Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B4160
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PROVA TESTEMUNHAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CONTRATO-PROMESSA DE CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
CONTRATO DE CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: SJ200611230041607
Data do Acordão: 11/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO.
Sumário : 1. É legalmente admissível a prova testemunhal às questões de saber se em determinada data o autor disse ao réu que tinha vendido a sua posição contratual a outrem e que já tinha dele recebido o valor do sinal entregue ao último mais o lucro que pretendia.
2. O Supremo Tribunal de Justiça não pode modificar a decisão da matéria de facto que não envolva infracção de alguma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência de algum facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova.
3. A circunstância de as partes se referirem no clausulado negocial à promessa de cessão da posição de promitente-comprador não obsta à qualificação do contrato em causa como de cessão de posição contratual segundo o entendimento de um declaratário normal.
4. A alienação do objecto mediato do contrato de compra e venda pelo promitente vendedor a terceiro é equiparada ao incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda sem eficácia real
5. Cedida pelo promitente comprador a outrem a sua posição no contrato-promessa, nada tem direito a exigir do promitente vendedor, a título indemnização ou de enriquecimento sem causa, por ele ter alienado a pessoa diversa do cessionário o objecto mediato do contrato prometido. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I
"AA" intentou, no dia 10 de Março de 2003, contra BB, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a restituir-lhe em dobro a quantia que lhe entregou, no montante global de € 26 176,91, ou subsidiariamente, a entregar-lhe € 13 088,46 e, a título de enriquecimento sem causa, a pagar-lhe o valor dos rendimentos que poderia ter auferido se tivesse efectuado a aplicação financeira daquela quantia computada pelos juros bancários de depósito a prazo de dois anos desde a data do contrato promessa até integral pagamento, a liquidar em execução de sentença.
Fundamentou a sua pretensão no incumprimento pelo réu, como promitente vendedor, de um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma do edifício sito na freguesia de Gulpilhares, Vila Nova de Gaia, por virtude de a ter vendido a CC.
Em contestação, afirmou o réu que se limitou a negociar directamente com DD a quem a autora disse ter vendido a sua posição contratual e de quem tinha recebido o valor do sinal que ela lhe havia entregue e o lucro pretendido e na pretensão de DD de desistir do negócio e na entrega àquele, por acordo, € 22 445.
E, pediu a condenação da autora como litigante de má fé em multa e indemnização a fixar em execução de sentença pelos prejuízos que lhe advenham da acção, e, na réplica, aquela ampliou a causa de pedir e inseriu um pedido subsidiário, pedindo a condenação do réu a indemnizá-la por litigância de má fé pelo montante de € 2 000.
A autora requereu no início da audiência de discussão e julgamento que não fosse admitida a prova testemunhal aos quesitos 1º e 2º da base instrutória, o que, após oposição do réu, veio a ser indeferido por despacho de que ela agravou.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 27 de Abril de 2005, por via da qual o réu foi absolvido dos pedidos.
Apelou a autora, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Junho de 2006, negou provimento aos recursos de agravo e de apelação.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão fez errado enquadramento dos factos do contrato-promessa de cessão da posição contratual:
- a recorrente e o promitente cessionário subordinaram a sua vontade de posteriormente ceder a sua posição contratual a determinadas condições;
- não houve contrato de cessão contratual antes da escritura e não houve escritura de compra e venda entre o promitente vendedor e a recorrente e o promitente cessionário;
- o contrato-promessa só podia modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes reduzido a escrito, e foram violados os artigos 376º, nº 1 e 425º do Código Civil;
- devia ser declarado nulo ou ineficaz em relação à recorrente o alegado contrato de cessão de posição contratual por falta da forma legalmente prevista;
- o acórdão recorrido violou os artigos 376º, nº 1, e 425º do Código Civil, fazendo inadequada aplicação do direito aos factos;
- a aquisição provisória do imóvel por outrem ocorreu no dia 9 de Outubro de 2000, o que revela que o recorrente mentiu na contestação, porque a desistência do promitente cessionário verificou-se em Setembro de 2002, e as instâncias não se pronunciaram sobre esta matéria;
- o facto provado por testemunhas visto à luz do alegado pelo recorrido contradiz o documento certificado pela Conservatória do Registo Predial;
- as instâncias não analisaram o conteúdo do facto contido na certidão do registo predial subalternizando a prova documental, devendo o acórdão ser substituído por outro que julgue a acção procedente.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. O réu e a autora declararam, por escrito particular, no dia 7 de Outubro de 1997:
- o primeiro prometer vender e a última prometer comprar, livre de ónus e encargos, pelo preço de € 65 442,28 a fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra H 16, sita no 2º andar do edifício composto por cave, rés do chão, primeiro e segundo andar, sito na Rua Nuno Álvares, freguesia de Gulpilhares, Vila Nova de Gaia, com o processo de construção n.º 197/97, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 9715, correspondente à fracção "Q", descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 01304/140497;
- ser o preço pago da seguinte forma: a) correspondente a € 13 088,46 como sinal e princípio de pagamento b) correspondente a € 52 353, 83 como último pagamento na data da outorga da escritura de compra e venda, e ter o réu recebido a quantia mencionada sob a) no acto da assinatura do contrato promessa;
- dever a escritura pública ser marcada pelo réu, tendo para isso que avisar a autora, por carta registada, do local, data e hora da sua realização, com oito dias de antecedência, a ocorrer provavelmente até 30 de Outubro de 1999.
2. No dia 30 de Agosto de 1999, a autora e DD declararam, por via de escrito particular, denominado contrato promessa de cessão de posição contratual, além do mais que aqui não releva:
- a primeira contraente prometer ceder ao segundo, e este, por sua vez prometer adquirir-lhe por cessão, por 16 000 000$, a posição contratual que ela cedente detém no contrato promessa, e ela, como sinal e princípio de pagamento, receber dele, nessa data, 1 500 000$ do preço de cessão;
- ser o pagamento da quantia referida efectuado mediante empréstimo que, para o efeito, o segundo contraente já solicitou a uma instituição de crédito, e, no caso do aludido empréstimo não vier a ser concedido, ficar este contrato sem efeito, cessando, deste modo, todos os seus efeitos entre as partes contraentes e não havendo lugar ao pagamento de qualquer indemnização por esse facto;
- obrigar-se o segundo contraente a comunicar por escrito e de imediato à primeira contraente o indeferimento acima referido, produzindo a aludida cessação deste contrato todos os seus efeitos a partir do recebimento dessa comunicação por parte da primeira;
- dever a primeira contraente receber ainda do segundo contraente a quantia de 1 625 000$ até de 31 de Setembro de 1999, e a restante quantia em dívida relativa ao preço desta cessão, no valor de 2 379 000$, ser paga pelo segundo contraente aquando da outorga do prometido contrato de cessão da posição contratual referida, ou no acto da outorga da escritura pública de compra e venda entre o aqui promitente cessionário e o promitente vendedor no contrato-promessa primeiramente identificado no caso de a cedência ocorrer no acto da referida escritura;
- obrigar-se a primeira contraente a comunicar por escrito ao promitente vendedor que cedeu a posição contratual do contrato referido ao segundo contraente logo que ocorra a cedência dessa posição contratual nos termos acima expostos;
- efectuada a cessão de posição contratual, o segundo contraente ocupará a posição que a primeira contraente detinha no contrato promessa de compra e venda, assumindo a titularidade de todos os direitos e obrigações inerentes à posição contratual cedida;
- em cumprimento das obrigações contratuais decorrentes do contrato promessa de compra e venda primeiramente identificado - cuja posição de promitente comprador se promete ceder por via deste contrato - o segundo contraente pagará ao promitente vendedor daquele contrato-promessa de compra e venda da aludida fracção a quantia de 10 496 000$, para completa e integral satisfação do preço estipulado naquele contrato.
3. Como sinal de pagamento, a autora recebeu na data do contrato aludido sob 2 a quantia de 1 500 000$, e ainda recebeu de DD a quantia de 1 625 000$.
4. O réu foi informado do negócio celebrado entre a autora e DD - em data não concretamente apurada - e a partir de um determinado momento - concretamente não apurado - o primeiro passou a tratar com o segundo, pelo menos, os assuntos relativos à escolha e aplicação de materiais na fracção predial aludida sob 1.
5. DD - em data concretamente não apurada - pretendeu desistir do negócio, e o réu acordou com ele a entrega da quantia de € 22 445.
6. O réu declarou vender e CC a fracção predial mencionada sob 1.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não direito a exigir do recorrido a restituição de € 26 176,91, ou metade dela, e o valor correspondente ao rendimento que poderia ter auferido da aplicação financeira da quantia por último mencionada.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- legalidade ou ilegalidade da prova testemunhal produzida sobre os quesitos primeiro e segundo da base instrutória;
- deve ou não reapreciar-se a decisão da matéria de facto das instâncias?
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e o recorrido;
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e DD;
- incumpriu ou não o recorrido o contrato celebrado com a recorrente?
- há ou não fundamento para o funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise da legalidade ou não da prova testemunhal produzida sobre os quesitos primeiro e segundo da base instrutória.
A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando este declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras (artigo 374º, nº 1, do Código Civil).
Resulta, pois, deste artigo que os documentos particulares não provam por si só a genuinidade da proveniência que aparentam, ou seja, a veracidade da sua letra e assinatura dependem do reconhecimento expresso ou tácito pela parte no confronto da qual são apresentados.
Estabelece, ademais, a lei, por um lado, que os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos referidos provam plenamente as declarações neles atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (artigo 376º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, que se consideram provados os factos compreendidos nas declarações se forem contrários aos interesses dos declarantes, e que essas declarações são indivisíveis nos termos prescritos para a prova por confissão (artigo 376º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Assim, devem considerar-se plenamente provadas as declarações contrárias aos interesses dos respectivos declarantes, mas tal não impede a sua impugnação com base em falta ou vícios de vontade nos termos gerais.
Como nem o recorrido nem a recorrente nem outrem puseram em causa a letra ou a assinatura do documento mencionado sob II 2, a conclusão é no sentido de que ele prova plenamente as declarações nele produzidas pela segunda e por DD.
A prova por testemunhas é admitida em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada (artigo 392º do Código Civil).
Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrita ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida a prova testemunhal (artigos 393º, nº 1, do Código Civil).
Também não é admitida a prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena (artigo 393º, nº 1, do Código Civil).
As referidas regras proibitivas de prova testemunhal são inaplicáveis à simples interpretação do contexto do documento (artigo 393º, nº 3, do Código Civil).
É ainda inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º do Código Civil, sejam ou não anteriores ou contemporâneas à sua formação (artigo 394º, nº 1, do Código Civil).
A validade do contrato mencionado sob II 2 depende da sua redução a escrito (artigos 410º, nº 1, 425º e 875º, todos do Código Civil).
Em consequência, as declarações negociais dele constantes nem qualquer convenção a elas contrárias ou adicionais, fossem estas contemporâneas ou posteriores, não podiam ser objecto de prova testemunhal.
Nos quesitos primeiro e segundo da base instrutória foi perguntado, respectivamente, se entre Abril e Maio de 1998 a autora disse ao réu que tinha vendido a sua posição contratual a DD, e que já tinha recebido deste o valor do sinal entregue ao Réu mais o lucro que pretendia.
O segundo dos referidos quesitos obteve a resposta não provado e o primeiro a de que o réu foi informado do negócio celebrado entre a autora e DD.
O conteúdo dos referidos quesitos centra-se no que a recorrente disse relativamente aos factos a que se reportam, ou seja, o seu objecto é uma mera declaração de ciência, pelo que não tinha a virtualidade de contrariar o conteúdo do documento mencionado sob II 2.
Assim, o seu conteúdo não se traduz em declaração negocial coincidente, contrária ou complementar em relação às declarações negociais materializadas no mencionado documento.
Por isso, ao invés do que a recorrente alegou, não estava legalmente vedada a produção de prova testemunhal em relação ao conteúdo dos referidos quesitos.
Em consequência, ao manter o despacho proferido no tribunal da 1ª instância que admitiu a produção da prova testemunhal sobre os quesitos primeiro e segundo da base instrutória, a Relação não infringiu as normas dos artigos 376º, nº 1 ou 425º do Código Civil, nem quaisquer outras.

2.
Alegou a recorrente que a aquisição provisória do imóvel por outrem ocorreu no dia 9 de Outubro de 2000 e que isso revelava que o recorrente mentiu na contestação, porque a desistência do promitente cessionário se verificou em Setembro de 2002, e que instâncias não se pronunciaram sobre esta matéria.
No recurso de apelação alegara a recorrente ter o tribunal da 1ª instância omitido a consulta da certidão emitida Conservatória de Registo Predial junta com a petição inicial para verificar que a aquisição provisória da fracção por CC e o registo da hipoteca a favor dela eram datadas de 19 de Outubro 2000 e que aquisição definitiva da fracção ocorrera no dia 26 de Fevereiro de 2001.
Alegou, ademais, a nulidade da sentença por ser contrária à lei, sem especificar alguma das situações a que se reporta o artigo 668º, nº 1, do Código de Processo Civil, designadamente a omissão de pronúncia prevista na sua alínea d).
Aquela alegação implicita que este Tribunal deve considerar neste recurso a mencionada factualidade, ou seja, que deve ampliar a decisão da matéria de facto, porque o elenco dos factos mencionados sob II, que foi considerado pela Relação, a não insere.
A recorrente alega que a mencionada factualidade consta da certidão do registo predial, mas não que a tivesse articulado na petição inicial em termos de sobre ela incidir a produção de prova, certo que os documentos, dada a sua função, são insusceptíveis de suprir a falta da pertinente afirmação fáctica.
A regra é a de que cabe às instâncias apurar a factualidade relevante para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Com efeito, não tem este Tribunal, em regra, competência funcional para alterar, designadamente ampliar a matéria de facto, certo que, em regra, só conhece de matéria de direito (artigos 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 729º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
A referida excepção apenas ocorre se a Relação, na fixação dos factos disponíveis, infringir alguma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência de algum facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil).
A situação que a recorrente alega, porventura, se fosse caso disso, a implicar a ampliação da matéria de facto, não se integra nos poderes deste Tribunal, naturalmente sem prejuízo do que se prescreve no artigo 729º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Em consequência, pelo fundamento aqui invocado pela recorrente, não pode este Tribunal ampliar o quadro de factos assentes declarado pela Relação em termos de extrair de outros alguma conclusão de direito.
Decorrentemente, não assume qualquer relevo jurídico a alegação da recorrente no sentido de que o facto provado por testemunhas visto à luz do alegado pelo recorrido contradiz o referido documento extraído do registo predial.

3.
Atentemos agora na análise da natureza e dos efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e o recorrido.
O aludido contrato, pela sua estrutura, remete-nos, como é natural, para o regime do contrato-promessa.
A propósito deste tipo contratual, expressa a lei, em tanto quanto releva no caso vertente, por um lado, que à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa (artigo 410º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, que a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, autêntico ou particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral (artigo 410º, nº 2, do Código Civil).
A lei exige para o contrato de compra e venda de coisa imóvel, como é o caso vertente, como formalidade ad substantiam, a escritura pública, pelo que o contrato-promessa em causa só é válido se for celebrado por documento assinado pela parte que se vinculou ou por ambas, conforme se trate de contrato unilateral ou bilateral (artigos 410º, nº 2 e 875º do Código Civil).
Presume-se ter o carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente vendedor a título de antecipação do pagamento do preço (artigo 441º do Código Civil).
Se quem constituir o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; e se o incumprimento for de quem recebeu o sinal, tem a outra parte a faculdade de lhe exigir o dobro do que prestou (artigo 442º, nº 2, do Código Civil).
Em qualquer dos mencionados casos, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica, nos termos do artigo 830º do Código Civil (artigo 442º, nº 3, do Código Civil).
Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar pelo não cumprimento do contrato-promessa a qualquer outra indemnização nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste (artigo 442º, nº 4, do Código Civil).
A par do regime legal específico do contrato-promessa a que acima se fez referência, aplica-se, em tanto quanto for pertinente, o regime geral do cumprimento e ou do incumprimento das obrigações.
O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, ou seja, quando realiza pontualmente, com diligência e boa fé, o comportamento devido (artigo 762º do Código Civil).
E considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, não realize no tempo devido a prestação ainda possível a que está vinculado (artigo 804º, n.º 2, do Código Civil).
O incumprimento definitivo da obrigação pressupõe sempre uma situação de mora de cumprimento de uma das partes e consuma-se por via da perda do interesse do credor na prestação, verificada em termos objectivos, ou pela omissão de cumprimento pelo devedor em prazo razoável que lhe tenha sido fixado e comunicado pelo credor (artigos 801º e 808º do Código Civil).
Para efeito de responsabilidade contratual, a lei equipara à falta de cumprimento do contrato a situação em que a prestação se torne impossível por causa imputável ao devedor (artigo 801º, nº 1, do Código Civil).
A alienação pelo promitente vendedor a terceiro do objecto mediato do contrato de compra e venda é equiparada ao incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda sem eficácia real.
Tendo em conta os factos mencionados sob II 1, a conclusão é no sentido de que a recorrente e o recorrido celebraram um contrato-promessa de compra e venda cujo objecto mediato se consubstanciou em determinada fracção autónoma de identificado prédio.
Face ao clausulado do referido contrato e às normas jurídicas acima analisada, dele resultaram para a recorrente e para o recorrido as obrigações de realização de prestações de facto materializadas em declarações negociais na forma de escritura pública tendentes à transferência do direito de propriedade sobre a referida fracção predial da titularidade do último para a titularidade da primeira.

4.
Vejamos agora a natureza e os efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e DD.
O referido contrato remete-nos para o contrato de cessão da posição contratual a que se reportam os artigos 424º a 427º do Código Civil.
Em contratos com prestações recíprocas - sinalagmáticos - qualquer das partes pode transmitir a terceiro a sua posição contratual sob condição de consentimento da outra parte antes ou depois da transmissão (artigo 424º, nº 1, do Código Civil)
Se o consentimento do outro contraente for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir da sua notificação ou reconhecimento (artigo 424º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Pressupõe, assim, esta figura a existência de dois contratos, ou seja, o inicial ou básico, envolvente das posições contratuais das partes, e o subsequente ou instrumental, ou seja, o que objectiva a transmissão de alguma das concernentes posições contratuais.
Envolve a parte que transmite - o cedente - e a parte que adquire - o cessionário - e a contraparte do primeiro que, por via da cessão, passa a ser a contraparte do último.
Se o essencial consentimento prévio da contraparte para a cessão for anterior a esta, em relação a ela os efeitos da cessão só se produzem a partir da sua notificação ou do seu reconhecimento; se for posterior - ratificação - esses efeitos só se produzem a partir da manifestação de vontade expressa ou tácita de consentir.
A forma da transmissão e as relações entre as partes são definidas em função do tipo do negócio que à cessão serve de base (artigo 425º do Código Civil).
Resulta deste normativo que o regime do contrato de cessão de posições contratuais é o do contrato de prestações recíprocas que lhe serve de base, em que se inclui o contrato-promessa de compra e venda.
Assim, o regime de forma do contrato de cessão de alguma posição contratual de um contrato-promessa de compra e venda de uma coisa imóvel é o que a lei prevê para este último contrato.
No que concerne às relações entre a contraparte do cedente e o cessionário, estabelece a lei que a primeira transmite ao último os meios de defesa provenientes desse contrato, mas não os provenientes de outras relações com o cedente, salvo se os tiver reservado ao consentir na cessão (artigo 427º do Código Civil).
Assim, não havendo reserva contratual de outros meios de defesa, só os que integrem a posição contratual são oponíveis ao cessionário pela contraparte. E o cessionário também só pode invocar no confronto da contraparte do cedente os meios de defesa derivados do contrato-base.
Afirmou a recorrente a nulidade deste contrato por falta de forma, o que importa desde já analisar.
É certo que a validade do contrato de cessão da posição contratual em causa depende da sua redução a escrito (artigos 220º, 410º, nº 2, 425º e 875º, do Código Civil).
Ora, como o referido contrato foi reduzido a escrito, que se entenda dever ser qualificado como de cessão de posição contratual ou de promessa de cessão de posição contratual, não tem fundamento legal a referida invocação da nulidade.
O tribunal da primeira instância, baseado no sentido extraído das declarações negociais por um declaratário normal, qualificou-o como de cessão de posição contratual, essencialmente por a não fixação da data da celebração do contrato definitivo inculcar a ideia de tal ser desnecessário e inútil por já esta concluído, qualificação que a Relação acolheu.
Este Tribunal é livre na qualificação jurídica das declarações negociais das partes, independentemente da que por elas foi feita, embora deva tê-la em conta para o efeito (artigo 664º do Código de Processo Civil).
Não obstante os seus limites legais ao conhecimento da matéria de facto, pode este Tribunal sindicar a interpretação pela Relação das aludidas declarações negociais, para lhes fixar o sentido juridicamente relevante, no âmbito do n.º 1 do artigo 236º do Código Civil (artigo 722º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
A regra nos negócios jurídicos em geral é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (artigo 236º, n.º 1, do Código Civil).
O sentido decisivo da declaração negocial é o que seria apreendido por um declaratário padrão, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente, capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações foram produzidas.
No que concerne aos negócios jurídicos formais, como ocorre no caso vertente, há, porém, o limite de que não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do Código Civil).
Assim, o sentido hipotético da declaração que prevalece no quadro objectivo da respectiva interpretação, como corolário da solenidade do negócio, tem que ter um mínimo de literalidade no texto do documento que o envolve.
No enquadramento destas considerações de ordem jurídica, vejamos se, no caso vertente, estamos perante um contrato de cessão contratual ou perante um contrato-promessa de cessão contratual.
Em quadro de referência, releva o contrato-promessa celebrado no dia 7 de Outubro de 1997 em que a outorga do contrato prometido foi fixada, em termos de probabilidade, até 30 de Outubro de 1999.
Apenas um mês antes dessa data provável considerada pelo recorrido e pela recorrente, esta e DD celebraram o contrato em análise, sem convenção de data da celebração de outro contrato.
Por via dele, a recorrente recebeu de DD quantia excedente em 507 308$ ao montante do sinal que ela tinha entregado ao recorrido no âmbito do referido contrato-promessa, certo que percebeu 1 500 000$ aquando da contratação e 1 625 000$ depois disso, o que foi convencionado para um mês depois.
Por outro lado, ela e DD convencionaram que este entregaria ao recorrido a quantia de 10 496 000$, ou seja, o montante que a primeira estava vinculada a pagar ao recorrido no acto da celebração do contrato prometido de compra e venda.
Ademais, fixaram que DD entregaria à recorrente 2 379 000$ na data da celebração do contrato de cessão ou da escritura pública a celebrar entre o primeiro e o recorrido se nela ocorresse a cessão.
O interesse da recorrente no confronto de DD era o de perceber deste a derradeira prestação de 2 379 000$, sendo que a referência à celebração do contrato de cessão no mesmo instrumento notarial não tem qualquer base de razoabilidade, além do mais, por não haver coincidência de sujeitos outorgantes nem necessidade de nele haver intervenção da recorrente.
O clausulado deste contrato, pelo seu conteúdo, envolve a completa regulação da transferência da posição de promitente compradora da titularidade da recorrente para a titularidade de DD.
Os factos não revelam qualquer actuação da recorrente no sentido de continuar efectivamente interessada na aquisição para si própria do direito de propriedade sobre a mencionada fracção predial ou na celebração de algum contrato de cessão da sua posição contratual.
Ao invés, como resulta de II 4 e 5, em execução do referido contrato, DD passou a agir no confronto do recorrido como se fosse o efectivo cessionário da posição de promitente comprador emergente do contrato-promessa celebrado entre o recorrido e a recorrente.
Perante este quadro, não obstante o clausulado do referido contrato estar envolvido da expressão promessa de cessão, um declaratário normal, colocado na posição de DD e da recorrente, e mesmo do recorrido, concluiria no sentido de que o primeiros quiseram celebrar um contrato de cessão e não um mero contrato-promessa de cessão de posição contratual.
Por isso, inexiste fundamento legal para alterar o decidido pela Relação no sentido de que os factos mencionados sob II 2, apesar da referência a mera promessa, consubstanciam um contrato de cessão da posição contratual.
Resultou do referido contrato de cessão contratual a substituição, no contrato-promessa de compra e venda em causa, da recorrente, na posição de promitente compradora, por DD.

5.
Atentemos agora sobre se o recorrido incumpriu ou não o contrato que celebrou com a recorrente.
Considerou a Relação que o recorrido alienou o direito de propriedade sobre a fracção predial mencionada sob II 1 a pessoa diversa da recorrente e de DD, com quem aquela celebrara o contrato de cessão de posição contratual decorrente do contrato-promessa de compra e venda mencionado sob II 1.
Está assente, além da factualidade relativa aos contratos constantes de II 1 e 2, e da alienação da aludida fracção predial pelo recorrido a CC, por um lado, que o recorrido foi informado do negócio mencionado sob II 2 e passou a tratar com DD os assuntos relativos à escolha e aplicação de materiais na fracção predial aludida sob II 1.
Tal como foi considerado pela Relação, por um lado, DD, por virtude do mencionado contrato de cessão da posição contratual da recorrente no contrato-promessa de compra e venda passou a comportar-se como verdadeiro e próprio cessionário no confronto do recorrido.
E, por outro, que o recorrido, informado do referido contrato, aceitou DD como cessionário da posição de promitente-compradora da recorrente, e que esta se desinteressou do direito que lhe advinha dessa posição.
Nesse circunstancialismo, por um lado, DD pretendeu desistir do mencionado negócio e o recorrido acordou com ele a entrega da quantia de € 22 445, ou seja, o correspondente a 4 489 000$.
Ao invés do que foi alegado pela recorrente, os factos provados não revelam que a desistência de DD do mencionado negócio tenha ocorrido depois da alienação da mencionada fracção predial.
Ademais, não é objecto do recurso a validade ou a eficácia da negociação havida entre ele e recorrido, porque não foi tema da acção, em que o primeiro não foi sujeito processual.
A prestação específica impossibilita-se em termos definitivos, por exemplo, quando o imóvel prometido alienar a uma pessoa foi alienado a pessoa diversa.
No caso vertente, por virtude do referido contrato de cessão da posição contratual, era promitente-comprador da fracção predial em causa, não a recorrente, mas o cessionário DD.
Se a alienação do direito de propriedade sobre a mencionada fracção predial implicasse infracção do direito do promitente-comprador, a esfera jurídica patrimonial afectada seria apenas a de DD.
A impossibilidade de o recorrido transferir o direito de propriedade sobre a referida fracção predial para alguma das pessoas que estiverem na posição de promitente-comprador no contrato-promessa mencionado sob II 1 não infringe o direito da recorrente.
Em consequência, não tem a recorrente o direito de exigir do recorrido a pretendida indemnização equivalente ao sinal passado em dobro nem em singelo que, quanto a este, ela já recebeu, em excesso, de DD.

6.
Vejamos agora se ocorrem ou não na espécie os pressupostos do enriquecimento sem causa.
Pretende a recorrente, com base no enriquecimento sem causa, a condenação do recorrido a pagar-lhe o valor correspondente aos rendimentos que poderia ter auferido se tivesse efectuado a aplicação financeira daquela quantia, computada pelos juros bancários de um depósito a prazo de dois anos desde a data do contrato promessa.
Conforme acima se referiu, não ocorrem no caso espécie os pressupostos do direito de indemnização da recorrente, porque não fundado no incumprimento pelo recorrido, em relação a ela, do contrato-promessa, no quantitativo correspondente ao sinal passado em dobro ou em singelo.
O princípio geral do enriquecimento sem causa consta no artigo 473º do Código Civil, segundo o qual, por um lado, aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou (n.º 1).
E, por outro, a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (n.º 2).
Assim, são elementos deste instituto o enriquecimento de um património e o correlativo empobrecimento de outro, decorrentes do mesmo facto, e a ausência de causa justificativa para a concernente deslocação patrimonial por eles envolvida.
No quadro deste instituto, o enriquecimento não é uma consequência legal de qualquer facto jurídico que a lei preveja como idóneo para o gerar, isto porque, nesse caso, seria sua causa justificativa como facto jurídico que, à luz do direito, era idóneo à concernente aquisição ou liberação.
A natureza subsidiária da obrigação de restituição fundada no enriquecimento sem causa implica que, com base nele, não haja lugar à restituição quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento (artigo 474º do Código Civil).
Decorre do referido regime que o enriquecimento sem causa se caracteriza pela inexistência de qualquer negócio ou facto a justificar a apropriação de valores cuja restituição é pedida e que tal apropriação seja obtida à custa de quem pede a restituição.
A entrega do sinal pela recorrente ao recorrido - e que ela acabou por receber por excesso de DD - é justificada em razão do clausulado do contrato-promessa celebrado entre ambos.
Os factos provados não revelam o enriquecimento do património do recorrido e o correlativo empobrecimento do património da recorrente.
Não ocorrem, por isso, na espécie, os pressupostos de aplicação das normas integrantes do instituto do enriquecimento sem causa invocado pela recorrente.
Aliás, a referida indemnização que a recorrente pretende não poderia ter cabimento fora do quadro da responsabilidade civil contratual, e cujos pressupostos, conforme já se referiu, não se verificam na espécie.
Improcede, por isso, a pretensão da recorrente fundada no instituto do enriquecimento sem causa.

7.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
A produção de prova testemunhal relativamente aos quesitos primeiro e segundo da base instrutória não infringe qualquer norma proibitiva desse tipo de prova.
Não pode este Tribunal alterar o quadro de facto definindo pela Relação, nem este se revela insuficiente para a decisão de direito.
A recorrente e DD celebraram um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção predial, ela na posição de promitente-compradora e ele na posição de promitente vendedor, assumindo cada um as obrigações dele decorrentes.
A recorrente DD celebraram um contrato de cessão da posição contratual consignada no referido contrato-promessa de compra e venda, ela na posição de cedente e ele na posição de cessionário, formalmente válido, que o recorrido ratificou, assumindo cada um dos primeiros as obrigações dele decorrentes.
O recorrido ratificou a referida cessão, DD desvinculou-se da sua posição de promitente-comprador e o recorrido alienou o direito de propriedade sobre a referida fracção predial a pessoa diversa da recorrente e de DD.
Por via da referida alienação, não infringiu o recorrido o direito subjectivo da recorrente, pelo que não tem direito a exigir-lhe qualquer indemnização especifica ou nos termos da lei geral, incluindo o próprio instituto do enriquecimento sem causa.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 23 de Novembro de 2006.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís