Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
518/12.2TBSTS-A.P1S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
CHEQUE PAGÁVEL À VISTA
REGULARIDADE DO SAQUE
Data do Acordão: 10/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CHEQUE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS - PROCESSO DE EXECUÇÃO.
Doutrina:
- Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Cheques”, Anotada, 5.ª edição, 13, 185.
- Calvão da Silva, Direito Bancário, 2001, 347/351.
- Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 483, 484.
- José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. 3.º, tomo I, 2.ª edição, 162/163.
- Mathias Serra, Noções de Comércio, 469, citado por Abel Pereira Delgado, in Lei Uniforme Sobre Cheques, Anotada, 5.ª edição, 13.
- Menezes Cordeiro, Manual de Direito bancário, 6ª edição, 325/417.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 163.º, 164.º, 358.º, 364.º, 393.º, 1185.º, 1187.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 607.º, 674.º, N.ºS1 E 3, 782.º, N.º3.
D.L. N.º 430/91, DE 2 DE NOVEMBRO COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO D.L.N.º 88/2008, DE 29 DE MAIO.
LUCH: - ARTIGOS 1.º, 2.º, 11.º, 28.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 6 DE MAIO DE 2004, 7 DE ABRIL DE 2005, 18 DE MAIO DE 2011, DE 23 DE FEVEREIRO DE 2012, DE 15 DE NOVEMBRO DE 2012, IN WWW.DGSI.PT , E DE 24 DE FEVEREIRO DE 2015, , PROFERIDO NO PROC. N.º 427/12.5TBCHV.P1.S1, IN SASTJ, SITE DO STJ.
-DE 22 DE FEVEREIRO DE 2011, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I sendo o cheque pagável à vista, como decorre do artigo 28º da LUCH a data relevante para aferir da regularidade do saque efectuado, é a da sua entrega, mesmo que se trate de um cheque pré-datado.

II Se os Embargantes eram directores e representantes da instituição desportiva à data da emissão do cheque em questão, tendo assinado tal título no exercício legal desses poderes, óbvio se torna que não poderão ser responsabilizados pessoalmente pela sua falta de pagamento por banda do depositário, devido a «saque irregular» e por na altura do mesmo, já não desempenharem quaisquer funções representativas no Clube.

III É que, podendo o cheque pré-datado ser apresentado a pagamento e pago, antes da data nele indicada, por maioria de razão poderá e deverá ser, porque regular, o pagamento pelo mesmo exigido na data nele aposta, mesmo que esta o seja anteriormente, porquanto a validade do saque é determinada, como dissemos e decorre da LUCH, pela data da respectiva entrega do título de crédito.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I R, P, C e A, vieram por apenso aos autos de acção executiva que lhes move E, SA, deduzir oposição por meio de embargos, pedindo a extinção da execução, alegando para o efeito e em síntese que o cheque dado à execução está revogado uma vez que foi substituído por outro devidamente emitido e assinado por uma nova direcção do Clube Desportivo X, com o acordo da Exequente, sendo que esta apesar de interpelada, nunca devolveu o primitivo título; alegam ainda que não figuram no referido cheque na posição de devedores, pelo que são parte ilegítima na execução em apreço, bem como a inexistência de título executivo quanto às despesas reclamadas, no valor de € 17,50; concluem pela condenação da Exequente como litigante de má fé.

Notificada, a Exequente contestou respondendo às excepções invocadas pelos executados, pela sua improcedência e concluindo pela procedência do Requerimento executivo.

Foi proferida sentença a julgar a oposição improcedente tendo sido determinado o prosseguimento da execução quanto aos oponentes.

Inconformados os Executados interpuseram recurso de Apelação, o qual veio a ser julgado procedente com a consequente revogação da sentença, declarando-se extinta a instância executiva.

Veio agora a Exequente interpor recurso de Revista, apresentando as seguintes conclusões:

- O acórdão recorrido, na esteira do argumento enunciado pelos Recorridos, conclui que o saque o cheque em causa nos presentes autos foi regular, não tendo sido excedidos os poderes de representação.

- No entanto, nem os Recorridos, nem o acórdão recorrido, puseram em causa a recusa de pagamento do cheque por parte do banco sacado, o qual apôs como motivo da recusa, precisamente, a constatação de “saque irregular”.

- O acórdão recorrido centra a sua exposição, em grande parte, na expressão, contida na matéria de facto dada como provada, de que os agora Recorridos assinaram o cheque “com poderes para o efeito”.

- No entanto, salvo o devido respeito, tal expressão consubstancia uma conclusão que pressupõe uma análise de direito, e não apenas de facto, pelo que, não pode ser

determinante para a conclusão tirada pelo tribunal.

- Com tal expressão, o tribunal de primeira instância pretendia apenas significar que, à data da emissão do cheque, os Recorridos desempenhavam funções de representação do Clube Desportivo X, mas não pretende concluir nada quanto à extensão dos poderes e à suficiência dos mesmos para o concreto acto em causa.

- Tal questão foi então abordada pelo tribunal de primeira instância no local próprio, ou seja, na fundamentação de direito da sentença de primeira instância - onde concluiu que os oponentes “excederam, assim, os poderes que lhe haviam sido concedidos como representantes do Clube Desportivo X”.

- Na verdade, não só não foi possível fixar uma data certa da emissão do cheque, como resulta da acta nº116 da Assembleia Geral do Clube Desportivo X que os Recorridos se manteriam em funções, integrando uma “Comissão Administrativa” destinada a assegurar a gestão corrente do Clube por apenas mais 4 meses, prazo que terminaria em 31.05.2011.

- Foi nestas circunstâncias e com este mandato que o cheque foi assinado pelos Recorridos tendo-lhe sido aposta uma data de 25.12.2011.

- Ora, a Exequente e aqui Recorrente desconhecia este condicionalismo do mandato conferido aos Recorridos.

- Em 2011 não era obrigatória a publicação dos actos de nomeação dos titulares dos órgãos das associações, pelo que a Exequente não tinha o ónus de conhecer os limites do mandato conferido aos Recorridos - tanto mais que contrariam o disposto nos Estatutos do Clube,  esses sim, publicados.

- Ora, podiam os Recorridos, mandatados em tais circunstâncias e com tais condicionalismos, outorgar

um cheque apondo-lhe data de 25.12.2011,  isto é, bem posterior ao termo do mandato que lhes terá sido conferido? - - Parece claro que não. Os Recorridos excederam os poderes de representação que lhes haviam sido conferidos e

foi por esse motivo que o pagamento do cheque foi recusado.

- Ora, nos presentes autos. os Recorridos nada fizeram para que o banco tivesse conhecimento da data de emissão do cheque e pudesse concluir que o mesmo tivesse sido sacado regularmente (que não o foi).

 - A tese acolhida no douto acórdão recorrido, abstraindo de todas as circunstâncias do caso e centrando-se na possibilidade de o cheque ser pagável à vista, permite duas conclusões, as quais, salvo o devido respeito, são incompatíveis com o direito vigente e os princípios específicos de tutela do tráfico jurídico-comercial.

 - A tese acolhida no acórdão recorrido abre caminho a que qualquer sacador (pessoa colectiva) de um cheque pós-datado provoque a recusa do seu pagamento, bastando para o efeito alterar a composição do órgão que o representa ou a sua forma de obrigar. Na prática, impossibilita a confiança de qualquer credor em qualquer cheque pré-datado emitido por pessoa colectiva.

- Ligada à conclusão acabada de enunciar, a tese acolhida no acórdão recorrido tem ainda por efeito, fazer impender sobre o tomador do cheque um autêntico ónus, que consiste assim na necessidade de apresentar qualquer cheque pós-datado a pagamento antes da data nele aposta, sob pena de, não o fazendo, poder ver recusado o seu pagamento com fundamento em questões de governação interna (neste caso, nem sequer sujeitas a registo) do sacador.

- A invocação do argumento de que o cheque é pagável à vista consubstancia ainda um abuso de direito, bem como atenta contra a boa fé e a tutela da confiança.

- Constitui abuso de direito, na vertente de venire contra factum proprium, a utilização, nestes autos pelos Recorridos, do argumento de que o cheque é pagável à vista, pois, foi no interesse do sacador e a pedido dos seus representantes, aqui Recorridos, que a Recorrente aceitou o cheque nos termos em que ele foi emitido e, de boa-fé, aguardou pela data aposta no mesmo para o apresentar a pagamento (cfr. al. D., L e F. dos factos provados na sentença Recorrente). Vieram já apenas em sede de recurso de apelação, os Recorridos alegar que a Recorrente podia ter apresentado o cheque a pagamento logo que o recebeu. Mas não teria sido isto uma actuação em violação da boa-fé, considerando o plano de pagamento em

prestações então acordado? Aí sim, poderíamos estar perante uma situação de abuso de direito por parte da Recorrente.

- Cabia aos aqui Recorridos, que à data da entrega do cheque já sabiam que apenas se manteriam na direcção do Clube Desportivo X até 31.05.2011 (cfr. acta n.º 116 junta aos autos), evitar o ocorrido. Os Recorridos podiam ter obtido deliberação da Assembleia Geral do Clube e podiam ter informado o banco, circunstanciadamente, sobre a data e os termos em que o cheque foi emitido, de forma que o banco pudesse assegurar-se da regularidade do saque - mas nada disto fizeram.

- Sucede que, após o fim do referido prolongamento do mandato dos Recorridos, foi eleita uma Direcção, integrada por alguns dos já anteriormente directores do Clube (al. G. da matéria de facto). Esta Direcção chamou então a Exequente para ser renegociada a dívida em causa e, de tal renegociação, resultou o acordo de que este cheque dado à execução serviria para o pagamento do remanescente da dívida no final do ano - cfr. doc. 1 que foi junto à contestação dos presentes autos de oposição à execução.

- Acrescem ainda as particularidades do caso sub judice visíveis nos documentos juntos aos autos, nomeadamente: a) que os Recorridos representavam o Club à data da emissão do cheque, na mera qualidade de membros de uma “Comissão Administrativa”, eleita para assegurar a gestão corrente do Clube por apenas 4 meses - vd. acta n.º 116 da assembleia geral do Clube Desportivo X: b) que o Recorrido R era o principal financiador do Clube Desportivo X, tendo-lhe sido reconhecido, no Plano de Recuperação apresentado no processo de Insolvência do Clube Desportivo X, um crédito no valor de E 2.900.000 (dois milhões e novecentos mil euros) - vd. doc. 1. fl. 22, junto às alegações de apelação apresentadas pelos Recorridos: e c) que, após a eleição de nova administração do Clube (com a saída do Recorrido R), o Clube, representado por alguns dos aqui Recorridos, reiterou a intenção de honrar o pagamento do cheque depois recusado - vd. doc. 1 junto à contestação apresentada pela Recorrente.

- Em face do exposto, o acórdão recorrido viola o disposto nos arts. 10.º e 11.º da Lei Uniforme sobre Cheques, o art. 334.º do Código Civil e ainda os princípios de protecção da boa fé e de tutela da confiança.

Nas contra alegações os Recorridos pugnam pela manutenção do julgado.

II Põe-se como única questão a resolver no âmbito do presente recurso a de saber se os Embargantes, aqui Recorridos, são ou não pessoalmente responsáveis pela satisfação do cheque dado à execução pela Recorrente.

Mostra-se assente a seguinte factualidade:

A. Nos autos principais de execução foi dada à execução um cheque, com o n.º….., sobre a conta nº0000000 do Banco Y, aberta em nome de Clube Desportivo X, passado à ordem da exequente, pelo montante de €314.141,47, escrito em números e por extenso e onde foi escrita a data de emissão de 25/12/2011.

B. Foi o referido cheque (e mais cinco), emitido e entregue à exequente em finais de Fevereiro de 2011 e assinado nesta data pela direcção do Clube Desportivo X, com poderes para o efeito, entre os quais, os aqui oponentes (facto aditado nos termos do art. 659º, nº 3 do Código Processo Civil na redacção aplicável aos autos ex vi art. 6º, nº 4 da Lei nº 41/2013, de 26/6 e que resulta do acordo das partes e da análise ao título executivo dado à execução).

C. Tal cheque foi apresentado a pagamento, vindo a ser devolvido a 28/12/2011 com a menção “saque irregular” (facto aditado nos termos do art. 659º, nº 3 do Código Processo Civil na redacção aplicável aos autos ex vi art. 6º, nº 4 da Lei nº 41/2013, de 26/6 e que resulta do acordo das partes e da análise ao título executivo dado à execução).

D. Na sequência de várias negociações, desde Outubro de 2010 e na tentativa de honrar os seus compromissos, a Direcção do Clube X reuniu várias vezes, com a gerência da exequente para negociar a modalidade de pagamento do montante total de €364.141,64, através da solução de cheques pré-datados, comprometendo-se a cumprir na íntegra o acordado.

E. Naquela conformidade e depois de várias vicissitudes, em Fevereiro de 2011, a exequente aceitou e formalizou um acordo de pagamento com o Clube X.

F. Foram entregues à exequente e por esta aceites que ficaram na sua posse, aguardando como combinado o mês de Julho para levantar o primeiro cheque, sendo que o último é o cheque apresentado nos autos.

G. Entretanto, por várias razões, tomou posse uma nova Direcção em Julho de 2011, na qual, apesar de nova, mantiveram-se alguns elementos da Direcção anterior.

H. Naquelas circunstâncias, a exequente foi informada que não iria ser possível pagar aqueles cheques pré-datados, emitidos e assinados pela anterior direcção, precisamente por cautela e sempre com o maior zelo no sentido de não prejudicar ninguém.

I. Daquele acordo resultou a aceitação por parte da exequente, de seis cheques pré-datados, cinco, no montante de €10.000,00 que seriam descontados nas datas acordadas, e o último no montante de € 314.141,64, datado para 25/12/2011.

J. Do resultado de várias reuniões, a exequente acordou e aceitou a revogação e substituição de pelo menos cinco cheques referidos, tendo sido, em Agosto de 2011, substituídos por, pelo menos, outros cinco, da Caixa Geral de Depósitos e com os n.ºs ….., ….., …., …., ….. (no valor de €2.500,00 cada um).

1.Da emissão do cheque dado à execução.

Como resulta da matéria dada como provada – A e B -, o presente apenso de embargos de executado provém de uma execução cujo título é um cheque com o n.º …., sobre a conta nº000000 do Banco Y, aberta em nome de Clube Desportivo X, passado à ordem da Exequente, aqui Recorrente, pelo montante de €314.141,47, com a data de emissão de 25 de Dezembro de 2011, tendo o mesmo cheque (e mais cinco), sido emitido e entregue àquela em finais de Fevereiro de 2011 e assinado nesta data pela direcção do Clube Desportivo X, com poderes para o efeito, entre os quais, os aqui Embargantes/Recorridos.

Deflui dos artigos 1º e 2º da LUCH que o cheque é uma ordem de pagamento à vista, dada por uma pessoa – o depositante – ao estabelecimento bancário – depositário – onde tem fundos disponíveis, satisfação essa destinada ao próprio depositante ou a terceiro, situação esta que pressupõe, além do mais, a existência entre o depositante e o depositário de um contrato de conta bancária, cfr Mathias Serra, Noções de Comércio, 469, citado por Abel Pereira Delgado, in Lei Uniforme Sobre Cheques, Anotada, 5ª edição, 13.

 

Designa-se por contrato de conta bancária (ou abertura de conta) o acordo havido entre uma instituição bancária e um cliente «através do qual se constitui, disciplina e baliza a respectiva relação jurídica bancária», cfr Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 483.

Associado a essa abertura de conta, aparece-nos o depósito bancário (regulado pelo DL 430/91, de 2 de Novembro com as alterações introduzidas pelo DL 88/2008, de 29 de Maio), operação essa que se encontra indissociavelmente ligada à abertura de conta e que constitui um pressuposto sine qua non desta, já que nenhuma conta poderá ser aberta sem quaisquer fundos.

De qualquer modo, aquela abertura de conta constitui o ponto de partida para o vasto complexo negocial que dá lugar à relação bancária, crf Engrácia Antunes, ibidem, 484; Menezes Cordeiro, Manual de Direito bancário, 6ª edição, 325/417.

Esta complexa figura contratual, tem sido subsumida a nível jurisprudencial e pela maior parte da doutrina na espécie negocial de depósito, tal como a mesma nos é definida pelos artigos 1185º e 1187º do CCivil, através do qual a Autora colocou à disposição do Réu o seu dinheiro e para que este o guardasse e o restituísse quando fosse exigido, constituindo esta figura um depósito irregular ao qual se aplicam as regras do mútuo, com as necessárias adaptações, cfr Calvão da Silva, Direito Bancário, 2001, 347/351; Ac STJ de 22 de Fevereiro de 2011 (Relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt.

Funcionalmente ligado ao contrato de depósito encontramos o contrato ou convenção de cheque, consistente na permissão dada pelo banco ao seu cliente na mobilização dos fundos disponíveis na sua conta e advindo para este, além do mais, a obrigação de satisfazer as quantias tituladas pelos cheques emitidos por aquele.

A convenção de cheque constitui o Banco na obrigação (além de outras) de pagar os cheques emitidos pelo depositante que lhe forem apresentados a pagamento e o dever de diligência na verificação da assinatura do cliente, sendo que este assume perante o Banco o dever de guardar cuidadosamente os cheques e avisá-lo imediatamente, caso dê pela respectiva falta.

2.Dos obrigados pelo título.

Insurge-se a Exequente, aqui Recorrente, contra o Aresto sob censura, uma vez que na sua tese o mesmo centrou a sua exposição, em grande parte, na expressão, contida na matéria de facto dada como provada, de que os Recorridos assinaram o cheque “com poderes para o efeito”.

Efectivamente o Acórdão recorrido fixou como matéria relevante para a decisão de direito que veio a construir, a seguinte:

A. Nos autos principais de execução foi dada à execução um cheque, com o n.º…., sobre a conta nº000000 do Banco Y, aberta em nome de Clube Desportivo X, passado à ordem da exequente, pelo montante de €314.141,47, escrito em números e por extenso e onde foi escrita a data de emissão de 25/12/2011.

B. Foi o referido cheque (e mais cinco), emitido e entregue à exequente em finais de Fevereiro de 2011 e assinado nesta data pela direcção do Clube Desportivo X, com poderes para o efeito, entre os quais, os aqui oponentes (facto aditado nos termos do art. 659º, nº 3 do Código Processo Civil na redacção aplicável aos autos ex vi art. 6º, nº 4 da Lei nº 41/2013, de 26/6 e que resulta do acordo das partes e da análise ao título executivo dado à execução).

C. Tal cheque foi apresentado a pagamento, vindo a ser devolvido a 28/12/2011 com a menção “saque irregular”.”.

No seu alegatório conclusivo, a Recorrente parece querer por em causa a matéria fáctica dada por assente pelo segundo grau, questionando a sua bondade, maxime que os Recorridos tivessem subscrito o cheque dado à execução exorbitando as suas competências, em consonância com o decidido pelo primeiro grau.

Nesta sequência, somos forçados a relembrar que este Supremo Tribunal é um Tribunal de Revista ao qual compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias, nº1 do artigo 674º do NCPCivil, sendo a estas e, designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo este Tribunal, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de Revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no nº3 do artigo 674º do CPCivil, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, cfr José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol 3º, tomo I, 2ª edição, 162/163; inter alia os Ac STJ de 6 de Maio de 2004 (Relator Araújo de Barros), 7 de Abril de 2005 (Relator Salvador da Costa), 18 de Maio de 2011 (Relator Pereira Rodrigues), de 23 de Fevereiro de 2012 (Távora Victor), de 15 de Novembro de 2012 da ora Relatora, in www.dgsi.pt e de 24 de Fevereiro de 2015, deste mesmo colectivo, proferido no PROC 427/12.5TBCHV.P1.S1, in SASTJ, site do STJ.

 A Revista, no que tange à decisão da matéria de facto, só pode ter por objecto, em termos genéricos situações excepcionais, ou seja quando o Tribunal recorrido tenha dado como provado determinado facto sem que se tenha realizado a prova que, segundo a Lei, seja indispensável para demonstrar a sua existência; o Tribunal recorrido tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no sistema jurídico; e ainda, quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada ou ocorram contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, caso específico do normativo inserto no artigo 782º, nº3 do NCPCivil.

Decorre do disposto no artigo 607º do NCPCivil que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do mesmo, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

De acordo com este princípio, que se contrapõe ao princípio de prova legal, vinculada pois, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas, cedendo o mesmo naquelas situações vulgarmente denominadas de «prova taxada», designadamente no caso da prova por confissão, da prova por documentos autênticos e dos autenticados e particulares devidamente reconhecidos, cfr artigos 358º, 364º e 393º do CCivil.

Enquanto o princípio da prova livre permite ao julgador a plena liberdade de apreciação das provas, segundo o princípio da prova legal o julgador tem de sujeitar a apreciação das provas às regras ditadas pela Lei que lhes designam o valor e a força probatória e os poderes correctivos que competem ao Supremo Tribunal de Justiça quanto à decisão da matéria de facto, circunscrevem-se em verificar se estes princípios legais foram, ou não, no caso concreto violados.

Daí que a parte que pretenda, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, censurar a decisão da matéria de facto feita nas instâncias só poderá fazê-lo – no rigor dos princípios - por referência à violação de tais regras e não também em relação à apreciação livre da prova, que não é sindicável por via de recurso para este Órgão Jurisdicional.

Por outras palavras e em termos práticos, dir-se-á que o que o Supremo pode conhecer em matéria de facto são os efectivos erros de direito cometidos pelo tribunal recorrido na fixação da prova realizada em juízo, sendo que nesta óptica, afinal, sempre se está no âmbito da competência própria Supremo Tribunal de Justiça, pois o que compete a este tribunal é pronunciar-se, certamente mediante a iniciativa da parte, sobre a legalidade do apuramento dos factos, designadamente sobre a existência de qualquer obstáculo legal a que a convicção de prova formada nas instâncias se pudesse firmar no sentido acolhido.

A vexata quaestio, no âmbito deste recurso, é a de saber qual a data relevante para aferir da regularidade do saque efectuado, porquanto estamos face a um cheque pré-datado.

Como deflui do normativo inserto no artigo 28º da LUCH, inserido no seu capitulo IV sob o título «Da apresentação e do pagamento», «O cheque é pagável à vista. Considera-se como não escrita qualquer menção em contrário. O cheque apresentado a pagamento antes do dia indicado como data da emissão é pagável no dia da apresentação.».

Da materialidade apurada decorre que o cheque em causa foi emitido e entregue à Recorrente pelos Recorridos em Fevereiro de 2011, embora do mesmo constasse como data de emissão a de 25 de Dezembro de 2012, sendo certo que naquela data de Fevereiro os Recorridos desempenhavam funções na direcção do Clube Desportivo X, titular da conta a que respeita o título, e subscrito por aqueles na qualidade de seus representantes, nos termos do disposto nos artigos 163º e 164º do CCivil.

Ora, sendo os Recorridos directores e representantes daquela instituição desportiva à data da emissão do cheque em questão, tendo assinado tal título no exercício legal desses poderes, óbvio se torna que não poderão ser responsabilizados pessoalmente pela sua falta de pagamento por banda do depositário, devido a «saque irregular» e por na altura do mesmo, já não desempenharem quaisquer funções representativas no Clube: é que, podendo o cheque pré-datado ser apresentado a pagamento e pago, antes da data nele indicada, por maioria de razão poderá e deverá ser, porque regular, o pagamento pelo mesmo exigido na data nele aposta, mesmo que esta o seja anteriormente, porquanto a validade do saque é determinada pela data da respectiva entrega do título de crédito.

E isto porque o artigo 28º da LUCH ao estabelecer que o cheque apresentado a pagamento antes da data nele aposta como sendo a data da sua emissão é pagável no dia da apresentação, de onde se assaca a ideia de que a data da emissão possa não coincidir com a data da entrega, o que não afasta a se a regularidade do cheque, cfr Abel Pereira Delgado, ibidem, 185.

Daqui decorre, a insubsistência da tese da Recorrente, ao fazer assentar a responsabilidade eventual dos Recorridos no disposto no artigo 11º da LUCH, onde se predispõe que «Todo aquele que apuser a sua assinatura num cheque, como representante duma pessoa, para representar a qual não tinha de facto poderes, fica obrigado em virtude do cheque, e, se o pagar, tem os mesmos direitos que o pretendido representado. A mesma regra se aplica ao representante que tenha excedido os seus poderes.», já que, como supra se referiu, na data da entrega do cheque em causa à Recorrente, Fevereiro de 2011, os Recorridos tinham poderes para representar o devedor Clube Desportivo X e, de outra banda, a seguir-se aquele entendimento, qualquer alteração das pessoas autorizadas a emitir cheques das contas que representam, redundaria, ou poderia redundar, numa eventual irregularidade subsequente dos mesmos, o que poria em causa a característica da incondicionalidade do mandato em que se traduz a ordem de pagamento consubstanciada nos cheques, em manifesta violação do preceituado no artigos 1º, nº2 da LUCH (O cheque contém (…) O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;(…)), para além da natural segurança do comércio jurídico.

As conclusões improcedem, no que tange a este particular.

3.Do abuso de direito.

Insurge-se ainda a Recorrente contra o Aresto em crise, uma vez que no seu entender constitui abuso de direito, na vertente de venire contra factum proprium, a utilização, nestes autos pelos Recorridos, do argumento de que o cheque é pagável à vista, pois, foi no interesse do sacador e a pedido dos seus representantes, aqui Recorridos, que a Recorrente aceitou o cheque nos termos em que ele foi emitido e, de boa-fé, aguardou pela data aposta no mesmo para o apresentar a pagamento.

Esta argumentação já havia sido ensaiada pela Recorrente em sede de contra alegações no recurso de Apelação, tendo o Acórdão proferido e aqui em crise, discorrido da seguinte forma a propósito «(…) Sustenta a apelada que “constitui abuso de direito, na vertente de venire contra factum proprium, a utilização, nestes autos pelos Recorrentes, do argumento de que o cheque é pagável à vista, pois, foi no interesse do sacador e a pedido dos seus representantes, aqui Recorrentes, que a Recorrida aceitou o cheque nos termos em que ele foi emitido e, de boa-fé, aguardou pela data aposta no mesmo para o apresentar a pagamento (…)”.

A figura do abuso do direito está prevista no artº 334º, do Código Civil(CC). Existe abuso do direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou, quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante (Ac. STJ, de 8/11/84, BMJ, 341º/418).

Para que haja o abuso, tem de haver sempre, no uso do direito, um excesso manifesto.

É um instituto de ultima ratio, para situações de clamorosa injustiça.

A nota típica do abuso do direito reside (…) na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido (P. Lima-A. Varela, C. C. Anotado, 1987, I. p. 300).

Há abuso de direito "quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem" (Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, p. 43).

A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e legalmente segundo uma consciência razoável.

Pode dizer-se que o abuso do direito tem um carácter polimórfico, sendo a proibição do venire contra factum proprium uma das suas manifestações (a proibição do comportamento contraditório).

A proibição do venire corresponde à primeira parte da formulação legal: é ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites da boa fé. Trata-se de uma aplicação do princípio da responsabilidade pela confiança, de uma concretização do princípio ético-jurídico da boa fé.”. O exercício do direito contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo agente.

Aí, o ponto de partida é uma anterior conduta de um sujeito jurídico que “objectivamente considerada é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira.” (Prof. Baptista Machado, “Obra Dispersa”, 1, 415 e ss).

A conduta pregressa terá criado na contraparte uma situação de confiança com base na qual esta tenha tomado disposições ou organizado planos que, gorados, lhe causarão danos.

Subjacente à proibição do venire contra factum proprium está a ideia de que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devem ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida da relação, acreditou na mensagem irradiada pelo significado da conduta do mesmo agente (Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, II, p. 813, Batista Machado, Tutela da Confiança e venire contra factum proprium, RLJ, 117º e 118º, e Acs. STJ, BMJ, 397º/454, 459º/519, CJ/STJ, 1999, II, 60, 2001, III, p. 30, 2002, I, p. 48, e 2003, I, 31 e 65, 2006, III, 93, 12/11/2013 e 02/12/2013, estes acessíveis em www.dgsi.pt).

Para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, ou seja, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171).

Enfim, são pressupostos desta modalidade de abuso do direito (venire contra factum proprium) os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.

Enunciados os princípios, revertendo ao caso em apreço, pensamos que não ocorre abuso do direito por parte dos executados ao deduzirem a oposição com fundamento na inexistência de responsabilidade cambiária.

Com efeito, não se vê, salvo melhor opinião, em que é que os executados/opoentes, ao subscreverem o cheque em causa, e outros cheques (pós-datados), em Fevereiro de 2011, enquanto legais representantes do Clube Desportivo X, e ao negociarem, posteriormente, em nome daquela associação, com a exequente o pagamento da dívida (ver G. a J. dos factos provados), defraudaram a confiança gerada na exequente ou as legitimas expectativas desta, com um comportamento incoerente ou contraditório, eticamente censurável.

Não se evidencia uma conduta contraditória (venire contra factum proprium) por parte dos executados/opoentes, violadora do princípio da confiança, ou seja, uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela E, S.A., em função do modo como antes actuaram os mencionados representantes do Clube Desportivo X.

Inexiste, pois, exercício de um direito de modo abusivo, com clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante ou excedendo, manifestamente, os limites impostos pela boa fé negocial.(…)»

Não vislumbramos quaisquer razões que nos levem a afastar a apontada argumentação.

Efectivamente cabia, como cabe, no pleno direito de defesa dos aqui Recorridos o excurso que encetaram em sede de recurso de Apelação, no sentido de demonstrarem a bondade da sua pretensão, ou seja, que na data da entrega do cheque dado à execução foi pelos mesmos emitido e assinado na qualidade de representantes do Clube Desportivo X e por isso não são eles próprios obrigados cambiários, nem devedores da quantia peticionada pela Recorrente em sede executiva, nem a titulo pessoal, por a conta sacada não lhes pertencer, nem a título obrigacional por força de um eventual abuso dos poderes de representação do mencionado Clube, nos termos do artigo 11º da LUCH.

As conclusões improcedem in totum.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão plasmada no Acórdão impugnado.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 20 de Outubro de 2015

(Ana Paula Boularot)

(Pinto de Almeida)

(Júlio Manuel Vieira Gomes)