Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1908
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PAULO SÁ
Descritores: CONTENCIOSO DA NACIONALIDADE
AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
LIGAÇÃO EFECTIVA À COMUNIDADE NACIONAL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ20060612019081
Data do Acordão: 09/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário :
I - A dúvida ou a falta de certeza sobre a verificação do requisito de efectiva ligação à comunidade nacional justifica a denegação da nacionalidade portuguesa.
II - O casamento com cidadão português, único facto em que a requerente, titular de passaporte brasileiro, baseou o seu pedido para aquisição da nacionalidade portuguesa não pode, só por si, ser havido como elemento constitutivo de ligação da interessada à comunidade nacional.
III - Merece algum relevo a existência de uma filha com nacionalidade portuguesa, nascida na Suíça, onde actualmente reside o agregado familiar. Mas esse facto também não é suficiente para demonstrar a ligação efectiva da requerente à comunidade nacional.
IV - Igualmente irrelevante é o facto de a requerente falar português, uma vez que é a sua língua mãe, ou o facto de o seu passaporte possuir diversos carimbos de entrada e saída em aeroportos portugueses, por não se saber se estão relacionados com meras passagens ou estadias mais ou menos prolongadas.
V - O facto de o marido português estar a construir uma casa em terrenos de que é nu-proprietário não é indício suficiente de que a requerente planeia radicar-se em Portugal, podendo a casa em construção servir como mera residência de férias.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


O Ministério Público intentou, em 3 de Outubro de 2005, acção de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa requerida por AA

Citada a requerente, não contestou nem apresentou outros documentos, para além dos já oferecidos no processo da Conservatória.

Tal acção veio a ser julgada improcedente por acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Fevereiro de 2006.

Inconformado, veio o M.º P.º interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:

I. Não basta para instruir e deferir o pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa, a vontade manifestada de adquirir essa nacionalidade, o casamento com um cidadão português, ter uma filha desse casamento e o marido ter adquirido por partilha bens imobiliários em Portugal e ter licença de obras de construção;
II. O tribunal desconhece, dada a omissão de prova, no caso em apreço, em concreto, as vivências, os conhecimentos e as experiências do modo de vida da Requerida em Portugal e com os portugueses, a fim de se poder apurar se existe, já consolidada, uma integração efectiva na comunidade nacional;
III. O tribunal desconhece, dada a omissão de prova, que tempo a Requerida viveu em Portugal para se poder concluir pelo enraizamento na cultura portuguesa, nos costumes, usos e tradições do povo português;
IV. O tribunal desconhece, por omissão de prova, quais as regiões e cidades que a Requerida conhece, quais as vivências que tem vivido em agremiações ou associações da comunidade portuguesa de modo a revelar uma ligação efectiva a Portugal e aos portugueses;
V, A Requerida sendo brasileira, tem vivido regular e habitualmente na Suiça, onde casou e onde nasceu a filha;
VI. No caso dos autos, por manifesta omissão de prova, a Requerida não comprovou, de modo suficiente e convincente, ter preenchido o requisito da inserção na comunidade nacional, como um dado adquirido, vivido e vivenciado com os portugueses, e não como uma mera intenção ou um desejo a realizar no futuro, como lhe competia nos termos do artigo 22.º,n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 322/82 de 12 de Agosto, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 253/94, de 10 de Outubro.

Pede o provimento do recurso com a consequente revogação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos.

Decidindo:

AA, de nacionalidade brasileira, natural de Escada, Estado de Pernambuco, Brasil, residente habitualmente em ...., Suiça, prestou, em 19 de Outubro de 2004, na chancelaria do Consulado-Geral de Portugal em Zurique, declaração para aquisição da nacionalidade portuguesa, nos termos do art.º 3.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro com base no casamento que contraiu, em 21 de Março de 2001, na Suiça, com o nacional português BB, natural da freguesia de ...., concelho de Viseu.

No auto e para fins do disposto na alínea a) do art.º 9.º da Lei n.º 37/81 referida, a requerente declarou «que está efectivamente ligada à comunidade portuguesa: Tem uma filha do casal, CC cujo registo foi lavrado neste Consulado-Geral sob o n.º 518/2003; vai a Portugal todos os anos onde tem casa de habitação própria e onde pensam fixar residência dentro de pouco tempo».

Nos termos do art.º 22.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 322/82, de 12 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 253/94, de 20 de Outubro, compete aos interessados «comprovar por meio documental, testemunhal ou qualquer outro legalmente admissível a ligação efectiva à comunidade nacional» sob pena de, não o fazendo, tal omissão constituir fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade nos termos do artigo 9.º, alínea a), da Lei n.º 37/81, citada, na redacção introduzida pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto.

A Relação considerou como provados os seguintes factos:

1. Em 19 de Outubro de 2004, na Chancelaria do Consulado de Portugal, em Zurique, a R. prestou declaração para a aquisição da nacionalidade portuguesa, com base no casamento que contraiu, a 21 de Março de 2001, com o nacional português BB;
2. Com base em tal declaração foi instaurado, na Conservatória dos Registos Centrais, o processo n.º 00.000/00-000-0, onde se constatou a existência de facto impeditivo da pretensão da R., motivo pelo qual o registo em questão não chegou a ser lavrado;
3. No auto declarou “que está efectivamente ligada à comunidade portuguesa: tem uma filha do casal CC, cujo registo foi lavrado neste Consulado-Geral sob o n.º 518/2003; vai a Portugal todos os anos onde tem casa de habitação própria e onde pensam fixar residência dentro de pouco tempo”.
4. Instada a carrear ao processo demais prova, a R. juntou entre outros os seguintes documentos: fotocópias simples de descrições prediais de prédios adquiridos pelo marido por partilha e documento bancário, fotocópia do passaporte e documento relativo ao nascimento da filha do casal;
5. O casamento da R. ocorreu no Registo Civil de Opfikon, Suiça, a 21 de Março de 2001;
6. A filha CC nasceu a 1 de Junho de 2003 em ..., Suiça;
7. É nesse país que residem;
8. O marido da Ré é titular do alvará de construção – para moradia familiar – emitida pela Câmara Municipal de Viseu a 9 de Agosto de 2004;
9. Nos certificados de registo criminal da Ré nada consta;
10. A R. é titular de passaporte brasileiro, com alguns carimbos de aeroportos de Lisboa e Porto;

Serão tais elementos, conjugados com os demais que resultam do processo, suficientes para comprovar que a requerente tem ligação efectiva à comunidade nacional?

Previamente diga-se que para que a oposição à aquisição da nacionalidade venha a proceder não se exige a prova de que não há ligação efectiva à comunidade nacional, bastando a dúvida ou a falta de certeza sobre a sua verificação.

Ora, o casamento, facto que baseou o invocado direito, não pode ser havido, só por si, como elemento constitutivo de ligação da interessada à comunidade nacional, sob pena de ser inútil o preceito contido na alínea a), do art.º 9 da Lei n.º 37/81, cujo teor é o seguinte:

“Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:
a) A inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional;
b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa;
c) O exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro.”

Se se entendesse de outro modo, ficaria neutralizado o direito do Estado Português de deduzir oposição à aquisição da nacionalidade por esta via.

Para prova da alegada ligação efectiva à comunidade portuguesa não juntou a requerente qualquer documento.

Instada a carrear ao processo a demais prova que reputasse com interesse e que seja demonstrativa da sua ligação efectiva à comunidade nacional portuguesa, juntou entre outros os seguintes documentos: fotocópias simples de descrições prediais de prédios adquiridos pelo marido por partilha e documento bancário, fotocópia do passaporte e documento relativo ao nascimento da filha do casal.

Merecerá algum relevo a existência de uma filha com nacionalidade portuguesa, nascida em Junho de 2003, na Suiça, onde actualmente residem, tendo em vista salvaguardar o princípio da unidade da nacionalidade familiar. No entanto, esse facto, desprovido de outras provas, não será meio suficiente para demonstrar a ligação efectiva da requerente à comunidade nacional.

Nem se vê que a não atribuição da nacionalidade portuguesa à requerente possa trazer graves problemas ao agregado familiar de que pai e filha gozam da referida nacionalidade. No contexto da emigração portuguesa é frequente a coexistência de diversas nacionalidades (muitas vezes o emigrante português casa com nacionais do país onde trabalha ou com emigrantes de outras nacionalidades que aí trabalham), sem que ocorra uma ligação forte do conjugue não português à comunidade do outro.

Igualmente irrelevante é o facto de a requerente falar português, uma vez que é a sua língua-mãe.

Do mesmo modo não há qualquer elemento de que a requerente planeie radicar-se em Portugal e o facto de o marido português estar a construir uma casa em terrenos de que é nu proprietário (mas sobre os quais incide usufruto a favor da mãe) não é indiciador de qualquer intenção desse jaez. São aos milhares as casas de emigrantes construídas principalmente como residências de férias.

Sem significado é também o facto de o passaporte da requerente possuir diversos carimbos de entrada e saída em aeroportos portugueses. Não há qualquer prova de que tais passagens originaram estadias curtas ou prolongadas em Portugal e não meras passagens ou estadias sem qualquer relevo.

Como é consabido, vem-se fixando jurisprudência no sentido de que a ligação à comunidade nacional terá por base o domicílio, a língua, os aspectos culturais, sociais, familiares, económico-profissionais, de amizade ou outros que traduzam a ideia de um sentimento de pertença a essa comunidade (ver a propósito, entre outros, os Acórdãos de 12/01/99 do S.T.J., no proc.7191/97-1.ª Secção, de 15.02.2000, no proc. n.º 68/00-6.ª Secção, de 01/10/02, no proc. n.º 4190/02-7.ª Secção, de 20/06/02 no proc. n.º 4416/02-6.ª Secção, de 2 de Julho de 2002, no proc. n.º 3404/02, 1.ª Secção, de 2 de Novembro de 2004, proc. n.º 3483/04- 6.ª Secção, de 13.1.2005, no proc. n.º 4534/04-7.ª Secção e de 19.1.2006, proc. n.º 3192/05-2.ª Secção)

Como se afirma no acórdão do STJ, de 7 de Junho de 2005,proferido no recurso nº 1550/05, da 6ª Secção, “a prova da ligação efectiva à comunidade nacional ancora--se num conjunto de circunstâncias objectivas, como a residência duradoura em Portugal, o conhecimento e vivência dos nossos costumes e tradições, da língua portuguesa, falada em família e entre amigos, a existência de relações de amizade e profissionais com portugueses, bem como os laços económicos com Portugal e, em geral, as que permitem constatar uma identificação com o modo de vida e de ser dos portugueses, sem olvidar a participação em realizações ou projectos que ultrapassando a vertente individual ou familiar, representem a comunhão de interesses, ideias ou objectivos de desenvolvimento e progresso da nossa comunidade”.

“A nacionalidade é resultante da conquista de um povo, que se organiza em Nação--Estado e alcança a sua identidade no percurso histórico desse mesmo povo.
Por isso, o estrangeiro que pretende adquirir a nacionalidade portuguesa terá de demonstrar que conhece a história de Portugal e os valores da sua cultura, que neles se revê e com ele se identifica e que pretende participar positivamente no futuro deste país.

A nacionalidade portuguesa só deve ser concedida a quem tenha um sentimento de unidade com a comunidade nacional, em termos de comunhão da mesma consciência nacional, impondo a lei uma ligação efectiva, já existente, à comunidade nacional, e não se satisfazendo com uma simples intenção ou possibilidade de a constituir a prazo”.

A requerente desinteressou-se de apresentar provas para atestar a sua identificação com a comunidade portuguesa: participação em manifestações culturais da comunidade portuguesa na Suiça ou em Portugal, envolvimento social com portugueses e participação em associações de portugueses, demonstração de particular interesse pelo que é português, viagens frequentes a Portugal e gozo de férias em território português.

Cabendo-lhe essa prova e não estando demonstrada de uma forma considerada bastante a referida “ligação efectiva à comunidade nacional” é justificada a denegação da nacionalidade.


Termos em que se concede provimento ao recurso.

Sem custas.


Lisboa,12-09-2006

Paulo Sá (relator)
Borges Soeiro
Pinto Monteiro