Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1334/11.4TBBGC.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
REQUISITOS
ASSENTO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
UTILIDADE PÚBLICA
ATRAVESSADOURO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / ATRAVESSADOUROS / ABOLIÇÃO DOS ATRAVASSADOUROS.
Doutrina:
- Ana Prata, Código Civil, coordenação de Ana Prata, 2017, Almedina, Volume II, p. 199;
- Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, Editora, p. 283.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO N.º 1383.º.
ASSENTO DE 19-04-1989, DR, SÉRIE I, DE 02-06-1989.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 13-01-2004, PROCESSO N.º 033A433;
- DE 17-09-2013, PROCESSO N.º 576/2001, IN SUMÁRIOS, 2013, P. 553;
- DE 07-10-2017, PROCESSO N.º 44/1999, E2.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

- DE 03-02-2000, IN CJ., TOMO I, P. 273.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 22- 06-2017, PROCESSO N.º 142/14, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A figura do “caminho público” foi sendo objecto de longo debate, sobretudo a nível jurisprudencial, com o marcante confronto entre duas opostas posições: uma defendendo que deveriam ser tidos como caminhos públicos aqueles que estivessem, desde tempos imemoriais, no uso directo e imediato do público; outra, mais exigente, sustentando que só deveriam considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se acharem no uso directo e imediato do público, fossem produzidos e/ou administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público, e se encontrassem sob a respectiva jurisdição.

II - Por Assento de 19-04-1989 (publicado no DR, Série I, de 02-06-1989), hoje com valor de AUJ, o STJ, no sentido de pôr termo a tal diferendo, decidiu que “[s]ão públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.

III - No entanto, não tendo tal resolvido a questão, veio posteriormente este Alto Tribunal a concluir pela necessidade de se levar a efeito uma interpretação restritiva do Assento referido em II no sentido de que “a publicidade dos caminhos exige ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação dos interesses colectivos de certo grau ou relevância”, sob pena de, seguindo à letra o seu dispositivo, também os atravessadouros com posse imemorial haverem de ser considerados como caminhos públicos, ao arrepio do disposto no art. 1383.º do CC.

IV - Mais recentemente, o STJ, por acórdão de 28-05-2013, veio, em nova inflexão, ressalvar que que essa interpretação restritiva do Assento referido em II pressupõe que “[n]o caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo qualquer interpretação restritiva do assento”.

V - Provando-se que o caminho em causa nos autos era apenas utilizado pelos proprietários dos prédios a que dava acesso – uns não identificados e outros os antecessores das partes – e uma vez que a existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um círculo determinado de pessoas é insuficiente para se falar de “utilização pública”, sendo mister a sua utilização por uma generalidade de pessoas, não pode senão concluir-se pela impossibilidade considerar o ajuizado caminho como sendo um “caminho público”.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]



I – RELATÓRIO


1. AA, BB, e mulher, CC, DD, e EE, intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário, contra FF e mulher, GG, pedindo a condenação destes a reconhecerem que o prédio identificado em 3.° da p.i pertenceu ao casal formado pela primeira A. e seu falecido marido HH; a reconhecerem que o acesso ao dito prédio se fazia por uma rua de terra batida que tinha início na rua que passa a sul do seu prédio e do prédio pertencente aos RR., com cerca de 6 metros de largura e que continuava até às escadas de acesso ao primeiro andar do prédio da primeira A. e da herança representada por todos os AA; a destruir o portão e muro que colocaram e que impede os AA de aceder nas condições em que sempre o fizeram, utilizando a rua melhor descrita em 13 da p.i; e a destruir as escadas de acesso ao seu prédio que construíram na referida rua de acesso ao prédio da primeira A. e da herança representada por todos os AA. e a absterem-se da prática de quaisquer actos, que perturbem ou contendam com o direito dos AA.

Alegam para o efeito - e em síntese - que na freguesia de …, Bragança, existe o seguinte prédio: Casa em fraco estado com 3 divisões no R/ C e 3 no primeiro andar, afecto a habitação, sito em …, confrontando de Norte com Rua, Sul com Rua, Nascente com II e do Poente com Próprio, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o n° 88, o qual pertence à herança, aberta e ainda não partilhada, de HH.

O casal formado pela primeira A. e marido, HH, por mais de quinze, vinte, trinta, cinquenta e setenta anos habitou o dito prédio, nele confeccionou e tomou refeições, nele dormiu, recebeu a sua correspondência e amigos ou visitas, e do mesmo cuidou, limpando-o e consertando o que necessário fosse, ainda, do mesmo pagou os inerentes impostos, nele sempre praticando, pois, todos os actos apenas permitidos aos proprietários, continuamente, sempre à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, sem que ninguém, nunca, se lhe opusesse, portanto também de forma pacífica, convencidos e cientes de estarem a exercer um direito próprio e sem que lesassem interesses ou direitos de quem quer que fosse.

Mais alegam que o referido prédio confina pelo sul, também, com um prédio urbano pertencente aos RR. O acesso ao rés-do-chão e umas escadas que dão acesso ao primeiro andar daquele prédio – melhor identificado em 3º da p.i. -, sempre se fez por uma rua com a qual o mesmo confronta pelo sul e de igual modo, pela mesma rua se acedia ao prédio dos RR..

Sucede, porém, que estes, durante os anos de 2008 e 2009, procederam a obras de melhoramento/reconstrução do seu prédio, destruindo o muro e portão e toda a rua que dava acesso ao prédio da primeira A e da herança.

Os RR comprometeram-se a respeitar a configuração da rua e a fornecer uma chave do portão que iriam colocar, no entanto, procederam à colocação de outro portão embora em local ligeiramente diferente, tendo vedado o resto da rua com um muro de cimento e não fizeram a entrega da chave, impedindo a 1ª A. e a herança representada pelos restantes AA. de utilizarem o acesso ao r/c e 1.º andar do seu prédio, como sempre fizeram.

Concluíram, assim, pela procedência da acção.


2. Regularmente citados, os RR. contestaram, invocando a ilegitimidade dos AA. e a ineptidão da p.i., impugnado quanto ao demais a factualidade vertida nesse articulado, alegando, em síntese, que não cortaram acesso algum aos AA., tanto mais que estes possuem acesso pela entrada principal da habitação na Rua da … e que a alegada rua ou caminho constitui o logradouro do prédio deles, RR..

Mais deduziram reconvenção, alegando que são donos e legítimos proprietários do prédio descrito no artigo 100.º da contestação, peticionando, em consequência, a condenação dos AA./Reconvindos a reconhecer a propriedade dos RR. sobre tal prédio nos precisos termos em que o respectivo registo o define.

Concluíram com a improcedência da acção e procedência da reconvenção.


3. Os AA./Reconvindos apresentaram resposta à reconvenção, pugnando pela sua improcedência e concluindo como na inicial.


4. A fls 247-248 foi proferido despacho convidando os AA. a especificar a natureza da rua em terra batida ali descrita e a identificar qual o direito da herança sobre a mesma rua, tendo os AA. apresentado requerimento onde vieram alegar tratar-se de uma rua pública, um caminho do domínio público e que sempre foi utilizado, há mais de quinze, vinte, trinta, cinquenta anos, quer pelos RR., quer pelos AA., quer pelas respectivas descendências e ascendências, caminho que era quase de utilização exclusiva dos AA. e RR. e que acabou por cair em desuso por parte das restantes pessoas de Parâmio, passando os RR. e os AA. a serem os únicos utilizadores.


5. Realizou-se audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio, enunciados os temas da prova e designada data para realização da audiência de julgamento.

No início desta audiência, foram de novo os AA. convidados a aperfeiçoar a p.i., por não haverem sido indicadas as confrontações exactas do prédio/caminho e respectivas configurações, tendo por referência os limites físicos existentes no local, devendo os mesmos ser descritos por referência a elementos materiais que os identificassem e delimitassem. Na sequência do referido convite, vieram os AA. apresentar novo articulado, ao qual os RR. responderam e onde requereram a condenação dos AA. como litigantes de má fé.


6. Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, tendo no decurso da mesma se procedido a inspecção judicial, após o que foi proferida sentença finda com o decisório que segue:

- “Julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

    1)   Declaro os autores donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito em …, composto por casa em fraco estado com 3 divisões no R/C e 3 no primeiro andar, afecto a habitação, confrontando de Norte com Rua, Sul com Rua, Nascente com II e do Poente com Próprio, encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o n.º 88, constando como titular inscrito, HH - cabeça de casal da herança, o qual pertence à herança aberta por óbito de HH e ainda não partilhada.

2)    Condeno os Réus a reconhecerem que o acesso ao prédio descrito em 1) deste dispositivo se faz por uma rua de terra batida que tinha início na rua que passa a sul deste e do prédio pertencente aos réus, infra descrito em 6) deste dispositivo com as características descritas em 7) dos factos provados.

3)    Condeno os Réus a absterem-se da prática de quaisquer actos, que perturbem ou contendam com o direito dos AA, em aceder ao rés-do-chão e escadas de acesso ao primeiro andar pelo caminho referido em 7), devendo para o efeito manter o portão aberto, ou fornecer uma chave do mesmo.

4)     No mais, absolvo os réus do restante peticionado.

5)      Custas da acção a cargo dos autores e réus, na proporção de ¼ para os primeiros e de ¾ para os segundos - art. 527.°, n.ºs 1 e 2 do NCPC.

Julgo a reconvenção procedente, por provada e, em consequência:

6)     Declaro os réus/reconvintes donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua da …, freguesia do …, concelho de Bragança, composto de dois pisos e logradouro, a confrontar do Norte com AA, do Sul com Rua Pública, do Nascente com JJ e do Poente com KK, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4…2-P e descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o número 9…2, inscrito a favor dos réus, através da Ap. 861 de 05/05/2010, por usucapião.

7) Custas da reconvenção, a cargo dos autores/reconvindos - art, 527.°, n.os 1 e 2 do NCPC .”


3. Inconformados com o assim decidido, os AA. interpuseram recurso de apelação para a Relação de Guimarães, que, por acórdão de fls. 568 e ss., julgou procedente tal recurso, revogando a sentença recorrida no que diz respeito aos pontos 2) e 3).


4. De novo inconformados, os AA. interpuseram o vertente recurso de revista, cujas alegações findam com as seguintes conclusões:

I. O acórdão em crise ao assentar a decisão nos moldes em que o faz, violou a lei substantiva, fazendo uma incorrecta subsunção da lei aos factos dados como provados pelo tribunal de primeira instância, porquanto fez uma errónea interpretação e aplicação da norma aplicável (conforme art.674.2 do CPC);

II. A ter feito a aplicação da lei, que se crê, salvo melhor opinião, ser a correcta, e com maior sentido de justiça, atento os factos dados por provados, tal decisão teria sido outra completamente distinta da assente no douto Acórdão proferido;

III. Tal desiderato expresso no acórdão em crise viola as seguintes normas: artigo 1305.º, artigo 1311.º, 1287.º, 1293.º, al. a), 1297.º ss e 1300.º, n.º 1, 342.º e 1383.º do Código Civil;

IV. A decisão proferida descura factos, dados por provados, pelo digníssimo tribunal de primeira instância, na subsunção do direito que faz, o que por via de tal circunstância, a decisão de direito aplicada não é compatível com a toda a matéria dada por provada, ferindo em consequência, o direito de propriedade dos AA, que existe, e que se encontra reflectido nos factos dados por provados pelo digníssimo tribunal de 1.ª Instância;

V. O Acórdão implicou a cessação das utilidades que aquele caminho proporciona aos AA., pelo que o direito de propriedade dos AA. ficou amplamente perturbado e limitado por via do esbulho operado pelo RR.;

VI. A decisão proferida objecto do presente recurso, legitimou, ilegitimamente, os RR. a obstruírem a passagem dos AA.;

VII. Mesmo que de toda a alegação dos mesmos, só resulte provado que o prédio, aos mesmos pertencente, está inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4…2- e descrito na conservatória do registo predial de Bragança sob o n.5 …2, a favor dos RR. através da Ap. 861 de 05.05.2010, por usucapião, através de uma escritura de justificação notarial que se encontra a ser impugnada judicialmente, sendo que a presunção registrai, como é sabido, não abrange as descrições dos referidos prédios, isto é, as suas áreas e confrontações;

VIII. Os AA. viram, assim, o seu direito de propriedade ser-lhes erroneamente arredado, em detrimento de uma ampliação ilegítima dos direitos de propriedade dos RR., que em momento algum, conforme o douto acórdão tem o cuidado de o referir, se opuseram ao reconhecimento do direito de propriedade dos AA, mas tão só as suas confrontações;

IX. Os RR., em momento algum fizeram qualquer tipo de prova de que o terreno, caminho - de domínio público ou não - lhes é pertença, pois somente fundaram a sua pretensão na presunção do registo, que como se sabe, e está assente nos presentes autos nasceu de uma escritura de justificação notarial (cuja acção de anulação da mesma se encontra suspensa até trânsito dos presentes autos);

X. A questão levantada pelo douto acórdão quanto à impossibilidade de atribuição de caracter público ao referido caminho, não é condição bastante para sem mais considerar a parcela de terreno em causa pertença dos RR., ou os legitimar a praticar actos que contendam com o direito dos AA., atento a demais prova produzida nos autos;

XI. O Tribunal recorrido, não só, interpretou mal a questão da falta de imemoriabilidade, como também, ao aplicar tal tese, conforme o fez, fê-lo de forma redutora e desprovida da cautela jurídica que a demais prova produzida rogava;

XII. A interpretação do Tribunal da Relação, salvo melhor opinião, é irrazoável, pois quando alegado pelos AA. que a passagem por tal caminho se faz há mais de 15, 20, 30, 40, 50 anos remete-se e delimita-se abstractamente a datação, pelo se subentende a atemporalidade da situação em si;

XIII. Se a pretensão dos AA. fosse fixar uma data com exactidão teriam referido há 50 anos, e não o fizeram;

XIV. O tribunal de primeira instância, ao referir que o acesso é efectuado pelo caminho em causa "desde sempre"(sublinhado nosso), não o fez por acaso, não cabendo ao digníssimo tribunal de que se recorre presumir o oposto sem elementos bastantes para o fazer, até porque a demais prova indicia precisamente o contrário, quer pela idade dos AA. e RR., quer pela idade do imóvel, quer pelas declarações das testemunhas, etc...;

XV. O termo sempre não pode, tal como refere o douto acórdão de que se recorre, ser visto de forma rígida e dentro daquele lapso temporal, mas sim, e tão só, para além daquele lapso temporal;

XVI. O lapso temporal nos moldes expostos pelos AA., cria a ideia de um espaço longínquo no tempo incapaz de ser determinado, daí a ordem crescente que foi dada à datação precedido do verbo haver;

XVII. De tal descrição (a)temporal resulta o entendimento de que o uso daquela parcela de terreno é feita para além da datação realizada, datação essa impossível de definir com exactidão, e não um uso feito pelos AA., dentro daquele lapso temporal (tal interpretação só seria possível se os AA. tivessem afirmado que o uso e a posse daquele terreno era feito há 50 anos);

XVIII. A imemoriabilidade nos presentes autos existe sendo a interpretação do digníssimo tribunal recorrido, uma interpretação limitada, e com recurso a uma interpretação da decisão da primeira instância assente em deduções (como é exemplo da interpretação que o tribunal de primeira instância faz quando aplica o termo desde sempre);

XIX. Independentemente do supra exposto, não poderia, conforme o fez o Acórdão em crise, sem mais, atribuir o direito ao RR., destes, impossibilitarem o uso de tal caminho aos AA., uma vez que os RR não provaram o direito de propriedade sob tal troço, a que decidiram chamar logradouro, e tão pouco se dignaram provar que tal parcela de terreno é sequer do foro privado e não do domínio público, pelo contrário, de toda a matéria dada por provada, resulta precisamente o inverso (conforme ponto 36. das alegações em supra);

Assim,

XX. É incontornável que o uso que foi feito pelos AA. advém, já de tempos imemoriais, bem como é incontornável que os RR. não fizeram prova do direito de propriedade conforme lhe era exigido, sob o dito caminho conforme, de forma algo abstracta, o requereram com a reconvenção aduzida;

XXI. E não basta, conforme refere o Acórdão em apreço, referir que "os AA, nunca alegaram que o caminho em causa integrasse o domínio público do Município ou freguesia, nomeadamente que foi o órgão competente do poder local que o construiu e cuida da sua manutenção, ou que o mesmo caminho consta do levantamento toponímico dos bens do município ou da freguesia", para sem mais atribuir o direito de propriedade aos RR., e legitima-los na obstrução do caminho a que submetem os AA.;

XXII. Já que ao peticionarem através da reconvenção o reconhecimento do direito de propriedade, o ónus de fazer provar de que de facto o direito de propriedade que alegavam existe recaia sobre os RR. - art. 342.º CC, sendo incontornável que os RR. não fizeram prova de que a parcela de terreno era pública, privada, deles ou de outrem;

XXIII. Na verdade a não pertença de um bem a uma entidade pública não tem consequência necessária que seja privada (Rui Pinto Duarte Curso de Direitos Reias, 3ª Ed, Ed. Principial), e no caso, pelo exposto, muito menos que seja uma parcela privada pertença dos RR.;

XXIV. Ao invés os AA. para além do uso do terreno desde tempos imemoriais, fizerem prova (de acordo com a regra de repartição do ónus da prova contidas no art. 342.º do Código Civil), prova essa assente como provada pelo digníssimo tribunal da primeira instância, que o referido caminho lhes pertence em propriedade;

XXV. Nos termos do artigo 1305.º do CC o proprietário goza do modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, o que o douto acórdão proferido descura;

XXVI. O encravamento do seu prédio limita a todos os níveis esse gozo aos AA;

XXVII. Referindo o art. 1311.º CC o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence;

XXVIII. Nos termos do art. 1287.º do Código Civil a usucapião produz, por efeito da posse, mantida durante um certo tempo, a aquisição do direito real, a cujo exercício ela corresponde. A ususcapião é assim efeito da posse reiterada;

XXIX. A posse no presente caso e atento a matéria dada por provada integra o "corpus" e o "animus";

XXX. Para além de tudo o supra e exposto é igualmente de enorme importância o referido artigo 1383.º do Código Civil;

XXXI. Já que é de tal forma concludente a matéria assente por provada pelo tribunal de primeira instância, que em ultima ratio teria sempre que se considerar que nos termos do artigo 1383.º do Código Civil, se estaria perante uma servidão; sublinhado nosso.

XXXII. O douto Acórdão em crise ainda faz uma breve alusão à possibilidade de ser ver a presente relação controvertida como se de um atravessadouro se tratasse, concluindo porém, que os mesmos foram abolidos à luz do artigo 1383.º do CC;

XXXIII. Porém, deveria ter ido mais além classificado a presente situação como uma servidão à luz do mesmo e já citado artigo já que os atravessadouros são caminhos alternativos, ou meros atalhos, destinados a encurtar distâncias através de prédios particulares e que o Código Civil aboliu desde que não possam ser reconduzidos à categoria de servidão (artigo 1383.º) ou não tenham posse imemorial; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça -26-05-2015, 1.ª Secção, Processo: 22/12.9TCFUN.L1.S1;

XXXIV. Perante esta situação é irrelevante a imemoriabilidade da parcela de terreno ou não;

XXXV. E neste âmbito todos os requisitos da servidão estão concretizados e provados conforme faz assentar a sentença de primeira instância;

Concluem em manifesto lapso - no sentido de dever ser negado provimento ao recurso apresentado pelos recorrentes, mantendo-se a decisão recorrida nos exactos termos em que foi proferida, com as legais consequências.


5. Pelos RR./Recorridos foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela confirmação da decisão apelada.


Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


II – FACTOS

A) - No acórdão recorrido foram inscritos como Provados os seguintes:

1.     O prédio urbano sito em …, composto por casa em fraco estado com 3 divisões no R/C e 3 no primeiro andar, afecto a habitação, confrontando de Norte com Rua, Sul com Rua, Nascente com II e do Poente com Próprio, encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Parâmio sob o n° 88; constando como titular inscrito; HH - cabeça de casal da herança de (cfr. certidão matricial junta com a p.i),

2.     Tal prédio pertence à herança aberta por óbito de HH e ainda não partilhada, tendo sido relacionado sob a verba n.º 9, da relação de bens apresentada junto da Repartição de Finanças de … com o propósito de instruir o competente processo de imposto sucessório (cfr. certidão emitida pelo SF de … junta com a p.i).

3.     O casal formado pela primeira A e marido, HH, por mais de quinze, vinte, trinta e cinquenta anos habitou o prédio referido em 1), nele confeccionou e tomou refeições, dormiu, recebeu a sua correspondência e amigos ou visitas, e do mesmo cuidou, limpando-o e consertando o que necessário fosse, ainda, do mesmo pagou os inerentes impostos, nele sempre praticando, pois, todos os actos apenas permitidos aos proprietários;

4.     O que sucedeu sempre à vista de todas as pessoas de P…, incluindo os réus, sem oposição de ninguém, continuamente, convencidos e cientes de estarem a exercer um direito próprio e sem que molestassem os interesses ou direitos de quem quer que fosse.

5.     O prédio referido em 1) confina pelo sul, com o prédio urbano pertencente aos réus.

6.     O acesso ao rés-do-chão e umas escadas que dão acesso ao primeiro andar do prédio identificado em 1), sempre se fez por um caminho com a qual o mesmo confronta pelo sul, através da qual se acedia ao prédio dos réus.

7.     Caminho esse que tinha o seu início na rua pública que passa a sul do prédio dos RR., com uma configuração incerta, e com uma área de 128,48m2, e com uma largura na sua parte mais estreita de 3, 0m (medidos a partir do muro a poente pertencente ao prédio de BB, autor nos presentes autos, até à esquina da parede da parte sul da casa dos réus), sendo que tal caminho, iniciando-se na rua que passa a sul do prédio dos RR., estende-se ao longo de 9,19m (por 3,Sm de largura) até à casa dos mesmos, continuando para norte até casa dos AA., atingindo a sua largura máxima na extremidade mais a norte, designadamente, com uma largura de 6,40m (medidos a partir do muro a poente pertencente ao prédio de BB, autor nos presentes autos, até ao imóvel pertencente à I.ª autora e herança de HH).

8.     Tal caminho também dava acesso a outros prédios rústicos existentes naquele local, contudo com o passar do tempo, os proprietários dos referidos prédios rústicos foram deixando de a usar e a mesma acabou por ficar a servir apenas os prédios da herança e o dos réus.

9.      Há muitos anos, os réus decidiram vedar o seu prédio, construindo um muro ao longo da rua com que confronta a sul.

10.    Os réus colocaram um portão de ferro na entrada da referida rua.

11.    Desde o referido em 10), o casal formado pelo referido HH e primeira autora e os réus tinham a chave do dito portão e usavam a dita rua livremente e sem qualquer entrave, por parte de quem quer que fosse, para aceder aos seus prédios.

12.    Os réus durante os anos de 2008 e 2009 procederam a obras de melhoramento/reconstrução do seu prédio e com as mesmas destruíram o muro e portão referidos em 9) e 10) e toda a rua que dava acesso ao prédio da primeira autora e da herança.

13.   Os réus procederam à colocação de outro portão, em local ligeiramente diferente, tendo vedado o resto da rua com um muro de cimento.

14.    Os réus não fizeram a entrega da referida chave e mantêm o portão fechado.

15.   Os réus reconstruíram as escadas de acesso ao seu prédio, já existentes.

16.    Os réus impedem os autores de aceder ao seu prédio fazendo uso do acesso que sempre teve, referido em 6) e 7).

17.   O que sucede contra a vontade dos autores e que já levou a primeira autora, por se ver impedida de aceder à rua onde se encontra o contentor do lixo, tivesse depositado, na referida rua, junto ao portão colocado pelos RR uma série de lixo retirado do seu prédio quando no mesmo procedeu a limpezas.

18.    O referido em 17) levou os réus a apresentar queixa contra a autora LL, a qual deu origem ao processo de inquérito na lS2/11.4GCBGC~ O qual foi objecto de despacho de arquivamento em 12/09/2011.

19.    Por volta do ano de 1950, o réu, FF e a sua tia MM, mãe do autor da herança, HH, procederam à partilha verbal da casa pertencente a NN e OO, avós do primeiro e pais da segunda.

20.    A parte constituída por casa de habitação, cozinha, quartos, forno e lojas para animais ficou a pertencer a MM e a parte sul constituída por um quarto, palheiro e lojas para animais ficou a pertencer ao réu.

21.    Os autores tem acesso à casa pelo lado norte, pela rua da ….

22.   O prédio urbano sito na Rua …, freguesia do …, concelho de Bragança, composto de dois pisos e logradouro, a confrontar do Norte com AA, do Sul com Rua Pública, do Nascente com JJ e do Poente com KK, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4…2-P e descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o número 9…2º encontra-se inscrito a favor dos réus, através da Ap. 861 de 05/05/2010, por usucapião.


B) E como não provados os seguintes:

a)      O referido em 11) foi acordado entre os réus e o falecido HH.

b)      Na sequência do referido em 12) a 14) o autor BB dirigiu-se aos RR, exigindo que a rua fosse respeitada na sua configuração e o portão fosse recolocado no exacto local em que existia.

c) Os réus comprometeram-se a respeitar a configuração da rua e a fornecer uma chave do portão que colocariam.

d)     A autora, CC, esposa do segundo autor, em representação de todos os restantes, dirigiu-se às filhas dos réus, PP e QQ para pedir as chaves do portão então colocado, tendo-lhe sido respondido que não dariam qualquer chave, que aquilo era dos pais.

e)      Os réus construíram escadas de acesso ao seu prédio.

f)      As escadas referidas em 15) ocupam parte da rua de acesso ao prédio dos autores e a manterem-se, impedirão os autores de aceder ao seu prédio com carros ou tractores para levar lenha ou o que necessário se torne, ou daí retirar o que necessário se mostre.

g)     A parede meeira serve de marco à divisão dos logradouros de ambas as casas.


III – DIREITO


1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do NCPC, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões da alegação do recorrente, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas, sendo certo que o conhecimento e solução deferidos a uma(s) poderá tornar prejudicada a apreciação de outra(s).

     De tal sorte, e tendo em mente esse conjunto de finais proposições com que os AA./Recorrentes ultimam as respectivas alegações, surge de apurar se aos mesmos deve ser reconhecido ‑com as consequências daí resultantes e consubstanciadas nos demais sub-pedidos por eles deduzidos [destruição pelos RR. do portão, muro e escadas de acesso ao prédio dos mesmos] – o direito de acesso ao seu prédio através do caminho descrito no Ponto n.º 7 dos factos provados, porquanto:

         - Tal caminho é público; ou

         - Os AA. são titulares do direito de propriedade sobre esse caminho; ou ainda

        - Aos AA. assiste um direito real de servidão de passagem sobre esse mesmo caminho.

            Vejamos, pois,


    I – O Caminho dos autos é público

1. Iniciando a nossa apreciação, tomando por referência a linha de explanação seguida no Acórdão recorrido, cumpre começar de referir, a exemplo desse douto aresto, que, na respectiva petição inicial, na sua primitiva versão, os AA./Recorrentes começaram por alegar – no tocante a esse arrogado direito de passagem‑ que tal passagem ocupada pelos RR. é uma rua, pela qual sempre se fez acesso ao prédio destes e dos AA., e que tendo também dado acesso a vários prédios rústicos existentes no local, com o passar do tempo – e por via dos proprietários desses prédios o terem deixado de utilizar – acabou por ficar a servir apenas esses dois prédios.

Mais alegaram que a entrada dessa rua tinha um portão de ferro que os RR. e HH, marido da 1ª A. e autor da herança representada pelos demais AA., acordaram em colocar, tendo todos uma chave para entrar e sair livremente e aceder aos seus prédios. E por esta factualidade se bastaram em vista da caracterização da passagem.

Em 2008/2009 – aduziram ainda – os RR. realizaram obras no seu prédio, colocaram um novo portão em substituição do antigo, a partir daí não permitindo aos AA. o acesso à dita rua.

Posteriormente, e na sequência de um primeiro despacho de aperfeiçoamento – fls. 247 ‑, vieram os AA. mais dizer – fls. 251 e ss ‑ que a mencionada rua, que não integrava quer a fracção dos AA., quer a dos RR., sendo por isso um caminho do domínio público, servindo apenas os AA. e os RR. por se tratar de uma rua sem saída, utilizado por estes e pela sua ascendência e descendência há mais de 15, 20, 30, 50 anos, sendo que como a utilização daquele caminho era quase exclusiva dos RR. e AA., a utilização do mesmo por parte das restantes pessoas de P… acabou por cair em desuso.

Acrescentaram que o rés-do-chão do seu imóvel encontra-se hoje encravado e que não é assim possível aceder à loja de animais.

      Proferido o segundo despacho de aperfeiçoamento – fls. 339 -, os AA. apenas vieram descrever – fls. 349 - , na sua configuração física, o aludido caminho, insistindo posteriormente, em requerimento junto a fls. 365 e ss. – art. 25.º [fls. 366 v.º] que o mesmo “[…] não integrava, quer a fracção dos AA., quer a fracção dos RR. era por isso um caminho do domínio público.”

            Pois bem.


  2. A respeito da dominialidade pública das coisas – e, portanto, com relevo para o caso que ora nos ocupa [caminhos públicos] – o Código Civil de 1867 dispunha no seu art. 380.º, que “[s]ão públicas as coisas naturais ou artificiais apropriadas ou produzidas pelo estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quais é lícito a todos individual ou colectivamente utilizar-se, com as restrições impostas pela lei, ou pelos regulamentos administrativos. Pertencem a esta categoria:

        1.º As estradas, pontes e viadutos construídos e mantidos a expensas públicas municipais e paroquiais;

[…]

      O Código actual, por sua vez, não contém similar disposição, não resultando nem do seu articulado, nem – mais se diga ‑ de outro qualquer diploma ou normativo desde então vigentes, uma qualquer caracterização/definição a respeito da figura “caminho público”.

       Como assim, este assunto foi sendo objecto de longo debate, sobretudo ao nível jurisprudencial, com o marcante confronto entre duas opostas posições.

       Uma, defendendo que deveriam ser tidos como caminhos públicos aqueles que estivessem, desde tempos imemoriais, no uso directo e imediato do público.

        Outra, mais exigente, sustentando que só deveriam considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se acharem no uso directo e imediato do público, fossem produzidos e/ou administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público, e se encontrassem sob a respectiva jurisdição.

       Por Assento de 19.04.1989 – publicado no D.R., Série I, de 2.06.1989 -, hoje com o valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, o STJ, no sentido de pôr termo a tal diferendo decidiu que “[s]ão públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”

      Sucede, no entanto, que - ao invés do perspectivado -, o assim decidido não resolveu a questão, vindo posteriormente aquele Alto Tribunal a concluir[2] pela necessidade de se levar a efeito uma interpretação restritiva desse Assento – no sentido de que “a publicidade dos caminhos exige ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância” - , sob pena de, seguindo à letra o seu dispositivo, também todos os atravessadouros com posse imemorial haverem de ser considerados como caminhos públicos. Ao arrepio, nessa medida, do estuído no art. 1383.º - “[c]onsideram-se abolidos os atravessadouros, por mais antigos que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões.”

     Consoante no Acórdão ora sob censura também se explicita, mais recentemente este mesmo Tribunal Supremo, por seu Acórdão de 28.05.2013[3], veio, em nova inflexão, ressalvar que essa interpretação restritiva do assento de 19.4.1989 pressupõe que os caminhos nele contemplados atravessam propriedades privadas, pelo que “[n]o caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo nenhuma interpretação restritiva do assento.”


   3. Expostas estas considerações, a volvendo ao caso dos autos, sabemos, de relevante, que – Ponto de facto n.º 6 - , o acesso ao rés-do-chão e umas escadas que dão acesso ao 1.º andar do prédio dos AA. sempre se fez por um caminho – ou rua - com o qual o mesmo confronta pelo sul, através do qual também se acedia ao prédio dos RR.. Esse caminho dava ainda acesso a outros prédios rústicos existentes naquele local – Ponto n.º 8 -, sendo, no entanto, que com o passar do tempo, os proprietários destes prédios rústicos foram deixando de o usar, ficando ele apenas a servir os dois antes aludidos prédios.

Demais, sabe-se também – Ponto n.º 9 – que, há muitos anos, os RR., decidindo vedar o seu prédio, construíram um muro ao longo dessa rua ou caminho e – Ponto n.º 10 - colocaram um portão na respectiva entrada. Tendo os antecessores dos AA. e os RR. a chave deste portão, usavam a rua livremente e sem qualquer entrave, por parte de quem quer que fosse – Ponto n.º 11.

Porém, os RR., nos anos de 2008 e 2009, procederam a obras no seu prédio e, com as mesmas, destruíram tal muro e dita rua, e, em substituição do antigo portão, colocaram um novo, do qual não fizeram entrega de qualquer chave aos AA., mantendo-o fechado e impedindo estes últimos de fazer o acesso, que sempre tiveram, ao seu prédio – Pontos n.ºs 11 a 13.

Frente a esta factualidade, e devidamente a ponderando, desde logo se tem de concluir, salvo o muito respeito, que o caminho ou rua em questão nos autos, à semelhança do que no presente ocorre, nunca constituiu um caminho público.

     Na verdade, vimos que o mesmo, desde sempre, apenas era utilizado pelos proprietários dos prédios a que dava acesso, uns, não identificados – titulares dos prédios rústicos seervidos - , e outros, os antecessores dos AA. e, bem assim, os RR..

     Ora, e sendo certo que para se falar de “utilização pública” de um caminho não basta – consoante o já datado Ac. da R.E. de 3.2.2000[4] - , “ a existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um círculo determinado de pessoas”; antes se fazendo mister – agora em consonância com o anotado no Código Civil, coordenado por Ana Prata[5], louvando-se no Acórdão deste Supremo de 13.1.2004 [033A433, Silva Salazar] - “uma generalidade de pessoas, como é a hipótese de uma percentagem elevada dos membros de uma povoação”, logo somos levados a concluir pela impossibilidade de considerar esse ora ajuízado caminho como sendo um caminho “público”.

E assim – anote-se - mesmo fazendo apelo a essa mais recente doutrina desencadeada pelo sobredito Acórdão deste Supremo de 28.05.2013, na medida em que, ponderando esse uso circunscrito às pessoas proprietárias dos prédios por ele servidos - Litigantes e outrora vizinhos - , inviável reputar esse limitado uso como “da população” - conforme tal doutrina - , que o mesmo é dizer, do indiscriminado e lato universo de pessoas ínsito a tal conceito.

Mas assim sendo, como modestamente se nos afigura, temos que, nenhuma outra prova havendo sido efectuada sobre a natureza e propriedade do leito do caminho, nada a respeito desses aspectos se torna possível inferir, verdade como é que, podendo assistir-lhe, ainda assim, a característica de dominialidade pública – mormente, por ter sido construído ou apropriado por entidade de direito público - , menos o não é a possibilidade de constituir, como caminho a catalogar de particular, uma autêntica servidão de passagem - onerando uns prédios em benefício de outros - , ou, até mesmo, um caminho de consortes ou caminho fazendeiro - sendo então o respectivo leito pertença de todos os comproprietários dos terrenos por ele servidos, numa utilização correspondente – na linha do expendido no Ac. do S.T.J. de 17.09.2013[6]“[…] ao exercício de um direito de compropriedade e não de um direito de servidão.”

     Valendo estas considerações por inteiro, quando o caminho era o espaço de trânsito não só para os prédios hoje dos AA. e RR., como para todos os outros a que dava acesso, havendo esta última utilização deixado, entretanto, de se verificar - caída em “desuso” -, subsistindo aqueloutra, diverso não é, segundo cremos, o entendimento a protagonizar. Designadamente, mesmo em face dessa sobrevinda limitada utilização – apenas por antecessores de AA. e RR. – sendo sempre de considerar a possibilidade de verificação de uma dessas duas últimas realidades mencionadas – servidão de passagem ou caminho de consortes.

       E não havendo que considerar alteração deste cenário, alcançou-se o momento da propositura da vertente acção, mesmo após os RR. haverem, durante os anos de 2008/2009, destruído o leito do caminho, um muro que o confinava e colocado um portão, tudo a impedir, como desde então vem ocorrendo, o trânsito dos AA. por ele.


   4. Frente ao exposto, e ainda que por fundamentação algo diferente da vertida no douto Acórdão recorrido – que se filiou, no essencial, na impossibilidade de considerar verificada a imemorialidade da passagem, exigida para conferir a natureza dominial ao caminho [entendimento que, salvo sempre o muito respeito, não vemos como sufragar em face dos comprovados Pontos n.ºs 6 e 16[7]] – força é concluir no sentido desse mesmo aresto.

Ou seja, pela impossibilidade de considerar o caminho em apreço como público – materialidade cujo ónus de comprovação apenas sobre os AA. impendia: art. 342.º, n.º 1, do CC - impondo-se, conseguintemente, denegar os sub-pedidos com esse fundamento deduzidos pelos AA./Recorrentes, notadamente, o reconhecimento do concernente direito a fazerem acesso ao seu prédio através do mesmo e consequente remoção desses obstáculos por parte dos RR. e aqui Recorridos.

           

       II - Os AA. são titulares do direito de propriedade sobre esse caminho

        No que tange a este [alternativo] fundamento com vista à procedência dos aludidos sub-pedidos, preliminarmente, cumpre dizer que jamais o mesmo foi aduzido pelos AA. e aqui Recorrentes, sendo que estes – como narrado supra - , sempre alegaram que o caminho era público, reiterando que ele “[…] não integrava, quer a fracção dos AA., quer a fracção dos RR., era por isso um caminho do domínio público.”

De tal sorte, a adução do enfocado fundamento apenas em sede de recurso, surge como uma questão nova – “ius novarum, nova” –, como tal insusceptível de apreciação por este Tribunal de recurso.

Ainda que assim se não entendendo – nomeadamente, tendo em mente que na sentença apelada, após se invocar o disposto no art. 1311.º do CC e, em consonância, aludir ao regime da acção de reivindicação, se concluiu pelo direito de acesso dos AA. pelo caminho, sem no entanto, salvo o muito respeito, identificar qual o fundamento desse direito -, certo é também que, como não podia deixar de ser, nenhuma factualidade resultou provada susceptível de conduzir a tal conclusivo – ónus que, de novo, apenas sobre os AA. recaía, nos termos do já aludido art. 342.º, n.º 1, do CC - , pelo que também nesta parte tais pretensões dos AA. soçobram.


III - Aos AA. assiste o direito real de servidão de passagem sobre esse mesmo caminho

        Tudo o acabado de explanar em relação ao “item” precedente, quadra-se por igual inteiramente aplicável no que concerne ao ora em atinência.

        Não obstante, constata-se que os AA. chegaram a alegar, no seu primeiro requerimento de correcção à inicial – fls. 252, artigo n.º 19 – “[e]ncontrando-se hoje, o rés-do chão do imóvel dos AA. encravado no que a esse andar diz respeito.”

      Todavia, além de essa alegada materialidade – abstraindo mesmo do respectivo cariz jurídico: cfr. n.º1, do art. 1550.º, do CC - , não poder considerar-se verificada – atente-se, entre o mais, no Ponto n.º 21 - , indúbio surge que sempre a mesma, sem mais, se apresentaria de todo escassa para induzir ao preenchimento do fundamento ora em exame.


      Aqui chegados, conclui-se, pois, pelo completo naufrágio do recurso em presença, pelo que resta concluir com a seguinte


     IV – DECISÃO

    Termos em que, e conquanto que por fundamentação não inteiramente concidente, se nega a revista, mantendo o Acórdão recorrido intocado.

    Custas a cargo dos AA./Recorrentes.

                                                                       *

                                                                       *

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Outubro de 2018


Helder Almeida (Relator)

Oliveira Abreu

Ilídio Sacarrão Martins

________

[1] Rel.: Helder Almeida
   Adjs.: Exm.º Conselheiro Oliveira Abreu e
             Exm.º Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins
[2] Desde logo, pelo Ac. de 10.11.1993, in Col./STJ, Tomo III, p. 135.
[3] Proferido no Proc. n.º 3425/03 e acessível in dgsi.pt.; no mesmo sentido, cfr., ainda, Ac. da R.G. de 22.06.2017, proferido no Proc. n.º 142/14, e acessível no mesmo sítio.
[4] Cfr. Col., Tomo I, p. 273.
[5] Edição de 2017, Almedina, Vol. II, p. 199.
[6] Proferido no Proc. n.º 576/2001[6], in Sumários, 2013, p. 553.
[7] Como visto, nesses Pontos deu-se como provado, respectivamente, que [o] acesso ao rés-do-chão e umas escadas que dão acesso ao primeiro andar do prédio identificado em 1), sempre [sublinhado nosso] se fez por um caminho com o qual o mesmo confronta pelo sul, através do qual se acedia ao prédio dos réus”, e “[o]s réus impedem os autores de aceder ao seu prédio fazendo uso do acesso que sempre [sublinhado nosso] teve, referido em 6) e 7).”
Ora, e tendo em mente o ensinamento dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela – in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., C. Editora, p. 283 – no sentido de que “[…] é imemorial a posse, se os vivos não sabem quando começou; não o sabem por observação directa, nem o sabem pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores”, não vislumbramos como não considerar essa utilização desde sempre feita do caminho, esse acesso que o prédio dos AA. sempre teve, como imemoriais. Não olvidando ainda o decidido por este Supremo – Ac. de 7.10.2017, Proc. n.º 44/1999, E2.S1, in dgsi.pt - , a saber, “[c]onsidera-se imemorial, para efeitos de classificação de um caminho como público, o uso de um caminho que ocorre há mais de 60 anos.”