas quanto ao embargante marido. O embargado contestou impugnando a factualidade aduzida na petição de embargos, esclarecendo que os embargantes firmaram a sua assinatura no dito título numa assunção pessoal e solidária de uma dívida relativa a uma sociedade de que os memos eram sócios para com uma outra de que era sócio o embargado, agindo este em representação e sem mandato desta última sociedade para cobrança do respectivo crédito. No regular processamento dos autos foi a final proferida sentença que julgou improcedentes os embargos, devendo a execução prosseguir os seus termos também contra o embargante marido. Inconformado com o assim decidido, interpôs o embargante recurso de apelação para a Relação do Porto, que todavia confirmou o sentenciado. Recorre agora de revista, concluindo: 1º- Está provado nos que: - O recorrido sacou sobre o recorrente uma letra de câmbio com a data de 11.9.2003, com vencimento em 15.9.2004, no valor de 35 093,73 €; - A letra não contém a menção de qualquer causa que justifique a sua criação; - O recorrente aceitou aquela letra; - O recorrido não fez qualquer sacrifício patrimonial como contrapartida ou correspectivo do aceite daquela letra, em proveito do recorrente (ou de outrem); 2º- A letra de câmbio tem como pressuposto da sua criação um direito patrimonial do seu sacador (criador), de valor pecuniário idêntico ao direito mencionado na letra; 3º- Decorre dos factos julgados provados que o recorrido não tinha nem tem - qualquer direito patrimonial sobre o recorrido, que pudesse ser pressuposto do direito cartular (do direito constante da letra); 4º- Por isso, o aceite dessa letra só podia assentar na intenção do recorrente fazer um favor ao recorrido ou de promessa de lhe fazer uma liberalidade, sendo certo que esta não foi por ele alega da nem provada, e sempre não seria exigível judicialmente; 5º- O recorrente tem assim o direito de deduzir tal excepção à pretensão do recorrido, porque estamos no domínio das relações imediatas (artº 17º da LULL); 6º- Estando assim demonstrado que o recorrente nada deve ao recorrido, a exigência de tão avultado sacrifício patrimonial viola o princípio do enriquecimento sem causa (artes. 473º, e segts. do CC), sendo ainda certo que o recorrido age com abuso de direito porque a sua pretensão excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico do direito que exerce; 7º- Como o acórdão recorrido violou as normas invocados nestas conclusões, o recurso deverá proceder a oposição deduzida. Contra-alegou o recorrido em apoio do acórdão em crise. Com os vistos, urge agora decidir. A Relação deu como definitivamente assentes os factos dados como provados pela 1ª instância, a saber: 1 - Na execução para pagamento de quantia certa, sob a forma comum, que CC move a AA e BB, foi dada à execução um título de crédito com o nº ..., no qual está aposta a expressão "letra", constando, no local e data de emissão, "Fradelos 03.09.11”; no local da importância, "35.093,73 €”; no local do vencimento, "2004.09.15”; no local do sacador, "CC”; no local do nome e morada do sacado, "AA, Rua ..., nº 1074, A-ver-o-Mar - Póvoa de Varzim"; no local destinado ao valor (correspondente à indicação da obrigação), nada consta; finalmente, consta, de forma transversal e no local do aceite, uma assinatura correspondente ao nome do sacado (A)); 2 - No verso da letra identificada no ponto anterior, de forma transversal e no local do aval, está aposta, por duas vezes, a expressão "dou o meu aval ao subscritor", por baixo de cada uma constando as assinaturas correspondentes aos nomes "AA" e "BB" (B)); 3- O oponente AA nunca adquiriu quaisquer bens ou serviços ao embargado (1º). Perante estes escassos factos (veremos o muito que ficou por provar…), não podem os embargos deixar de soçobrar, nada havendo a censurar quanto à fundamentação e à decisão do acórdão recorrido, que se sufragam. O recorrido instaurou a acção executiva com base na relação cambiária ou cartular, e o recorrente excepcionou que a letra é de favor (quer quanto ao aceite quer quanto ao aval, que também subscreveu), e que pode esgrimir essa defesa por se estar ainda no domínio das relações imediatas. A letra de favor, na docência de Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, 1966, Letra de Câmbio, Vol III, pág. 49), tem como características: (a)) não ter o subscritor a intenção de vir a desembolsar o montante da letra, querendo apenas, ao apor nela a sua assinatura, facilitar, pela garantia que esta representa, a circulação do título, não deixando de agir com consciência de ficar cambiariamente obrigado em virtude da subscrição; (b)) não haver uma relação jurídica fundamental estabelecida entre ele e o favorecido, além da que decorre da própria convenção de favor, obrigando-se portanto apenas pelo “favor” e não porque já o fosse em virtude de outra relação extra-cartular. Há por conseguinte, na letra de favor, a assunção de uma obrigação cambiária que não tem correspondência com uma qualquer relação subjacente ou fundamental. Para que a letra exequenda pudesse ser considerada de favor seria pois necessário que se mostrasse provado que o recorrente não tem qualquer responsabilidade anterior para com o recorrido. Ora o recorrente não logrou provar isso, como lhe competia (artº 342º, nº 2 do CC), pois se quedou improvada a factualidade por si alegada e levada aos quesitos 2º a 15º da base instrutória, com a seguinte redacção: - Em data próxima da constante na letra dada à execução como data de emissão, o embargado pediu ao embargante para este colaborar com ele numa operação de financiamento? - Essa operação tinha o valor mencionado na letra dada à execução? - O embargado fez este pedido ao embargante porque se encontrava em dificuldades financeiras? - O embargado disse ao embargante que tinha uma pessoa na família que lhe emprestaria a quantia mencionada na letra pelo prazo de um ano? - Este empréstimo apenas seria feito ao embargante (queria evidentemente escrever-se embargado) na condição de o embargado (queria seguramente escrever-se embargante) aceitar a letra dada à execução? - O embargante acedeu ao pedido do embargado? - Fê-lo porque tinha relações de amizade e confiança com o embargado? - Fê-lo para ajudar o embargado a resolver o problema financeiro? - O embargado combinou com o embargante que seria feito um documento por um advogado? - Que o embargado assinaria, comprometendo-se a pagar a letra? - O embargante entregou a letra ao exequente? - O embargante pediu a um advogado de Vila do Conde para elaborar esse documento? - O embargante, alguns dias depois, comunicou ao embargado que já tinha o documento para ele o assinar? - O embargado nunca mais apareceu no escritório do embargante para assinar o documento?. Como se vê, o recorrente defendeu-se por excepção, sustentando que a letra exequenda consubstanciou apenas um meio de facultar ao recorrido um financiamento através de um familiar, sendo o recorrente um mero favorecente, quer como aceitante quer na veste de avalista, nada devendo por isso ao recorrido. Todavia, não provou essa tese, como denotam as respostas negativas aos quesitos transcritos. O recorrente não provou os factos constitutivos da alegada excepção, que lhe incumbia provar (artº 342º, nº 2 do CC), a tanto não obstando a circunstância de se ter provado que o recorrente nunca adquiriu quaisquer bens ou serviços ao embargado (resposta positiva ao quesito 1º), pois isto não equivale a dar como assente que inexiste qualquer relação subjacente ou fundamental à subscrição da letra como aceitante e avalista, e que tão-só existiu uma convenção de favor. Como bem se acentuou no acórdão em crise, a circunstância apurada de o recorrente jamais ter adquirido quaisquer bens ou serviços ao recorrido não pode significar, por si, só que nenhuma relação causal esteve na génese da subscrição do título,a não ser a verificação de uma situação de favor. Ignora-se – é certo – qual a concreta relação jurídica subjacente ou fundamental, a verdadeira causa debendi justificativa da subscrição da letra de câmbio, mas não era ao recorrido que incumbia provar essa relação já que lhe é facultado prevalecer-se na execução apenas da relação cambiária, instaurando a acção executiva com base na relação ou no “direito cartular” incorporado na letra de câmbio, que é um título de crédito autónomo da relação fundamental que subjaz à respectiva emissão. A pretensão executiva cambiária, ao invés do que normalmente sucede, não se reconduz a uma obrigação causal, mas antes a uma obrigação abstracta, não carecendo o exequente de alegar a causa da obrigação, podendo exigir do devedor a respectiva prestação sem alegação da causa justificativa do pretendido recebimento, portanto sem estar vinculado a invocar o negócio subjacente ou fundamental, podendo instaurar a acção executiva somente com base na letra, por tal título incorporar e definir o próprio direito formal, que é independente e se destaca da causa debendi. A abstracção, a autonomia e a literalidade, características do título executivo, fornecem ao documento potencialidade suficiente para fundar a execução. Incumbia ao recorrente provar que anteriormente à emissão do título cambiário existiu unicamente a concreta convenção de favor por ele pormenorizadamente articulada na petição de embargos e vazada no questionário (quesitos 2º a 15º), ónus de prova a que não logrou dar cumprimento. Subsistindo a obrigação cambiária do recorrente, terá pois a execução de prosseguir também contra ele (aceitante e avalista), cuja obrigação cambiária nasceu desde logo com a sua assinatura (artºs 28º, 32º e 43º da LULL), falecendo manifestamente, do que vem dito, a arguição da peremptória do abuso de direito e a invocação do instituto do enriquecimento sem causa. Eis porque, face à justeza do decidido e respectiva motivação, para que também se remete, acordam em julgar improcedentes todas as conclusões recursórias, negando a revista e condenando o recorrente nas custas. Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Janeiro de 2007 Faria Antunes (relator) Sebastião Póvoas Moreira Alves |