Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
422/18.0PBAMD-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: HABEAS CORPUS
CUMPRIMENTO DE PENA
PENA DE MULTA
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PAGAMENTO
TRÂNSITO EM JULGADO
INDEFERIMENTO
Apenso:
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. O Requerente está preso desde 01/12/2023, para cumprimento da pena principal de prisão de três meses, pela prática de crime de ofensa à integridade física qualificada e que tinha sido substituído por 90 dias de multa. Mas a cujo pagamento não procedeu atempadamente.

II. Como se sabe, a pena de multa de substituição constitui uma pena diferente da multa enquanto pena principal. São realidades distintas quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista político-criminal e dogmático, com consequências relevantes para feitos de aplicação e de incumprimento.

III. É distinto o regime de execução da pena de multa principal e o da pena de multa de substituição. No caso ao arguido foram aplicadas duas penas de natureza diferente, para a injúria agravada uma pena de multa, para a ofensa física uma pena de prisão substituída por multa. Aquela não privativa de liberdade, a segunda sim. Natureza diferente que gera as diferenças legalmente consagradas para as respetivas execuções.

IV. No caso da pena principal de multa, a prisão subsidiária corresponde aos dias de multa reduzidos a dois terços, mas é pagável a todo o tempo, evitando-se assim o cumprimento desses dois terços de prisão subsidiária (art. 49º do CP). Foi o que aconteceu com a pena em que o aqui Requerente foi condenado por injúria agravada em que, por ter sido paga a pena principal de multa, foi declarada extinta.

V. Já no caso de pena de multa de substituição o seu não pagamento atempado gera como consequência o cumprimento do tempo de prisão aplicado na sentença (artigo 45, nº 2, do CP). Aqui não pode pagar aquela multa a todo o tempo e fazer cessar a execução da pena de prisão. Porque não é aplicável o regime do artigo 49º, nº 2, do CP.

VI. Efetivamente, a expressa remissão do artigo 45º, nº 2, do CP restringe-se ao disposto no artigo 49º, nº 3, daquele diploma. Certamente que, se o legislador também pretendesse a aplicação do disposto no nº 2, tê-lo-ia dito expressamente. Não o fez porque pretendeu inequivocamente distinguir os dois regimes porque de penas de natureza diferente se trata.

E se a multa parcialmente paga se repercute no tempo de prisão subsidiária (artigo 49, nº 2), já não se repercute na pena de prisão aplicada na sentença.

VII. Para evitar o cumprimento da pena de prisão principal o condenado teria de efectuar o pagamento da multa de substituição até ao trânsito em julgado do despacho que determinou o seu cumprimento.

VIII. Não tendo sido impugnado, o despacho transitou em julgado e, consequentemente, a pena substitutiva de multa foi revogada, “renascendo” a pena principal, a pena de prisão, como única pena a cumprir pelo condenado, o ora requerente.

IX. O pagamento da multa, quando esta já havia sido revogada, é irrelevante, portanto, em termos de cumprimento da pena principal.

X. Pelo que, afastando-se a pena de multa aplicada como substitutiva da pena de prisão, o condenado terá de cumprir a pena de prisão aplicada na sentença– artigo 45º, nº 2, do CP.

XI. E de outra forma não poderia ser face ao uniformizado pelo acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 12/2013: “Transitado em julgado o despacho que ordena o cumprimento da pena de prisão em consequência do não pagamento da multa por que aquela foi substituída, nos termos do artigo 43.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é irrelevante o pagamento posterior da multa por forma a evitar o cumprimento daquela pena de prisão, por não ser caso de aplicação do preceituado no n.º 2, do artigo 49.º, do Código Penal“.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção, criminal, do Supremo tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO

I.1. Fazendo apelo ao disposto no artigo 222º, nº 1, al. c), do CPP do Código do Processo Penal, AA, através de ilustre advogado que, ainda sem procuração, invoca a sua legitimidade de cidadão no gozo dos seus direitos políticos, veio apresentar petição de habeas corpus, com os seguintes fundamentos:

O Arguido foi condenado nos seguintes termos:

« a) condena-se o arguido AA, pela prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º e 184º, ambos do C. Penal, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l), do mesmo diploma legal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de 6.00 € (seis euros), num total de 420.00 € (quatrocentos e vinte euros).

b) condena-se o arguido AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, com referência aos artigos 143º, nºs 1 e 2, e artigo 132º, nº 2, alínea l), todos do C. Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão, substituída por 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de 5.00 € (cinco euros), num total de 450.00 € (quatrocentos e cinquenta euros).”

Adianta que “A pena pelo crime de ameaça agravada de multa a título principal no valor de 420.00 € foi extinta por o mesmo ter procedido ao pagamento, cfr. despacho de 12/12/2023 e comprovativos nos autos por requerimento da cônjuge a 5/12/2023.”

E que “A pena pelo crime de ofensa à integridade física qualificada de multa em 450.00 € a título substitutivo da prisão por 90 dias, também encontra-se paga cfr. aos comprovativos nos autos por requerimento do próprio de 22/11/2021 e da cônjuge a 13/12/2023.”

Só que, prossegue,

“10º.

Para cumprimento desta pena pelo crime de ofensa à integridade física qualificada de multa em 450. 00 € a título substitutivo da prisão por 90 dias, não obstante, ter-se verificado nos autos o pagamento, o Arguido encontra-se preso.

11º.

O Arguido apresentou aos autos entre janeiro de 2023 e setembro de 2023, pediu por três vezes que lhe fosse permitido pagar a multa a que fora condenado em prestações, tendo ultrapassado a situação de baixa médica e desemprego estava em condições de pagar a multa.

12º.

O mandado de detenção foi emitido em 23 de novembro de 2023, com a expressa indicação de que o pagamento a todo o tempo no todo ou em parte evitaria no todo ou em parte a pena de prisão para cuja cumprimento se cumpria o mandado de detenção.

13º.

O Arguido não tinha contato com a I.A., Defensora Oficiosa nos autos, havia mais de dois anos e não sabia do mandado de detenção, ainda aguardava a autorização do tribunal para pagar a multa, quando foi detido em cumprimento do mandado.

14º.

Atento ao princípio das ditas civilizações iluminadas desde Cesare Beccaria que à pena de prisão efetiva só se recorre como ultima ratio; que é também princípio do sistema penal vigente é com efeito, desproporcionado manter a prisão do Arguido:

a) para cumprimento de uma pena de prisão à qual se não tivesse sido na sua origem substituída por multa teria sido suspensa na sua execução apenas sendo revisitada caso o arguido reincidisse no crime;

b) tendo-se verificada na totalidade o cumprimento da pena de substituição dessa prisão.

15º.

Verificando-se que o Arguido cumpre assim a pena de prisão, ora reduzida em 2/3, a 39 dias, e o pagamento da multa que por seu turno, por si só, cfr. à sentença em causa, satisfaria a necessidade penal.

16º

Acontece que a pena de prisão, não obstante o pagamento da referida multa que lhe era substitutiva, encontra-se já cumprida desde 1/12/2023, à presente data de 25/1/2024, em 55 dias!”

E acaba a pedir a sua urgente libertação.

I.2. Veio a informação prestada pelo Sr juiz da 1ª instância (art. 223, nº 1, do CPP). Assim:

“O arguido AA vem interpor a providência de Habeas Corpus, requerendo a sua libertação imediata, ao abrigo do disposto no artigo 31º da Constituição da República Portuguesa e artigos 222º e 223º, ambos do C. Processo Penal.

Alega que se encontra privado da liberdade injustamente, por ter procedido ao pagamento das penas de multa em que foi condenado, principal e de substituição e que foram ignorados vários requerimentos no sentido de proceder ao pagamento faseado daquelas quantias, que acabou por liquidar, quer por si, quer por intermédio da sua cônjuge.

O Ministério Público pronunciou-se já no sentido de que nada há a promover quanto ao requerido.

Nos termos do disposto no artigo 31º da Constituição da República Portuguesa há lugar a pedido de habeas corpus contra abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante Tribunal judicial ou militar, consoante os casos e a apresentar pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

Por outro lado dispõe o artigo 222º do C. Processo Penal que “a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus”

A providência de Habeas Corpus é o meio processual adequado a uma reacção expedita contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, e não constitui meio processual para reexame ou avaliação da verificação dos pressupostos de facto e de direito que em concreto determinaram a aplicação de uma medida de privação de liberdade, no caso da prisão preventiva.

A petição deve ser dirigida em duplicado ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual o requerente se mantenha preso e deve fundamentar-se em ilegalidade da prisão por:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou decisão judicial.

In casu o requerente parece fundar a sua pretensão na alínea b) atrás citada por entender que o determinado cumprimento da pena de prisão subsidiária em que foi condenado por conversão da pena principal de multa e da pena substitutiva de multa por relação à pena principal de prisão em que também foi condenado, não possuem fundamento legal face ao pagamento das quantias em causa.

O arguido encontra-se em privação de liberdade, à ordem destes autos, desde o passado dia 01/12/2023.

Foi condenado, por sentença transitada em julgado em 11/01/2021, na pena de 70 Dias de multa, à razão diária de 5.00 €, e na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à razão diária de 5.00 €.

Em 16/07/2021 foi efectuado o depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido, de notificação para proceder ao pagamento das aludidas penas de multa, principal e substitutiva.

Por requerimento de 20/08/2021, o arguido veio requerer o pagamento faseado de tais penas, o que lhe foi deferido em 15 prestações mensais, por despacho de 29/10/2021.

Uma vez que não procedeu ao pagamento da totalidade das quantias devidas, incumprindo o plano prestacional deferido (pagando apenas um total de 58.00 €), por despacho de 08/06/2022, foram declaradas vencidas todas as prestações e foi o arguido notificado para proceder ao pagamento integral das quantias ainda em dívida, notificação efectuada em 14/06/2022 por depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido.

Nada tendo sido dito ou requerido pelo arguido, por despacho de 29/09/2022, foi determinada a conversão do remanescente da pena principal de multa aplicada ao arguido (de 70 dias de multa, com um remanescente de 61 dias), em 39 dias de prisão subsidiária, já descontado o dia de detenção então sofrido pelo mesmo à ordem dos presentes autos.

E foi também determinada a notificação ao arguido de tal despacho, bem como de que poderia, a todo o tempo, evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, da referida multa, ou comprovar nos autos que a razão da falta de pagamento da multa lhe não é imputável.

O arguido foi notificado pessoalmente de tal despacho em 11/10/2022, do qual não apresentou qualquer recurso, ou impugnação, vindo apenas, por requerimento de 14/10/2022, requerer que lhe fosse facultado o pagamento da dívida em causa.

Nessa sequência, foi autorizada a emissão e entrega de guia ao arguido para proceder ao pagamento em falta, tendo o mesmo sido notificado para o efeito em 14/12/2022 por concretização de depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido.

Novamente, por requerimento de 02/01/2023, veio o arguido requerer o pagamento faseado das aludidas penas de multa, principal e de substituição, o que foi indeferido por despacho de 19/04/2023, notificado ao arguido em 27/04/2023 por concretização de depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido.

O arguido, apesar de notificado como supra exposto, nada mais disse ou requereu nos autos.

Posteriormente, por despacho de 15/06/2023, na ausência de pagamento devido e, para além da conversão em prisão subsidiária anteriormente determinada, por relação à pena principal de 3 meses de prisão, foi igualmente determinado o respectivo cumprimento, sem prejuízo da respectiva eventual suspensão, nos termos do artigo 49º, nº 3, do C. Penal.

O arguido foi notificado pessoalmente de tal despacho em 27/06/2023, do qual não apresentou qualquer recurso, ou impugnação, vindo apenas, por requerimento de 28/06/2023, requerer que lhe fosse facultado o pagamento da dívida em causa, pretensão que repetiu por requerimentos de 10/07/2023 e 13/09/2023.

Tal pretensão foi indeferida por despacho de 29/09/2023, notificado ao arguido em 04/10/2023 por concretização de depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido, sanando-se ainda a falta de notificação do despacho de 15/06/2023 também à defensora nomeada ao arguido, a qual se constatou não ter ocorrido.

Atento que nada mais foi dito, ou requerido nos autos, por despacho de 23/11/2023 foi determinada a emissão de mandados de detenção ao arguido para cumprimento de 39 dias de prisão subsidiária e de 3 meses de prisão.

Em 04/12/2023, a esposa do arguido veio proceder à junção do comprovativo do pagamento da quantia de 420.00 €, correspondente à pena de multa principal aplicada sendo que, em consequência, em 12/12/2023 o Ministério Público veio a reformular a liquidação de pena que havia formulado em 05/12/2023, reformulação essa que foi homologada por despacho de 12/12/2023 (o qual também declarou extinta a pena principal de multa aplicada), na sequência do que se fixou tal liquidação de pena (por referência à pena principal de 3 meses de prisão), do seguinte modo:

- ½ da pena, em 15/01/2024.

- 2/3 da pena, em 31/01/2024.

- termo da pena, em 29/02/2024.

Já por requerimento de 13/12/2023, veio a esposa do arguido comprovar o pagamento da quantia de 402.00 €.

Por requerimento de 21/12/2023, veio a Il. Defensora do arguido requerer a sua libertação imediata, face ao pagamento integral da pena de multa substitutiva em dívida.

Por despacho de 22/12/2023 foi indeferida a pretensão do arguido, por legalmente inadmissível, atento o trânsito em julgado do despacho que determinou o cumprimento da pena principal de prisão de 3 meses, nomeadamente considerando o pagamento extemporâneo da pena de multa substitutiva, em concordância com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores cfr. a título de exemplo, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26/01/2011 e Tribunal da Relação de Guimarães de 03/07/2012.

Atento o supra exposto e, nomeadamente, considerando o trânsito em julgado dos despachos proferidos e a falta de pagamento atempado das penas de multa principal e substitutiva aplicadas ao arguido, entende-se que a prisão do arguido é justificada e encontra-se legalmente fundada, sendo de manter a respectiva situação de reclusão até ao termo previsto para a pena que actualmente cumpre.”

I.3. Foi consultado via citius o processo da condenação.

I.4. O objeto do presente habeas corpus é o de saber se, neste momento, o arguido está preso para além do tempo fixado por lei ou por decisão judicial – al. c) do nº 2 do artigo 222º do CPP.

I.5. Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal e efetuadas as devidas notificações, realizou-se a audiência pública, nos termos legais.

A Secção Criminal reuniu seguidamente para deliberação, a qual imediatamente se torna pública.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS

Dos elementos constantes nos autos extraem-se, com pertinência para a decisão, os seguintes factos:

O arguido foi condenado por sentença de 27/11/2020 nos seguintes termos:

“pela prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º e 184º, ambos do C. Penal, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l), do mesmo diploma legal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de 6,00 € (seis euros), num total de 420,00 € (quatrocentos e vinte euros).

(…) pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, com referência aos artigos 143º, nºs 1 e 2, e artigo 132º, nº 2, alínea l), todos do C. Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão, substituída por 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 450,00 € (quatrocentos e cinquenta euros);”

Em 16/07/2021 foi efectuado o depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido, de notificação para proceder ao pagamento das aludidas penas de multa, principal e substitutiva.

Por requerimento de 20/08/2021, o arguido veio requerer o pagamento faseado de tais penas, o que lhe foi deferido em 15 prestações mensais, por despacho de 29/10/2021.

Uma vez que não procedeu ao pagamento da totalidade das quantias devidas, incumprindo o plano prestacional deferido (pagando apenas um total de 58.00 €), por despacho de 08/06/2022, foram declaradas vencidas todas as prestações e foi o arguido notificado para proceder ao pagamento integral das quantias ainda em dívida, notificação efectuada em 14/06/2022 por depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido.

Nada tendo sido dito ou requerido pelo arguido, por despacho de 29/09/2022, foi determinada a conversão do remanescente da pena principal de multa aplicada ao arguido (de 70 dias de multa, com um remanescente de 61 dias), em 39 dias de prisão subsidiária, já descontado o dia de detenção então sofrido pelo mesmo à ordem dos presentes autos.

E foi também determinada a notificação ao arguido de tal despacho, bem como de que poderia, a todo o tempo, evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, da referida multa, ou comprovar nos autos que a razão da falta de pagamento da multa lhe não é imputável.

O arguido foi notificado pessoalmente de tal despacho em 11/10/2022, do qual não apresentou qualquer recurso, ou impugnação, vindo apenas, por requerimento de 14/10/2022, requerer que lhe fosse facultado o pagamento da dívida em causa.

Nessa sequência, foi autorizada a emissão e entrega de guia ao arguido para proceder ao pagamento em falta, tendo o mesmo sido notificado para o efeito em 14/12/2022 por concretização de depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido.

Novamente, por requerimento de 02/01/2023, veio o arguido requerer o pagamento faseado das aludidas penas de multa, principal e de substituição, o que foi indeferido por despacho de 19/04/2023, notificado ao arguido em 27/04/2023 por concretização de depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido.

O arguido, apesar de notificado como supra exposto, nada mais disse ou requereu nos autos.

Posteriormente, por despacho de 15/06/2023, na ausência de pagamento devido e, para além da conversão em prisão subsidiária anteriormente determinada, por relação à pena principal de 3 meses de prisão, foi igualmente determinado o respectivo cumprimento, sem prejuízo da respectiva eventual suspensão, nos termos do artigo 49º, nº 3, do C. Penal.

O arguido foi notificado pessoalmente de tal despacho em 27/06/2023, do qual não apresentou qualquer recurso, ou impugnação, vindo apenas, por requerimento de 28/06/2023, requerer que lhe fosse facultado o pagamento da dívida em causa, pretensão que repetiu por requerimentos de 10/07/2023 e 13/09/2023.

Tal pretensão foi indeferida por despacho de 29/09/2023, notificado ao arguido em 04/10/2023 por concretização de depósito, via postal simples, na morada constante do TIR prestado pelo arguido, sanando-se ainda a falta de notificação do despacho de 15/06/2023 também à defensora nomeada ao arguido, a qual se constatou não ter ocorrido.

Atento que nada mais foi dito, ou requerido nos autos, por despacho de 23/11/2023 foi determinada a emissão de mandados de detenção ao arguido para cumprimento de 39 dias de prisão subsidiária e de 3 meses de prisão.

Em 04/12/2023, a esposa do arguido veio proceder à junção do comprovativo do que, em consequência, em 12/12/2023 o Ministério Público veio a reformular a liquidação de pena que havia formulado em 05/12/2023, reformulação essa que foi homologada por despacho de 12/12/2023 (o qual também declarou extinta a pena principal de multa aplicada), na sequência do que se fixou tal liquidação de pena (por referência à pena principal de 3 meses de prisão), do seguinte modo:

- ½ da pena, em 15/01/2024.

- 2/3 da pena, em 31/01/2024.

- termo da pena, em 29/02/2024.

Já por requerimento de 13/12/2023, veio a esposa do arguido comprovar o pagamento da quantia de 402.00 €.

Por requerimento de 21/12/2023, veio a Il. Defensora do arguido requerer a sua libertação imediata, face ao pagamento integral da pena de multa substitutiva em dívida.

Por despacho de 22/12/2023 foi indeferida a pretensão do arguido, por legalmente inadmissível, atento o trânsito em julgado do despacho que determinou o cumprimento da pena principal de prisão de 3 meses, nomeadamente considerando o pagamento extemporâneo da pena de multa substitutiva.

Saliente-se:

(i). A pena principal de multa aplicada pelo crime de ameaça agravada foi paga em 04/12/2023 e, na decorrência, foi julgada extinta por despacho de 12/12/2023.

(ii). Porque a pena substitutiva de 90 dias de multa à razão diária de 5.00 € não foi atempadamente paga, por despacho de 15/06/2023, transitado em julgado, foi ordenado o cumprimento da pena principal de prisão de três meses.

O arguido está recluso desde 01/12/2023.

II.2. DIREITO

II.2.1. A Constituição da República Portuguesa (CRP) no seu artigo 27º, nº 1, estabelece que todos têm direito à liberdade, em “exigência ôntica” na expressão do acórdão do Tribunal Constitucional nº 607/03. Mas não absolutiza tal direito, porque, admite que seja restringido em expressos casos, nomeadamente em casos de aplicação de pena de prisão por sentença judicial condenatória transitada em julgado (cfr art. 27º, nº 2, da CRP).

Todavia prevendo que na concretização de tais restrições, pode ocorrer abuso de poder a CRP no seu artigo 31º, dando corpo ao primado da liberdade, consagrou a providência de habeas corpus e tal importância lhe atribuiu que fixou mesmo o prazo célere e urgente de oito dias para a sua decisão, em audiência contraditória, e permitiu que um terceiro a requeresse. Na sequência o CPP conformou-a em providência simples e expedita dirigida diretamente ao Presidente do STJ.

Nos termos do artigo 31, nº 1, da CRP, na redação da revisão constitucional de 1997, “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Na definição constitucional, é, pois, “forma de insurgimento jurisdicionalmente tutelado contra abuso de poder, manifesto em detenção ou prisão ilegal.” (in “Do habeas corpus Breves notas, sobretudo jurisprudenciais”, Paulo Ferreira da Cunha, “RPCC”, 2020).

“Na estrutura com que a Constituição o consagrou, o habeas corpus caracteriza-se pela sua natureza de “providência” judicial (nº 2), que tem como objeto imediato “o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”, visando, por isso, a tutela da liberdade física ou de locomoção.” (in, “Constituição Portuguesa Anotada”, Jorge Miranda, Rui Medeiros, nota ao artigo 31)

Não é um recurso, não é um substitutivo ou sucedâneo do recurso, muito menos o recurso dos recursos, é um instituto a manter distinto dos recursos (cfr “Curso de Direito Processual Penal”, II, Germano Marques da Silva). É uma “providência” que não se confundindo com o recurso, pode até correr termos lado a lado e simultaneamente (219º, nº 2, do CPP).

Tais limitações de função, com chancela constitucional, não lhe retiram, porém, o papel e instrumento de garantia privilegiada do direito à liberdade. O habeas corpus “testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”. (in “CRP Anotada”, Gomes Canotilho e Vital Moreira).

“No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”.

“Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.

“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”

“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei” (in “Habeas Corpus: passado presente e futuro”, “Julgar” on line, nº 29, 2016, Maia Costa).

Na concretização do preceito constitucional, preceitua o art. 222º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal” que o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1).

Por força do n.º 2 da mesma norma jurídica, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias, em enumeração taxativa,:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

No presente caso, o requerente invoca o requisito da al. c). E, afirmando que a multa substitutiva se mostra paga, defende que nunca a prisão deveria ter sido decretada, mas, tendo-o sido, não se deve manter.

Diga-se desde já que não está aqui em causa a pena aplicada pelo crime de injúria que se extinguiu já pelo cumprimento. E em que a pena principal foi de 70 dias de multa á razão diária de 6.00 €, e, por isso, pagável a qualquer momento. Extinta esta pena pelo pagamento o arguido não pode por ela ser mais responsabilizado.

A questão que aqui se coloca é a de saber, no que toca à pena de prisão correspondente do crime de ofensa à integridade física qualificada, - não tendo o arguido procedido atempadamente a pagamento da quantia relativa à pena de multa substitutiva, (90 dias à razão diária de 5.00 €, no total de 450.00 €), até ao trânsito em julgado do despacho que determinou a aplicação da pena principal de três meses de prisão, tendo sido decidido o cumprimento da pena de prisão de três meses, - se deve manter-se tal cumprimento.

E não foi atempadamente paga a pena de multa substitutiva porque não foi paga até ao trânsito em julgado da decisão que ordenou o cumprimento da pena de prisão de três meses.

Como se extrai do iter processual supra descrito, perante a falta de pagamento, determinou-se, por despacho de 15/06/2023, “o cumprimento, pelo arguido, da pena de prisão (principal) em que foi condenado, ou seja, 3 (três) meses de prisão, sem prejuízo da respectiva eventual suspensão, nos termos do artigo 49º, nº 3, do C. Penal.” E, após trânsito, emitiram-se os mandados de detenção para cumprimento da pena.

Confirmado está o trânsito em julgado do despacho de 15/06/2023 que ordenou o cumprimento da pena de prisão de três anos. (Notificado em 27/06/2023 ao próprio arguido e em 02/10/2023 à sua defensora não foi tal despacho objeto de qualquer ataque, por via de recurso ou de qualquer outra forma).

O Requerente está preso desde 01/12/2023, para cumprimento da pena principal de prisão de três meses, pela prática de crime de ofensa à integridade física qualificada e que tinha sido substituído pelos referidos 90 dias de multa. Mas a cujo pagamento não procedeu atempadamente.

Como se sabe, a pena de multa de substituição constitui uma pena diferente da multa enquanto pena principal. São realidades distintas quer do ponto legal, quer do ponto de vista político-criminal e dogmático, com consequências relevantes para feitos de aplicação e de incumprimento.

É distinto o regime de execução da pena de multa principal e o da pena de multa de substituição1. No caso ao arguido foram aplicadas duas penas de natureza diferente, para a injúria agravada uma pena de multa, para a ofensa física uma pena de prisão substituída por multa. Aquela não privativa de liberdade, a segunda sim. Natureza diferente que gera as diferenças legalmente consagradas para as respetivas execuções.

No caso da pena principal de multa, a prisão subsidiária corresponde aos dias de multa reduzidos a dois terços, mas é pagável a todo o tempo, evitando-se assim o cumprimento desses dois terços de prisão subsidiária (art. 49º do CP). Foi o que aconteceu com a pena em que o aqui Requerente foi condenado por injúria agravada em que, por ter sido paga a pena principal de multa, foi declarada extinta.

Já no caso de pena de multa de substituição o seu não pagamento atempado gera como consequência o cumprimento do tempo de prisão aplicado na sentença (artigo 45, nº 2, do CP). Aqui não pode pagar aquela multa a todo o tempo e fazer cessar a execução da pena de prisão. Porque não é aplicável o regime do artigo 49º, nº 2, do CP.

Efetivamente, a expressa remissão do artigo 45º, nº 2, do CP restringe-se ao disposto no artigo 49º, nº 3, daquele diploma. Certamente que, se o legislador também pretendesse a aplicação do disposto no nº 2, tê-lo-ia dito expressamente. Não o fez porque pretendeu inequivocamente distinguir os dois regimes porque de penas de natureza diferente se trata.

E se a multa parcialmente paga se repercute no tempo de prisão subsidiária (artigo 49, nº 2), já não se repercute na pena de prisão aplicada na sentença2.

Para evitar o cumprimento da pena de prisão principal o condenado teria de efectuar o pagamento da multa de substituição até ao trânsito em julgado do despacho que determinou o seu cumprimento.

Não tendo sido impugnado, o despacho transitou em julgado e, consequentemente, a pena substitutiva de multa foi revogada, “renascendo” a pena principal, a pena de prisão, como única pena a cumprir pelo condenado, o ora requerente (cfr ac. do STJ de 02/03/2011, poc. nº 732/03.1PBSCR-A.S1, Maia Costa).

O pagamento da multa, quando esta já havia sido revogada, é irrelevante, portanto, em termos de cumprimento da pena principal.

Pelo que, afastando-se a pena de multa aplicada como substitutiva da pena de prisão, o condenado terá de cumprir a pena de prisão aplicada na sentença– artigo 45º, nº 2, do CP.

E de outra forma não pode ser face ao já uniformizado pelo acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 12/2013: “Transitado em julgado o despacho que ordena o cumprimento da pena de prisão em consequência do não pagamento da multa por que aquela foi substituída, nos termos do artigo 43.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é irrelevante o pagamento posterior da multa por forma a evitar o cumprimento daquela pena de prisão, por não ser caso de aplicação do preceituado no n.º 2, do artigo 49.º, do Código Penal“.

Como é claro, o peticionante não pode utilizar indevidamente este habeas corpus (que não é um recurso) nem pretender que através dele o STJ se pronuncie sobre matérias que extravasam os seus fundamentos, que são taxativos. Não se compreende no âmbito do habeas corpus a apreciação de atos processuais ou do mérito da decisão que, se for o caso, aplica ou mantém medida de privação da liberdade. O Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante actualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto por qua a lei a admite e (c) se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

Deste modo, se o requerente se encontra em cumprimento da pena de prisão em que foi condenado, com termo previsto para 29 de fevereiro de 2024, na sequência do despacho que revogou a substituição da pena de prisão pela de multa, transitado, não se verifica, assim, a situação prevista na al. c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP, pelo que é de indeferir a providência de habeas corpus.

E, porque a privação da liberdade, por aplicação da pena principal de prisão, foi ordenada por um juiz, que é a entidade competente, e foi motivada por facto pelo qual a lei a permite, não ocorre também, por conseguinte, qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo preceito.

Com o que, deve concluir-se que o pedido carece de fundamento, devendo ser indeferido - artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP.

III. DECISÃO

Atento o exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus apresentado pelo requerente AA por falta de fundamento bastante (artº 223º, nº 4, alínea a) do CPP).

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC’s, nos termos da tabela anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Por se revelar manifestamente infundada a presente petição de habeas corpus vai o peticionante condenado ao pagamento de oito (8) UC´s, nos termos do artigo 223, nº 6, do CPP.

STJ, 07 de fevereiro de 2024

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)

Carmo Silva Dias (Juíza Conselheira Adjunta)

Nuno António Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

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1. Cfr ac. do STJ de 21/09/2006, proc. nº 06P3399, Sousa Fonte.

2. Para maiores desenvolvimentos, cfr “Penas e Medidas de Segurança”, Maria João Antunes, Almedina, 2ª edição, 94, e “Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime”, 1993, fls. 368 e seguintes e RLJ Ano 125º, fls. 163 a 165 e 201 a 206, Figueiredo Dias.