Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
540/22.0T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: REFORMA DA DECISÃO
PRESSUPOSTOS
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
TRÂNSITO EM JULGADO
CASO JULGADO
LITISPENDÊNCIA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Transitada em julgado a sentença condenatória proferida nos autos, não pode o tribunal proceder, oficiosamente, à sua reforma, julgando procedente a excepção de litispendência e absolvendo a ré da instância.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: Visconde Construções, Lda.

Recorrido: AA

1. AA propôs a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra Visconde Construções, Lda., em que formulava o seguinte pedido:

A) Condenar a R. na reparação dos defeitos indicados na presente petição de forma a repor a conformidade da obra, tal e qual como foi acordada com o A., no prazo de 60 dias a contar da citação para o presente processo;

B) Condenar a R. no pagamento de uma indemnização ao A., referente aos danos patrimoniais, bem como aos danos não patrimoniais, a liquidar posteriormente em liquidação de sentença, mas nunca inferior a 400.000,00€ (quatrocentos mil euros), a título de todos os tipos de danos supra mencionados, sendo que existe ainda um valor que se desconhece devido ao facto de não se saber como irá ser o desfecho do presente processo, sendo que até ao momento foram gastos cerca de 9.000,00 € em honorários por serviços jurídicos e taxas de justiça. Sendo que este valor pedido a título de indemnização tem carácter meramente indicativo, pois encontra-se dependente da avaliação pericial solicitada.

SUBSIDIARIAMENTE

Caso V. Exas. assim não entenda, o que por mera hipótese se admite, requer que a presente ação seja julgada procedente, por provada, e, em caso de incumprimento definitivo por parte da R.:

A) Condene a R. no pagamento de uma indemnização no montante de 400.000,00 € (quatrocentos mil euros), correspondente a todos os tipos de danos supra indicados, a liquidar posteriormente em execução de sentença, uma vez que existe ainda um valor que se desconhece, devido ao facto de não se saber como irá ser o desfecho do presente processo, sendo que até ao momento foram gastos cerca de 9.000,00 (nove mil euros) em honorários por serviços jurídicos e taxas de justiça, como dito acima.

Sendo que este valor também se encontra dependente da avaliação pericial solicitada.

Em qualquer dos casos supra solicitados a este tribunal nos dois pedidos, requer a condenação dos R.R. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de 150,00 € (cento e cinquenta euros), nos termos do disposto nos números 1 a 4 do art.º 829-A do Cód. Civil, por cada dia de atraso na reposição da conformidade da obra ou no pagamento de 400.000,00 € (quatrocentos mil euros), para a realização da obra por terceiro – ou na quantia que vier a ser indicada em perícia judicial a requerer no âmbito do presente processo.

Também em qualquer dos casos supracitados pedidos a este tribunal, se requer, caso se tenha de proceder a um calculo de redução do preço para a resolução do presente caso, a equação citada nos artigos 153 a 155 da presente petição e o resultado que da mesma resulta, bem como que, na perícia a realizar pelo tribunal, abaixo requerida, se apurem esses valores (Pd = (Pa x Vr): Vi)”.

Em fundamento da deduzida pretensão, o autor invocou que entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada para construção de uma moradia, e acordados trabalhos adicionais, cujo tipo e custo elencou, num valor total de 899.778,00€, a pagar faseadamente, nos termos constantes do contrato.

Mais alegou que a obra não foi terminada no tempo de execução contratado, e ainda hoje permanecem trabalhos por concluir, cujo pagamento já efetuou. Acresce que a empreitada também padeceu de vários problemas de execução, apresentando defeitos vários, os quais foram desde logo comunicados à ré pelo autor assim que se tomaram conhecidos deste para que aquele procedesse às reparações devidas e necessárias, mas com o decurso do tempo a ré acabou por manifestar a intenção de não proceder a qualquer reparação.

Invocou ainda que no dia 9 de Março de 2017, quando a ré lhe entregou as chaves da habitação, não foi lavrado qualquer auto de receção provisória, tendo-lhe nessa mesma ocasião o autor referido expressamente. que não aceitava a obra no estado em que ela se encontrava, aduzindo seguidamente no artigo 33 da p.i. que “Para além desses defeitos atrás referidos, que foram objeto de um processo judicial, nos últimos meses surgiram novos defeitos que, abaixo, se indicarão”1.

Seguidamente (artigos 35 a 53 da p.i.) o Autor passou a indicar um conjunto de defeitos, cujo aparecimento / detecção situou entre os meses de Setembro de 2021 e Janeiro de 2022, aduzindo ainda que o jacuzzi não foi sequer edificado.

No segmento do petitório atinente ao “Direito”, convocou o regime das empreitadas de consumo, previsto no DL n.º 67/2003.

2. Foi expedida carta registada para citação da ré, cujo aviso de receção foi devolvido assinado, não tendo sido apresentada contestação.

3. Na sequência disto, em 5.05.2022, foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pelo autor, tendo este, na sequência, apresentado alegações.

4. Em 19.06.2022 foi proferida sentença, com o seguinte segmento dispositivo:

Em face do exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência, decido:

a) Condenar a ré VISCONDE CONSTRUÇÃO, LDA., na reparação dos problemas elencados pelo Autor AA e enunciados supra, no que se refere à empreitada correspondente à moradia sita no Lote n.º 52, prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4020 da freguesia da ..., do concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo 5369º, freguesia da ..., concelho de .... Prazo: sessenta dias após a notificação. Decorrido esse prazo sem que a ré algo faça, o contrato de empreitada de 17 de novembro de 2015, e acordos posteriores, ficarão resolvidos e a ré obrigada a pagar ao mesmo Autor a quantia de € 400 000 (quatrocentos mil euros), correspondente ao custo das reparações necessárias (danos patrimoniais), acrescida de juros legais contados desde o 61.º dia após a notificação da sentença;

b) Condenar a mesma ré no pagamento ao Autor da quantia de € 10 000 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais que vierem a vencer-se.

Custas na proporção do decaimento – art. 527.º do Código de Processo Civil”.

5. A notificação da sentença foi enviada à ré em 23.06.2022 (certificação Citius).

6. Em 11.08.2023, a ré apresentou requerimento informando ter constituído mandatário o advogado subscritor do mesmo, dizendo que “vem juntar aos autos procuração forense, requerendo que o seu mandatário seja associado ao processo na plataforma”.

7. Por requerimento apresentado em 1.09.2023, a ré formulou a pretensão de “ser a citação considerada nula e, consequentemente, anular-se todo o processado posterior à petição inicial, repetindo-se a citação da Ré na morada da sua sede, conforme o exige a lei processual, observando ainda que “este requerimento consiste na primeira intervenção da Ré no processo, atendendo que a junção da procuração teve por finalidade facultar os elementos do processo ao seu mandatário.

8. Notificado, o autor respondeu invocando, para além do mais, que no contrato de empreitada em apreço foi convencionado aquele domicílio e a ré não havia comunicado a sua alteração, conforme ali previsto, “[e] porque foi convencionado pelas partes que a correspondência acerca de qualquer pendencia do objeto em causa seria para o aludido domicílio convencionado, a ação declarativa com o n.º de processo: 1282/19.0... foi intentada para o DOMICILIO CONVENCIONADO da R; bem como a presente ação. E, houve resposta à Citação da referida ação declarativa por parte da R (a primeira)”.

9. Por despacho proferido em 19.12.2022, foi julgado improcedente o incidente deduzido e determinada a notificação das partes para se pronunciarem sobre a reforma da sentença, em suma, por considerar que “a ré foi citada no processo n.º 540/22 quando estava em curso a ação n.º 1282/19, cinco dias antes do início da audiência neste processo mais antigo, devendo aqui ser conhecida a exceção de litispendência – art. 582.º.

Note-se que em nenhum momento, o Autor faz referência ao processo n.º 1282/19 em curso, devendo também apurar-se se houve litigância de má fé e abuso de direito.

Para já, os elementos constantes dos autos são por si só suficientes para equacionar a já referida reforma da sentença, sob pena de injustiça flagrante.

10. Ambas as partes se pronunciaram: o autor, invocando não existir fundamento para proceder à reforma da sentença proferida, encontrar-se esgotado o poder jurisdicional e ter transitado em julgado a sentença proferida nestes autos, consequentemente não se verificar a excepção de litispendência; a ré, defendendo “que se proceda à reforma da douta sentença apreciando-se a verificação da excepção da litispendência e das demais questões suscitadas no douto despacho”.

11. Em 1.02.2023, o Tribunal de 1.ª instância decidiu:

Ora, a ação proposta em segundo lugar e em que a ré foi citada depois foi esta, esta em que acabou por vir a ser proferida sentença na sequência da revelia. A ré foi citada no processo n.º 540/22 quando estava em curso a ação n.º 1282/19, cinco dias antes do início da audiência nesse processo mais antigo, devendo aqui ser conhecida a exceção de litispendência – art. 582.º.

Está, pois, em causa um fundamento para a declaração de nulidade da sentença pois não foi apreciada questão sobre a qual o Tribunal deveria ter-se pronunciado – e que o autor omitiu – ou pelo menos da respetiva reforma, tendo em conta os documentos que foram juntos – art. 616.º, n.º 2, al. b), do mesmo código.

Note-se que em nenhum momento o autor faz referência ao processo n.º 1282/19 em curso, nem ao seu desenvolvimento.

Os elementos constantes dos autos são por si só suficientes para equacionar a já referida reforma da sentença, sob pena de injustiça flagrante.

Assim, reformo a sentença proferida nestes autos no dia 23 de maio de 2022 nos seguintes termos, ficando aquela sem efeito e considerando-se substituída pela que segue:

‘(…) Nesta ação e na ação n.º 1282/19 está em causa a discussão do mesmo contrato e o cumprimento pelas partes das respetivas obrigações, havendo, pois, identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir – art. 581.º do Código de Processo Civil.

Sabendo disso, o autor AA propõe ação que não vem a ser contestada e obtém ganho de causa devido a revelia, numa segunda ação em que não foi considerada a litispendência.

(…) 1 - A litispendência deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar.

2 - Considera-se proposta em segundo lugar a ação para a qual o réu foi citado posteriormente – art. 582.º.

1 - O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância:
(…) e) Quando julgue procedente alguma outra exceção dilatória (…) – art. 278.º do código em referência.

(…) Em face do exposto, julgo procedente a exceção de litispendência, absolvendo a ré VISCONDE CONSTRUÇÃO, LDA., da instância.

Custas a cargo do autor – art. 527.º do Código de Processo Civil.”.

12. Inconformado, o autor apelou, tendo o Tribunal da Relação de Évora proferido Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se:

Pelo exposto, acordam os juízes desta conferência, na procedência da apelação, em revogar a decisão proferida em 01.02.2023, ficando a subsistir na ordem jurídica a sentença condenatória proferida em 19.06.2022, e transitada em julgado.

Custas pela Apelada”.

13. Inconformado com este Acórdão, é agora a ré Visconde Construções, Lda., quem vem interpor recurso de revista.

A terminar enuncia as seguintes conclusões:

I – Quando o Autor dá entrada da presente acção, estava pendente em fase de julgamento a acção 1282/19.0..., na qual o Autor demandara a Ré pelos mesmos factos e com pedido idêntico.

II – Verifica-se a excepção de litispendência quando se propõe uma causa idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artigo 581º nº 1 do C.P.C.)

III – Na petição inicial não é feita qualquer menção à pendência da acção 1282/19.0..., sendo certo que o Autor sabia que não podia repetir tal acção, pois tal não lhe era permitido pelo artigo 580º do C.P.C.

IV – Mesmo assim, o Autor avançou com a acção violando também o artigo 334º do Código Civil.

V – O princípio da cooperação previsto no artigo 7º do C.P.C. impõe aos magistrados, aos mandatários e às partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

VI – A composição pretendida pelo Autor do litígio nunca poderia ser julga atendendo a que o mesmo já se discutia em fase avançada noutro processo.

VII – O princípio da boa-fé consagrado no artigo 8º do C.P.C. determina que as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação.

VIII – Ao omitir na petição inicial da presente acção a pendência de outra acção anterior (1282/19.0...) o Autor não agiu com a boa-fé que o referido princípio exige.

IX – Na sequência do requerimento apresentado pela Ré invocando a nulidade da citação a Mmª. Juiz a quo apercebeu-se da pendência da acção 1282/19.0...

X – Por esse motivo, no despacho de 19 de Dezembro de 2022, mostra que é sua intenção reformar a sentença, em virtude de se ter apercebido que os presentes autos se encontravam feridos da excepção da litispendência.

XI – A excepção da litispendência é do conhecimento oficioso (artigo 578º do C.P.C.)

XII – Quando decide reformar a sentença, a Mmª. Juiz a quo apercebeu-se de que sentença por ela anteriormente proferida se traduzia numa injustiça flagrante, justificando os elementos constantes dos autos a reforma da sentença, que considerou ferida de nulidade.

XII – Cabe aqui referir também a menção feita no despacho de 19 de Dezembro de 2022 onde a Mmª. Juiz a quo refere que também é titular do processo 1282/19.0...

XIV - A função do julgador é praticar a justiça, aplicando o direito, procurando sempre de acordo com os elementos que lhe são apresentados a decisão mais justa, interpretando as normas processuais, quando seja o caso, no sentido de praticar a justiça.

XV – A Mmª. Juiz a quo viu-se impedida de conhecer oficiosamente da excepção da litispendência, em virtude de o Autor ter omitido a pendência da acção 1282/19.0...

XVI - Esta circunstância traduz-se num abuso de direito e na violação do princípio da boa fé previsto no artigo 8º do Código do Processo Civil.

XVII - Compete ao julgador zelar pelo cumprimento dos princípios que regulam o nosso processo civil, mesmo quando tenha proferido sentença na sequência da violação de tais princípios.

XVIII – Interpretou a Mmª. Juiz a quo o artigo 616 nº 2 al. b) do C.P.C. no sentido de lhe permitir que, nas circunstâncias muito particulares (e podemos acrescentar raras) dos autos, procedesse à reforma da sentença anteriormente proferida face à informação contida nos autos da repetição de uma causa.

XIX - A interpretação da Mmª. Juiz a quo do artigo 616º nº 2 al. b) do Código do Processo Civil é a que mais se coaduna com os princípios processuais da cooperação (artigo 7º) e da boa-fé (artigo 8º) e ainda com o disposto no artigo 334º do Código Civil.

XX – A Ré entende que o aliás douto Acórdão em apreço violou as seguintes disposições legais:

-Código do Processo Civil – artigos 7º, 8º, 580º, 580º nº 1, 578º, 616º nº 2 al. b);

-Código Civil – artigo 334º”.

14. Pugnando, ao contrário, pela manutenção do Acórdão recorrido, o autor AA apresenta contra-alegações, nas quais conclui:

1. De acordo com o disposto no art. 613.º, n.º 1 do Cód. de Processo Civil, no que diz respeito à extinção do Poder jurisdicional e as suas limitações, a regra é que proferida a sentença ou o despacho, em face do preceituado no n.º 3 do mesmo artigo, fica esgotado o Poder jurisdicional do juiz para proceder à respetiva alteração, devendo a parte vencida que das decisões proferidas dissente e que pretenda reagir contra as mesmas, usar a faculdade Processual de delas interpor o devido recurso por forma a obter, em caso de Procedência da sua Pretensão, a pretendida alteração pelo tribunal superior.

2. No entanto o juiz de primeira instância pode, excecionalmente, retificar erros materiais, suprir nulidades, e reformar a sentença, casos em que, atento o preceituado no artigo 613.º, n.º 2 do Cód. de Proc. Civil, lhe é lícito proceder à correção/alteração da decisão inicialmente proferida.

3. São exceções para correção de vícios que a decisão pode, eventualmente, conter.

4. No entanto, tal só é admissível nos apertados limites em que a lei permite a retificação de erros ou lapsos materiais, o suprimento de nulidades; a reforma da decisão, casos em que, atento o preceituado no Art. 613.º, n.º 2 do Cód. de Processo Civil, lhe é lícito proceder à correção/alteração da decisão inicialmente proferida.

5. Nada tem que ver com os casos em que a Lei expressamente permite ao Juiz corrigir – a pedido ou por iniciativa própria os vícios de que a mesma enferma.

6. A referida reforma também não ocorreu ao abrigo de um manifesto lapso do Juiz ter provocado nenhuma das situações elencadas nas alíneas do n.º 2 do referido Artigo 616.º.

7. E caso não seja assim, a decisão proferida apenas é modificável em sede de recurso, o que a Recorrida optou por não fazer.

8. O requerimento que a Recorrida fez, consubstanciado na arguição de um vício não tem a virtude de suspender o prazo para a interposição de recurso.

9. Como a decisão admitia recurso ordinário, a Recorrida tinha a obrigação de recorrer da decisão, e aí suscitar a alegada falta de citação, o que, conforme se defende, não existe, em todo o caso.

10. Acresce que a arguição das Nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do Art. 615.º e a reforma da sentença só podem ser suscitadas no âmbito de recurso interposto da decisão – conforme a n.º 4 do Artigo 615.º e números 2 (a contrário) e 3 do Art. 616.º.

11. O legislador estabeleceu no Artigo 617.º do Cód. de Processo Civil o processamento subsequente para estes casos em que a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma seja suscitada no âmbito do recurso que dela haja sido interposto, competindo ao Juiz apreciá-la no próprio despacho em que se Pronuncia sobre a admissibilidade do recurso.

12. No regime atualmente vigente só a retificação de erros materiais não se encontra sujeita ao referido regime de arguição em sede de alegações de recurso, podendo ser sempre efetuada por requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do Juiz, e ser decidida por simples despacho, podendo inclusivamente ter lugar a todo o tempo, se nenhuma das Partes recorrer – conforme números 1 e 3 do Art. 614.º do Cód. de Proc. Civil.

13. Do mesmo modo, o n.º 2 do Art. 614.º do Cód. de Proc. Civil estabelece uma tramitação própria para a correção deste vício da sentença, diversa do processamento previsto no Art. 617.º e já referido para os casos do suprimento de nulidade ou de reforma da sentença, estatuindo que, em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o Tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.

14. Neste caso não existiu o referido enquadramento legal para que a Sra. Dra. Juiz pudesse ter intervindo, modificando a decisão pois não foi sequer interposto recurso da decisão proferida a 19 de Junho de 2022, quando era possível.

15. A Sra. Dra. Juiz justificou a intervenção alegando que não se tenha pronunciado sobre a litispendência, esquecendo que quando em 1 de Fevereiro de 2023 proferiu o despacho sindicando, há muito transitava em julgado a sentença que havia proferido nos autos.

16. Quando a Recorrida ATRAVESSOU o requerimento arguindo a nulidade do Processado por falta de citação, a sentença prolatada nos autos não havia ainda transitado, dada a sua notificação que havia sido remetida à Recorrida a 23 de Junho de 2022.

17. Caso a arguição dessa nulidade da citação da Recorrida tivesse sido Procedente, com a consequente anulação de todo o Processado, essa sentença seria também nula e de nenhum efeito.

18. A nulidade arguida foi julgada improcedente por despacho proferido em 19 de Dezembro de 2022, não tendo a ora Recorrida interposto recurso.

19. Nesse mesmo dia a Sra. Dra. Juiz determinou a notificação das partes para se pronunciarem quanto à possibilidade de reformar a sentença nos termos em que veio a julgar possível fazê-lo.

20. Mas no prazo de 10 dias, o ora Recorrente de pronto alegou a inadmissibilidade da reforma daquela decisão nos termos anunciados.

21. Alegou que só a interposição de Recurso pela ora Recorrida do despacho que indeferiu a arguida nulidade da citação teria a virtualidade de obstar ao trânsito em julgado da sentença.

22. Apesar disso, a Recorrida limitou-se a secundar a posição veiculada pelo Tribunal a quo, sem impugnar aquele despacho, pelo que a sentença proferida a 19 de Junho de 2022 transitou em julgado.

23. Por essa evidente razão, a decisão recorrida que julgou procedente a exceção de litispendência, absolvendo a ora Recorrida da instância não se pode manter.

24. Segundo o Art. 621.º do Cód. de Proc. Civil, a propósito do caso julgado, a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga, e uma vez transitada em julgado, a decisão sobre a relação material contro vertida fica a ter força obrigatória dentro e fora do Processo nos limites fixados pelos Artigos 590.º e 581.º do Cód. de Proc. Civil, valor da sentença transitada em julgado que expressamente resulta do disposto no n.º 1 do Art. 619.º do Cód. de Proc. Civil.

25. Para salvaguardar esta força obrigatória, a lei prevê a exceção de caso julgado que pressupõe, por via do disposto no Artigo 497.º n.º 1 e 2 do CPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado, e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, ou seja, assenta “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”.

26. É certo que a autoridade do caso julgado pode ser sacrificada quando tal sacrifício seja apto a evitar os superiores dano e perturbação que adviriam de uma sentença intoleravelmente injusta, devendo ceder, nas situações em que tal se verifique, o princípio da segurança perante o princípio da justiça.

27. Existe o recurso extraordinário de revisão de sentença, cujo fundamento reside precisamente na ideia de que a ordem jurídica deve.

28. A definição desses casos extremos e excecionais em que a intangibilidade do caso julgado, que sustenta a necessidade de certeza e segurança na definição das relações jurídicas, cede perante o princípio da justiça, mostra-se positivada no elenco taxativo de situações previstas no citado preceito legal, que estatui sobre os fundamentos do recurso da revisão, recurso que naturalmente depende da iniciativa da parte e não é de conhecimento oficioso.

29. O presente recurso procede, sendo de revogar a decisão recorrida que, em violação do caso julgado formado pela sentença que proferira, decidiu proceder à reforma da sentença condenatória já transitada, julgando procedente a exceção de litispendência, e absolvendo a Ré da instância, ficando a subsistir na ordem jurídica a sentença proferida em 19.06.2022, transitada em julgado.

E ainda,

30. Não existia identidade entre as causas de pedir, nem entre os pedidos formulados, que procedem de realidades distintas.

31. Nelas, as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, mas a causa de pedir é completamente diferente - conjunto de factos que preenchem o quadro jurídico de onde resulta o efeito jurídico pretendido – não é a mesma, os danos não são os mesmos e o pedido de indeminização também não é o mesmo.

32. Também é falso que o Apelante não tenha dado conhecimento ao Tribunal de que não existisse já uma outra ação a correr entre as partes – como a Apelada refere – “em nenhuma passagem da sua Peça Processual faz referência à ação 1282/19.0... – é mentira isso. É falso.

33. O Apelante, A. nas ações em causa afirma na Petição Inicial que já havia sim uma outra ação, mas com fundamentos diferentes, nomeadamente no art. 33.º da Petição Inicial.

34. Onde, inclusivamente, se teve o cuidado de diferenciar os danos resultantes da Primeira Ação, e os danos objeto dessa segunda ação.

35. A Julgadora podia e devia, se assim o achasse necessário, suscitado a questão da possibilidade da existência de uma exceção dilatória por litispendência.

36. Não se está a falar em ambos os processados do mesmo pedido nem do mesmo valor indemnizatório pois trata-se de realidades distintas.

37. Foi convencionado pelas partes que a correspondência acerca de qualquer pendência do objeto em causa seria para o aludido domicílio convencionado; a ação declarativa com o n.º de processo: 1282/19.0... foi intentada para o DOMICÍLIO CONVENCIONADO da R; bem como a presente ação.

38. A R. bem sabia que as comunicações do referido processo e quaisquer outras foram objeto de convenção de domicílio.

39. Ademais, no aludido contrato, as partes convencionaram que caso houve alguma alteração, a mesma deveria ser comunicada por e-mail – O QUE NÃO FOI FEITO!

40. Tendo a Apelada violado o contratado com a Apelante”.

15. Foi proferido no Tribunal recorrido despacho com o seguinte teor:

Por para tanto o recorrente ter legitimidade, tendo-o feito atempadamente e na forma legal, admito o presente recurso de revista, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto, nomeadamente, nos artigos 638.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 674.º, n.º 1, alínea b), e 676.º, n.º 1, a contrario todos do CPC.

Oportunamente, subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a apreciar in casu é a de saber se, perante as incidências processuais descritas no presente Relatório, era ou não admissível a reforma da sentença2.

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Para o Tribunal recorrido, os factos relevantes para a presente decisão são os descritos no Relatório.

O DIREITO

Para justificar a sua decisão de revogação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância em 1.02.2023 e de repristinação da sentença condenatória proferida em 19.06.2022, o Tribunal a quo apresentou a seguinte fundamentação:

Conforme é sabido, de acordo com o disposto no artigo 613.º, n.º 1, do CPC, quanto à extinção do poder jurisdicional e suas limitações, a regra é a de que, proferida a sentença – ou o despacho, em face do preceituado no n.º 3 do mesmo artigo –, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz para proceder à respetiva alteração, devendo a parte vencida que das decisões proferidas dissente e que pretenda reagir contra as mesmas, usar a faculdade processual de delas interpor o devido recurso por forma a obter, em caso de procedência da sua pretensão, a pretendida alteração pelo tribunal superior.

Não obstante, o legislador tipificou algumas situações em que consagrou exceções àquela regra da extinção do poder jurisdicional, permitindo ao juiz de primeira instância retificar erros materiais, suprir nulidades, e reformar a sentença, casos em que, atento o preceituado no artigo 613.º, n.º 2, do CPC, lhe é lícito proceder à correção/alteração da decisão inicialmente proferida.

São, pois, ressalvados daquela regra da extinção do poder jurisdicional após a prolação da decisão, os casos em que a lei expressamente permite ao juiz corrigir - a pedido ou por iniciativa própria -, os vícios de que a mesma enferma.

Assim, em face do regime de suprimento pelo juiz dos vícios das decisões proferidas, atualmente previsto nos artigos 614.º a 617.º do CPC, a alteração da decisão pelo próprio juiz que a proferiu só é admissível nos apertados limites em que a lei permite a retificação de erros ou lapsos materiais; o suprimento das nulidades; a reforma da decisão quanto a custas e multa, e ainda, se não couber recurso da decisão, quando por manifesto lapso do juiz tenha ocorrido uma das situações elencadas nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 616.º. Ao invés, não sendo a alteração enquadrável em nenhum dos casos de suprimento referidos, a decisão proferida apenas é modificável em sede de recurso.

Acontece que, diversamente do que ocorria no regime processual vigente antes da alteração quanto à impugnação das decisões introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de agosto, atualmente, a arguição de qualquer um dos indicados vícios pelas partes não suspende o prazo para interposição de recurso.

Acresce ainda que, se a decisão admitir recurso ordinário, o legislador estabeleceu que a arguição das nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do artigo 615.º, e a reforma da sentença só podem ser suscitadas no âmbito do recurso interposto da decisão – cfr. n.º 4 do artigo 615.º e n.ºs 2 (a contrario) e 3 do artigo 616.º.

Concordantemente, o legislador estabeleceu no artigo 617.º do CPC o processamento subsequente para estes casos em que a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma seja suscitada no âmbito do recurso que dela haja sido interposto, competindo ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso.

Efetivamente, no regime atualmente vigente somente a retificação de erros materiais não está sujeita ao referido regime de arguição em sede de alegações de recurso, podendo ser sempre efetuada por requerimento de qualquer das partes3 ou por iniciativa do juiz, e ser decidida por simples despacho, podendo inclusivamente ter lugar a todo o tempo, se nenhuma das partes recorrer – cfr. n.ºs 1 e 3 do artigo 614.º do CPC. Do mesmo modo, o n.º 2 do artigo 614.º do CPC estabelece uma tramitação própria para a correção deste vício da sentença, diversa do processamento previsto no artigo 617.º e já referido para os casos de suprimento de nulidade ou de reforma da sentença, estatuindo que, em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.

Posto este enquadramento genérico, fácil é verificar que o ocorrido nos presentes autos – e que se mostra evidenciado pelas incidências processuais relevantes acima transcritas –, não encontra arrimo no regime legal atinente à possibilidade de intervenção do julgador para modificação de decisão prolatada, desde logo porque não foi sequer interposto recurso da decisão proferida em 19.06.2022, quando a mesma o admitia.

Com efeito, justificou a julgadora que não se havia pronunciado sobre questão sobre a qual tinha que se pronunciar (a litispendência).

Fê-lo, porém, olvidando que quando em 01.02.2023 proferiu o despacho sindicando, há muito transitara a sentença que havia proferido nos autos.

Na verdade, quando a Ré atravessou o requerimento arguindo a nulidade do processado por falta da sua citação, a sentença prolatada nos autos não havia ainda transitado em julgado, pois que a sua notificação havia sido remetida à Ré em 23.06.2022.

Caso a arguição dessa nulidade da citação da Ré tivesse sido procedente, com a consequente anulação de todo o processado, essa sentença seria também nula e de nenhum efeito.

Porém, não foi isso que aconteceu.

A nulidade arguida foi julgada improcedente por despacho proferido em 19.12.2022, que foi notificado à Ré, sem que do mesmo tenha sido interposto recurso.

É certo que, nesse mesmo dia, a Senhora Juiz determinou a notificação das partes para se pronunciarem quanto à possibilidade de reformar a sentença nos termos em que veio a julgar possível fazê-lo.

Mas, no prazo de 10 dias que lhes foi concedido para o efeito, o Autor pronunciou-se pela inadmissibilidade da reforma daquela decisão nos termos anunciados pela julgadora, posição que logo fazia antever que não se conformaria com a prolação de decisão nos termos preconizados no despacho que determinou a audição das partes.

Consequentemente, só a interposição de recurso pela Ré do despacho que indeferiu a arguida nulidade da sua citação, teria a virtualidade de obstar ao trânsito em julgado da sentença.

Não obstante, a Ré limitou-se a secundar a posição veiculada pelo tribunal a quo, sem impugnar aquele despacho, pelo que, a sentença proferida em 19.06.2022, transitou em julgado.

Consequentemente, e desde logo por essa evidente razão, a decisão recorrida, que julgou procedente a exceção de litispendência, absolvendo a Ré da instância, proferida com o fundamento de que «o autor AA propõe ação que não vem a ser contestada e obtém ganho de causa devido a revelia, numa segunda ação em que não foi considerada a litispendência», não pode manter-se.

Com efeito, a propósito do alcance do caso julgado, diz-nos o artigo 621.º do CPC, que a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga, e que, uma vez transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro e fora do processo nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º do CPC, valor da sentença transitada em julgado que expressamente resulta do disposto no n.º 1 do artigo 619.º do CPC.

Para salvaguardar esta força obrigatória, a lei prevê a exceção de caso julgado que pressupõe, por via do disposto no artigo 497.º nºs 1 e 2 do CPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado, e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, ou seja, assenta “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”4.

É certo que a autoridade do caso julgado pode ser sacrificada quando tal sacrifício seja apto a evitar os superiores dano e perturbação que adviriam de uma sentença intoleravelmente injusta, devendo ceder, nas situações em que tal se verifique, o princípio da segurança perante o princípio da justiça.

Mas, para tal efeito existe o recurso extraordinário de revisão de sentença, cujo fundamento reside precisamente na ideia de que a ordem jurídica deve, em casos extremos e excecionais como são aqueles que o legislador elencou no artigo 696.º do CPC, sacrificar a intangibilidade do caso julgado, permitindo a sua rescisão, por imperativos de justiça, de forma que se possa reparar essa grave injustiça e proferir nova decisão.

Porém, a definição desses casos extremos e excecionais em que a intangibilidade do caso julgado, que sustenta a necessidade de certeza e segurança na definição das relações jurídicas, cede perante o princípio da justiça, mostra-se positivada no elenco taxativo de situações previstas no citado preceito legal, que estatui sobre os fundamentos do recurso de revisão, recurso que naturalmente depende da iniciativa da parte e não é de conhecimento oficioso.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, o presente recurso procede, sendo de revogar a decisão recorrida que, em violação do caso julgado formado pela sentença que proferira, decidiu proceder à reforma da sentença condenatória já transitada, julgando procedente a exceção de litispendência, e absolvendo a Ré da instância, ficando a subsistir na ordem jurídica a sentença proferida em 19.06.2022, transitada em julgado.

Vencida, a Ré/Apelada suporta as custas do recurso, na vertente das custas de parte, atento o princípio da causalidade e o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC”.

Dificilmente se poderá aportar algo de novo a esta extensa e clara fundamentação. O raciocínio do Tribunal a quo é coerente e globalmente irrepreensível no plano do Direito.

Pode ser sintetizado assim: tendo a sentença de 19.06.2022 transitado em julgado, já não era susceptível de reforma aquando da decisão (de reforma) proferida pelo Tribunal de 1.ª instância em 1.02.2023 e, portanto, há que revogar esta última.

Veja-se o comentário da doutrina especializada sobre as normas relevantes e a propósito do tema.

Começando pela norma do artigo 613.º, n.º 1, do CPC, que, dispondo “[p]roferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, constitui a regra fundamental para a presente decisão, dizem, por exemplo, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre que:

Um dos efeitos da sentença consiste no esgotamento do poder jurisdicional do juiz que a profere: quer conclua com a absolvição da instância, quer condene no pedido ou dele o absolva, o juiz da causa mão pode, em regra, rever a decisão proferida5.

E propósito do n.º 2, prevendo as excepções à regra e dispondo “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”, explicam aqueles autores:

Excetuam-se, porém, os casos de que tratam os artigos seguintes: erro material, que possibilita a retificação a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento das partes, quando não haja recurso, e até à subida deste, quando ele seja interposto (art. 614); falta de assinatura do juiz, suscetível de ser aposta a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento da parte (art. 615, n.ºs 1-a, 2 e 3); outra nulidade (rigorosamente, anulabilidade), sanável pelo juiz, mediante reclamação da parte, quando a decisão não admita recurso, ou mediante alegação em recurso, a que o juiz pode ainda atender (arts. 615, n.ºs 1, alíneas b) a e), e 4, e 617, n.ºs 1 e 2); reforma quanto a custas e multa, com sujeição ao mesmo regime de reclamação ou recurso e de atendibilidade pelo juiz (art. 616, n.ºs 1 e 3, e 617, n.ºs 1 e 2); reforma por lapso manifesto, mediante reclamação da parte, quando a decisão não admita recurso (arts. 616-2 e 617-2)”6.

É razoavelmente evidente que a situação dos autos não é nenhuma das que são referidas neste elenco e que consubstanciam excepções à regra do n.º 1 do artigo 613.º do CPC.

Entre as normas relevantes para a decisão dos presentes autos, destaca-se ainda uma norma recorrentemente invocada pela recorrente – o artigo 616.º. n.º 2, al. b), do CPC –, cujo teor é o seguinte:

Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:

(…)

b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.

Mais uma vez recorrendo aos ensinamentos de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, verifica-se que:

O erro de julgamento, quer respeite ao apuramento dos factos da causa, quer respeite à aplicação do direito aos factos apurados, faz-se normalmente valer em recurso de apelação da sentença (art. 644-1). Tem assim lugar a reapreciação da causa pelo tribunal da relação, sob indicação, pelo recorrente, em alegação, dos fundamentos por que pede a alteração da decisão proferida (art. 639). Mas, não havendo lugar a recurso, pode o juiz da causa alterar, ele próprio, a decisão, sob reclamação (nunca oficiosamente, sob pena de ineficácia da decisão modificativa por violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional do juiz consagrado no art. 613 (…)7.

As considerações acima tecidas são suficientes para concluir que, estando já naquela altura, o poder jurisdicional do Tribunal de 1.ª instância esgotado, não podia ele proceder, oficiosamente, à reforma da sentença.

Sendo a mesma a conclusão do Acórdão recorrido, não há qualquer violação da lei a imputar-lhe, não restando senão confirmar-se a sua decisão de revogar a decisão recorrida e reconhecer que “subsist[e] na ordem jurídica a sentença condenatória proferida em 19.06.2022, e transitada em julgado”.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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Lisboa, 25 de Janeiro de 2024

Catarina Serra (relatora)

Afonso Henrique

Graça Trigo

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1. Deataque de origem.

2. Esclareça-se, brevemente, que a questão dos alegados abuso do direito e violação do artigo 334.º do CC, a que a recorrente se refere nas conclusões de revista (cfr., sobretudo, conclusão XVI), bem a questão associada da alegada violação dos artigos 7.º e 8.º do CPC (cfr. conclusões V, VII, XVI e XIX), não são questões que possam ou devam ser apreciadas aqui dado que se relacionam, não com a decisão recorrida (não são fundamentos dirigidos à impugnação da decisão recorrida), mas com a decisão transitada em julgado.

3. “O que acontece é que, requerendo a parte que podia recorrer a retificação da sentença e da mesma não recorrendo, corre o risco de, vendo indeferida a pretendida retificação posteriormente ao prazo de que disponha para interpor recurso da decisão, ver precludida a possibilidade de então interpor recurso.

4. Cfr. ANTUNES VARELA, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 307.

5. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), pp. 728-729.

6. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, cit., p. 729.

7. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, cit., p. 742 (destaques nossos).