Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4612/05.8TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
PROPRIEDADE HORIZONTAL
COMPROPRIEDADE
GARAGEM
LUGARES DE ESTACIONAMENTO
REGULAMENTO DO CONDOMÍNO
Data do Acordão: 12/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA (NULIDADES)/ RECURSOS.
Doutrina:
- Aragão Seia, Propriedade Horizontal (Condomínio e Condóminos), 2ª edição, Almedina, Março de 2002, 49, 65.
- Carlos Monteiro, Manual da Propriedade Horizontal, 1979, 56.
- P. Lima e A. Varela, “Código Civil”, Anotado, III, 2ª ed., 447.
- Rui Pinto Duarte, Curso de direitos reais, 2 a ed., Estoril, Principia, 2007, pp. 108-110.
- Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador da Propriedade Horizontal, Almedina, 2ª edição de Janeiro de 2002, 44 a 49, 162, 271; «Partes Comuns na Propriedade Horizontal», estudo publicado na obra Ab Uno ad Omnes ( 75 anos da Coimbra Editora), 650.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 238.º, 1418.º, N.º2, 1420.º, N.º1, 1421.º, 1429.º-A, 1433.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 664.º, 668.º, AL. D), 722.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17-6-93, IN, COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, ANO DE 1993, TOMO II, 161.
Sumário :
I- A assembleia de condóminos não tem poderes para alienar ou restringir o direito de propriedade ou o de compropriedade de cada um dos condóminos, já que, nos termos legais, cada condómino é proprietário exclusivo da  fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do prédio ( artº 1420º, nº 1 do C. Civil).

II- Deste modo, ainda que houvesse tendência de uma assembleia de condóminos, por via do regulamento do condomínio, privar um ou mais condóminos da sua compropriedade sobre uma parte comum do prédio, tal desiderato seria de impossível consecução, uma vez que o regulamento do condomínio, onde se plasmam regras apenas para disciplina do uso e fruição das coisas comuns, não tem  força jurídica para contrariar lei expressa nem para afectar direitos dos condóminos concedidos por lei, como é assaz consabido e evidente.

III- Se assim não fosse, deparar-nos-íamos com situações de violação inequívoca de normas legais imperativas, tanto jurídico-civis como de direito registral e, porventura, de direito constitucional, embora tal violação nunca produzisse efeitos jurídicos, posto que a alienação da totalidade ou de parte dos imóveis está sujeita à forma legalmente estipulada para a sua validade ad substantiam, como é do conhecimento geral, e nunca através de um simples regulamento do condomínio.

Decisão Texto Integral:

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

AA, Lda., devidamente identificada nos autos, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:

Administração do Condomínio sito na Rua ..., n° …, em Lisboa, RTP, SGPS, SA., BB, CC e cônjuge DD, EE, FF e cônjuge GG, HH e cônjuge II, JJ e cônjuge KK, LL, MM, NN e OO e PP e cônjuge QQ, todos com os sinais dos autos, pedindo:

1–  a declaração de nulidade da deliberação da Assembleia de Condóminos de 31.1.1998, que aprovou o Regulamento Geral do Condomínio;

2 –  a declaração de nulidade do Regulamento Geral do Condomínio;

3 – a declaração de que pertence à fracção "B" a escada de acesso à dita fracção e a condenação dos réus na elaboração de um regulamento de condomínio.

Para tanto, invocou, em síntese, o seguinte:

– a garagem constitui uma parte comum;

– a escada de acesso é de utilização exclusiva da fracção B.

Os Réus apresentaram contestação onde concluíram pela improcedência dos pedidos deduzidos pela A..

A Autora replicou reafirmando o antes peticionado (fls.417 a 428).

Foram deduzidos incidentes de intervenção de terceiros e de habilitação, de forma a estarem representados na presente acção todos os actuais proprietários das diversas fracções autónomas que compõem o edifício.

Após a legal tramitação, procedeu-se ao julgamento com observância das legais formalidades, tendo sido proferida sentença que julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu os RR do pedido.

Inconformada, interpôs a Autora, sem sucesso, recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, com um voto de vencido, julgou improcedente a Apelação, mantendo a decisão recorrida.

Ainda irresignada, a mesma veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

         CONCLUSÕES

1ª O Acórdão recorrido deve ser revogado, porquanto, proferido sobre questões da propriedade horizontal, modificou-lhe o título, fracturou o seu regime legal, sendo certo que, conforme Assento do STJ de 10.05.89 "a sua modificação apenas pode ser efectuada de acordo com o preceituado no artº 1419°, n° 1 do CC, e nunca através de decisão judicial".

2ª No auto de vistoria realizado em 20 de Novembro de 1974, junto a fls. 435-436, emitido pela Câmara Municipal de Lisboa em 6.3.1975, é declarado o seguinte: "A cave, na parte para trás deste compartimento, destina-se a outra ocupação, para estacionamento privativo dos utentes do prédio,..."

É declarado ainda o seguinte: "Partes comuns: 1 habitação com 1 divisão assoalhada (porteira); 1 ocupação com mais de 100 metros quadrados (estacionamento privativo dos utentes do prédio)."

Consta ainda que "verificou a Comissão que se trata de um prédio de construção moderna, o qual de harmonia com os respectivos projectos aprovados..."

3ª Aos requisitos legais de constituição da propriedade horizontal, previstos no art. 1415.° do CC, acrescem requisitos administrativos, impostos pelo RGEU, tendo o legislador, com a alteração dos n°s 2 e 3 do art. 1418.° do CC, operada pelo DL n° 267/94, de 25-10, deixado claro que, subjacente à disciplina imposta por aqueles diplomas de natureza administrativa, está em causa o cumprimento de normas de direito público, de interesse e ordem pública, sendo que o título constitutivo da PH, foi elaborado por escritura pública, tendo em conta o que resulta das telas finais, sendo que nestas não consta a divisão da garagem, além disso, está marcada sobre a ocupação, mais tarde designada por fracção B, uma porta com utilidade de aceder, directamente à garagem, sinal visível e permanente, quando é certo que as fracções habitacionais têm que vir à rua para acederem à garagem.

Na verdade, como refere o ac. do STJ de 6 de Novembro de 2012, " O Regulamento Geral das Edificações Urbanas, em especial, o respectivo artº. 8°, nº 1, impõe uma especial exigência de conformidade das obras com o projecto aprovado.

O negócio jurídico constitutivo da propriedade horizontal que desrespeita o que ficou consagrado no projecto de construção, ofendendo o preceituado pelo supracitado normativo legal, viola preceitos regulamentares, de interesse e ordem pública, pelo que, verificando-se a ofensa de uma disposição legal de carácter imperativo, ocorre a sua nulidade (...)", in Col. Jur. ano XX, pág. 107.

4ª O título constitutivo da propriedade horizontal teve por base um negócio jurídico formalizado por escritura pública, celebrada no Cartório Notarial de Sintra, em 2.4.1975 e essa escritura foi levada a registo, pela apresentação n° 8, de 14 de Outubro de 1975, como consta da Certidão da Ia Conservatória do Registo Predial, junta com a petição, (doe. n° 8) e junta ainda com a Contestação, como doc. n° 2, pelo que o título constitutivo da propriedade horizontal, designadamente, o fim das partes comuns, tem eficácia erga omnes.

5ª Nesta escritura pública, foi atribuída a cada uma das fracções autónomas C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M e N a percentagem de 6,06; à fracção A, a percentagem de 15,16 e à fracção B, a percentagem de 12,12. (alínea L da especificação)

6ª Nas descrições de cada fracção autónoma realizadas na referida escritura pública de PH, não é feita referência à cave do edifício.

7ª O acórdão recorrido, colando-se à sentença, nada disse sobre a inscrição e descrição da propriedade horizontal no respectivo registo predial e dele constar "estacionamento privativo dos utentes", sendo certo que a segurança do comércio jurídico imobiliário, garantido pelo artº. 1º do C. Registo Predial tem, como suporte constitucional, o disposto nos artºs 2° e 3º da Constituição, sendo que resultando de certidão, emitida pela competente conservatória do registo predial que o condomínio está constituído e devidamente registado, o tribunal recorrido não podia deixar de admitir tal facto que se impõe de per si, a qualquer instância, pelo que o acórdão recorrido desprezou o art° 4º da Lei n° 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) que determina o julgamento segundo a Constituição e a lei.

 

8ª No documento n° 12, junto com a PI, é referido que, em 31 de Janeiro de 1998, se realizou a Assembleia de Condóminos em 2ª Convocação em que estiveram presentes 6 condóminos que detinham, no prédio, a percentagem de capital de 36,36= (6.06 X 6), constando da acta dessa Assembleia que «TAMBÉM FICOU APROVADO O REGULAMENTO GERAL DO CONDOMÍNIO».

9ª O regulamento no seu artigo 3°, com a epígrafe "PARTES COMUNS DO PRÉDIO, DOS SERVIÇOS DE INTERESSE COMUM E RESPECTIVOS CUSTOS", refere, entre o mais, que a entrada principal, o átrio, a escada e o patamar de acesso às habitações, bem como as lâmpadas e respectivos globos, a arrecadação situada no átrio sob o primeiro lance de escadas, o fogo destinado à habitação da porteira, localizada no último piso do prédio, com uma divisão, uma casa de banho e uma cozinha, o portão da garagem, a garagem, as instalações de electricidade e água, bem como a escada de acesso à fracção "B" são partes comuns das fracções correspondentes às habitações, excluindo as duas fracções correspondentes às lojas.

10ª Essa Assembleia em que estiveram presentes 6 condóminos que detinham, no prédio a percentagem de capital de 36,36= (6.06 X 6) não tinha quorum suficiente, para com a deliberação, aprovar o Regulamento que, inclusivamente, alterou o título constitutivo da Propriedade horizontal, sendo, portanto nula e consequentemente nulo o Regulamento, por violarem o interesse público do registo da constituição da propriedade horizontal e de ofenderem a segurança jurídica, bem como por violarem os preceitos de natureza imperativa, aplicáveis à compropriedade e propriedade horizontal, nomeadamente, os artigos 294°, 1406°, n° 1, 1421°, 1422°, 1432°, todos do CC.

A deliberação e o consequente Regulamento são de conteúdo contrário às mencionadas normas imperativas e ao título constitutivo da Propriedade Horizontal, pelo que, a sanção é de nulidade, sendo tal vício invocável a todo o tempo, por qualquer interessado, nos termos do disposto no artigo 286° do CC.

11ª O acórdão recorrido, decalcando a sentença, nada disse sobre a questão da nulidade da deliberação da assembleia de condóminos, realizada em 31 de Janeiro de 1998 e não fez a ligação entre a assembleia e o regulamento, pois sendo nula a assembleia, o regulamento aí aprovado pela minoria de 36,36, é também nulo, pelo que há falta de pronúncia, geradora de nulidade do acórdão recorrido, prevista no art. 668° -1, al d) e art. 716° do CPC.

12ª A escada de acesso à fracção "B" está afectada ao uso exclusivo dessa fracção, pelo que, nos termos do n° 2 al. e) do artigo 1421° do Código Civil, é parte daquela fracção e não é parte comum do edifício nem tão pouco como pretendem os RR no art° 3 do Regulamento, partes comuns aos condóminos habitacionais, sendo nula a deliberação e o regulamento. Contudo, essa pretensão, infelizmente, foi acolhida pelo acórdão recorrido que, decidindo assim, violou a lei expressa, o n° 2 al. e) do artigo 1421° do Código Civil, sendo, consequentemente nula.

13ª Quanto aos pedidos da Autora de má-fé dos RR, o acórdão recorrido limita-se a dizer que "consignasse que não há qualquer conduta das partes susceptível de litigância de má fé, sendo certo que as questões dirimidas são, sobretudo, de ordem jurídica", pelo que o acórdão recorrido, não se pronunciou sobre os factos resultantes dos comportamentos processuais dos RR, arredados dos princípios de colaboração e cooperação para com o tribunal e para com a Autora e contribuíram para entorpecerem, na Ia instância, todo o processo, durante cerca de 7 anos, com o fim de impedirem a descoberta da verdade, com violação dos princípios da cooperação e da boa fé processual, previstos nos artigos 266° e 266°-A do CPC e obrigaram a Autora a requerer diligências que se vieram a tornar inúteis, além de ter de pagar a taxa de justiça e multas, sem qualquer necessidade e sem qualquer proveito. Além do mais, os RR, na Contestação vieram juntar o documento n° 4, que é uma planta forjada pelos RR, arguida de falsa, que pretende mostrar a distribuição dos lugares, em espinha, quando é certo, pelas plantas juntas e pela peritagem, que nunca houve tal demarcação.

É sintomático o comportamento do Réu RR que, citado, veio dizer que era parte ilegítima, não fornecendo o nome e morada dos condóminos que, afinal, eram seus filhos, um deles, menor, sendo que ambos viviam consigo.

Deste modo, justifica-se que os RR sejam condenados como litigantes de má fé nos termos expostos no Requerimento apresentado, em Junho de 2007 e na Réplica apresentada em de 2010 e nos das disposições dos artigos 456° e 458° do CPC.

14ª O acórdão recorrido, acudindo à sentença, afirma "não ter sido despropositado aludir-se à possibilidade da aquisição da propriedade (do espaço na garagem pelos donos das fracções habitacionais) por usucapião (...) ", indicando o ac. Rel Lisboa de 14.04.2005.

Contudo, parece à Recorrente que o tribunal recorrido não deve ter lido o acórdão por si indicado, pois o argumento está em contradição com o aí citado em Sandra Passinhas.

É que, o que refere a Professora Sandra Passinhas, está de harmonia com o acórdão do STJ relatado pelo Conselheiro MARTINS DE SOUSA, datado de 20.10.2011, "... uma situação possessória que, todavia, neste domínio da propriedade horizontal, não se constitui como fonte aquisitiva de direitos (usucapião), se não se situar nos estritos limites em que a propriedade horizontal se enquadra, nunca a extravasando (artº 1263º  a) do CC - cfr no site d DGSI, o acórdão deste Tribunal e secção, de 13.12.2007, proferido no P° 07A3023 (Conselheiro Mário Cruz) -, sob pena de implosão do seu regime legal."

15ª O acórdão recorrido, validando o Regulamento, contra a força probatória da certidão com a descrição e inscrição do Título na Conservatória do Registo Predial, contra o que consta das vistorias da Câmara Municipal e dos respectivos projectos (plantas) que foram juntos ao processo, com prejuízo da Autora, ora recorrente, sem que houvesse qualquer pedido ou alegação, atribuiu, aos condóminos habitacionais, partes imperativamente comuns como, a entrada principal, o átrio, a escada e o patamar de acesso às habitações, bem como as lâmpadas e respectivos globos e ainda as instalações de electricidade e água, como pretende o art. 3º do Regulamento, pelo que o acórdão recorrido violou, ostensiva e grosseiramente o título constitutivo da propriedade horizontal, registado, o artº 1421° -1 do C Civil, bem como o art. 8º &1° do REGEU, sendo consequentemente nulo.

O acórdão recorrido, por excesso de pronúncia violou, ainda, o artº 668°-1 als d), e), e artºs 716° e 722° do CPC.

16ª Também o acórdão, com a validação do Regulamento, sem que houvesse qualquer pedido, ou alegação, (apenas foi discutida a garagem) contra o que consta das vistorias da Câmara Municipal e dos respectivos projectos (plantas) que foram juntas ao processo, atribuiu, com prejuízo da Recorrente, às fracções habitacionais partes presumidamente comuns, cuja presunção não foi nem está afastada:

"Todas as restantes partes do prédio, nomeadamente ascensor, habitação da porteira e estendal referente à mesma habitação no sótão e ainda cave ampla destinada a estacionamento privativo dos utentes do prédio, o telhado, escada, entradas gerais de água, electricidade e semelhantes são considerados comuns", pelo que o acórdão recorrido violou o título constitutivo da propriedade horizontal, registado e o n° 2 do artº 1421° do C. Civil, bem como o art. 8º &1° do RGEU, sendo consequentemente nulo, sendo ainda nulo por excesso de pronúncia nos termos do artº 668°- l als d), e) , e artºs

716° e 722° do CPC.

É de notar o erro lógico do Acórdão que concluiu da parte (garagem) para o todo (todas as partes),

17ª Acudindo à sentença, o acórdão recorrido, interpretou o título constitutivo, nos termos do art. 236° do CC, servindo-se de alguns dados contemporâneos da escritura de constituição da propriedade horizontal, como as duas "...escrituras de compra e venda de fracções habitacionais, que referem que as fracções incluem o "direito a uma duodécima parte indivisa da cave destinada a estacionamento dos utentes ".

18ª Os contratos celebrados com os adquirentes daquelas fracções têm de se moldar ao título constitutivo da PH e não este àqueles, pois, sendo o titulo constitutivo da Propriedade Horizontal, "o acto modelador do estatuto da propriedade horizontal, tendo as suas determinações eficácia real, como assinalou Henrique Mesquita, (...) só a ele há que atender para determinar o destino das fracções do prédio (as partes comuns), pelo que as negociações havidas são para o efeito irrelevantes o que evidentemente não envolve que não possam ser consideradas para exigência de indemnização, se for o caso, a haver do instituidor da propriedade horizontal.

Por esses motivos e porque a acção não é intentada por ou contra a pessoa que instituiu a propriedade horizontal e vendeu à ré a fracção, não há que trazer à colação o disposto nos artigos 236° e 295° do Código Civil, pois eles só funcionam entre os intervenientes no contrato que não é posto em causa pelo recorrente.

E não há que apreciar os interesses em presença, pois eles são irrelevantes, já que são inteiramente alheios à interpretação do título", (cfr. Ac. STJ de 27.05.1986), in BMJ 357, 438).

19ª Além do que, nos termos do artigo 1420° do Código Civil, o conjunto do direito à fracção "B" e o das partes comuns é incindível, sendo que a Recorrente mesmo que não utilize as partes comuns, não deixa de ser comproprietária dessa parte, pelo que a interpretação elaborada no acórdão não tem qualquer apoio legal.

20ª A interpretação vertida no acórdão, salvo o devido respeito, é abusiva, pois não tomou na devida conta que, conforme o constante das telas finais, da certidão da Câmara Municipal, (cfr. doc. n° 1 junto com a Réplica), do esclarecimento dos Peritos, a porta antipânico existente na cobertura da fracção B é uma porta de emergência, necessária para garantir a segurança dos utentes da fracção B e dos utentes da Garagem, bem como a certidão da Câmara Municipal em que a comissão de vistorias, em 25 de Novembro de 1996, constatou que a porta a tardoz (também porta emergência) estava entaipada, sem acesso à Garagem (doc. n° 1 junto com a Réplica), o tribunal recorrido, ao dar como provados os quesitos 1º, 2º, e 3º da Bi, violou as normas imperativas de direito público, de interesse e ordem pública dos artºs 8º &1°, 62° e 65° do RGEU e artigo 1418° - 2 e 3 do C. Civil e artº 31° do Regulamento Contra Incêndios, aprovado pelo DL 64/90, de 21 de Fevereiro.

21ª "Na verdade, deliberações que infrinjam os artºs 1415°, 1419°, 1421°, 1422°, 1428°, 1429°, serão, todas elas, nulas, (...) o interesse público subjacente a todo o regime jurídico do condomínio corporiza-se neste conjunto de normas; daí que a violação destas implique necessariamente a nulidade da deliberação que as infringe...", in Col. Jur. 1994, tomo 4, pág. 115 e segs.).

22ª Aliás, atendendo ao princípio constitucional da proporcionalidade (art. 18°-2 e 266°-2 da Constituição), era mais razoável que as fracções com mais permilagem tivessem mais benefício de parqueamento, pois, se alguma dúvida houvesse, o tribunal deveria ter recorrido à interpretação prevista no art. 237° do C. Civil que se traduz no maior equilíbrio das prestações, sendo certo que a fracção "B" com 12,12% com o dobro da permilagem de fracção habitacional (6,06), terá de ter espaço na Garagem.

23ª O acórdão recorrido, ao não tomar em consideração os documentos autênticos acima mencionados, violou, ainda, os artigos 376°- 1 e 2 do C Civil, pelo que deverá ser revogado, com todas as legais consequências.

24ª A Recorrente vem suscitar, previamente, a inconstitucionalidade do art. 1421° do C. Civil, se o Tribunal interpretar o título constitutivo da PH, (escritura registada na competente Conservatória) em que menciona que "Todas as restantes partes do prédio, nomeadamente ascensor, habitação da porteira e estendal referente à mesma habitação, no sótão, e ainda cave ampla destinada a estacionamento privativo dos utentes do prédio, o telhado, escada entradas gerais de águas, electricidade e semelhantes são consideradas comuns ", isto é, se interpretar aquele normativo no sentido de "atribuir o uso exclusivo das referidas partes comuns às fracções habitacionais", pois tal interpretação do art. 1421° do C. Civil, é inconstitucional, por violar o art. 1º do C. Reg Predial, os artºs 376°, 1415°, 1419°, 1422° 1428°, 1429°, todos do C. Civil e art. 8º, 1º do REGEU, violando, consequentemente, o princípio da confiança dos cidadãos no estado de direito democrático, consagrado nos artºs. 2º e 3°- 2 e ainda o art. 18°- 3 da Constituição.

            Pede que seja dado provimento ao presente recurso, mediante revogação do Acórdão recorrido e, em consequência:

        

-           Ser declarada nula a deliberação da Assembleia de Condóminos, de 31 de Janeiro de 1998, que, entre o mais, aprovou o Regulamento Geral do Condomínio e,

-           Consequentemente ser declarado nulo tal REGULAMENTO do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., n° … - LISBOA;

-           Serem declaradas partes comuns do edifício todas as mencionadas no art. 1421°-1 e 2, do C. Civil, as quais constam do título constitutivo da Propriedade Horizontal;

-           Ser declarada como pertencente à fracção "B" a escada de acesso à fracção "B", nos termos do n° 2 al. e) do artigo 1421° do Código Civil;

-           Serem condenados os RR, designadamente o Administrador, nos termos do disposto no n° 2 do artigo 1429-A do Código Civil, a elaborar um Regulamento que discipline o uso e fruição e conservação das partes comuns do prédio, nos termos da lei e do título constitutivo da Propriedade Horizontal.

-           Serem condenados os RR, como litigantes de má fé.

         Foram apresentadas contra-alegações pelos Recorridos, refutando a argumentação tecida pelos Recorrentes e pugnando pela total improcedência do presente recurso.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

         Das instâncias, vem dada como definitivamente provada a seguinte factualidade:

1– O edifício sito na Rua ..., n°s … a …, em Lisboa, é composto de cave, rés-do-chão, três andares e sótão (alínea A da especificação).

2­­– Nas telas finais das plantas de arquitectura do edifício, juntas a fls. 257, é desenhado na cave um espaço rectangular, sem compartimentos ou divisórias assinalados, com a área de 253,87 metros quadrados, denominado "estacionamento privativo dos utentes do prédio", com a identificação, num dos extremos, de uma "escada para a saída de emergência e acesso para limpeza" (alínea B da especificação).

3– Nas telas finais das plantas de arquitectura do edifício, juntas a fls. 257, são desenhadas duas "lojas", sendo que uma das lojas ocupa o piso do rés-do-chão, por cima da zona de estacionamento, tendo saída directa para rua, não tendo saída para o átrio do prédio e tendo, no seu extremo, a referida "escada para a saída de emergência e acesso para limpeza" (alínea C da especificação).

4– A outra loja ocupa o piso do rés-do-chão e da cave, tendo saída directa para rua e não tendo saída para o átrio do prédio (alínea D da especificação).

            5– No auto de vistoria junto a fls. 435-436, emitido pela Câmara
Municipal de Lisboa em 6.3.1975, é referido o seguinte: "A cave, na
parte para trás deste compartimento, destina-se a outra ocupação, para
estacionamento privativo dos utentes do prédio, com acesso próprio por
uma rampa que vem ligar a um patamar de entrada na frente do lado
esquerdo do rés-do-chão " (alínea E da especificação).

6– No mesmo auto de vistoria é referido o seguinte: "Partes comuns: I habitação com I divisão assoalhada (porteira); I ocupação com mais de 100 metros quadrados (estacionamento privativo dos utentes do prédio) " (alínea F da especificação).

7– Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Sintra, em 2.4.1975, "Empreendimentos …, SARL" constituiu a propriedade horizontal sobre o prédio descrito na Ia Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n° …, do livro-…, sito na Rua ..., n°s. … a …, em Lisboa (alínea G da especificação).

8– Nesta escritura pública são descritas as fracções autónomas A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M e N, sendo as duas primeiras constituídas por "um estabelecimento ou ocupação, destinada a loja" e "as restantes habitações   (alínea H da especificação).

9 – Nas descrições de cada fracção autónoma realizadas na referida escritura pública não é feita referência à cave do edifício (alínea I da especificação).

10 – Da referida escritura pública consta o seguinte: "Todas as restantes partes do prédio, nomeadamente, ascensor, habitação da porteira e estendal referentes à mesma habitação, no sótão, e ainda cave ampla destinada a estacionamento privativo dos utentes do prédio, o telhado, escada, entradas gerais de águas, electricidade e semelhantes são consideradas comuns " (alínea J da especificação).

11 – Nesta escritura pública foi atribuída a cada uma das fracções autónomas C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M e N a percentagem de 6,06, à fracção A a percentagem de 15,16 e à fracção B a percentagem de 12,12 (alínea L da especificação).

12 – Em 1975 foram demarcados doze lugares na garagem, destinados às fracções C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M e N (resposta ao quesito Iº).

13 – Desde então, a garagem passou a ser, exclusivamente, utilizada pelas fracções C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M e N (resposta ao quesito 2º).

14 –Desde a venda inicial das fracções A e B nunca os seus proprietários utilizaram a garagem (resposta ao quesito 3º).

15 – Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Sintra, em 6.11.1975 "Empreendimentos …, SARL" vendeu as fracções autónomas descritas pela letra K do referido prédio, correspondente ao …º andar … e pela letra …, correspondente ao …º andar …, fracções essas que foram descritas da seguinte forma: " (...) com estendal no sótão e direito a uma duodécima parte indivisa da cave destinada a estacionamento dos utentes " (alínea M da especificação).

16 – Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Sintra, em 7.11.1975 "Empreendimentos …, SARL" vendeu a fracção autónoma descrita pela letra … do referido prédio, correspondente ao …º andar …, fracção essa que foi descrita da seguinte forma: " (...) com estendal no sótão e direito a uma duodécima parte indivisa da cave destinada a estacionamento dos utentes " (alínea N da especificação).

17 – As contas do condomínio relativas à garagem foram sempre feitas em separado, nunca tendo os proprietários das fracções … e … comparticipado nas despesas de manutenção e conservação da garagem (resposta ao quesito 4º).

            18 – Desde 1987, foram realizadas obras na garagem, consistentes em
reparações pontuais no portão, eliminação de infiltrações, colocação de um
temporizador, pintura das paredes interiores, substituição do portão e
aquisição de comandos de portão (resposta ao quesito 5º).

19 – Os proprietários das fracções … e … nunca comparticiparam na realização destas obras (resposta ao quesito 6º).

20 – Em 31.1.1998 foi realizada uma assembleia de condóminos, em segunda convocação, com a participação de condóminos representativos de uma percentagem 36,36 do capital, tendo sido aprovado o Regulamento Geral do Condomínio (alínea O da especificação).

           

21 – Do artigo 3° deste regulamento geral do condomínio consta,
nomeadamente, o seguinte: "São elementos comuns: (...) d) a entrada
principal, o átrio, a escada e o patamar de acesso às habitações, bem
como as lâmpadas e respectivos globos; e) a arrecadação situada no átrio
sob o primeiro lance de escadas; f) o fogo destinado à habitação da
porteira, localizada no último piso do prédio, com uma divisão, uma casa
de banho e uma cozinha; g) um elevador, casa das máquinas (com o seu
recheio) e os receptáculos postais; (...) i) os intercomunicadores e
campainhas da escada, incluindo os compartimentos onde se encontram
os respectivos quadros e contadores; (...) I) as alíneas d, e, f g. i, portão
da garagem, garagem, as instalações de electricidade e águas, bem como,
a escada de acesso à fracção … são partes comuns das fracções
correspondentes às habitações, excluem-se as duas fracções
correspondentes às lojas " (alínea P da especificação).

22 – Por escritura pública celebrada no 8º Cartório Notarial de Lisboa, em I8. 10.2002, a autora comprou à "Companhia de Seguros SS, SA. " a fracção autónoma descrita pela letra … do referido prédio, correspondente ao r/c … (alínea Q da especificação).

23 – As escadas construídas na extremidade da garagem conduzem a uma porta de saída de emergência (porta corta-fogo), que dá para terraço de cobertura da fracção … (resposta ao quesito 7º).

24 – A porta corta-fogo colocada na extremidade da garagem apenas pode ser aberta a partir do interior da garagem (resposta ao quesito 9º).

         Impõe-se, desde logo, para cabal intelecção do título constitutivo da propriedade horizontal, ter presente hic et nunc o decidido pela 1ª Instância na douta sentença proferida nos presentes autos, relativamente à interpretação daquele documento.

Lê-se, com efeito, naquela sentença:

         «Na escritura de constituição da propriedade horizontal refere-se que a ocupação na cave se destina ao "estacionamento privativo dos utentes do prédio". Como interpretar o titulo constitutivo da propriedade horizontal - art. 236 do Código Civil?

Alguns dados contemporâneos da escritura de constituição da propriedade horizontal são relevantes para a interpretação negocial do título constitutivo da propriedade horizontal. Por um lado, temos diversas escrituras de compra e venda de fracções habitacionais, que referem que as fracções incluem o "direito a uma duodécima parte indivisa da cave destinada a estacionamento dos utentes".

Por outro lado, resultou provado que foram demarcados doze lugares na garagem, que passaram a ser exclusivamente utilizados pelas fracções habitacionais.

Face a estes dados contemporâneos, é correcto interpretar o título constitutivo da propriedade horizontal no sentido de que a garagem foi configurada como uma parte comum afecta ao uso exclusivo das fracções habitacionais - art. 1421, n° 3, do Código Civil (sobre partes comuns e fracções autónomas, Rui Pinto Duarte, Curso de direitos reais, 2 a ed., Estoril, Principia, 2007, pp. 108-110). Trata-se de uma interpretação com correspondência no texto do título constitutivo, dado que a expressão "utentes do prédio" deve ser interpretada no sentido de titulares das fracções habitacionais (recorde-se que as fracções não habitacionais têm saída directa para a rua) - art. 238 do Código Civil.

           

Por sua vez, o Tribunal da Relação confirmou tal interpretação, nos seguintes termos:

«Desta factualidade apurada infere-se que, logo aquando da venda das fracções destinadas a habitação, houve uma afectação material duma "duodécima parte indivisa da cave destinada a estacionamento dos utentes " aos respectivos compradores daquelas fracções.

Houve, portanto, uma disposição objectiva - e até titulada - da garagem a favor dos proprietários das fracções destinadas a habitação - a respeito deste conceito, vide, Sandra Passinhas, in, "A Assembleia de Condóminos e o Administrador da Propriedade Horizontal", pgs..44 a 49, Almedina, 2ª edição de Janeiro de 2002, que considera também afastada a presunção de comunhão quando "colocando-se num estádio temporal anterior, existente já à data de constituição do condomínio a situação configura uma destinação objectiva".

Há, portanto, uma afectação material ab initio (1975) de uma parte do prédio que se presume comum (no caso vertente uma determinada área da garagem a favor dos adquirentes das fracções para habitação) - cfr. art°1421° n°2 do CC e Acórdão do STJ, de 17-6-93, in, Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1993, Tomo II, pag.161.

Daí o regulamento do condomínio também questionado estar em conformidade com o fim dado à garagem e não haver qualquer vício de inconstitucionalidade na interpretação dada ao art°1421° do CC.

Refira-se sobre este último tema que é a própria lei - art°1418° n°2 do CC que estipula ser facultativo, usando para o efeito usa o termo "pode", fixar no título constitutivo da propriedade horizontal o fim a que se destina cada fracção ou parte comum.

Não se estando perante coisas de natureza imperativamente comum - n° l do art°1421° do CC - e afastada que foi a presunção juris tantum acima estudada conclui-se que o estacionamento em causa é privativo dos ocupantes das fracções habitacionais».

Em primeiro lugar, a Recorrente certamente não ignora, posto que está devidamente patrocinada, que a interpretação do título de propriedade horizontal, ou do regulamento do condomínio, efectuada pelas Instâncias, maxime pelo Tribunal da Relação, é insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como doutamente referia o saudoso Conselheiro Aragão Seia que chegou a ser Ilustre Presidente deste Supremo Tribunal, ao escrever lapidarmente:

«O Supremo Tribunal de Justiça não pode censurar a interpretação do título constitutivo feita pela Relação, porque de interpretação de documento se trata, desde que não mostre terem sido violadas quaisquer normas legais reguladoras do instituto da propriedade horizontal» [Aragão Seia, Propriedade Horizontal (Condomínio e Condóminos), 2ª edição, Almedina, Março de 2002, pg. 49].

Dito isto, vejamos se foram violadas normas atinentes ao regime legal da propriedade horizontal.

Alega a Recorrente, na conclusão 1ª da sua minuta recursória, que «o Acórdão recorrido deve ser revogado, porquanto, proferido sobre questões da propriedade horizontal, modificou-lhe o título, fracturou o seu regime legal, sendo certo que, conforme Assento do STJ de 10.05.89 "a sua modificação apenas pode ser efectuada de acordo com o preceituado no artº 1419°, n° 1 do CC, e nunca através de decisão judicial"».

Com o merecido respeito, não lhe assiste qualquer razão!

O Acórdão recorrido não só nada modificou, muito menos fracturou, relativamente ao regime legal, nem tem aplicação, hic et nunc, o invocado Assento do STJ de 10.05.89.

Todas as considerações tecidas pelo Tribunal da Relação visaram, como é bom de ver, a interpretação do Regulamento do Condomínio e a aferição da sua conformidade ou não com o título de propriedade horizontal, como se impunha para a boa decisão da Apelação no presente pleito, já que a questão primordial debatida nos presentes autos é a de saber se a parte do prédio destinada a garagem poderia ser afectada ao uso de apenas alguns dos condóminos, com exclusão de outros.

Demonstraremos, assim, que não merece acolhimento a tese defendida pela Recorrente, por isso que despida de qualquer fundamento.

         Todavia,  antes de entrarmos na apreciação desta e de outras questões, equacionemos as questões decidendas a apreciar no presente recurso e, seguindo a melhor ordem metodológica, começaremos pela apreciação das apontadas nulidades.

Como se colhe da leitura das alegações da Recorrente e, aliás, bem destacam os Recorridos nas suas doutas contra-alegações, o que está em causa neste recurso de Revista, é decidir se:

 

1º o Acórdão recorrido é  nulo porque não se pronunciou sobre a nulidade da assembleia de condóminos de 31 de Janeiro de 1998 nem sobre a validade do Regulamento de Condomínio.

2º O referido Acórdão é nulo por excesso de pronúncia, violando o disposto no artigo 1421° d), n° 1 do Código Civil e o artigo 8° §1° do RGEU.

3º O citado Acórdão violou o disposto no artigo 1421° e), n° 1 do Código Civil considerar que a escada de acesso à fracção "B" é uma parte comum.

4º O  Acórdão em recurso violou o disposto nos artigos 456° e 458° do CPC, por não ter  decidido pela litigância de má-fé dos réus.

5º Ainda o mesmo   Acórdão   fez   uma   errada    interpretação   do   título constitutivo da propriedade horizontal.

6º O aludido Acórdão acolheu a matéria de facto da sentença sem ouvir  os esclarecimentos   dos   peritos  e   os  depoimentos  das testemunhas.   No  entanto,   vem   a   recorrente   alegar  que   não pede  a   reapreciação  da   matéria  de  facto.

7º  No caso sub judicio se verifica inconstitucionalidade  do  artigo 1421° do Código Civil porque a interpretação dada pelo Acórdão viola os artigos 1° do Código do Registo Predial, artigos 376°, 1415°,  1419°,   1422°,  1428°,  1429° do C.C. e artigo 8°,  1° do RGEU.

Relativamente às duas primeiras questões, é patente a inexistência das apontadas nulidades.

Alega a Recorrente que o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre «a nulidade da assembleia de condóminos de 31 de Janeiro de 1998 nem sobre a validade do Regulamento de Condomínio».

Note-se, desde já, que as mesmas questões já haviam sido levantadas pela Recorrente na apelação que interpôs da sentença da 1ª Instância e, sobre elas, a Relação transcreveu o que o tribunal « a quo» havia dito, corroborando tal posição, e que aqui, de novo, nos permitimos transcrever para melhor elucidação:

«Desta factualidade apurada infere-se que, logo aquando da venda das fracções destinadas a habitação, houve uma afectação material duma "duodécima parte indivisa da cave destinada a estacionamento dos utentes " aos respectivos compradores daquelas fracções.

Houve, portanto, uma disposição objectiva - e até titulada - da garagem a favor dos proprietários das fracções destinadas a habitação - a respeito deste conceito, vide, Sandra Passinhas, in, "A Assembleia de Condóminos e o Administrador da Propriedade Horizontal", pgs. 44 a 49, Almedina, 2ª edição de Janeiro de 2002, que considera também afastada a presunção de comunhão quando "colocando-se num estádio temporal anterior, existente já à data de constituição do condomínio a situação configura uma destinação objectiva".

Há, portanto, uma afectação material ab initio (1975) de uma parte do prédio que se presume comum (no caso vertente uma determinada área da garagem a favor dos adquirentes das fracções para habitação) - cfr. art°1421° n°2 do CC e Acórdão do STJ, de 17-6-93, in, Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1993, Tomo II, pag.161.

Daí o regulamento do condomínio também questionado estar em conformidade com o fim dado à garagem e não haver qualquer vício de inconstitucionalidade na interpretação dada ao art°1421° do CC.

Refira-se sobre este último tema que é a própria lei - art°1418° n°2 do CC que estipula ser facultativo, usando para o efeito usa o termo "pode", fixar no título constitutivo da propriedade horizontal o fim a que se destina cada fracção ou parte comum.

Não se estando perante coisas de natureza imperativamente comum - n°1 do art°1421° do CC - e afastada que foi a presunção júris tantum acima estudada conclui-se que o estacionamento em causa é privativo dos ocupantes das fracções habitacionais» (sublinhado e destaque nossos).

Como se vê, a Relação pronunciou-se expressamente pela validade do Regulamento do Condomínio em referência.

Nessa medida, a questão concernente à invocada nulidade da assembleia de condóminos tem de se considerar prejudicada, desde logo, pela afirmação da validade do citado regulamento aprovado na dita reunião.

Diga-se, no entanto, que relativamente a esta pretensa nulidade (da assembleia de condóminos de 31 de Janeiro de 1998), de onde a Recorrente pretende extrair a consequência da nulidade do dito regulamento (cfr. inter alia conclusão 11ª) não se pode olvidar o disposto no artº 1433º do Código Civil que no seu nº1 dispõe que «as deliberações da assembleia contrárias à lei ou aos regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado», para logo no seu nº 4º estatuir que «o direito de propor a acção de anulação caduca no prazo de 20 dias contados sobre a deliberação da assembleia extraordinária ou, caso esta não tenha sido solicitada, no prazo de 60 dias sobre a data da deliberação» ( destaque nosso).

Deste preceito legal emergem duas relevantes consequências, quais sejam:

a) que a lei comina com a sanção da anulabilidade as deliberações da assembleia contrárias à lei ou aos regulamentos anteriormente aprovados e que, por isso mesmo...

b)  ... o vício que inquina a deliberação pode ser sanado por falta de tempestiva impugnação (Aragão Seia, op.cit., pg. 185).

Note-se, porém, que tal regime apenas é aplicável às deliberações que não violem preceitos de natureza imperativa, já que, de contrário, estaria aberto caminho para a violação de tais preceitos mediante deliberações que, não impugnadas pelo silêncio cúmplice ou por mero desconhecimento, acabariam por se convalidar, pela sanação do respectivo vício ( P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, III, 2ª ed. pg. 447).

 Em breve curaremos de saber se se verificou in casu infracção de normas imperativas, sendo que, para já, nos cumpre apreciar apenas se houve omissão de pronúncia por banda do Tribunal da Relação.

 A passagem transcrita, do acórdão recorrido, demonstra à saciedade que a 2ª Instância, tal como a 1ª, consideraram que o regulamento em pauta não ofendeu a lei nem o título constitutivo da propriedade horizontal, estando até em conformidade com o destino dado à garagem pelo referido título.

Se decidiu bem ou mal, é questão que mais adiante analisaremos, mas não se verificou omissão de pronúncia e, consequentemente, a apontada nulidade do acórdão.

Por outro lado, não poderia extemporaneamente ser apreciada judicialmente a validade da dita assembleia de condóminos quanto ao seu quorum ou outras irregularidades, uma vez que nos termos do preceito legal transcrito, o prazo para tal impugnação já há muito havia decorrido.

No que tange à invocada nulidade por excesso de pronúncia, ressalvado o respeito que é devido, diremos que é mais do que evidente que não houve qualquer excesso de pronúncia ao ter a Relação referido os preceitos legais indicados na conclusão 2ª das alegações.

O excesso de pronúncia que consubstancia a nulidade da sentença prevista na alínea d) do artº 668º do CPC, na versão aplicável aos autos, não se traduz na aplicação indevida de certos preceitos legais em vez de outros ajustados ao caso.

Em tal caso, poderemos estar perante um erro de julgamento na aplicação do direito, mas não perante um excesso de pronúncia.

         O erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da representação da realidade factual (error facti) ou da aplicação do direito ( error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa.

         O excesso de pronúncia verifica-se quando o Tribunal conhece, isto é, aprecia e toma posição (emite pronúncia) sobre questões de que não deveria conhecer, designadamente porque não foram levantadas pelas partes e não eram de conhecimento oficioso.

Por outras palavras, enquanto o erro consiste num desvio da realidade factual ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma, o excesso de pronúncia consiste numa apreciação ou decisão sobre questão que ultrapassa o quanto é submetido pelas partes ou imposto por lei à consideração do julgador.

Pelas razões expostas, decide-se das duas primeiras questões supra-indicadas, no sentido da improcedência das arguidas nulidades por omissão e por excesso de pronúncia.

Ponderados estes aspectos, é tempo de se dizer que a persistente invocação do valor probatório do registo predial e de várias disposições do RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas), como faz a Recorrente, para atribuir ao Regulamento do Condomínio a violação de tais referências jurídicas, é totalmente alheia à questão debatida nos presentes autos, já que, ao contrário do que alega, o Regulamento de Condomínio em nada infringe os preceitos registrais ou desrespeita   a lei reguladora das edificações urbanas.

Assim sendo, como bem afirmam os Recorridos nas suas contra-alegações, «não se entende em que medida é que a decisão ora em crise poderá violar os fins do registo, os quais estão directamente relacionados com a publicidade da situação jurídica dos prédios».

Na verdade, não foram postas em crise nem a eficácia probatória do registo predial, nem a finalidade precípua de tal registo que é a de dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, como se colhe do artº 1º do Código do Registo Predial ou, como dispunha a versão de 1967 do mesmo preceito legal, «dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis».

          Decidiu a 1ª Instância, com o aplauso da Relação, que a expressão contida no artº 3º do Regulamento dos Condóminos de que trata o presente processo, «o regulamento do condomínio, no seu artigo 3º, alínea l) deve ser interpretado no sentido de atribuir o uso exclusivo das referidas partes comuns às fracções habitacionais – artºs 236º e 238º do Código Civil.

            Consequentemente, o regulamento do condomínio não é desconforme ao título constitutivo da propriedade horizontal, sendo válido».

         Por sua vez, a Relação transcreveu a passagem da dita sentença no seu Acórdão, acrescentando – como atrás já se demonstrou, mas importa agora frisar – o seguinte :

«Há, portanto, uma afectação material ab initio (1975) de uma parte do prédio que se presume comum (no caso vertente uma determinada área da garagem a favor dos adquirentes das fracções para habitação) - cfr. art°1421° n°2 do CC e Acórdão do STJ, de 17-6-93, in, Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1993, Tomo II, pag.161.

Daí o regulamento do condomínio também questionado estar em conformidade com o fim dado à garagem e não haver qualquer vício de inconstitucionalidade na interpretação dada ao art°1421° do CC.

Refira-se sobre este último tema que é a própria lei - art°1418° n°2 do CC que estipula ser facultativo, usando para o efeito usa o termo "pode", fixar no título constitutivo da propriedade horizontal o fim a que se destina cada fracção ou parte comum.

Não se estando perante coisas de natureza imperativamente comum - n° l do art°1421° do CC - e afastada que foi a presunção juris tantum acima estudada conclui-se que o estacionamento em causa é privativo dos ocupantes das fracções habitacionais».

Efectivamente, a interpretação efectuada pelas Instâncias não ultrapassa o limite do quanto é possível à assembleia de condóminos dispor na forma de simples regulamento de condomínio, ao disciplinar o uso de uma parte comum do prédio segundo os interesses tidos por mais convenientes para o bom funcionamento desse condomínio.

Na verdade, tal órgão máximo da propriedade horizontal (condomínio) não tem poderes para alienar ou restringir o direito de propriedade ou o de compropriedade de cada um dos condóminos, já que, nos termos legais, cada condómino é proprietário exclusivo da  fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do prédio ( artº 1420º, nº 1 do C. Civil).

Desta forma, ainda que houvesse tendência de uma assembleia de condóminos, por via do regulamento do condomínio, privar um ou mais condóminos da sua compropriedade sobre uma parte comum do prédio, tal desiderato seria de impossível consecução, uma vez que o regulamento do condomínio, onde se plasmam regras apenas para disciplina do uso e fruição das coisas comuns, não tem  força jurídica para contrariar lei expressa nem para afectar direitos dos condóminos concedidos por lei, como é assaz consabido e evidente.

Se assim não fosse, deparar-nos-íamos com situações de violação inequívoca de normas legais imperativas, tanto jurídico-civis como de direito registral e, porventura, de direito constitucional, embora tal violação nunca produzisse efeitos jurídicos, posto que a alienação da totalidade ou de parte dos imóveis está sujeita à forma legalmente estipulada para a sua validade ad substantiam, como é do conhecimento geral,  e nunca através de um simples regulamento do condomínio.

Já porém, como também é sabido, cabe ao regulamento do condomínio disciplinar o uso, a fruição e a conservação das partes comuns do prédio (artº 1429º-A do C.Civil), sendo essa mesmo a sua função primordial.

É justamente no cumprimento de tal imposição legal que foi aprovado o regulamento em causa nos presentes autos, importando agora indagar da possibilidade jurídica de o dito regulamento afectar o uso dos lugares de estacionamento a alguns dos condóminos com exclusão de outros.

Recorde-se, para tanto, o quadro factual apurado na presente acção, cronologicamente anterior à Assembleia de Condóminos que teve lugar em 31-01-1998:

«12 – Em 1975 foram demarcados doze lugares na garagem, destinados às fracções …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, … e … (resposta ao quesito Iº).

13 – Desde então, a garagem passou a ser, exclusivamente, utilizada pelas fracções …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, … e … (resposta ao quesito 2º).

14 –Desde a venda inicial das fracções … e … nunca os seus proprietários utilizaram a garagem (resposta ao quesito 3º).

15 – Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Sintra, em 6.11.1975 "Empreendimentos …, SARL" vendeu as fracções autónomas descritas pela letra … do referido prédio, correspondente ao …º andar … e pela letra …, correspondente ao …º andar /…, fracções essas que foram descritas da seguinte forma: " (...) com estenda/ no sótão e direito a uma duodécima parte indivisa da cave destinada a estacionamento dos utentes " (alínea M da especificação).

16 – Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Sintra, em 7.11.1975 "Empreendimentos …, SARL" vendeu a fracção autónoma descrita pela letra … do referido prédio, correspondente ao …º andar …, fracção essa que foi descrita da seguinte forma: " (...) com estendal no sótão e direito a uma duodécima parte indivisa da cave destinada a estacionamento dos utentes " (alínea N da especificação).

17 – As contas do condomínio relativas à garagem foram sempre feitas em separado, nunca tendo os proprietários das fracções … e … comparticipado nas despesas de manutenção e conservação da garagem (resposta ao quesito 4º).

            18 – Desde 1987, foram realizadas obras na garagem, consistentes em
reparações pontuais no portão, eliminação de infiltrações, colocação de um
temporizador, pintura das paredes interiores, substituição do portão e
aquisição de comandos de portão (resposta ao quesito 5º).

19 – Os proprietários das fracções … e … nunca comparticiparam na realização destas obras (resposta ao quesito 6º»

Como imediatamente se colhe de um simples relance pelo perfil factual acabado de se transcrever, desde 1975 foram demarcados 12 (doze) lugares na garagem de que tratam os autos e, desde então, a dita garagem passou a ser exclusivamente utilizada pelos donos das fracções …, …, …, …, …, …, …, .., …, …, … e …, portanto, nunca pelos proprietários das fracções e .

Doutra banda, nunca os donos das referidas fracções … e …, que se destinam a lojas com saída directa para rua (cfr. factos provados 3 e 4), comparticiparam na realização das obras na garagem a que alude o facto 18, nem em despesas de manutenção e conservação da garagem, sendo as contas do condomínio relativas à garagem sempre efectuadas em separado.

Como se vê, o Regulamento do Condomínio limitou-se a consagrar naquele documento uma situação factual que, remontando a 1975, mantinha-se em pleno vigor à data da aprovação do citado regulamento, disciplinando o uso daquela garagem pelos condóminos habitantes do prédio ( fracções habitacionais) com exclusão dos donos das lojas ( fracções … e …), exclusão essa que, materialmente, já remontava ab initio como bem se lê na sentença da 1ª Instância: « há, portanto, uma afectação material ab initio (1975) de uma parte do prédio que se presume comum (no caso vertente uma determinada área da garagem a favor dos adquirentes das fracções para habitação) - cfr. art°1421° n°2 do CC e Acórdão do STJ, de 17-6-93, in, Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1993, Tomo II, pag.161».

Importa agora salientar que bem sublinharam as Instâncias a circunstância de o artº 1421º do Código Civil estabelecer dois regimes diferentes de partes comuns do edifício, as partes imperativamente comuns, especificadas no nº 1 do citado inciso legal e as partes presuntivamente comuns, indicadas no nº 2 do mesmo preceito.

Todavia, importa ainda averiguar se o dito regulamento, embora consagrando por escrito regulamentar uma praxis bem anterior,  poderia excluir a ora Autora da utilização da garagem (tal como o fez em relação à outra loja), apenas afectando a sua utilização aos donos das fracções habitacionais.

Os factos respondem a esta questão (res ipsa loquitur) na medida em que vem provado que desde 1975 foram demarcados 12 (doze) lugares na garagem de que tratam os autos e, desde então, a dita garagem passou a ser exclusivamente utilizada pelos donos das fracções …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, … e … ( factos provados 12º e 13º), posto que existem apenas 12 lugares para estacionamento.

Havendo apenas 12 ( doze) lugares para estacionamento e sendo 12 ( doze) o número de fracções habitacionais, entendeu a Assembleia de Condóminos daquele prédio, no exercício do seu poder-dever de disciplinar o uso das partes comuns do prédio, afectar aquele uso aos condóminos que já vinham utilizando, desde 1975, a dita garagem, o que forçosamente implicava a exclusão de outros.

Tal cabe inteiramente nos seus poderes, como bem assinalou o saudoso Conselheiro Aragão Seia na sua obra supra-referida, ao escrever lapidarmente:

«Ainda se presumem comuns as garagens e outros lugares de estacionamento.

Claro que esta situação só se verifica se os lugares de garagem, abertos ou fechados dentro do condomínio, não fizerem parte integrante da própria fracção ou não constituírem fracções autónomas, assim constando do respectivo título.

Sendo partes comuns podem estar, ainda, afectados ao uso exclusivo de algum ou alguns condóminos.

Se  o espaço para estacionamento for comum há que disciplinar o seu uso e fruição, o que deve ser feito no regulamento do condomínio» (o destaque é nosso).

         De resto, também Carlos Monteiro assim se pronunciava no seu Manual da Propriedade Horizontal, onde escreveu:«a titularidade e o uso ou afectação prática da coisa são perfeitamente distinguíveis, embora haja uma estreita correlação entre esses dois elementos.

A maior parte das coisas comuns são, em regra, usadas por todos os condóminos e a afectação das coisas ao uso de alguns ou de todos eles constitui mesmo o índice de presunção legal de comunhão estabelecido para as partes não imperativamente comuns.

Esta correlação natural não impede, todavia, que sejam considerados comuns a todos os condóminos coisas cujo uso se encontre apenas afecto a alguns deles, nem que, embora excepcionalmente, possam ser tidas como comuns coisas destinadas ao uso de um só dos condóminos» [C. Monteiro, Manual da Propriedade Horizontal, 1979, pg. 56].

Após o que dito ficou, cremos que não deverão subsistir dúvidas de que não se verificou no caso vertente, qualquer modificação do título constitutivo da propriedade horizontal nem, muito menos, qualquer fractura do seu regime legal.

De igual sorte, a Assembleia de Condóminos em referência não exorbitou das suas legais atribuições ao disciplinar o uso dos lugares de estacionamento e outras partes comuns pela forma como o fez.

A ora Recorrente não deixou de ser proprietária da sua fracção e comproprietária das partes comuns do edifício, como é de lei.

Apenas não tem possibilidade de usar tais estacionamentos pelas razões apuradas e sobejamente explicitadas.

Como escreveu Sandra Passinhas na sua obra «A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal», em feliz e esclarecedora síntese, «todas as partes do edifício pertencem aos condóminos, quer em propriedade exclusiva, as fracções autónomas, quer em compropriedade, as partes comuns. Pode acontecer, porém, que a comunhão não seja entre todos, mas só entre alguns condóminos» ( op. cit, 2ª ed. pg. 162).

Na mesma obra, a ilustre autora afirma expressamente que «a assembleia pode contemperar o uso da coisa comum no interesse colectivo do condomínio, mas não pode violar o direito de compropriedade dos condóminos» (idem, pg. 271).

Num outro estudo digno de referência, intitulado «Partes Comuns na Propriedade Horizontal», a mesma autora escreve:

«Uma simples afectação de facto nunca atribuirá a um condómino um direito de propriedade. A exclusão do rol das coisas comuns de algumas das partes do edifício incide sobre a constituição ou modificação de um direito real sobre um imóvel, devendo resultar ad substantiam de escritura pública» [Partes Comuns na Propriedade Horizontal, estudo publicado na obra Ab Uno ad Omnes ( 75 anos da Coimbra Editora), pg. 650].

Quanto às escadas existentes na mesma garagem, foi dado como provado o seguinte:

«As escadas construídas na extremidade da garagem conduzem a uma porta de saída de emergência (porta corta-fogo), que dá para terraço de cobertura da fracção B (resposta ao quesito 7º).

A porta corta-fogo colocada na extremidade da garagem apenas pode ser aberta a partir do interior da garagem (resposta ao quesito 9º)»

Em presença deste quadro factual, o Tribunal da Relação doutamente concluiu:

«Dando essas escadas acesso a um terraço de cobertura e podendo a porta existente na extremidade da garagem apenas ser aberta a partir do seu interior dúvidas não há quanto a serem coisas comuns, nos termos do art°1421° n°1, b) e c), do CC».

Nas palavras judiciosas do Ilustre Conselheiro Aragão Seia, «as partes comuns não necessitam de ser especificadas no título constitutivo da propriedade horizontal. Conhecem-se por exclusão de partes, pois que as partes privadas, pertencentes aos condóminos – as fracções – carecem de ser especificados no título por forma a ficarem devidamente individualizadas, indicando-se o valor de cada uma expresso em percentagem ou permilagem do valor total do prédio» ( op. cit, pg. 65).

No caso concreto das escadas, tal parte do edifício é comum, mas o Regulamento em pauta disciplinou o seu uso, atribuindo-o exclusivamente às fracções habitacionais.

Assim, bem afirmou o Tribunal da Relação no seu acórdão, ora sob recurso, que «Relativamente à escada de acesso  provou-se que a mesma apenas permite o acesso da garagem à cobertura, pelo que. neste contexto, se trata igualmente de uma parte comum afecta ao uso exclusivo das fracções habitacionais - art. 1421, nº 3, do Código Civil.

Logo a seguir, o mesmo aresto acrescenta:

O regulamento do condomínio, no seu artigo 3°, alínea l), deve ser .interpretado no sentido de  atribuir   o   uso   exclusivo   das   referidas   partes   comuns   às   fracções habitacionais – artºs 236 e 238 do Código Civil. Consequentemente o regulamento do condomínio não é desconforme ao título constitutivo da propriedade horizontal, sendo válido.

No que concerne à litigância de má fé, que a Recorrente persiste em imputar aos Recorridos, nada mais temos a acrescentar, por totalmente inútil, ao que vem decidido pela 2ª Instância que doutamente ponderou:

«Consigna-se ainda que não há qualquer conduta das partes susceptível de ser equiparada à litigância de má fé, sendo certo que as questões dirimidas são, sobretudo, de ordem jurídica e, como vimos, passíveis em parte de discussão, dependendo o seu desenlace de prova a produzir em julgamento, nomeadamente, em relação aos factos que eram controvertidos, o que impedia qualquer decisão prematura aquando da prolação do despacho saneador».

Em poucas, mas perfeitamente elucidativas palavras, a Relação demonstrou a inexistência de qualquer laivo de má fé por banda dos Réus, ora Recorridos.

Quanto às questões 5ª e 6ª supra indicadas, são perfeitamente despiciendas maiores considerações, quer sobre a alegada « errada interpretação do título constitutivo», quer para o alegado «acolhimento da matéria provada na sentença sem ouvir os esclarecimentos dos peritos e os depoimentos das testemunhas».

Não compete ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o julgamento da matéria de facto efectuado pelo Tribunal da Relação – entidade soberana na apreciação e fixação da matéria factual – pois o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de Revista, que julga apenas em matéria de direito e não em matéria de facto.

Com efeito, se erro existir no apuramento e apreciação da matéria factual provada, tal erro não pode ser, ex vi legis, sindicado pelo Supremo Tribunal de Justiça, como a Recorrente não ignora, pois é claro o artº 722º/3 do CPC ao estatuir que:

«O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa  não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» ( negrito nosso).

Ora no caso sub judicio não se vislumbra qualquer das  situações excepcionais previstas na parte final do preceito legal transcrito.

Em face de tudo o que abundantemente exposto se deixou, não se vislumbra  violação de qualquer norma, imperativa ou não, seja de lei ordinária, seja de norma jurídico-constitucional, do mesmo passo que nenhuma «interpretação abusiva» foi cometida pela Relação, nem ocorre violação de qualquer dos preceitos legais indicados na última conclusão da alegação.

Não desconhece a Recorrente, posto que devidamente patrocinada, que aos Tribunais cabe, como órgãos de soberania para a administração de Justiça, interpretar e aplicar as leis às situações concretas de facto, e tal interpretação pode não coincidir com a das partes ou até ser contrária à destas, na medida em que o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tangente à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (jus novit curia), como proclama o artº 664º do CPC, na versão aplicável in casu.

Mostram-se, assim, infundadas e gratuitas as afirmações da Recorrente quando se permite qualificar o Acórdão recorrido como «um acórdão, salvo o devido respeito (embora com o voto de vencido que merece aplauso), absurdo, e desacredita o já abalado prestígio  do sistema em que se insere.

O texto é desconexo e limita-se a fazer uma cópia, tal como a sentença, dos articulados e alegações das partes, sem enquadramento e fundamentação jurídica e sem atender, sequer ao registo do título constitutivo da propriedade horizontal», asserções essas, no  mínimo, desmerecedoras de qualquer outro comentário.

Claudicam, desta sorte, as conclusões da alegação pertinentes à decisão do presente recurso, o que linearmente conduz à improcedência total do mesmo.

DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a Revista.

Custas pela Recorrente, neste Supremo Tribunal, tal como nas Instâncias, por força da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Dezembro de 2013

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

João Trindade