Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1061/19.4T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SUB-ROGAÇÃO
PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Tendo sido declarada extinta (por prescrição) a obrigação do responsável civil, não pode subsistir a obrigação do Fundo de Garantia Automóvel, que é uma obrigação de garantia daquela responsabilidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões – Fundo de Garantia Automóvel e Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A.

A A. alegou que em 28.3.2014, quando circulava como passageira de um motociclo, por negligência do respetivo proprietário e condutor o motociclo despistou-se, do que resultaram para a A. graves danos corporais e, também, danos patrimoniais. Há dúvidas sobre se à data do acidente se encontrava em vigor seguro de responsabilidade civil respeitante ao motociclo, pelo que a A. demanda a seguradora e o FGA.

A A. terminou pedindo que os RR. fossem condenados a pagar à A. a quantia de € 50 000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de € 90,00 a título de indemnização por danos patrimoniais e, bem assim, em indemnização a liquidar em execução de sentença, relativamente aos danos não patrimoniais e patrimoniais que eventualmente vierem a ser apurados, uma vez que a A. ainda carece de cuidados médicos.

2. O FGA contestou, alegando a sua ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário, uma vez que a A. não demandou o responsável civil, isto é, o proprietário/condutor do motociclo. No mais, o R. impugnou o alegado pela A..

O R. concluiu pela sua absolvição.

3. A seguradora contestou, negando a existência de seguro, na medida em que à data do acidente o segurado havia transmitido a propriedade do motociclo àquele que veio a intervir no sinistro na qualidade de seu proprietário e condutor. Mais arguiu a prescrição do direito da A. e impugnou os factos alegados, concluindo pela sua absolvição do pedido.

4. A A. respondeu às exceções arguidas, pugnando pela sua improcedência. Mais requereu a intervenção principal provocada de BB, na qualidade de proprietário e condutor do motociclo mencionado na ação.

5. Admitido o peticionado chamamento, BB apresentou contestação, na qual alegou não ter tido culpa no acidente ocorrido, arguiu a prescrição do direito da A. e impugnou os danos invocados pela A., concluindo pela procedência da prescrição invocada e pela sua absolvição do pedido.

6. A A. respondeu à contestação do interveniente, pugnando pela improcedência da exceção arguida.

7. Os autos prosseguiram os seus termos, tendo sido realizada audiência final, e em 05.12.2022 foi proferida sentença na qual a R. seguradora e o interveniente BB foram absolvidos do pedido e o FGA (ASSFP) foi condenado a pagar à A. as quantias de € 20 000,00 e de € 90,00, respetivamente a título de indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescidos de juros de mora, e bem assim em quantia equivalente a danos patrimoniais e não patrimoniais futuros, a fixar em liquidação de sentença, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação.

8. O FGA apelou da sentença e em 12.9.2023 a Relação de Coimbra proferiu acórdão em que julgou a apelação procedente e, consequentemente, revogou a sentença recorrida e absolveu o FGA (ASSFP) do pedido.

9. A A. interpôs revista desse acórdão, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1. O Fundo sempre se mostrou disponível para liquidar à Autora o montante de € 1.750,00 e por consequência sempre assumindo o sinistro em questão. Pelo que,

2. Salvo melhor entendimento não poderá agora vir a beneficiar de uma alegada prescrição atento ao que efetivamente aconteceu.

3. O 1º R FGA deverá ser o responsável pelo pagamento das indemnizações devidas à Autora, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 47º a 49º do DL 291/2007 de 21.08.

4. Já que o responsável pelo acidente, causador de danos à Autora não possuía seguro válido eficaz, sendo que o 1º R o FGA é o sujeito passivo da obrigação de indemnização, e como tal responsável pelo pagamento das indemnizações devidas à Autora.

5. Até porque o direito concedido ao FGA pelo artigo 25º do DL 522/85 de 31.12 é de sub-rogação e não de regresso.

6. No caso em apreço é aplicável o disposto o nº 1 do artigo 327º do Código Civil, não decorrendo o prazo prescricional enquanto único acto interruptivo, só assim se respeitando o princípio de que ele não decorre enquanto o direito não puder ser exercido. Ora,

7. Apesar de a sua responsabilidade ser subsidiária, o Fundo de Garantia Automóvel desempenha as funções das seguradoras.

8. A obrigatoriedade de demanda conjunta com responsáveis civis prende-se com a legitimidade processual e não com a substantiva, que é autónoma, embora lhe seja conferido o direito de sub-rogação.

9. A responsabilidade subsidiária do Fundo de Garantia Automóvel não significa que não responda quando o direito de indemnização não possa ser exercido contra os responsáveis civis.

10. É no pressuposto legal de que o direito de indemnização não possa ser exercido ou concretizado contra o responsável civil que o Fundo de Garantia Automóvel é chamado;

11. Estando na acção o responsável civil BB sem seguro válido e eficaz, não podia o Fundo de Garantia Automóvel, garante daquela, ser dele excluído, depois de ser notificado judicialmente no processo.

12. O Fundo de Garantia Automóvel não pode socorrer-se da prescrição da obrigação de outrem quando a sua própria não está prescrita, sob pena de se sufragarem situações de abuso do direito e de má-fé.

13. Incumbe ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer as indemnizações por morte ou lesões corporais consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que não beneficiem de seguro válido ou eficaz (artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro).

14. Como no caso vertente não há contrato de seguro válido e eficaz susceptível de comportar a indemnização pretendida pela recorrente, é ao recorrido Fundo de Garantia Automóvel que incumbe suportar todos os prejuízos resultantes do acidente em apreço.

15. O prazo de prescrição do direito da Autora não prescreveu uma vez que o FGA sempre assumiu a responsabilidade pelo sinistro, contudo, mesmo com a prescrição relativamente ao R. BB a obrigação não desparece, antes se transforma uma obrigação natural conforme artigo 402º do Código Civil, pelo que, mesmo que aquela tivesse operado o FGA não estaria desobrigado de pagar à A. os danos pela mesma sofridos.

16. Os princípios da Justiça e da colaboração da Administração com os particulares impõem que o FGA satisfaça a indemnização devida à Autora AA.

17. No caso em apreço é aplicável o disposto o nº 1 do artigo 327º do Código Civil, não decorrendo o prazo prescricional enquanto único acto interruptivo, só assim se respeitando o princípio de que ele não decorre enquanto o direito não puder ser exercido. Ora,

18. Apesar de a sua responsabilidade ser subsidiária, o Fundo de Garantia Automóvel desempenha as funções das seguradoras.

19. A obrigatoriedade de demanda conjunta com responsáveis civis prende-se com a legitimidade processual e não com a substantiva, que é autónoma, embora lhe seja conferido o direito de sub-rogação.

20. A responsabilidade subsidiária do Fundo de Garantia Automóvel não significa que não responda quando o direito de indemnização não possa ser exercido contra os responsáveis civis.

21. É no pressuposto legal de que o direito de indemnização não possa ser exercido ou concretizado contra o responsável civil que o Fundo de Garantia Automóvel é chamado;

22. Estando na acção o responsável civil BB sem seguro válido e eficaz, não podia o Fundo de Garantia Automóvel, garante daquela, ser dele excluído, depois de ser notificado judicialmente no processo.

23. O Fundo de Garantia Automóvel não pode socorrer-se da prescrição da obrigação de outrem quando a sua própria não está prescrita, sob pena de se sufragarem situações de abuso do direito e de má-fé.

24. Incumbe ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer as indemnizações por morte ou lesões corporais consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que não beneficiem de seguro válido ou eficaz (artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro).

25. Como no caso vertente não há contrato de seguro válido e eficaz susceptível de comportar a indemnização pretendida pela recorrente, é ao recorrido Fundo de Garantia Automóvel que incumbe suportar todos os prejuízos resultantes do acidente em apreço.

26. Pelo que, ao decidir como fez o Tribunal da Relação, ao julgar improcedente a decisão nestes termos, com incorrecta interpretação dos factos e da Lei, violou os artigos violou os artigos 195.º N.º 1, 607.º, 615.º n.º 1 d) e 647º do CPC e 47º a 49º do DL. 291/2007, de 21.08, 327º n.º 1 do Código Civil entre outros, razão pela qual, no entender da ora apelante, deve a presente Decisão ser revogada e, em consequência, a decisão reformulada.

TERMOS EM QUE:

Deve o presente recurso proceder, e, consequentemente, procedendo a argumentação ora deduzida, ser ordenada a baixa do processo por forma a que seja efetuada a reforma do acórdão aqui posto em crise.

Assim entendendo e decidindo, farão Vª Exas., a esperada e costumada Justiça.”

10. O FGA contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

“1. Doutamente, o Tribunal da Relação de Coimbra absolveu o Fundo de Garantia Automóvel do pedido.

2. Mostrando-se prescrito o direito da Autora relativamente ao proprietário/condutor do veículo sem seguro e causador do acidente, haveria que absolver também o FGA, posto que este deixou de ser garante do pagamento de qualquer dívida…

3. Pugna a Autora pela condenação do FGA desacompanhado do responsável civil, entendendo que a isso obrigam as suas atribuições legais de garante do pagamento de indemnizações!

4. Contudo, se é certo que a Autora demandou atempadamente o FGA, não o fez relativamente ao principal responsável – o proprietário/condutor do veículo sem seguro.

5. Invocada por este a prescrição, foi a mesma declarada.

6. Foi a própria Autora que não cuidou de assegurar a interrupção do prazo prescricional quanto ao verdadeiro responsável, deixando que o mesmo decorresse até final.

7. A posição processual do FGA não é de responsável, muito menos de devedor principal, mas sim a de responsável subsidiário, enquanto garante do pagamento da indemnização em que o responsável civil fosse condenado.

8. A douta decisão de 1.ª instância julgou procedente a prescrição e absolveu o devedor principal do pedido, mas condenou o FGA desacompanhado daquele, o que se não poderia aceitar.

9. A prescrição do direito quanto ao devedor principal não podia deixar de aproveitar ao FGA, que assume o papel de garante do pagamento da indemnização que for devida por aquele.

10. Não sendo devida indemnização, nada há a garantir!

11. Os art.º 48.º e 49.º do DL 291/2007, de 21/08, não obrigam o FGA a satisfazer direitos prescritos!

12. Inexiste fundamento para a pretensão da Autora de ver o FGA condenado sozinho, sendo o responsável civil conhecido.

13. O douto acórdão de fls. não violou quaisquer preceitos legais.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso de Revista.”

11. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A revista tem por objeto a seguinte questão: tendo o responsável civil sido absolvido do pedido (por se ter julgado prescrito o direito da A.), deve o FGA ser responsabilizado pelo pagamento dos prejuízos sofridos pela A. em consequência do sinistro, sendo certo que ao tempo do acidente não existia seguro válido?

2.1. As instâncias deram como provada a seguinte

Matéria de facto

1. No dia 28 de Março de 2014 na ..., lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ... e distrito de ..., circulava o ciclomotor, de marca DERBI, matrícula ..-EH-.., conduzido pelo Interveniente BB, sendo a Autora sua passageira.

2. A zona em que se verificou a ocorrência é caracterizada por uma recta com pouca inclinação ascendente em relação ao sentido de marcha do veículo e com boa visibilidade, sem qualquer tipo de sinalização vertical.

3. Mede a faixa de rodagem, no local da ocorrência, cerca de 2,95 MT de largura.

4. O piso era de asfaltado irregular com terra batida.

5. Em virtude de tempestades ocorridas na altura, a estrada apresentava diversos buracos.

6. O Interveniente, ao constatar a existência de buracos na via, decidiu alterar a sua rota, tendo em vista continuar a viagem numa estrada com melhores condições de segurança.

7. Sucede que, aquando da inversão de marcha, a roda do ciclomotor escorregou e o Interveniente desequilibrou-se num dos buracos existentes na via, perdeu o controlo do mesmo, o que provocou a queda do ciclomotor e a queda da Autora.

8. A Autora, à data do acidente, gozava de boa saúde, não apresentando qualquer maleita.

9. Em consequência dos factos acima descritos, a A. sofreu politraumatismo com o TCE com PC, lesão no rim esquerdo, contusão no fígado e fratura da clavícula esquerda,

10. Sofreu dores, quer no momento do acidente, quer antes e após o acidente,

11. Foi assistida no Centro Hospitalar de ... e Hospital Pediátrico de ...,

12. Após alta Hospitalar esteve em casa em repouso absoluto durante 30 dias, em dor e sofrimento, por se encontrar imobilizada e em repouso absoluto,

13. Após os traumatismos e fracturas sofridos em consequência directa do acidente e durante o período de convalescença sofreu igualmente dores, mau estar, incómodos e limitações que de outra forma não teria sofrido, designadamente fortes dores abdominais e na clavícula esquerda,

14. A A. nunca mais conseguiu andar de motociclo e sente receio em andar de carro.

15. A A. sofre com a incerteza com que se depara em relação à sua completa e definitiva cura.

16. Deixou de poder praticar desporto como o fazia habitualmente,

17. O que a entristece muito e provoca-lhe depressão em virtude da prática desportiva ter sido sempre uma grande paixão até ao dia do acidente. Aliás,

18. Tem vergonha de sair e passou a ter uma vida reservada em casa e ainda cheia de limitações como por exemplo de brincar com a sua irmã mais nova.

19. Sente-se afastada do seu grupo de amigos por estar limitada nos seus movimentos.

20. O que lhe causa enorme revolta e desgosto.

21. A data de consolidação das lesões da Autora é fixável em 14/05/2014.

22. O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável em 19 dias.

23. O Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável em 29 dias.

24. Período de Repercussão Temporário na Atividade de Formação Total é fixável em 48 dias.

25. O Quantum Doloris é fixável no grau 4 (quatro) em 7.

26. O Défice Funcional Permanente da Integridade-Físico Psíquica é fixável em 1 (um) ponto.

27. Apesar de atualmente a função renal não apresentar alterações de relevo, bem como a examinada não apresentar queixas do foro urinário, é de admitir a possibilidade de evolução para um quadro de insuficiência renal do rim esquerdo, sequelar às lesões traumáticas decorrentes do evento em apreço, e já descritas imagiologicamente – (…) acentuada redução das dimensões do 1/3 inferior, onde praticamente não existe parênquima, havendo apenas algumas formações quísticas homogéneas, alterações que poderão estar em relação com a lesão traumática (…) –, o que pode obrigar a uma futura revisão do caso.

28. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional são compatíveis com o exercício da atividade profissional atual.

29. A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer é fixável no grau 2 (dois) em

30. Tratamentos médicos regulares – Neste caso a Examinada beneficiaria de um acompanhamento médico regular, por parte do médico assistente, por forma a acompanhar a evolução da função renal.

31. A Autora despendeu a quantia de € 90,00 com consulta e despesas de transporte.

32. A Autora terá de suportar despesas médicas e medicamentosas em consequência do acompanhamento médico e da previsível evolução das lesões acima apontadas.

33. Entre a 2.ª Ré e CC foi celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice ...53, que se junta e dá por reproduzida, que tinha por objecto o ciclomotor da marca “Derbi”, com a matricula ..-EH-...

34. O identificado contrato de seguro vigorou desde o dia 17 de Junho de 2013.

35. Em dia não apurado do mês de Dezembro de 2013 o tomador do seguro transferiu a propriedade do veículo para BB, por preço que liquidou de imediato.

36. A Petição Inicial deu entrada em juízo no dia 24 de Março de 2019 e foi aí requerida a citação urgente.

37. A 2.ª Ré foi citada por carta registada expedida em 25 de Março de 2019, recebida no dia 26 imediato.

38. A Autora requereu a Intervenção Principal de Interveniente BB, por Requerimento do dia 11 de Junho de 2019 e este foi citado para a presente acção no dia 30 de Setembro de 2019.

As instâncias enunciaram os seguintes

Factos não provados

a) Que sem conseguir reduzir a velocidade que seguia o ciclomotor foi embater lateralmente com extrema violência contra um lancil de um passeio que se encontra colocado na margem direita da berma da estrada.

b) Que o condutor do ciclomotor não prestou atenção à sua faixa de rodagem conduzindo assim num estado de distracção.

c) Que o condutor circulava com excesso de velocidade

d) Que a data da consolidação/estabilização médico-legal das lesões é fixável em 27/04/2017.

e) Que o período de défice funcional temporário parcial fixável em 1106 dias (corresponde ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses actos, ainda com limitações).

f) Que, após o acidente a A. entrou em pânico, e receou pela própria vida e dos demais intervenientes.

g) Que a Autora perde noites de sono por causa do acidente.

2.2. O Direito

A 1.ª instância absolveu a R. seguradora, por se ter constatado que à data do sinistro objeto destes autos o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que a R. havia celebrado com o primitivo proprietário do motociclo já havia cessado, precisamente porque o tomador do seguro havia transferido para outrem (o interveniente principal BB) a propriedade sobre o veículo.

Tal decisão transitou em julgado.

Na sentença considerou-se que o acidente se deveu a culpa exclusiva e efetiva de BB, proprietário e condutor do motociclo, que manobrou o veículo de forma inapropriada para as condições da via, dando origem à queda do motociclo, com as graves consequências para a A. que se provaram nos autos. Assim, mostravam-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito culposo, prevista no art.º 483.º do Código Civil.

Porém, na sentença considerou-se que os direitos da A. face ao responsável civil pelo acidente se encontravam prescritos.

Com efeito, ponderou-se, a conduta do condutor era subsumível à previsão do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art.º 148.º n.º 1 do Código Penal, ou à previsão do tipo de crime de ofensa à integridade física grave por negligência previsto e punido pelo art.º 148.º n.º 3, alínea a) do Código Penal. Em qualquer dos crimes o prazo de prescrição do procedimento criminal é de cinco anos (art.º 118.º n.º 1 al. c) do Código Penal).

Assim, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 498.º n.º 3 do Código Civil e 148.º n.º 1 e 118.º n.º 1 al. c) do Código Penal, o prazo de prescrição, que o interveniente principal havia invocado nos autos, é de cinco anos.

Ora, tendo o acidente ocorrido em 28 de março de 2014, a prescrição ocorreu em 28 de março de 2019, isto é, antes de ter ocorrido o facto que a poderia interromper, ou seja, a apresentação em juízo do requerimento da intervenção do condutor – que data de 11 de junho de 2019.

Daí que a sentença tenha absolvido o interveniente principal do pedido – por o correspondente direito da A. se encontrar prescrito.

Também nesta parte a sentença transitou em julgado.

O tribunal de 1.ª instância, após calcular o montante das indemnizações devidas à A., nelas condenou o FGA. Para tal, considerou que como o responsável pelo acidente não possuía seguro válido e eficaz, seria o FGA (ASSFP) o sujeito passivo da obrigação de indemnização, isto é, o responsável pelo pagamento das indemnizações devidas à A., ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 47.º, 48.º e 49.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8.

Foi sobre este segmento da sentença que incidiu a apelação deduzida pelo R. FGA, com sucesso. Com efeito, a Relação considerou que tendo sido declarada extinta a obrigação do responsável civil, não podia subsistir a obrigação do Fundo de Garantia Automóvel, que é uma obrigação de garantia daquela responsabilidade.

A A. não se conformou com o assim decidido, tendo interposto o recurso de revista ora em análise.

Segundo a recorrente, o FGA desempenha as funções das seguradoras, incumbindo-lhe suportar os prejuízos resultantes do acidente quando, como é o caso dos autos, não exista seguro válido e eficaz que cubra o sinistro. Segundo a A., o FGA não pode socorrer-se da prescrição da obrigação de outrem quando a sua própria não está prescrita. Acresce que na correspondência que trocou com a A. o FGA assumiu todas as responsabilidades. Mais alega a A. que a prescrição não ocorre enquanto o direito não pode ser exercido. Diz ainda a A. que a prescrição da obrigação do interveniente BB não faz desaparecer a obrigação, antes a transforma em obrigação natural, pelo que o FGA não fica desobrigado de pagar à A. os danos pela mesma sofridos.

O R./recorrido sustenta o bem fundado do acórdão, realçando o carácter meramente subsidiário, de garantia, da sua responsabilidade face à responsabilidade do proprietário/condutor do veículo, não cabendo ao FGA garantir uma indemnização da qual o responsável civil foi eximido. No que concerne ao alegado reconhecimento da sua responsabilidade, o FGA alegou que se limitou a cumprir as competências que lhe são atribuídas no âmbito do Dec-Lei n.º 291/2007, de 21.8, tendo suportado as indemnizações aos hospitais e apresentado proposta à A. (que a não aceitou) no âmbito da regularização extrajudicial do sinistro, regulada pelos artigos 31.º a 46.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8, aplicável ao FGA por força do preceituado no n.º 4 do art.º 32.º do mesmo diploma.

Vejamos.

Esta questão foi já apreciada pelo STJ, no sentido propugnado pelo acórdão recorrido (como, de resto, nele se dá conta).

A sua resolução parte da análise da natureza e fins da obrigação do FGA, emergentes do respetivo regime legal.

Conforme se realça no preâmbulo do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8 (que contém o atual regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.5 - 5.ª Diretiva relativa ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis), o sistema de seguro obrigatório assegura a proteção das vítimas da circulação automóvel com base em dois pilares: pilar – seguro obrigatório e pilar – FGA. Sendo que, nesse sistema, o Fundo tem o caráter de “último recurso”.

Assim, ao FGA compete assegurar a “garantia da reparação de danos na falta de seguro obrigatório” (epígrafe do Capítulo IV do regime ora em análise).

Nestes termos, no n.º 1 do art.º 47.º estipula-se que “[a] reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel nos termos da secção seguinte.”

Assim, estipula-se no art.º 49.º que o FGA garante, até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, “a satisfação das indemnizações por:

a) Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros;

b) Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz;

c) Danos materiais, quando, sendo o responsável desconhecido, deva o Fundo satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, ou tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e eficaz, e a autoridade policial haja efectuado o respectivo auto de notícia, confirmando a presença do veículo no local do acidente”.

Satisfeita a indemnização, o FGA fica sub-rogado nos direitos do lesado, nos termos regulados no art.º 54.º.

A responsabilidade do FGA é reduzida ou excluída na medida em que o sinistro esteja coberto por seguro de acidentes de trabalho ou de serviço, ou por um contrato de seguro automóvel de danos próprios (art.º 51.º).

Por outro lado, são aplicáveis ao FGA as exclusões previstas para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (n.º 1 do art.º 52.º), para além das exclusões dos danos mencionados no n.º 2 do art.º 52.º.

Do ponto de vista processual, o art.º 62.º n.º 1 estipula que “[a]s acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.”

Só quando o responsável civil pelo acidente de viação for desconhecido é que “o lesado demanda directamente o Fundo de Garantia Automóvel” (n.º 2 do art.º 62.º).

Tendo por base o regime jurídico anterior, previsto no Dec.-Lei n.º 522/85, de 31.12 (com as alterações publicitadas), que nesta matéria não difere substancialmente do atual regime (cfr. artigos 21.º, 23.º, 24.º, 25.º, 29.º, n.ºs 5 e 8 do regime anterior), o STJ, em acórdão proferido em 23.9.2008, processo n.º 08A1994 (acórdão consultável, tal como os adiante citados, em www.dgsi.pt), expendeu o seguinte:

“Temos, assim, convergentemente estabelecido que o FGA garante o cumprimento da obrigação indemnizatória do lesante e que, quando a satisfaça, fica sub-rogado nos direitos do lesado.

Vale isto por dizer que o Fundo não é um devedor, mas, tão só, um garante do cumprimento das obrigações do responsável civil pela reparação dos danos causados ao lesado. Responderá, consequentemente, em sede subsidiária e não como devedor principal ou directo – que é o violador da obrigação de segurar -, inexistindo entre este e o FGA uma relação de solidariedade passiva (própria).

Na verdade, a sub-rogação legal traduz-se na substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor, ou seja, a transmissão dum crédito para o terceiro que se substitui ao devedor no cumprimento da obrigação – art. 589º C. Civil.

O sub-rogado há-de cumprir uma “prestação de terceiro”, como se diz no preceito, o que, no reverso, significa que a sub-rogação tem sempre como pressuposto ser o cumprimento feito por terceiro ao credor originário, aqui, ao lesado, não merecendo diferente tratamento o facto de se estar perante uma sub-rogação legal (arts. 25º-1, citado, e 592º-1 C. C.).

Diversamente se passam as coisas no direito de regresso que, esse sim, tendo por fonte a responsabilidade solidária, faculta ao devedor solidário que tiver satisfeito o pagamento ao credor, além da quota que lhe competia no crédito comum, exigir dos condevedores a parte que a estes competia pagar – art. 524º C.C..

Enquanto no direito de regresso se está perante um novo crédito, cujo objecto não se identifica com o do crédito extinto, na sub-rogação mantém-se o mesmo direito de crédito em que apenas ocorre transmissão da titularidade.

Tudo bem distante, pois, da figura de devedor solidário e do regime das obrigações solidárias, nomeadamente quanto seu estatuto prescricional e de regresso entre devedores, com regulação nas normas dos arts. 497º, 521º-1 e 522º-1 C. Civil, a que faz apelo o Recorrente na motivação do seu recurso.

E tudo a impor, ao invés, a conclusão, já adiantada, segundo a qual o FGA não é devedor solidário, mas, enquanto garante legal da obrigação do responsável civil, mero obrigado subsidiário, isto é, um obrigado ao cumprimento, se o directo devedor o não fizer, que a lei coloca no lugar do credor.

No mesmo sentido vão as normas específicas de natureza processual (art. 29º-6 cit.) ao imporem o litisconsórcio necessário passivo entre o Fundo e o responsável civil, contrariando as regras próprias do regime de solidariedade – arts. 512º-1 e 517º C. Civil e 27º-2 CPC -, o que só encontra fundamento na natureza subsidiária da obrigação do Fundo e na salvaguarda dos efeitos jurídicos da sub-rogação legal.

Ora, aqui chegados, crê-se ser incontornável uma segunda conclusão, qual seja que se o titular do direito à indemnização perdeu o direito de a exigir do responsável devedor, isto é, o direito de accionar a obrigação garantida, não se encontra fundamento para que ainda possa ser exercitado o direito consubstanciado pela obrigação de garantia (cfr. neste sentido, o ac. deste Supremo de 06/7/2004 (ITIJproc. 04B296).

Com efeito, perante a subsidiariedade da obrigação de garantia, a responsabilidade do garante haverá de aferir-se pela existência e pela medida da obrigação garantida, de sorte que, extinta a obrigação do responsável civil, com ela se extingue a posição de seu garante encabeçada pelo FGA.

Afloramentos do princípio estão patentes nas normas dos arts. 651º e 653º C. Civil, relativas à fiança, onde expressamente se prevê, como decorrência da natureza acessória da garantia, que a extinção da obrigação principal determina a sua extinção, bem como desoneração dos fiadores na medida em que não lhes for possível ficarem sub-rogados nos direitos do credor, por facto positivo ou negativo deste.

Do ponto de vista processual, vem ao encontro do regime substantivo, convergindo, a mencionada norma do art. 29º do DL n.º 522/85 ao impedir o prosseguimento da acção contra o Fundo, quando desacompanhado do responsável civil, já que se configura uma situação de ilegitimidade superveniente, por preterição de litisconsórcio necessário passivo”. (negritos nossos).

No mesmo sentido se decidiu no acórdão do STJ de 06.7.2004 (processo n.º 04B296), onde se acrescentou o seguinte:

Custa-nos a aceitar que a proclamada socialização do risco, obrigue à manutenção da responsabilidade (responsabilidade do Fundo) para além do desinteresse do protegido/lesado, pelo esgotamento do prazo de cinco anos que deixou cair contra o responsável, provocador do acidente donde emerge a obrigação de indemnizar”.

Esta jurisprudência tem sido reiterada, direta ou indiretamente, pelo STJ, conforme se evidencia nos acórdãos de 28.5.2009 (processo n.º 529/04.1TBFR.S1), de 19.4.2012 (processo n.º 3203/05.8TBMTJ.L1.S1), de 03.4.2014 (processo n.º 856/07.6TVPRT.P1.S1), de 12.5.2016 (processo n.º 6147/12.3TBVFR-A.P1.S1).

Em decisão mais recente, no mesmo sentido, cfr. o acórdão da Relação de Coimbra, de 28.02.2023, processo n.º 2010/21.5T8LRA.C1.

O facto de o FGA se ter disponibilizado, extrajudicialmente, para suportar as despesas que o tratamento da lesada implicava não tem qualquer efeito no ora considerado. Com efeito, não se negando que a A. sofreu danos corporais que careciam de tratamento, o seu pagamento pelo FGA sempre seria efetuado no âmbito da sua função, subsidiária, de garante, sem prejuízo da ulterior determinação do efetivo responsável pelas consequências do acidente. Ora, constatando-se que o responsável civil pelo acidente foi exonerado da sua responsabilidade, por sentença transitada em julgado, o desfecho definitivo, no que concerne ao FGA, é o de igual exoneração. A A. sempre soube a identidade do responsável pelo acidente, que era o condutor do motociclo em que seguia como passageira. Assim, não ofende o sentimento de justiça nem os princípios por que se pauta o sistema jurídico que, tendo a A. deixado prescrever o seu direito face ao responsável civil pelo sinistro, não o possa exercer perante quem, como o FGA, é um mero garante da obrigação desse responsável.

Em suma, a revista é improcedente.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido.

As custas da revista são a cargo da recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Lx, 10.4.2024

Jorge Leal (Relator)

António Magalhães

Pedro de Lima Gonçalves