Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3598
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
CASO DE FORÇA MAIOR
VELOCIDADE EXCESSIVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
ILICITUDE
Nº do Documento: SJ200405270035982
Data do Acordão: 05/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 4092/02
Data: 04/08/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Constitui caso de força maior no sentido do artigo 505.º do Código Civil, o acontecimento imprevisível cujo efeito danoso é inevitável tomadas pelo condutor as precauções normalmente exigíveis;
II - Não integra uma situação de força maior nesta acepção, por falta dos caracteres da imprevisibilidade e da inevitabilidade (vis cui resisti non potest), o despiste de automóvel rodando a mais de 80km/h, de noite, em estrada sem iluminação, sob chuva torrencial, devido ao surgimento de poça de água ocupando aproximadamente a metade direita da hemi-faixa de rodagem do veículo;
III - A ilação «velocidade elevada» extraída de factos provados, abstraindo de parâmetros jurídicos - a violência da colisão de automóvel que se despistou da estrada contra uma árvore, ficando totalmente destruído, com graves e extensas lesões traumáticas de passageiro que lhe determinaram a morte no mesmo dia -, constitui indução de facto em sintonia com o mecanismo da presunção judicial delineado no artigo 349.º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", menor, e "B" (1), maior, o primeiro representado pelo pai de ambos, C, residentes em Pousos, Leiria, instauraram no Tribunal desta cidade, em 10 de Outubro de 1996, contra a seguradora D, com sede em Lisboa, acção sumária tendente a fazer valer os seus direitos de indemnização por morte da mãe, E, resultante de acidente de viação.
Alegam que o acidente ocorreu em 1 de Novembro de 1993, pelas 5,30, na E. N. n.º 349-1, Monte Real/Base Aérea n.º 5, devido a despiste e violenta colisão com uma árvore, por culpa exclusiva do respectivo condutor, do automóvel em que viajava a mãe dos autores e outras pessoas, o ligeiro misto RO, pertencente a F, na altura tripulado, com autorização e no interesse deste, por seu filho, G, igualmente falecido em consequência do sinistro.

A responsabilidade civil pelos danos ocasionados mediante esse veículo havia sido transferida para a seguradora ré, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 10012807, do qual resultavam coberturas, obrigatória e facultativa, no total de 100 000 contos, 50 000 cada uma (cfr. docs. a fls. 79/80).

Pedem consequentemente a condenação desta na indemnização global de 28 000 contos - 6 000 contos a título de danos não patrimoniais (metade para cada um dos autores); 6 000 contos pelo dano da morte; 16 000 contos por danos patrimoniais -, acrescida de juros à taxa legal a contar da citação.

Contestada a acção e prosseguindo esta a normal tramitação, veio a ser proferida sentença final, em 28 de Janeiro de 2002, que a julgou procedente, condenando a ré a ressarcir os autores pelo quantitativo integral de 136 000 € (correspondente aproximadamente a 27 200 contos): 40 000 € por dano da morte, 28 000 € a cada um dos autores por outros danos não patrimoniais, 15 000 € ao B e 25 000 € ao A (2), a título de danos patrimoniais, qualquer das verbas acrescida de juros à taxa legal a partir da citação.

Apelou a ré sem êxito, posto que a Relação de Coimbra negou provimento à apelação, confirmando integralmente a sentença.

Do aresto neste sentido proferido, em 8 de Abril de 2003, traz a ré a presente revista, cujo objecto consiste estritamente, como adiante melhor se verá, na questão de saber se o acidente verificado se deveu a facto ilícito e culposo do condutor do automóvel segurado na ré, tanto mais que na alegação e suas conclusões não se impugnam os demais pressupostos da obrigação de indemnizar tipificados designadamente no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, maxime as quantificações das diversas espécies de danos que fluem das decisões das instâncias.
II
A Relação considerou assente ponto por ponto a matéria de facto já dada como provada no Tribunal de Leiria, para a qual, não impugnada e devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das alusões pertinentes.

1. A partir dessa factualidade, à luz do direito aplicável, concluiu a sentença pela verificação de todos os requisitos da responsabilidade civil delineados no citado n.º 1 do artigo 483.º: o facto ilícito, o nexo de imputação subjectiva, danos, o nexo de causalidade.

E no tocante especificamente à ilicitude e à culpa - que estão no cerne da presente revista - considerou que o condutor da viatura tripulava esta imprimindo-lhe uma velocidade excessiva face às circunstâncias existentes, em violação do n.º 1 do artigo 7.º do Código da Estrada de 1954, na redacção do Decreto-Lei n.º 270/92, de 30 de Novembro, vigente à data do acidente, do seguinte teor:
«O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições atmosféricas, à intensidade do tráfego e quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.»
Ora, recorta neste conspecto a sentença, de entre os factos provados, que na altura do sinistro, às 5, 30 da madrugada, chovia torrencialmente, e no local, que não dispunha de iluminação pública, o pavimento da estrada encontrava-se bastante molhado e escorregadio.
De modo que, ao quilómetro 1,500, na localidade de Segodim, o condutor, rodando a mais de 80 km à hora, perdeu o controlo da viatura ao passar sobre uma poça de água que ocupava 1,7m da largura da sua metade da faixa de rodagem e se prolongava pela berma direita ao longo da via e da berma, num comprimento de 17m, a qual determinou o irremediável despiste do automóvel, pois os rodados deste ao entrarem na água, perderam a aderência ao solo.

No sentido de um melhor esclarecimento da situação descrita, permita-se que acrescentemos, em aparte, ter-se igualmente provado o seguinte: o local onde ocorreu o acidente é uma recta, com piso betuminoso, em razoável estado de conservação, tendo a faixa de rodagem 6,10m de largura com bermas de 0,80m cada uma; o veículo entrou em despiste para o lado direito atento o seu sentido de marcha, saiu da faixa de rodagem, e, invadindo a berma, descreveu um semi-círculo e veio a colidir com a parte lateral esquerda numa árvore de grandes dimensões, ficando totalmente destruído; a traseira quedou atravessada na estrada e voltada para o lado de Leiria; no local formara-se um extenso lençol de água que, em virtude da chuva torrencial, se confundia com o piso molhado e o condutor só se apercebeu dele quando o automóvel iniciava a sua travessia.

Ainda, em consequência do embate e dada a violência do mesmo, a mãe dos autores sofreu as lesões que foram causa directa e necessária da sua morte, descritas no relatório da autópsia de fls. 26 e seguintes.

Neste relatório exararam, com efeito, os peritos a descrição que ora parcialmente se transcreve: «Encontramos lesões importantes a nível torácico e abdominal. A nível torácico verificamos a existência de fractura múltipla do esterno; fracturas dos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º 9.º e 10.º arcos costais esquerdos pelo terço anterior e posterior; rotura pericárdica; rotura do ventrículo esquerdo com volumoso hemomediastino e hemotórax à esquerda. A nível abdominal (...) esfacelo do baço; fracturas múltiplas do fígado (...) (...) A morte de E (...) foi devida às graves lesões torácicas, pulmonares, cardíacas e abdominais atrás descritas. Tais lesões denotam ter sido produzidas por objecto contundente ou actuando como tal e foram causa adequada de morte violenta.»

Nos termos expostos, a sentença concluiu, portanto, que G conduzia a uma velocidade inadequada, por excessiva, às condições atmosféricas, que não lhe permitiu controlar o veículo ao atravessar o lençol de água.

E, assim, a sua conduta, além de ilícita porquanto violadora das normas de trânsito referentes à velocidade, foi igualmente culposa a título de negligência, por omissão dos cuidados previstos nessa normação, podendo e devendo além disso agir de outro modo em harmonia com a diligência de um bonus pater familiae (artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil), mormente adaptando a condução às circunstâncias atmosféricas sem comprometer a segurança dos ocupantes da viatura.

Não é diligente - pondera o Tribunal de Leiria - aquele que «imprime uma velocidade superior a 80 km hora à viatura, numa noite em que chove torrencialmente, em local em que não há iluminação pública, o piso se encontra escorregadio e é absolutamente normal e previsível que, nessas circunstâncias, se formem lençóis de água na estrada que, conjugados com a referida velocidade, impeçam o controlo da viatura».

Daí que na 1.ª instância se tenha imputado a eclosão do sinistro, com a extensão e a gravidade dos danos dele resultantes, exclusivamente a culpa efectiva do condutor do automóvel seguro na ré, sendo esta, por conseguinte, condenada a indemnizá-los aos autores no termos introdutoriamente referidos.

2. A Relação de Coimbra confirmou a sentença na íntegra, quer quanto à decisão propriamente dita, quer no tocante aos fundamentos que vêm de se esboçar, cuja análise a levou igualmente à conclusão de que «o condutor do veículo agiu com culpa exclusiva - e efectiva - na produção do embate, recaindo, portanto, sobre a ré seguradora o correspondente dever de indemnizar».

A apelação da ré atacava, aliás, a sentença em dois aspectos que por interessarem ao objecto da revista importa evidenciar.

O primeiro concerne à impugnação da decisão de facto sobre o quesito 2.º (3), pelo qual se considerou provado que o automóvel «seguia a mais de 80 km por hora», e quanto aos quesitos 3.º, 4.º e 5.º (4) em confronto com os quesitos 35.º e 36.º (5), por contradição entre as respostas destes e daqueles.

O segundo aspecto relaciona-se com a tese da ré segundo a qual inexiste responsabilidade do condutor pelo facto de o acidente se ter ficado a dever a caso de força maior, ou seja, ao imprevisível aparecimento da poça ou lençol de água na estrada que «determinou o irremediável despiste do RO», como consta dos factos provados.

Pois bem. No tocante ao quesito 2.º pretendia a ré apelante que o sentido dos depoimentos gravados em audiência impunha considerar-se o mesmo não provado. Mas a Relação, analisando a prova testemunhal referenciada por ambas as partes aos suportes magnéticos, considerou resultar da mesma que o veículo RO circulava efectivamente a mais de 80 km/h, na altura do acidente, reputando «correcta a resposta dada ao mencionado quesito».

E acrescentou argumentativamente que à mesma conclusão se chegaria ponderando certas das circunstâncias em que se verificou o sinistro. O embate com a parte lateral esquerda numa árvore, ocasionando a destruição total do veículo, bem como as extensas e graves lesões no condutor e na mãe dos autores que lhes determinaram directamente a morte no próprio dia, tudo isso permitiria também afirmar, segundo a experiência comum, por presunção judicial (artigo 351.º do Código Civil), «que a velocidade do veículo era muito elevada, superior a 80 km/h».

Quanto por seu turno às respostas aos quesitos 3.º, 4.º e 5.º, de um lado, e aos quesitos 35.º e 36.º, de outro, a contradição, se bem se interpreta, residiria em que as primeiras podiam apontar para uma relação de comissão, e as segundas para uma relação esporádica de comodato mantendo-se o interesse moral do dono do veículo e sem prejuízo da direcção efectiva deste.

Encontrando-se, em todo o caso, apurada a culpa efectiva do condutor, a eventual contradição arguida seria sempre irrelevante na perspectiva da responsabilidade da ré seguradora.

Finalmente, no tocante à alegada situação de força maior, considerou o acórdão recorrido que em condições de circulação sob chuva torrencial, como no caso sub iudicio, é de prever a formação de poças ou lençóis de água na estrada, de maior ou menor extensão, mesmo em piso bem conservado, pelo que o aparecimento da acumulação de água onde se produziu o despiste a que se referem os autos não integra o conceito de «caso de força maior», no sentido de «acontecimento imprevisível, cujo efeito danoso é inevitável com as precauções normalmente exigidas ao condutor».

3. Da decisão dissente a ré mediante a presente revista, na qual reedita de algum modo as mesmas questões, concluindo a alegação da forma seguinte:

3.1. «A velocidade instantânea a que seguia o veículo seguro no momento do embate não pode ser provada por via de presunção judicial;

3.2. «A complexidade da dinâmica do acidente de viação não é consentânea com um raciocínio expendido pelo douto Tribunal a quo;

3.3. «A contradição apontada na resposta aos quesitos 3.º, 4.º e 5.º, e 33.º e 34.º. (6) é relevante a todos os níveis, quer ao nível do limite da indemnização (artigo 508.° do Código Civil), quer quanto ao facto do artigo 504.º exigir à data dos factos a prova da culpa efectiva do condutor;

3.4. «O acidente dos autos ocorre por causa exterior à vontade do condutor, atenta a extraordinária dimensão do lençol de água e bem assim pela impossibilidade provada de se poder prever a sua existência e dimensão;

3.5. «Não está provado nos autos qualquer noção, ou quantitativo do que deveria ser uma velocidade adequada para as circunstâncias atmosféricas e de aderência de piso, que pudesse caracterizar um comportamento padrão exigível ao condutor do RO;

3.6. «Verifica-se a violação do disposto nos artigos 7.°, n.° 1, do Código da Estrada, e 500.°, 504.°, 503.° e 483.° do Código Civil.»

4. Os autores contra-alegam, pronunciando-se pela confirmação do aresto em recurso.
III
Coligidos de conformidade com o exposto os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.

1. Consistindo o objecto da revista estritamente na questão de saber se o acidente em apreço se deveu a facto ilícito e culposo do condutor do automóvel segurado na ré, como se adiantou no início, considera-se que a mesma deve a todas as luzes receber resposta afirmativa.

E isto pelas razões concordes invocadas nas decisões das instâncias, que nuclearmente se subscrevem.

O facto foi ilícito, desde logo nos termos da segunda parte do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, por violação da «norma de protecção» consubstanciada no n.º 1 do artigo 7.º do Código da Estrada, oportunamente transcrito, segundo o qual deve o condutor regular e adaptar a velocidade ao estado da via e às condições atmosféricas, nomeadamente, de modo a poder realizar com segurança as manobras que se tornem necessárias.

Em desrespeito, todavia, da injunção assim expressa no preceito, o malogrado G conduzia o automóvel - de noite, numa estrada sem iluminação, cujo piso se apresentava bastante molhado e escorregadio, e sob chuva torrencial - a mais de 80 km/h, velocidade manifestamente inadequada, por excessiva, ao estado da via e às condições atmosféricas no momento.

Tanto assim que, ao atravessar uma poça de água que se formara na estrada, em lugar de se desviar ou parar com segurança, perdeu o controlo da viatura e entrou em despiste rodopiando para fora da faixa de rodagem onde foi embater numa árvore, ocasionando a morte da mãe dos autores.

Também por este lado foi consequentemente antijurídica a conduta de G, redundando na violação ilícita de um direito absoluto prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 483.º, o direito à vida da infortunada ocupante do veículo (7).
Omitindo, por consequência, os deveres objectivos de cuidado prescritos no citado normativo do Código da Estrada, e o grau de prudência exigível nas circunstâncias segundo o artigo 487.º do Código Civil, a conduta de G foi outrossim culposa sob a forma de negligência.

2. Objecta a recorrente, em suma, que não está minimamente provada nos autos a velocidade do veículo, nem esta pode ser provada por presunção judicial.

O Tribunal Colectivo considerou, ao invés, provado, como sabemos, em resposta ao quesito 2.º, que o automóvel rodava a mais de 80 km/h. A ré impugnou a decisão e a Relação de Coimbra, reapreciando, por seu turno, a prova adrede produzida em audiência, pronunciou-se pela correcção do julgado.

Ora, nos termos do artigo 722.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, esta decisão de facto não pode ser censurada pelo tribunal de revista e devia por isso ter sido acatada pela ré recorrente, a qual de resto não desconhece as razões da pressa que animava o condutor e seus companheiros, ventiladas nos registos magnéticos da prova.

É certo que a ré se insurge contra a prova da velocidade mediante presunção judicial na Relação, e o ponto poderia consubstanciar matéria de direito relacionada com a aplicação do artigo 349.º do Código Civil. Mas nem neste plano, salvo o devido respeito, lhe assiste razão alguma.

Na verdade, o acórdão recorrido reapreciou e corroborou a decisão de facto do quesito 2.º mediante o reexame da prova testemunhal registada em audiência, sendo este, por conseguinte, o fundamento de rejeição da impugnação da ré.

Nada, porém, impedia os Ex.mos Desembargadores da Relação de Coimbra, se bem pensamos, de evidenciar a título argumentativo, e visando o escopo de cabal convicção das partes, a sugestiva e ilustrativa violência da colisão do veículo contra a árvore, revelada pelo estado de completa destruição do mesmo e pela extensão e gravidade das lesões traumáticas que acima se descreveram quanto à mãe dos autores.

Estes dados factuais permitiam também confirmar de modo adjuvante, segundo a experiência comum, ser muito elevada - quiçá superior a 80 km/h, na quantificação do Tribunal Colectivo - a velocidade que animava a viatura.

Observar-se-á ademais, nessa tónica, que assumindo a ilação velocidade elevada natureza factual, porquanto abstraída de parâmetros de juridicidade, a presunção nesse sentido extraída não deixa de ser legítima em face do artigo 349.º, quando se cogite ter-se operado a partir de certos factos uma indução de facto, em sintonia, por conseguinte, com o mecanismo delineado no preceito. E a extensão explicativa à quantificação de mais de 80 km/h, aliás provada mercê da prova testemunhal, traduziria uma vez mais decisão de facto insindicável pelo tribunal da revista.

3. No tocante, por sua vez, à pretensa contradição entre as respostas aos quesitos 3.º, 4,º e 5.º e as respostas aos quesitos 35.º e 36.º, entendemos serem as mesmas factualmente conciliáveis. O elemento autorização é irrecusavelmente comum aos dois grupos de respostas, e o mesmo se dirá do elemento interesse, entendido na acepção de interesse moral, bem como das ordens do dono do veículo, concebíveis como instruções acerca do uso do automóvel e do exercício e termo do comodato.

A antinomia pretendida pela ré apenas poderia verificar-se ao nível das consequências jurídicas a extrair de um e outro grupo de respostas. Contudo, nenhum efeito jurídico se coligou às mesmas nas instâncias, quer em sede de responsabilidade objectiva, quer de culpa presumida, posto que ambas as decisões se estribaram na culpa efectiva do condutor - e na utilização não abusiva do veículo, evidentemente, autorizada que estava pelo dono. E tanto bastou em conjunção com os danos para fundamentar a responsabilidade da ré emergente do seguro obrigatório.

4. Por fim, a recorrente carece igualmente de razão ao sustentar a exclusão da responsabilidade apelando para o caso de força maior a que alude o artigo 505.º do Código Civil - «causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo» - que no seu ponto de vista se traduziu no surgimento, imprevisível para o condutor, da poça ou lençol de água que se formara na estrada, dando origem ao despiste do automóvel.

Entende-se, com efeito, por caso de força maior «o acontecimento imprevisível, cujo efeito danoso é inevitável com as precauções normalmente exigíveis do condutor» (8). Um acontecimento que, parafraseando outra noção de origem germânica, «segundo a compreensão e a experiência humanas, é imprevisível, que não pode evitar-se ou tornar-se inócuo», «tão-pouco pela maior diligência que racionalmente pode esperar-se dadas as circunstâncias» (9).

No sentido, dir-se-ia, de um mais apurada densificação do conceito de força maior, distinguem os autores a respeito do artigo 505.º - força maior estranha ao funcionamento do veículo, portanto - entre os acidentes resultantes de força maior e de caso fortuito. Este, escreve-se, consiste em «qualquer risco inerente ao funcionamento das coisas ou maquinismos que o agente utiliza (um pneu que rebenta, a direcção que quebra, a doença súbita do condutor, etc.), enquanto a força maior é uma força da natureza estranha a essas coisas ou maquinismos (uma faísca eléctrica, um ciclone, etc.)» (10).

Como quer que seja, o preceito visa «a exclusão da responsabilidade objectiva», e, por conseguinte, «havendo culpa do detentor ou condutor do veículo, o caso de força maior que com ela porventura concorra não evita a sua responsabilidade» (11).

Ora, nesta perspectiva, provado exactamente que o acidente é imputável a culpa efectiva do condutor, queda, por conseguinte, descontextualizada e inoperante no sentido da exclusão da responsabilidade a esse título, a alegação pela ré de força maior concorrente.

Abstraia-se, todavia, por momentos desta visão das coisas.
Imprevisibilidade e, adoptadas as precauções e diligência exigíveis nas circunstâncias ocorrentes, inevitabilidade - «uma particular inevitabilidade, vis cui resisti non potest», de que fala também a doutrina italiana (12) -, constituem como notámos os caracteres nucleares da força maior.

Contudo, a matéria de facto provada infirma com elevado grau de persuasão a sua verificação na situação dos autos.

Como a Relação judiciosamente ponderou, em condições de circulação sob chuva torrencial é de prever a formação de poças ou lençóis de água na estrada, de maior ou menor extensão, mesmo em piso bem conservado, pelo que o aparecimento da acumulação de água onde se produziu o despiste não se subsume ao conceito de «caso de força maior» definido pelos aludidos atributos.

A recorrente contrapõe que se tratava de um lençol de água de «enorme extensão» e «extraordinária dimensão», o qual, nessa amplitude imprevisível, se confundia ademais com o piso num local da via não iluminado, tornando-se imperceptível para o condutor, como de resto é da experiência comum em semelhantes circunstâncias.

Na realidade, porém, a configuração da poça ou lençol de água que se deparou ao condutor naquela noite de chuva torrencial parece longe da imagem representada pela ré.

Provou-se que a faixa de rodagem tinha 6,10m de largura - sem contar com as bermas, de 0,80m cada uma -, ocupando a poça 1,7m da largura da hemi-faixa (3,05m) por onde circulava o automóvel, a contar da sua berma direita (cfr. supra, II, 1.). Quer dizer, a poça ou lençol de água ocupava apenas 27% de toda a largura da faixa de rodagem, e pouco mais da metade direita da hemi-faixa por onde rodava o veículo, deixando ainda livre 1, 35m da mesma. E o seu comprimento de 17m mal excedia metade do alcance dos médios dos faróis da viatura.

Neste circunstancialismo, bem poderia pensar-se que os rodados esquerdos do veículo nem sequer chegaram a passar sobre a toalha de água. E se a velocidade tivesse sido adaptada ao estado do piso, bastante molhado e escorregadio, e às condições atmosféricas de chuva torrencial, bem como de falta de iluminação da estrada, provavelmente uma ligeira manobra de direcção para a esquerda teria permitido ao automóvel furtar-se incólume ao obstáculo.

5. Improcedendo por todo o exposto as conclusões da alegação, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Custas pela ré recorrente (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 27 de Maio de 2004
Lucas Coelho
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
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(1) Que litigam com apoio judiciário oportunamente concedido (fls.100).
(2) E não ...., como decerto por lapsus calami se escreveu na decisão, bem se vendo da certidão de nascimento a fls. 36 que o autor maior tem o nome de A.
(3) Do seguinte teor:«O RO seguia a mais de 100 km/hora?
(4) Com as seguintes respostas, tal como constam das decisões das instâncias: 3.º «O condutor do RO, no momento do acidente, utilizava-o com autorização do proprietário»; 4.º «e também no seu interesse»; 5.º «e sob as suas ordens.»
(5) Cujas respostas, referido-se ao mesmo condutor, igualmente se reproduzem: 35.º «e havia pedido o RO ao pai»; 36.º «como habitualmente fazia, com o intuito de sair com os seus amigos.»
(6) Aludindo-se aos quesitos 33.º e 34.º, trata-se, por lapso manifesto, dos quesitos 35.º e 36.º, um erro também detectável no acórdão da Relação, devido porventura à circunstância de, nos elencos da matéria de facto provada constantes, quer da sentença, quer do acórdão, as respostas a estes quesitos aparecerem sequencialmente referenciadas sob os n.os 33 e 34. Cfr. as respostas aos cinco quesitos supra, II, 2., e notas antecedentes.
(7) Acerca do sentido e da recíproca autonomia das duas modalidades de ilicitude delineadas no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, cfr., mais desenvolvidamente, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Maio de 2003, na revista n.º 535/03, 2.ª Secção.
(8) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª edição, revista e actualizada (Reimpressão), Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2003, págs. 681/982.
(9) Enneccerus/Nipperdey, apud Rodrigues Bastos, Das Obrigações em Geral, II, Lisboa, Petrony, 1972, pág. 159.
(10) Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, Outubro de 2001, págs. 586/587, citando a propósito (nota 1, da pág. 586) o acórdão deste Supremo Tribunal, de 25 de Fevereiro de 1982 («Boletim do Ministério da Justiça», n.º 314, págs. 298 e segs.), onde se decidiu não ser caso de força maior neste sentido a derrapagem devida a óleo derramado na estrada e a Anotação de Antunes Varela a esse aresto, «Revista de Legislação e de Jurisprudência», Ano 118.º, págs. 159 e seg., 205 e segs., especialmente 208 e segs., segundo a qual o mesmo entendimento se aplica, «obviamente, quanto à derrapagem ocasionada por qualquer outra substância viscosa, simples humidade, gelo, neve, geada ou areia».
(11) Almeida Costa, ibidem.
(12) Alberto Trabucchi, Instituzioni di Diritto Civile, 41.ª, edição, a cura di Giuseppe Trabucchi, CEDAM, Padova, 2004, pág. 908.