Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96B453
Nº Convencional: JSTJ00030991
Relator: MARIO CANCELA
Descritores: TRESPASSE
PRESSUPOSTOS
CLIENTELA
Nº do Documento: SJ199611210004532
Data do Acordão: 11/21/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N461 ANO1996 PAG451
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG / DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 762 N2.
Sumário : I - É essencial para que o trespasse exista que se transmita o estabelecimento como unidade económica, como um todo destinado ao fim próprio dessa unidade.
II - A clientela não é elemento constitutivo do estabelecimento.
III - O trespasse não impede, sem mais, que o trespassante abra outro estabelecimento onde comercialize produtos idênticos àqueles que comercializava no estabelecimento trespassado.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de
Justiça:
A pediu através da presente acção que B e marido C fossem condenados a pagar-lhe a quantia de 5000000 escudos, acrescida de juros de mora à taxa de 15 porcento a partir da citação.
Para tanto alegou, em síntese, que por escritura de 13 de Novembro de 1991 os réus lhe trespassaram pelo preço de 10000000 escudos um estabelecimento comercial de confeitaria instalado no Centro Comercial do Campo Alegre da cidade do Porto e denominado "...".
Cinco meses após o trespasse abriram, no entanto, no primeiro andar daquele Centro Comercial um estabelecimento comercial denominado "..." em tudo análogo ao trespassado e publicitaram-no junto da sua antiga clientela.
Após a abertura, a autora viu reduzidas a metade a sua clientela, as suas vendas e as suas receitas e lucros.
Metade da sua clientela passou a frequentar o estabelecimento comercial dos réus e, por isso, o estabelecimento comercial que tomou de trespasse passou a ter um valor comercial de apenas 5000000 escudos.
Ao adquirir por trespasse o estabelecimento dos réus e pelo preço de 10000000 escudos, a autora tinha como pressuposto negocial o volume de vendas e a clientela do estabelecimento, o que, aliás, foi garantido pelos réus na data do trespasse.
Na contestação os réus alegaram, em síntese, que a abertura do seu estabelecimento não fez reduzir a clientela da autora.
Apontam para a eventual redução outros factores designadamente a existência de outros estabelecimentos do mesmo género do da autora e a deterioração dos serviços oferecidos por esta e clientes.
Efectuado o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.
Apelou a autora mas a Relação do Porto confirmou a decisão recorrida.
Recorreu então de novo a autora, para este Supremo
Tribunal, e, pedindo revista, formulou na sua alegação as seguintes conclusões:
1. Com o contrato de trespasse opera-se não a mera transferência de bens avulsos mas sim a transferência global e unitária do estabelecimento, apta a proporcionar lucros;
2. Decorrendo daquele contrato a chamada obrigação de não concorrência com o estabelecimento trespassado;
3. Obrigação acessória que impende sobre os trespassários aqui recorridos, e que obriga a não exercer uma actividade análoga que, pela sua localização, lhe permita manter ou reconquistar a clientela do estabelecimento cedido;
4. Entendimento que é pacífico na doutrina e jurisprudência portuguesa e estrangeira, conforme os ensinamentos dos professores Ferrer Correia, Barbosa de Magalhães, Orlando de Carvalho, entre nós, e em Direito comparado Serra e Ferrari Junior;
5. Pelo que ao abrirem os recorridos, logo após o trespasse, um novo estabelecimento em tudo idêntico ao do recorrente, numa proximidade espacial, considerável e submetida à apreciação do tribunal, e ao adquirirem a clientela que havia sido transmitida pelo contrato de trespasse, violaram aquela obrigação de não concorrência, incorrendo em responsabilidade contratual;
6. Não permitindo os recorridos à recorrente um período de tempo considerado razoável para que consolidasse a clientela do estabelecimento adquirido;
7. Deviam os recorridos ter ficado, nos termos acima descritos, inibidos de, durante um período de tempo determinado, abrir um estabelecimento congénere, considerando certas circunstâncias, nomeadamente a proximidade;
8. Contrariam o comportamento dos recorridos os princípios gerais do direito, máxime o princípio da boa fé;
9. Não obstando ao conhecimento da obrigação de não concorrência a sua não consagração legal expressa;
10. Quanto aos prejuízos sofridos pela recorrente, deverá atender-se aos prejuízos efectivos e potenciais, uma vez que a existência dos mesmos é óbvia e manifestamente de acordo com as regras de experiência comum;
11. Porque não foi possível quantificar tais prejuízos, deveriam os mesmos ser considerados na sentença para ulterior liquidação;
12. Os tribunais de 1. e 2. instância, ao decidir como decidiram, fizeram incorrecta interpretação dos factos e da aplicação do direito, violando, nomeadamente, os artigos 563, 564, 762 n. 2, 798 e 799, todos do Código
Civil, bem como os princípios de direito que regulam o contrato de trespasse.
Os recorridos contra-alegaram, em abono da decisão proferida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
I - Deu a Relação como provados os seguintes factos: a) Por escritura de 13 de Novembro de 1991, os réus trespassaram à autora um estabelecimento comercial de confeitaria instalado na subcave, com entrada pela rua do ..., ns. 1517, 1547 e 1609 e pelo Beco ... , que corresponde à fracção autónoma designada pela letra Z (loja ...), do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado naquela Rua e Beco, freguesia de Lordelo do Douro, Porto, inscrito na matriz sob o artigo 3437, tendo os réus trespassado o referido estabelecimento com todo o seu activo mas livre de passivo e pelo preço de 10000000 escudos, tendo os réus declarado ter recebido da autora a quantia de 5000000 escudos, devendo a parte restante do preço ser paga em 50 prestações de 100000 escudos cada, com vencimento, a 1., no dia 13 de
Dezembro de 1991 e, cada uma das restantes, em igual dia dos meses subsequentes; b) O estabelecimento referido denomina-se "..." e está integrado numa das lojas do Centro Comercial ...; c) Os réus, após terem trespassado o mencionado estabelecimento à autora, abriram no 1. andar do mesmo Centro Comercial um estabelecimento denominado "..."; d) Os réus, neste seu estabelecimento, passaram a prestar o normal serviço e confeitaria e snack-bar e o serviço de refeições económicas; e) Nunca os réus deram a conhecer à autora que iriam abrir estabelecimento idêntico no mesmo local; f) O serviço oferecido aos clientes começou a deteriorar-se após o trespasse, trazendo o decréscimo de clientes; g) A autora tomou a exploração comercial da confeitaria trespassada em 1 de Agosto de 1991; h) Os réus abriram o seu novo estabelecimento, denominado "Confeitaria ...", apenas em 5 de Maio de 1992.
II - Deve entender-se que há trespasse sempre que haja a transferência definitiva e unitária do estabelecimento Comercial. Não se torna, porém, necessário para que haja trespasse que sejam transmitidos todos os elementos que no momento do contrato integram o estabelecimento.
O que é essencial para que o trespasse exista é que se transmita o estabelecimento como unidade económica, como um todo destinado ao fim próprio dessa unidade.
III - Tem-se discutido se é ou não elemento constitutivo do estabelecimento a clientela. A nós, afigura-se-nos que não já que não existe um direito sobre a clientela.
Num sistema de livre concorrência, como é o nosso, não é concebível um direito à clientela.
Qualquer comerciante pode lutar pelo aumento da sua clientela que, como regra, é feita à custa de clientela alheia. Não pode é exercer uma concorrência por meios desonestos e incorrectos.
Quanto mais perfeita for a organização e maior a eficiência dos serviços maior será a clientela.
As pessoas procuram, como regra, estabelecimentos bem organizados, que tenham serviços eficientes e que ponham ao seu dispor os produtos, que desejam, a preços razoáveis.
Daí que, conforme se diz no acórdão recorrido, a clientela seja "algo de movediço que se desloca em função da qualidade do serviço, da forma de actuação do comerciante do ambiente que o circunda, da forma de apresentar os produtos, do seu preço e qualidade, duma enorme variedade de factores de ordem económica, social, sociológica, psicológica, etc.".
A clientela é, em suma, atraída pelo melhor produto ou pelo melhor preço oferecido pelo comerciante ou, até, pela habilidosa publicidade que esse comerciante sabe fazer à sua mercadoria ou estabelecimento.
IV - O trespasse não impede, sem mais, que o trespassante abra outro estabelecimento onde comercialize produtos idênticos aqueles que comercializava no estabelecimento trespassado.
Não poderá é abrir outro estabelecimento se a tal se tiver obrigado no contrato ou, estando, usando meios desonestos e incorrectos.
A lei portuguesa não impõe ao trespassante como obrigação principal ou mesmo acessória a obrigação de não concorrência.
Esta não faz parte do trespasse.
V - Os recorridos não se obrigaram, através do contrato de trespasse a não abrir no Centro Comercial ... um estabelecimento idêntico ao que trespassaram.
Abriram cerca de seis meses após o trespasse outro estabelecimento comercial de pastelaria e snack-bar no primeiro andar do Centro Comercial onde passaram a comercializar produtos idênticos aqueles que eram comercializados no estabelecimento trespassado.
Não está, porém, provado que após a abertura a autora se tenha imediatamente ressentido desse facto ou que a sua clientela tenha sido reduzida a metade ou passado a frequentar o estabelecimento dos réus.
Não se provou, também, que após a abertura a autora passasse a servir, em média, metade das refeições, a vender metade dos cafés ou de pastelaria e bebidas, ou, mesmo, que tenha dispensado qualquer trabalhadora.
Também não se provou que o estabelecimento passasse a produzir metade das receitas e lucros que produzia a quando do trespasse ou que o valor comercial do estabelecimento ficasse reduzido a 5000000 escudos.
Provou-se, no entanto, que o serviço oferecido pela autora aos clientes começou a deteriorar-se após o trespasse trazendo um decréscimo de clientela.
Quer dizer: Não foi a abertura pelos réus do seu novo estabelecimento comercial que trouxe um decréscimo da clientela da autora mas antes, a deterioração dos serviços oferecidos por esta aos seus clientes após o trespasse.
É, assim, de si e não dos réus que a autora tem de queixar-se por ver a clientela do estabelecimento fugir-lhe e por ver reduzidas as vendas e os respectivos lucros.
VI - A obrigação de reparar um dano supõe a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
Deve o facto, lícito ou ilícito causador da obrigação de indemnização ser a causa do dano.
O agente só responde pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada.
Não se tendo os réus obrigado a não abrir outro estabelecimento do género daquele que trespassaram à autora e não estando provado que tenham contribuído por qualquer forma para o decréscimo da clientela da mesma autora ou, até, que alguns clientes desta passassem a ser clientes dos réus, não há qualquer nexo de causalidade entre a abertura do estabelecimento dos réus e o decréscimo da clientela e lucros da autora.
Daí que não exista obrigação de indemnização por parte dos réus.
VII - O artigo 762 do Código Civil dispõe no seu n. 2 que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
À ideia de boa fé estão ligadas as ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento dos negócios jurídicos.
Assim, aquele número dois impede que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a parte tenha confiado.
Não estão provados, na hipótese sub judice, factos donde se possa concluir que os réus, tenham agido de má fé em qualquer momento.
E só a má fé do devedor pode dar lugar a indemnização pelos danos causados ao credor.
Os réus nunca deram à autora conhecimento de que iriam abrir estabelecimento idêntico ao que lhe trespassaram mas daí não se pode concluir que tenha havido má fé da parte deles.
Má fé existiria se eles lhe tivessem dito que não abririam outro estabelecimento comercial e, depois, o abrissem.
VIII - De todo o exposto resulta que não foram violadas no acórdão recorrido as disposições legais citadas pela recorrente.
Assim nega-se a revista, com custas pela mesma
Recorrente.
Lisboa, 21 de Novembro de 1996.
Mário Cancela,
Sampaio de Nóvoa,
Costa Marques.
Decisões Impugnadas:
I - 5. Juízo Cível da Comarca do Porto - 3. Secção da
5. Secção Cível - Processo N. 8209/93 - de 27 de
Fevereiro de 1995;
II - Tribunal da Relação do Porto - 3. Secção - 560/95
- 14 de Março de 1996.